“Não
é permitido entrar ou sair sem mostrar licenças concedidas por um dia,
três semanas ou permanentemente, e que podem ser suspensas ou retiradas a
qualquer momento. Também ocorre de passarmos o dia na prisão, sem
motivo aparente”
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por Marina da Silva no LeMonde-Brasil |
“A situação no campo de Nahr al-Bared é
um desastre.” Quantas vezes já ouvimos essa afirmação categórica? Nós
mesmos precisamos de oito dias só para conseguir permissão para entrar –
e, mesmo assim, sob escolta militar – nesse campo palestino localizado
dez milhas ao Norte de Trípoli, onde o grupo Fatah al-Islam e o exército
libanês se enfrentaram, de 20 maio a 2 setembro de 20071.
Após o combate, os saques continuaram, 95 % do antigo campo foram
destruídos e os arredores completamente devastados. Fechados em uma área
dita temporária (e de confinamento), assustadora, protegida de todos os
olhares, dois terços dos seus 30 mil refugiados voltaram para o campo.
Nahr al-Bared era o segundo campo de
refugiados palestino em número de habitantes. E era também um dos mais
tranquilos e dos menos cercados. Criado em 1949 em uma área de mero 0,2
km2, primeiramente com barracas, e em seguida com um
emaranhado de estruturas mais sólidas (feitas de pedra, alvenaria e
concreto), ele é limitado a Noroeste pelo mar que os habitantes chamavam
de “o mar de pobres”, porque trazia com ele toda a poluição da cidade
industrial. Com o crescimento contínuo da população, o campo se estendeu
a duas cidades vizinhas, Bhanin e Muhmarra, em uma área quatro vezes
maior, mas menos povoada, comumente chamada de “novo campo”.
“Ele era um verdadeiro centro de
atividade, o único campo onde havia muitas joalherias”, conta Hodda, que
chegou a trabalhar ali regularmente, com a associação de mulheres
Najdeh. “Os libaneses também iam até lá para fazer compras, algumas
vezes comprar mercadorias contrabandeadas da Síria.” Isso agora é
passado. Os habitantes se sentem traídos. “Eles evacuaram o campo a
pedido do exército e de organizações palestinas, mas para eles a
rendição de cerca de 400 jihadistas não pode justificar uma destruição
dessa dimensão”.
A primeira onda de refugiados a voltar,
em outubro de 2007, sofreu um choque terrível: “O campo tinha sido
completamente arrasado por tratores. Nossas casas foram saqueadas,
roubadas, nossos locais de culto profanados. Nós havíamos deixado tudo
nelas. Eu não tenho uma única foto. Perdemos tudo! Até mesmo nossa
memória”, lamenta-se Abu Ghassan, que encontramos em Chatila, em
Beirute, onde 200 famílias estão instaladas. Mas grande parte da
população, cerca de oito mil pessoas, foi obrigada a se instalar em
Badaoui, um outro campo de refugiados palestino ao lado de Trípoli, que
viu sua população dobrar em 2007. Foi preciso mais de um ano para
resolver os problemas ligados ao acolhimento desses refugiados, graças
ao Escritório de Socorro e de Trabalhos das Nações Unidas para os
Refugiados da Palestina no Oriente Médio (UNRWA, em inglês), e ao
conjunto das organizações palestinas do campo. Foram abertas mais duas
outras escolas, feitas de material pré-moldado. Algumas famílias ainda
estão dormindo nas garagens transformadas em casas, mas a maior pobreza
fica mesmo no lado do chamado “novo campo”.
"Não
é permitido entrar ou sair sem mostrar licenças concedidas por um dia,
três semanas ou permanentemente, e que podem ser suspensas ou retiradas a
qualquer momento. Também ocorre de passarmos o dia na prisão, sem
motivo aparente", declara Khaled. Toda a área se
transformou em zona militar, proibida aos estrangeiros. Somente os
palestinos que viviam ou trabalhavam ali e os funcionários da UNRWA ou
de outras organizações não-governamentais (ONGs) podem entrar.
No antigo campo, os trabalhos acabaram
de começar. “Precisamos de mais de um ano e meio para limpar o terreno,
sendo que após a guerra israelense de 2006 as pessoas voltaram
imediatamente para casa, apesar das milhares de bombas lançadas sobre o
Sul”, explica Khaled. No “novo campo”, as famílias são
obrigadas a viver entre ruínas e escombros. Eles reconstruíram suas
casas com as próprias mãos – nuas! Corredores de pré-fabricados
abandonados são utilizados como abrigos temporários. Uns poucos pontos
de comércio foram reabertos, mas raros são os clientes que conseguem
cruzar as barragens impostas pelo exército.
“Para os palestinos, haverá um antes e
um depois de Nahr Al-Bared”,diz Ali Hassan. Eles acreditaram por muito
tempo que seu futuro estaria ligado a Ain El-Heloueh, o grande campo de
Sidom, que sempre foi o foco das atenções. Ali, a presença de grupos
jihadistas já é antiga2, e os incidentes frequentes. Mas as
organizações palestinas continuam fortes o bastante para manter a
segurança. E, sobretudo, “os extremistas são eles próprios oriundos do
campo. Ali eles têm suas famílias e não estão dispostos ao
enfrentamento. Em Nahr al-Bared, eles foram introduzidos em 2006 e na
maioria das vezes nem eram palestinos, mas libaneses, sauditas,
iemenitas, iraquianos etc. De onde eles vinham ? A quais interesses
serviam ?”Essas são questões importantes3,mas que acabam por ocultar a
questão central : os direitos dos refugiados palestinos no Líbano.
“A recusa de sua instalação definitiva (tawtin) é afirmada tanto na Constituição quanto lembrada nos Acordos de Taif4.
Mas essa recusa é um disfarce para o tratamento discriminatório”,
resume Sari Hanafi, professor de sociologia da universidade americana de
Beirute5.Ele vê uma melhora na recente alteração da legislação
trabalhista, que permite que os palestinos exerçam certo número de
atividades até então proibidas – apesar de as profissões liberais
continuarem proibidas. Mas ele lembra que a lei proibindo a eles o
acesso à propriedade, promulgada em 2001, [também] ainda está em vigor e
foi um dos principais obstáculos à reconstrução de Nahr al-Bared, o que
obrigou o Estado a comprar o terreno.
Membro da Comissão de Reconstrução de
Nahr al-Bared, ele observa: “Muitos campos de refugiados palestinos já
foram destruídos no Líbano, mas essa é a primeira vez que um deles é
reconstruído. Esse é um projeto piloto, bastante incomum, realizado em
coordenação com os refugiados, as organizações palestinas, o Comitê de
Diálogo Líbano-palestino, as autoridades libanesas e a UNRWA.”
Para UNRWA, esse é o projeto mais
importante de sua história, onde aposta toda sua credibilidade. Há dois
anos, Salvatore Lombardo é o seu responsável, se lançando de corpo e a
alma. “Se nós falharmos, causaremos com toda certeza grandes desilusões e
convulsões sociais que poderiam afetar a estabilidade do Norte do
Líbano. Espero que os libaneses não sejam acometidos de cegueira
política”.
Foi necessário um ano e meio para
desenvolver os planos: “Primeiro tivemos de reconstruir cada lugar, cada
rua, chegar a um acordo sobre sua localização, superfície e,
posteriormente, sobre sua transformação, além de obter o consentimento
das famílias. Você pode imaginar os recursos necessários para
desenvolver todo esse trabalho!” Os arquitetos levaram em conta o tecido
sociológico de Nahr al-Bared, organizado, como na maioria dos campos,
em função de relações da vizinhança de locais de origem na Palestina
antes de 1948. Foram feitas reuniões com os moradores, muitos dos quais
são originários dos vilarejos de Safouri e Saf-Saf, na Galileia.
A situação ficou complicada quando foi preciso submeter o master plan
ao governo, que fez uma série de restrições: não mais de quatro andares
para os prédios (regra usual para os campos), com possibilidade de ter
um balcão ou um terraço só no terceiro e quarto andares, de modo a
proibir o acesso da rua, em caso de agitações. Nenhuma construção no
subsolo. Estradas mais largas: de pelo menos quatro metros e meio,
dimensão que permite a passagem de um tanque. No final, uma perda
estimada de pelo menos 15 % da superfície de ocupação, para cada
família.
Finalmente aprovado o master plan ainda precisa ser executado. Ele foi dividido em oito zonas de reconstrução (chamadas de packages),
cada uma das quais precisa, por sua vez, ser validada pelo ministério
do Planejamento. Outros obstáculos têm surgido, como a descoberta, em
março-abril de 2009, dos restos arqueológicos de Orthosia, o que
bloqueou o trabalho por sete meses, forçando a UNRWA a indenizar o
departamento de Antiguidades. Ou, em meados de 2009, a moratória pedida
pelo general Michel Aoun, líder cristão do Movimento Patriótico Livre, o
que levou a uma nova interrupção. O medo da instalação dos palestinos6,
o que alteraria o equilíbrio religioso no Líbano e visto como uma
desistência do direito de regresso, por parte dos refugiados, é
compartilhado por todos os partidos políticos libaneses.
O montante necessário para reconstruir o
velho campo foi estimado em 328 milhões de dólares. Foi pago apenas um
terço, ou seja, 119 milhões de dólares, e ainda faltam 46 milhões para
finalizar as packages 3 e 4 – o que equivale apenas à metade do
antigo campo. A agência sempre divulga o andamento dos trabalhos, a fim
de convencer os doadores (até agora, essencialmente a Comissão
Europeia, os Estados Unidos e Arábia Saudita), que haviam se
comprometido, já por ocasião do final confrontos e da conferência de
Viena, em junho de 20087.
Quanto ao novo campo, sua reabilitação
foi deixada por conta dos próprios habitantes, uma vez que a agência não
dispõe de recursos para reconstruí-lo. Ela tem apenas um orçamento de
ajuda emergencial que permite que ele funcione.
“Restam ainda cerca de 300 unidades
pré-fabricadas. A UNRWA sugeriu à população que elas fossem fechadas, em
especial neste verão, quando a temperatura chegou a 45 graus, mas as
pessoas se recusam a ir embora, por terem demasiado medo, e por quererem
marcar com sua presença a determinação de voltar para casa.”As famílias
que estão fora do campo recebem assistência habitacional. No começo de
200 dólares, esse auxílio foi reduzido a 150 dólares no segundo semestre
de 2009. Enquanto o aluguel médio na região aumentou de 75 para 250
dólares.
Para as organizações palestinas, a
reconstrução do campo é um consenso. “Perdemos a batalha de Nahr
al-Bared”, reconhece Jemal Chehabi, líder político do Hamas no norte do
Líbano. “Nós não conseguimos evitar sua destruição e agora somos
responsáveis por sua reconstrução”. Já o representante do Fatah em
Badaoui, Abou Jihad Fayad, considera que “o campo de Nahr al-Bared foi
um incidente que atingiu tanto os palestinos quanto o exército”,mas
lembra: “Prioritariamente, as pessoas estão esperando para voltar à para
a Palestina.”
Esse é o primeiro dossiê no qual a Fatah
e o Hamas cooperam, um passo importante ressaltado por Abdallah
Abdallah, o novo embaixador da Organização pela Libertação da Palestina
(OLP) em Beirute: “Estamos trabalhando para criar uma delegação
unificada. Não queremos que a questão seja tratada meramente sob o
ângulo da segurança, é necessário levar em consideração nossos direitos
políticos e melhorar a situação humanitária. Queremos desconstruir os
estereótipos ligados à imagem dos campos. Temos necessidade de segurança
e as autoridades libanesas também. Precisamos trabalhar juntos. Os
tratamentos discriminatórios podem levar a uma situação de explosão8. Para nós, o importante é manter contacto com a população, e a confiança em nossa própria força.”
Responsável pelo dossiê para a OLP e
diretor da Comissão Superior de Nahr al-Bared, Marwan Abdelall, conhece
bem o campo, onde ficou sitiado por três meses. Segundo ele, os vários
obstáculos para a reconstrução foram vencidos, mas o problema da
liberdade de acesso persiste: “Os postos de controle arbitrários, o
arame farpado, o controle de deslocamentos dentro e fora do campo, com a
exigência de autorizações a todos os moradores – tudo isso não pode
continuar.” Ele acrescenta: “Em fevereiro de 2009, o ministério da
Defesa tentou instalar uma base naval na orla do antigo campo. Acabou
desistindo, mas estamos preocupados com o projeto de uma delegacia de
polícia dentro do campo.” Na verdade, cinco milhões de dólares estariam
destinados para a segurança no interior do campo, despesas até agora
assumidas pelas organizações palestinas, obedecendo a uma disposição do
documento de Viena.
Esse dispositivo assusta a população,
que vê nele uma ameaça para todo o Líbano. “Será como uma colônia
israelense. Um teste que conduzirá à expansão do controle do exército
aos outros campos de refugiados”, lamenta Oum Tarek.
1 Os confrontos resultaram na morte de 47 civis e 163 militares, 220 membros do grupo e na detenção de centenas de outros ainda aguardam julgamento, enquanto alguns conseguiram escapar. 2 Ver Bernard Rougier, Le djihad au quotidien, PUF, Paris, 2004. 3 LerFidaa Itani, “Enquête sur l’implantation d’Al-Qaida au Liban, e Vicken Cheterian, “Désarroi des militants au Liban », Le Monde diplomatique, respectivamente fevereiro e dezembrode 2008. 4 Acordos assinados em 22 de outubro de 1989, e que puseram fim à guerra civil. 5 State of Exception and Resistance in The Arab World, Center for Arab Unity Studies, Beirute, 2010. 6 A recusa de sua implantação foi lembrada pelo presidente Michel Sleimane na assembleia geral da Organização das Nações Unidas (ONU), em 26 de setembro de 2010. 7 Por iniciativa dos governos do Líbano e da Áustria, da Liga Árabe e da União Europeia (UE), e com a participação de delegações de vários países do mundo árabe, Europa, Estados Unidos, China, Japão e representantes das instituições financeiras envolvidas na cooperação e apoio aos refugiados palestinos. O documento de Viena prevê ainda o reforço da segurança no interior do campo de Nahr al-Bared. 8 Sobre a situação do conjunto dos campos do Líbano, ver também o relatório do International Crisis Group, “Nurturing instability : Lebanon’s Palestinian refugees camps”, Bruxelas, fevereiro de 2009. |
Tropas de choque na capital
egípcia, Cairo, entraram em confronto nesta terça-feira com milhares de
manifestantes que exigem reformas políticas no país em um evento
batizado na internet pelos participantes de “dia da revolta”.
A manifestação foi inspiradada pela onda de
protestos populares que vem sacudindo a Tunísia desde dezembro e que
levaram neste mês à renúncia do presidente Zine Al-Abidine Ben Ali.
A polícia usou canhões de água e bombas de gás de efeito moral para dispersar a multidão que se reuniu no centro do Cairo.
Aglomerações e manifestações populares são proibidas há décadas no Egito, governado desde 1981 por Hosni Mubarak.
Oposição dividida
Um correspondente da BBC na cidade diz que
ocorrem manifestações em diversos pontos do Cairo e que o alto
comparecimento parece ter surpreendido até os organizadores.
Os protestos começaram pacíficos, mas à medida em que cresciam, surgiram os primeiros episódios de violência.
Ocorreram protestos também em outras cidades, como Alexandria, no norte do país.
Os manifestantes têm três reivindicações
principais: a suspensão da lei de emergência que vigora permanentemente
no país (e que restringe liberdades civis), a saída do ministro do
Interior e a adoção de um limite de tempo ao mandato presidencial – o
que poderia levar ao fim do governo de Mubarak.
O Egito compartilha muitos dos problemas que
geraram os problemas na vizinha Tunísia, como o aumento de preços de
alimentos, alto índice de desemprego e revolta contra o que percebem ser
a corrupção do governo.
Mas a oposição egípcia se dividiu em relação ao protesto.
Um de seus líderes, Mohamed El Baradei, pediu
para que a população participasse, mas o maior movimento oposicionista
do país, a Irmandade Muçulmana, assumiu uma posição mais ambivalente.
A organização disse que não iria aderir
oficialmente aos protestos, mas também não iria pedir que seus membros
não participassem deles.
A população egípcia tem um nível educacional
muito mais baixo do que a tunisiana, com alta taxa de analfabetismo e
pouco acesso à internet.