Florestan
Fernandes construiu uma obra que o transcende como pessoa e que contém
contribuições teóricas e metodológicas de grande relevância para as
Ciências Sociais. Sua obra não faz dele apenas um grande sociólogo no
Brasil, mas o inscreve entre os grandes sociólogos das Ciências Sociais
em nível internacional.
Há
quinze anos, a morte tirou Florestan do nosso convívio. Já faz tanto
tempo, e Florestan continua fazendo tanta falta, com sua lucidez, sua
coragem, sua inteligência e sua integridade, buscando sempre encontrar a
raiz dos grandes problemas postos no seu tempo, tentando
problematizá-los de maneira mais consistente tanto teórica quanto
politicamente, apontando assim novos caminhos para enfrentá-los, tendo
sempre como norte as possibilidades da construção de uma sociedade nova,
socialista. Florestan fala de “utopias igualitárias e libertárias, de
fraternidade e felicidade entre os seres humanos”.
Guardamos dele sua lembrança e seu exemplo. Acima de tudo, porém,
podemos mantê-lo presente (a nós e, principalmente, às nossas lutas) por
meio do legado que nos deixou com os seus escritos. Aí suas idéias,
suas formulações e seus embates – teóricos e políticos – continuam
vivos, atuais, presentes, motivadores. Aí podemos continuar a falar de
Florestan no tempo presente, e assim recolher seu ensinamento para
enriquecer o pensamento e para clarificar o encaminhamento das lutas que
o presente requer.
Florestan Fernandes construiu uma obra que o transcende como pessoa e
que contém contribuições teóricas e metodológicas de grande relevância
para as Ciências Sociais. Sua obra não faz dele apenas um grande
sociólogo no Brasil, mas o inscreve entre os grandes sociólogos das
Ciências Sociais em nível internacional.
Transformou em profundidade o padrão do trabalho científico da
Sociologia no Brasil, configurando o que para ele constituía a
Sociologia crítica. De acordo com Florestan, a produção desta Sociologia
resulta da conjugação de dois esforços simultâneos. Por um lado, requer
trabalho rigoroso e metódico de pesquisa balizada por padrões
propriamente científicos. Por outro lado, ciente de que a neutralidade
científica é um mito, requer que o próprio trabalho científico assuma
compromisso ético e político com a transformação social em favor dos
oprimidos e humilhados. Assim, para Florestan Fernandes, a Sociologia
crítica é ciência que, no movimento mesmo de fazer-se como ciência, é
engajada.
A obra de Florestan Fernandes é vasta e complexa. Há, porém, uma
linha de investigação, que atravessa toda a sua produção madura, que
confere conteúdo histórico, sociológico e político à ótica dos dominados
e à perspectiva de transformação social, das quais Florestan jamais se
afastou. É a investigação que o leva à formulação do seu conceito de
capitalismo dependente como uma forma específica do desenvolvimento
capitalista. Este conceito e sua teorização constituem uma contribuição
teórica e metodológica importantíssima de Florestan Fernandes para a
teoria do desenvolvimento capitalista. E abriga conseqüências políticas
da maior relevância. Levá-las em consideração pode afetar
significativamente o posicionamento quanto a políticas voltadas para a
transformação social mais efetiva e mais profunda. Trata-se, portanto,
de questões que permanecem importantes no cenário político.
O grande problema posto era o chamado “desenvolvimento”. Era
apresentado como um problema econômico a demandar equacionamento
político. Tal como estava posto, esse problema continha também um quadro
supostamente teórico, a oferecer sentido às políticas supostamente
necessárias para “resolver” o problema que desse modo era proposto: as
chamadas “teorias” da modernização ou do desenvolvimento.
