Pela primeira vez, ex-oficiais do
exército israelita dão a cara para denunciar os crimes de Israel em
Gaza. Eis uma entrevista de Yehuda Shaul, fundador da ONG Breaking the
Silence e autor do livro do mesmo nome. Seguem-se algumas declarações de
outros ex-oficiais na mesma organização. Por ex-oficiais israelitas, entrevista de Catherine Schwaab
Yehuda Shaul, 28 anos, ex-oficial do exército israelita, é autor de Breaking the Silence
[Quebrar o silêncio], um livro acontecimento que será publicado em
Janeiro, onde os combatentes do Tsahal [o exército israelita] contam o
seu intolerável comportamento nos territórios ocupados em Gaza. Uma
entrevista de Catherine Schwaab publicada na revista francesa Paris Match.
Catherine Schwaab [CS]: O seu livro é uma bomba pelas suas revelações: que efeito concreto espera?
Yehuda Shaul [YS]:
Espero poder enfim suscitar uma verdadeira discussão séria em Israel
pois, desta vez, os nossos testemunhos são numerosos, verificados,
incontestáveis: são 180 e tiramos deles uma análise, o que é novo.
CS: Pensa que a opinião pública ignora o que significa a ocupação militar dos territórios palestinianos?
YS: O público tem
clichés na cabeça que incitam à aprovação cega. Por exemplo, em hebreu, a
política israelita nos territórios ocupados resume-se a quatro termos
que não se pode contestar: “sikkul” (a prevenção do terrorismo),
“afradah” (a separação entre a população israelita e a população
palestiniana), “mirkam hayyim” (o “fabrico” da existência palestiniana) e
“akhifat hok” (a aplicação das leis nos territórios ocupados). Na
realidade, sob esses nomes de código escondem-se terríveis desvios que
vão do sadismo à anarquia e rejeitam os mais elementares direitos da
pessoa. Isso vai até aos assassinatos de indivíduos inocentes que se
calcula serem terroristas. E não falo das prisões arbitrárias e dos
assédios de toda a espécie.
CS: Qual é o objectivo disso?
YS: Está claramente
definido: é o de mostrar a presença permanente do exército, de produzir o
sentimento de ser-se perseguido, controlado, em suma, trata-se de impor
o medo a todos na sociedade palestiniana. Opera-se de maneira
irracional, imprevisível, criando um sentimento de insegurança que
quebra a rotina.
CS: A ocupação dos territórios não será necessária para evitar «surpresas» terroristas?
YS: Não! A ocupação
sistemática não se justifica, pois ela abrange uma série de interdições e
de entraves inadmissíveis. Queremos discutir sobre isso agora. Nem no
seio do exército nem no seio da sociedade civil ou política se quer
enfrentar a verdade. E essa verdade, é que nós criámos um monstro: a
ocupação.
CS: Pode esperar-se que discussões sérias sobre a paz melhorem a situação?
YS: Não, tentar acabar
com o conflito é uma coisa, acabar com a ocupação é outra. Estamos todos
de acordo para procurar a paz, mas esquecemos a ocupação. Ora, é
preciso começar por aí.
CS: Os vossos
testemunhos revelam a incrível impunidade de que beneficiam os colonos,
verdadeiros assistentes militares: eles brutalizam os vizinhos
palestinianos, levam os seus filhos à agressividade e ao ódio dos
árabes…
YS: Certamente, mas não
são eles o problema. É o mecanismo de ocupação que lhes deu esse poder
desmedido. Eu, quando era militar em Hebron, não podia deter um colono
que estivesse a infringir abertamente a lei sob os meus olhos. Eles
fazem parte desse sistema imoral.
CS: Pensa encontrar um apoio na opinião israelita?
YS: Por enquanto, somos
minoritários mas optimistas! Temos de sê-lo, pois vivemos tempos
sombrios, a opinião israelita é apática, as pessoas estão fartas. E o
preço a pagar por esta ocupação não é pesado. É a razão por que não há
vontade política. Em contrapartida, o preço moral é enorme.
CS: É a primeira vez que são feitas tais revelações?
YS: Não, há um ano,
tínhamos contado as pilhagens na faixa de Gaza e tínhamos sido atacados
por todos os lados: pelo exército, pela sociedade civil e a sociedade
política. Netanyahu acusou-nos de termos «ousado quebrar o silêncio».
Mas que silêncio? É um silêncio vergonhoso sobre um escândalo
estrondoso! Eles fizeram tudo para nos desacreditar. Saiu-lhes mal, pois
nós somos todos antigos oficiais que vivemos esses acontecimentos
terríveis.
CS: Precisamente,
muitos soldados e oficiais que se expressam parecem traumatizados pelo
que tiveram de fazer. Um sofrimento que permanece.
YS: Sim… Enfim, não nos
enganemos: as vítimas, são os palestinianos que aguentam esse controlo.
Hei-de sempre recordar a resposta de um comandante do exército durante
uma discussão televisiva em 2004. Tínhamos organizado uma exposição de
fotografias com um vídeo de testemunhos. Ele disse-me: «Concordo com o
que vocês mostram, mas é assim, temos de aceitá-lo, isso chama-se
crescer, tornar-se adulto». Fiquei sem palavras.
CS: Algumas pessoas pensam que Israel tem interesse em manter o conflito e que os palestinianos nunca terão as suas terras.
YS: É falso. É
impossível erradicar uma população de 3,5 milhões de habitantes. O
problema não está em dar-lhes uma terra, mas na obsessão de querer
controlá-los.
CS: Serão as jovens gerações dos 20-30 anos mais permeáveis ao vosso ponto de vista?
YS: Nem toda a minha
geração está de acordo comigo, mas ninguém pode dizer que minto. Somos
todos ex-membros do exército nacional, pagámos o preço, ganhámos o
direito de falar. É preciso que os espíritos mudem a partir de dentro.
CS: Você é judeu ortodoxo e tem um discurso estranhamente aberto. A sua fé ajuda-o neste combate?
YS: Nem por isso… Mas
eu sei o que significa ser judeu religioso: não ficar silencioso perante
o que está mal. E quero trazer uma solução, não um problema.
Declarações de 4 ex-oficiais, extraídas do livro Breaking the Silence
Granadas para provocar o medo
“Aparecemos de repente numa aldeia
palestiniana, às 3h da madrugada, e começamos a lançar granadas de
aturdimento nas ruas. Para nada, para provocar o medo. Víamos as pessoas
acordarem desvairadas… Diziam-nos que isso punha em fuga eventuais
terroristas. Balelas… Fazíamos isso todas as noites, rotativamente. Uma
rotina. Diziam-nos: ‘Bela operação’. Nós não compreendíamos porquê.”
Roubar um hospital
“Uma noite, recebemos ordens para entrar
à força numa clínica de Hebron que pertence ao Hamas. Confiscámos o
equipamento: computadores, telefones, impressoras, outras coisas, ao
todo um valor de milhares de sheleks [moeda de Israel = 0,21 euros, 0,47
reais]. E porquê? Atingir o Hamas financeiramente, mesmo antes das
eleições para o Parlamento palestiniano, para eles as perderem. O
governo israelita anunciara oficialmente que não iria tentar influenciar
essas eleições…”
“Matámos um tipo por pura ignorância”
“Não sabíamos que, durante o ramadão, os
fiéis saem à rua às 4 horas da manhã para acordar as pessoas, para que
se alimentem antes do nascer do dia. Identificamos um tipo numa alameda
que segura algo nas mãos, gritamos-lhe ‘alto!’. Então, se o ‘suspeito’
não pára imediatamente, o regulamento exige que se faça o aviso. ‘Páre
ou atiro’, depois atiramos para o ar, a seguir para as pernas, etc.
Matámo-lo, ponto final. E por pura ignorância dos ritos locais.”
Camponeses em pranto
“As nossas escavadoras levantam uma
barreira de separação mesmo no meio de um campo de figueiras
palestiniano. O camponês chega lavado em lágrimas: ‘Plantei este pomar
durante dez anos, esperei dez anos que ele desse frutos, colhi-os
durante um ano apenas e agora arrancam-mo pela raiz!’ Não há hipótese de
replantar. Só há compensações a partir de 41% de terra confiscada. Se
for só 40%, não levas nada. O pior é que amanhã, se calhar, eles vão
decidir parar a construção da barreira.”
Devolver os galões [distintivos], voltar a ser soldado
“Instalamos pontos de controlo surpresa.
Em qualquer lado, nunca se sabe claramente. E de repente prendemos toda
a gente, controlamos todos os documentos. Ali estão mulheres, crianças,
velhos, durante horas, por vezes à torreira do sol. Prendemos
inocentes, pessoas que querem ir trabalhar, procurar alimentos, não são
terroristas… Tive de o fazer durante cinco meses, oito horas por dia,
isso deitou-me abaixo. Então decidi devolver os galões de comandante.”
“A nossa missão: incomodar, assediar”
“Estamos em Hebron. Como os terroristas
são residentes locais e a nossa missão é entravar a actividade
terrorista, a via operacional é esquadrinhar a cidade, entrar em casas
abandonadas, ou em casas habitadas escolhidas ao acaso – não há serviço
de informações para nos orientar –, revistá-las, saqueá-las… e nada
encontrar. Nem armas nem terroristas. Os habitantes acabaram por se
habituar. Andam irritados, depressivos, mas habituados porque é assim há
anos. Fazer sofrer a população civil, fazer das suas vidas um inferno, e
saber que isso não serve para nada. Dá um tal sentimento de
inutilidade.”
“As punições colectivas”
“Os meus actos mais imorais? Fazer
explodir casas de suspeitos terroristas, prender centenas de pessoas em
massa, olhos vendados, pés e mãos atados, levá-los em camiões
[caminhões]; entrar nas casas e expulsar brutalmente as famílias; às
vezes voltávamos lá para fazer explodir a casa; nunca sabíamos porquê
essa casa e não outra, nem quais suspeitos prender. Por vezes davam-nos
ordem para destruir, com o bulldozer ou com explosivos, a entrada da
aldeia, à guisa de punição colectiva por terem albergado terroristas.”
“Proteger colonos agressivos”
Chegamos subitamente ao distrito de
Naplouse para garantir a segurança dos colonos. Descobrimos que eles
decidiram atacar Huwara, a aldeia vizinha, palestiniana. Estão armados,
atiram pedras, com o apoio de um grupo de judeus ortodoxos franceses que
filmam, tiram fotografias. Resultado: ficamos entalados entre árabes
surpreendidos, aterrorizados, e a nossa obrigação de proteger os
colonos. Um oficial tenta fazer recuar os colonos para as suas terras, é
agredido, há tiroteio, o oficial retira-se. Não sabemos o que mais
fazer: sustê-los, proteger os palestinianos, proteger-nos a nós, uma
cena absurda e demente. Acabámos por conseguir que os agressores
voltassem para casa. Uma dezena de árabes ficaram feridos.”
Assassinar um homem desarmado
Estamos de vigia numa casa cujos
ocupantes expulsámos, suspeita-se da presença de terroristas, estamos de
vigia, são 2 horas da manhã. Um dos nossos atiradores localiza um tipo
que caminha em cima de um telhado. Eu olho com os binóculos, tem 25 ou
26 anos, não está armado. Damos a informação por rádio ao comandante e
este intima-nos: ‘É um vigia deles. Abatam-no.’ O atirador obedece. Eu
chamo a isso um assassinato. Tínhamos meios de o prender. E não foi um
caso único, são às dezenas.”
Versão original da entrevista (em francês) aqui.
Versão original (em francês) das declarações dos 4 oficiais extraídas do livro, aqui.
Tradução da entrevista de Yehuda Shaul: Comité de Solidariedade com a Palestina
Tradução dos excertos do livro: Passa Palavra.