À época, essas “teorias” eram bastante discutidas e criticadas no
âmbito acadêmico, mas Florestan foi dos primeiros a questioná-las mais a
fundo, em pesquisa que o levou a teorizar o capitalismo dependente. Ao
tempo em que Florestan finalizava a sua concepção do capitalismo
dependente como um conceito, e logo depois que ele tornou pública a sua
formulação, a chamada “escola da dependência” ensaiava seus primeiros
passos, mas estancava a meio caminho entre as “teorias” do
desenvolvimento/ modernização e a teorização de Florestan sobre o
capitalismo dependente. Na verdade, os dependentistas se aproximavam de
uma parte das descobertas/construções teóricas e metodológicas de
Florestan, mas as despiam de alguns de seus atributos essenciais,
exatamente aqueles que colocavam em questão o desenvolvimento desigual e
combinado da expansão do capitalismo naquele momento.
Para teorizar o capitalismo dependente, Florestan se opõe às noções
de desenvolvimento e de subdesenvolvimento oriundas das concepções
evolucionistas e deterministas das chamadas “teorias” da modernização.
Nega essas duas noções e, para analisar, compreender e ser capaz de
explicar a condição da nossa sociedade (e das sociedades que Florestan
identificava na sua teorização como sendo do mesmo tipo que a nossa),
recorre às formulações sobre o imperialismo.
Ao entender o desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo da
perspectiva dos povos e das regiões que a expansão capitalista mundial
incorpora, Florestan consegue dar conta de que esse processo mesmo de
incorporação implica necessariamente submeter esses povos e essas
regiões, sob formas historicamente diferenciadas, aos desígnios e aos
interesses maiores do capital que deste modo se realiza e se amplia.
A compreensão do capitalismo dependente como especificidade da
expansão do capitalismo em sua fase monopolista permite entender que o
“desenvolvimento” que essa expansão propõe para as regiões para as quais
se dirige é desenvolvimento desse capitalismo monopolista e que
significa incorporar essas regiões submetendo-as. Esta concepção do
capitalismo dependente em Florestan Fernandes contém ainda dois
desdobramentos muito importantes. Primeiro, que os setores dominantes
locais das regiões tornadas capitalistas dependentes têm participação
ativa e decisiva para a concretização da política que visa aquele
“desenvolvimento”. Para Florestan, eles são parceiros, menores e
subordinados, mas parceiros, do grande capital em expansão pelo mundo.
São intermediários, mas enquanto intermediários são imprescindíveis, e
contam com um retorno para si dos ganhos desse modo obtidos pelo capital
em expansão. Esta lógica implica uma super-exploração dos trabalhadores
e da massa da população das regiões capitalistas dependentes.
Segundo, que a democracia possível sob o capitalismo dependente é
sempre uma democracia restrita, a tal ponto que é mais correto
designá-la como uma autocracia, na qual a grande maioria do povo fica
excluída dos direitos, direitos que supostamente uma democracia deveria
estender a todos os cidadãos. Desse modo, a super-exploração implica
também como conseqüência uma super-dominação do conjunto dos setores
subalternizados da população nessas regiões.
Algumas vezes se tenta separar o Florestan Fernandes cientista e o
Florestan Fernandes político. É preciso considerar, porém, que a
descoberta da verdade da dominação, da submissão, da subalternização ou
da exploração, é, como tal, profundamente questionadora da realidade
social estruturada sobre esses processos de dominação, de submissão, de
subalternização ou de exploração. De tal modo que a exposição desses
processos é em si mesma profundamente política, e tanto mais eficaz na
crítica que contém quanto mais clara e sistematicamente fundamentada.
Estas são análises estruturais, nas quais, no entanto, é possível
encontrar a profundidade das raízes das tendências e dos comportamentos
políticos das classes dominantes das regiões capitalistas dependentes.
Florestan, no entanto, está sempre atento também às conjunturas e sabe
perfeitamente que para ser concreta uma análise precisa conjugar os
determinantes estruturais com os condicionantes conjunturais. Era desse
modo que ele procurava trabalhar.
Esse tipo de pesquisa científica, abrangente e crítica, bem como o
magistério que o acompanhava de perto, onde mais poderiam ser realizados
a não ser na universidade pública? Em 25 de abril de 1969, com base no
Ato Institucional nº 5, a ditadura imposta no Brasil pelo golpe
civil-militar de 1964 excluiu Florestan Fernandes do serviço público em
todo o território nacional. Cortava assim irremediavelmente a
continuidade de pesquisa científica importante, conduzida por ele e por
seus assistentes e colaboradores mais próximos, pesquisa que era
resultado de trabalho longamente acumulado em instituição acadêmica
superior que, enquanto instituição pública de ensino superior, se
supunha resguardada em sua autonomia pedagógica, didática e de pesquisa.
Mas tal suposição o arbítrio da ditadura revelou ser equivocada.
Com essa exclusão, Florestan perdeu o locus próprio para exercer o
seu ofício como cientista. Precisou redimensionar suas atividades.
Continuou suas pesquisas, mas desde então sem a interlocução permanente e
sistemática de seus colegas e colaboradores e de seus estudantes, e sem
apoio institucional, portanto de forma mais dispersa e descontinuada.
Mesmo assim, retomou o seu trabalho individualmente, seguiu pesquisando e
publicando os resultados de seus estudos, produzindo análises sempre
lúcidas, perspicazes e iluminadoras.
Um dos traços marcantes da vida e da trajetória de Florestan foi
sempre a defesa da educação pública, gratuita, laica, de qualidade, para
todos. Na primeira Campanha em Defesa da Escola Pública, Florestan foi
muito atuante e combativo e sua liderança foi reconhecida como fator
importante da ampliação e da consistência da Campanha. Mas não apenas em
momentos de grande mobilização como aquele, Florestan Fernandes esteve
sempre presente com seu apoio claro, público e firme a todas as
reivindicações e lutas dos movimentos dos professores, dos educadores e
dos estudantes, de todos os níveis, em defesa da educação pública e
gratuita, da elevação da sua qualidade e da sua democratização.
Como Deputado Federal Constituinte, Florestan foi o interlocutor
privilegiado que o Forum Nacional em Defesa do Ensino Público e Gratuito
na Constituinte teve na Subcomissão e na Comissão de Educação do
Congresso Constituinte. Sua atuação para a melhor acolhida às propostas
do Fórum foi importantíssima. Mas Florestan dialogava diretamente com o
Forum e com os movimentos que o constituíam e chegava mesmo a ajudar,
com sua análise sempre atenta e perspicaz, a nossa gestão das
dificuldades criadas pelos inevitáveis atritos iniciais e conflitos
eventuais entre os encaminhamentos de tantos movimentos de setores
diferenciados no interior do Forum. Sem o Deputado Federal Constituinte
Florestan Fernandes as lutas pela defesa da educação pública na
Constituinte certamente teriam sido ainda muito mais difíceis do que
foram.
A educação foi sempre um tema muito caro a Florestan, tema sobre o
qual ele elaborou uma extensa e fecunda produção. Se há um fundo comum a
essa produção, ele se forma em torno da educação pública gratuita de
alta qualidade e altamente democratizada. Afinal, a escola pública e as
bibliotecas públicas foram fundamentais para a vida de Florestan, aquele
jovem de origem lumpen que se viu obrigado pelas necessidades de
sobrevivência a trabalhar desde os seis anos de idade e que vislumbrou
na educação a perspectiva de, por meio de seu próprio esforço,
determinação e disciplina, poder transformar a sua condição social para,
como ele dizia, “tornar-se gente” e ser reconhecido “como gente”.
Leitor voraz, com sua inteligência e sua aplicação permanente à busca de
saber, Florestan perseguiu, com determinação obstinada os seus
objetivos através da educação e a partir do campo da educação tornou-se
Florestan Fernandes, reconhecido nacional e internacionalmente como
grande cientista, como grande professor e como destacado intelectual
defensor das grandes causas dos dominados e subalternizados, dos
oprimidos e humilhados.
* Mirim Limoeiro Cardoso é professora aposentada do Departamento
de Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ.