sábado, 12 de março de 2011

A financeirização da fome

Nos últimos 30 anos, a desregulamentação e a liberalização da finança quebraram as barreiras impostas pelas reformas dos anos 30 do século passado, criaram os supermercados financeiros e promoveram a securitização dos créditos. No vendaval das reformas neo-liberais, os governos abandonaram as políticas de estabilização de preços baseadas na formação e operação de estoques reguladores (ainda que os países desenvolvidos tivessem mantidos os subsídios a seus agricultores) e submeteram os mercados de commodities, instáveis por sua própria natureza, ao capricho e à sanha especulativa dos mercados futuros. O artigo é de Luiz Gonzaga Belluzzo, especial para a Carta Maior.


Depois do crash de 1929, o Glass-Steagal Act proibiu o envolvimento direto dos bancos comerciais em operações nos mercados de capitais, mercados imobiliários e na especulação nos mercados de alta volatilidade, como é o caso das commodities. Nos últimos 30 anos, a desregulamentação e a liberalização da finança quebraram as barreiras impostas pelas reformas dos anos 30 do século passado, criaram os supermercados financeiros e promoveram a securitização dos créditos. Na verdade, as inovações financeiras alteraram as relações entre bancos de depósito, bancos de investimento e outras instituições financeiras que se aproximaram das funções cumpridas pelos bancos comerciais. Ao mesmo tempo, estes passaram a executar funções próprias dos bancos de investimento, ao criar os SIVS (Special Investment Vehicles) para carregar os papéis lastreados nas operações de crédito, não só os hipotecários.

Entre outras consequências, as transformações impulsionaram a securitização dos créditos, estimularam a “alavancagem” (palavra horrível) abusiva - ou seja, a utilização do crédito barato para sustentar a posse de ativos em desproporção perigosa com o capital próprio. Na maioria dos casos, antes da crise, a relação era de 30 para 1. Não espanta que tais procedimentos da alta finança tenham promovido o inchaço das operações com derivativos nos mercados futuros de juros, câmbio, matérias-primas e alimentos. No vendaval das reformas neo-liberais, os governos abandonaram as políticas de estabilização de preços baseadas na formação e operação de estoques reguladores (ainda que os países desenvolvidos tivessem mantidos os subsídios a seus agricultores) e submeteram os mercados de commodities, instáveis por sua própria natureza, ao capricho e à sanha especulativa dos mercados futuros.

O Federal Reserve o Tesouro americano deixaram correr farra da alavancagem e o festival da multiplicação de securities lastreadas em empréstimos hipotecários. Essa música tambem embalava a especulação altista com estoques de matérias-primas e alimentos, cuja oferta responde lentamente a um aumento de preços. Às vésperas da crise de 2007-2008, os principais índices de preços das commodities mostravam uma aceleração impressionante.

Nos últimos anos, com o auxílio inestimável dos trabalhadores chineses e do Banco Central da China, a rápida queda de preços do produtos manufaturados ajudou os bancos centrais dos paíse desenvolvidos conseguiram manter a inflação sob controle. Mas o “sucesso” das políticas de metas de inflação não impediu, senão incitou a recorrência de ciclos exuberantes de valorização dos ativos. A concorrência entre os possuidores de riqueza, associada ao crédito elástico e à crença nas intervenções de última instância dos bancos centrais, estimularam o surgimento de episódios especulativos.

O colapso do Lehman Brothers em setembro de 2008, cozido e fervido nos temperos e pruridos ideológicos de Paulson e Bernanke, interrompeu o ciclo de inflação de ativos. Os preços das commodities, aí incluído o petróleo, despencaram. Nesse momento, a corrida dos investidores para a “qualidade” suscitou a valorização do dólar e provocou surtos de desvalorização nas moedas dos países produtores de commodities, sem qualquer efeito sobre a inflação nos emergentes. Isto porque o choque da desvalorização foi compensado pelo colapso dos preços dos produtos básicos.

A vacilada deflagrou as vendas de securities nos fundos mútuos e de hedge administrados por bancos de investimento que financiavam a posse desses ativos tomando recursos nos mercados monetários atacadistas (semelhantes aos fundos DI de curtro prazo no Brasil). As aplicações nesses mercados sustentavam posições alavancadas em ativos originados nos empréstimos hipotecários e outras operações de crédito securitizadas.

A clientela cuidou de retirar os depósitos das instituições menores para concentrar o rico dinheirinho nos títulos do governo americano, vistos com derradeiro refúgio da riqueza líquida das empresas e das famílias endinheiradas. Diante do encolhimento da confiança, os bancos tornaram mais rigorosos os critérios de concessão do crédito no mercado interbancário e, assim, fizeram periclitar instituições ilíquidas, mas solventes. Em situações como a aquela, passar da iliquidez à insolvência é um passo.

Mas, os bancos centrais e as autoridades do Tesouro - imprudentes e cúmplices da especulação - não poderiam deixar a vaca ir para o brejo. Foram compelidos a intervir na cadeia de interrelações entre as instituições para domar a mula sem cabeça dos mercados infectados pela desconfiança. Deixar o bicho à solta seria grave irresponsabilidade. Nos países centrais, a crise de liquidez transformou-se numa crise de crédito, depois transfigurada num festival de insolvências, contida pela intervenção generosa das autoridades

As generosas injeções de liquidez e os programas de compra de ativos podres não fizeram pouco. Ademais de construir um piso para a deflação de ativos, as intervenções suscitaram um movimento global no interior da circulação financeira. Os movimentos observados no interior da circulação financeira, em si mesmos, não prometem à economia global uma saída rápida da trajetória medíocre, mas indicam que os mercados de ativos começam a se restabelecer da derrocada de 2008.

Trata-se, na verdade de um rearranjo dentro do estoque de riqueza que responde aos preços esperados dos ativos, por parte dos investidores que lograram vencer o colapso da liquidez. Salvos das perdas e capturados os benefícios oferecidos pelas autoridades, os investidores eles se mobilizam para a realocação de carteiras. Esse movimento favoreceu a forte recuperação as bolsas, a valorização das moedas dos emergentes e o “aquecimento” dos mercados de commodities. O dólar devolve a valorização observada nos primeiros meses de crise e com isso ajuda a explosão dos preços das matérias-primas e alimentos.

Semanas atrás, escreví no jornal Valor que, em sua coluna no New York Times, Paul Krugman jogou a responsabilidade do aumento de preços às condições climáticas. Sem dúvida, as secas e enchentes em áreas de excelência na produção de alimentos desempenham um papel importante na contração da oferta de muitos produtos, dentre ele o trigo, o nosso pão de cada dia. Krugman, no entanto, rejeitou as hipóteses que, além dos fatores climáticos e do aumento da demanda de alimentos e de outras matérias primas nos emergentes, apontavam a expansão da liquidez global e suas taxas de juro ínfimas que botam fogo na especulação com as mercadorias transfiguradas em ativos. Krugman, assustado com os falcões da austeridade fiscal e monetária que rondam sinistramente a convalescente economia americana, chuta para escanteio a hipótese das “distorções” causadas pelas políticas anticíclicas e pelos derivativos na volatilidade e na elevação dos preços.

Os adversários da crítica ao papel dos derivativos afirmam que os operadores financeiros não intervêm diretamente nos “ativos subjacentes” negociados nos mercados a termo, ou seja, nos mercados físicos de matéria primas. Sustentam que o volume de transações nos mercados a termo é muito superior àquele transacionado nos mercados à vista, com fracas interações entre eles.

O economista Michel Aglietta argumenta que essa visão parte de uma interpretação errônea da transmissão do movimento de preços entre os mercados de derivativos de matérias-primas e os mercados “físicos”. O ponto de vista dos defensores da escassez tem alguns elos fracos: 1) a estrutura de mercado dos produtos agrícolas é fortemente concentrada, governada por monopólios e monopsônios com enorme poder de administrar preços e quantidades. Portanto, se um mercado está em “desequilíbrio” por conta de um choque de oferta, o movimento inicial é amplificado pela formação de posições à termo “compradas” pelos caçadores de tendências. A transmissão para os mercados á vista é efetuada através das grandes empresas que tratam de acumular estoques tão logo antecipam a alta de preços deflagrada nos mercados a termo.

O G 20 se reúne em Paris assombrado pelo espectro da estagflação, fenômeno que os economistas e policy makers imaginavam ter sepultado no início dos anos 80 do século passado, sob o peso das taxas de juros de Paul Volker. O presidente Sarkozy propõe um arranjo internacional, com formação de estoques reguladores administrados por produtores e consumidores para estabilizar os preços das commodities.

Seria conveniente lembra que, na posteridade da 2ª Guerra Mundial Keynes sugeriu a constituição de um comitê internacional encarregado de estabilizar os preços das matérias primas e alimentos. Esse comitê, composto por países produtores e consumidores, teria o apoio da Clearing Union, o sistema público de financiamento dos desequilíbrios dos balanços de pagamentos, envolvendo responsabilidades dos países deficitários e superavitários. Nada mais atual.

‘Questão urbana foi rifada pelo governo Lula, pelo PT, e aparentemente, pelo governo Dilma’

  Valéria Nader e Gabriel Brito, da Redação   do Correio da Cidadania
 
No que já se tornou uma regra, o verão brasileiro mais uma vez foi permeado por desastres oriundos de chuvas. Chuvas e catástrofes são praticamente sinônimas nestes tristes trópicos. Em São Paulo, maior metrópole do país, a espiral de problemas trazidos pelas chuvas tem tornado a cidade cada vez mais insustentável, bastando alguns minutos de chuva para deixar de funcionar.

 
Em entrevista ao Correio da Cidadania, a urbanista e professora da FAU-USP Ermínia Maricato descreve um panorama desalentador a respeito da gestão de uma cidade, que, mesmo afundando, não traz indícios de reversão das atuais lógicas predatórias de ocupação do solo. O domínio da especulação imobiliária e a incessante construção de vias asfaltadas, que agrava o quadro de "uma das maiores áreas impermeáveis do mundo", articulam-se a partir de poderosos grupos e interesses econômicos, que imperam cada vez mais soberanos em meio ao descaso público e à apatia social.
 
Em face destas constatações, a recente tomada do Ministério das Cidades por interesses políticos imediatos, assim como o estrondoso corte de verbas de que foi vítima, em pleno começo de uma nova gestão presidencial, nem mesmo chegam a ser surpreendentes. "Os governantes começam obras que eles podem acabar em quatro anos. Drenagem e sistema de transporte de massa não são obras para quatro anos. Toda a criação de uma gestão sobre o solo não é coisa de curto prazo".
 
Em uma metrópole comprometida já a partir de sua concepção histórica, a urbanista é ainda veemente em dizer que o mero apontamento de erros, a partir de velhas e novas concepções de planejamento urbano, se tornou uma postura insuficiente e inócua.
 
A íntegra da entrevista pode ser conferida a seguir.
 
Correio da Cidadania: Chuva e catástrofe viraram sinônimos na cidade de São Paulo. Basta que chova em média intensidade e são milhares de pontos alagados e vias congestionadas. Onde estão as raízes estruturais dessa rotina ‘trágica’ em que se transformou a vida dos paulistanos?
 
Ermínia Maricato: Em primeiro lugar, se formos ver o que acontece em vários aspectos da vida da cidade, esse não é o único fenômeno catastrófico. As conseqüências da poluição do ar são, por exemplo, outro fenômeno muito negativo. Há pesquisas que fazem correlação entre mortes por problemas cardíacos, dentre outras, com a poluição, que só neste momento aparecem. Acredito que o problema das enchentes fica mais evidente porque as pessoas que andam de automóvel vêem um trânsito cada vez mais caótico, de forma clara.
 
A cidade de São Paulo é uma das maiores áreas impermeabilizadas do mundo. Não sou eu que acho, e sim diversos especialistas do mundo que já vieram aqui e ficaram muito impressionados com a gigantesca superfície impermeabilizada – esse é o grande problema. E tivemos políticas que trabalharam para impermeabilizar o solo e fazer o mesmo com os canais de drenagem da cidade, e que não foram fruto somente de uma política rodoviarista, de prioridade ao automóvel, mas também de uma engenharia vesga; fizeram as marginais dos rios, impermeabilizando assim o principal meio de extravasamento de sua água, as avenidas de fundo de vale, a canalização de córregos, a própria retificação do rio Tietê, que era cheio de meandros em suas várzeas...
 
Tivemos grandes obras que contribuíram para apressar o caminho das águas, o escoamento para as calhas, sem retenção d’água. O processo de urbanização da cidade foi acompanhado de erros, é importante dizer, não foi natural.
 
Agora, incidimos em novos erros, como os piscinões. Como se apressaram as águas, o que não pode ocorrer, estamos retardando o caminho delas através dos piscinões. Não estou sequer os criticando nessa situação de emergência, mas são muito discutíveis. E, além disso, não fazemos o necessário: diminuir um pouco a superfície impermeável e torná-la permeável, ter diretrizes para a cidade. É preciso retirar aquilo que impermeabiliza a cidade, não apenas fazer piscinão. A ampliação da Marginal feita pelo Serra foi completamente na contramão de tudo que deveria ser feito.
 
Correio da Cidadania: Isto é, por mais que os problemas aumentem, os paradigmas não mudam.
 
Ermínia Maricato: Exatamente. Estamos diante do rodoviarismo, a principal causa disso tudo, do desprezo impressionante pelas causas reais dos problemas, como no caso da drenagem da cidade, algo muito pouco observado.
 
O Alckmin até fez mais do que o Serra, mas devemos insistir na observação da questão do controle da ocupação e uso do solo, suas diretrizes, do que decorrem todos os problemas destacados.
 
Correio da Cidadania: Nesse sentido, não seria preciso incluir de forma clara nos debates a questão da macro-drenagem, cada vez mais inviabilizada com a impermeabilização do solo urbano, o que confronta a própria geologia de São Paulo, uma cidade erigida sobre áreas varzeanas e centenas de cursos d’água, muitos já concretados ao longo das décadas?
 
Ermínia Maricato: São tantos os cursos d’água (alguns deles secaram e não existem mais) que uma parte fica canalizada nas galerias, exigindo manutenção, o que é caríssimo. Há áreas na cidade em que se abrem grandes buracos nas galerias periodicamente. Aí se vê que tem uma galeria desabando, muito envelhecida, no terreno.
 
Portanto, tivemos, de fato, uma engenharia que comprometeu muito o crescimento da cidade. E quando falamos "precisa de área permeável", há certos momentos em que, ao invés de um piscinão, o melhor seria liberar as margens de córregos e rios. Em alguns casos! Em outros, a solução é resolver o problema de esgoto e drenagem na beira do córrego, com urbanização, retirando algumas famílias e mantendo a maior parte. E ainda há as situações em que o jeito é a retirada de toda a população, por estar correndo risco e impedindo o córrego de exercer sua função de drenagem.
 
O problema é o seguinte: além de estarem ligadas ao interesse das empreiteiras, obras têm uma função muito paradigmática: é muito comum as pessoas terem a idéia de que política urbana é um conjunto de obras; política habitacional é um conjunto de obras; projetos de drenagem são um conjunto de obras. Há obras no meio disso, mas há a gestão, a liberação de solo para permeabilização...
 
Correio da Cidadania: Além da necessidade de um acompanhamento efetivo do que se faz em algumas áreas. Não basta a obra imediata.
 
Ermínia Maricato: E além do acompanhamento, o projeto é muito importante! É incrível, porque vemos os projetos de conjuntos habitacionais para a população de 0 a 3 salários mínimos repetindo exatamente os mesmos erros da ditadura militar, 30, 40 anos atrás. É impressionante vermos isso. Colocam a população fora da cidade, geram um problema gravíssimo de mobilidade e transporte, estendem horizontalmente a cidade, de forma que fique mais impermeável. Ou seja, aquela habitação cria problemas, não aponta soluções, pois agrava os defeitos da cidade.
 
Dependendo do projeto e de sua localização, não precisa de infra-estrutura, pois ela já está presente. O problema é que ninguém quer enfrentar o interesse dos proprietários imobiliários - sejam eles pobres ou ricos, que se diga. A questão da propriedade privada pega todo mundo no Brasil. Até mesmo a valorização da pequena propriedade já indispõe uma classe média baixa com moradores de favela...
 
Correio da Cidadania: Pode-se, neste sentido, afirmar que, na medida em que prevalecem os interesses privados, não se aplicam os instrumentos criados para o controle da propriedade e do uso do solo, como o Estatuto da Cidade e o Plano Diretor?
 
Ermínia Maricato: É muito difícil implementar instrumentos da função social da propriedade, previstos na Constituição Federal, no Estatuto das Cidades, e que precisam constar também nos planos diretores. Os PDs são vagos, não marcam as terras ociosas da cidade, que deveriam sofrer com o IPTU progressivo, que por sua vez não é definido e objetivado nos planos... Dessa forma, faltando tantas coisas, de que adiantam boas intenções?
 
E é preciso, neste sentido, estar muito atento para um problema que também existe no Brasil e que diz respeito ao mito do planejamento. Durante a ditadura, o Plano Diretor já foi muito prestigiado. E continua. Mas primeiro temos de falar da produção da cidade, ao invés de planejamento, que é um problema maior. E nisso os urbanistas realmente se equivocam, pois param de enxergar a cidade e ficam discutindo leis, instrumentos, como se aquilo de fato constituísse orientação para o crescimento urbano do Brasil, o que nunca foi o caso.
 
Lei no Brasil já é uma coisa que se aplica, sempre, de acordo com a circunstância. Portanto, é hora de olhar a produção da cidade, a ‘cidade real’, e não ficar achando que uma lei vai consertar uma cidade orientada por determinados interesses. Por melhor que seja, não vai contrariar interesses tão poderosos como os que têm levado nossa cidade pro abismo, pro caos total.
 
Um desses interesses é o automóvel: os planos diretores falam muito pouco disso, se formos conferir. A questão da mobilidade urbana é central à cidade e os PDs não a tomam na devida conta. Os urbanistas estão muito centrados em temas como zoneamento, por exemplo. Mas zoneamento é lei pro mercado, e mercado imobiliário no Brasil trabalha com 30% da população. Antes da gestão Lula, atingia uma proporção ainda menor da população, depois se ampliou bem pouquinho para uma classe média, por causa de seu programa de financiamento (Minha Casa Minha Vida). Mas, de toda forma, ainda é minoritária a parcela da população que se encontra neste mercado da moradia.
 
Deste modo, quando o zoneamento é questão central do urbanismo, já se parte do princípio errado. Porque mais da metade da população está fora do mercado imobiliário, aquele residencial, privado, capitalista, legal, formal etc.
 
É verdade que o uso e ocupação do solo é questão central para se ordenar o crescimento de uma cidade, mas ao mesmo tempo tem de ser assegurada uma relação muito próxima com a questão da mobilidade coletiva, do transporte, e de todo o saneamento ambiental: água, esgoto, drenagem e coleta de resíduos sólidos.
 
Correio da Cidadania: Ou seja, a oferta de serviços públicos também merece um olhar mais profundo quando se fala em ‘planejamento’ urbano, ainda mais quando se têm em conta os cortes de verbas dos quais vêm sendo vítimas, mesmo diante das calamidades.
 
Ermínia Maricato: É que uma parte da cidade também cresce ao léu, com os moradores construindo. E obviamente o fazem sem técnicas de engenharia, arquitetura, geologia, enfim, conhecimentos adequados. Esse é o urbanismo da periferia do capitalismo: uma grande parte da população, que não é incluída no mercado imobiliário formal, constrói parte da cidade por conta própria, sem qualquer conhecimento de leis e do que citei. E principalmente nas terras pelas quais o mercado não se interessa, em geral ambientalmente frágeis. Em qualquer cidade brasileira, verificamos que a população pobre está ocupando áreas de preservação ambiental.
 
Correio da Cidadania: Uma vasta reforma urbana, erigida sobre bases que vão na contramão do modelo vigente, seria, portanto, a única saída?
 
Ermínia Maricato: Não é só vasta reforma, pois talvez essa definição assuste um pouco. Não é só isso, e sim mexer na ‘alma’ brasileira, na questão da terra e sua valorização, a propriedade fundiária, é complicado.
 
Correio da Cidadania: Em meio ao atual caos urbano, repensar esta questão da terra e sua valorização não se correlaciona com a necessidade a cada dia mais urgente de uma reforma agrária, na medida em que sabemos que a população expulsa do campo vem engrossar as fileiras de miseráveis urbanos?
 
Ermínia Maricato: Sim. Trata-se de temas cada vez mais inseparáveis. Algo que mexe com as duas questões é o seguinte: atualmente, seria muito importante que as grandes cidades tivessem um cinturão verde, o que de certa forma até existe. E ele pode ser garantido pela agricultura, tendo propriedades hortifrutigranjeiras próximas à cidade, algo muito prestigiado, por exemplo, nos EUA, entre o pessoal de uma certa contracultura.
 
E não só nos EUA, mas também na Europa, no Canadá, vê-se produção agrícola mesclada à cidade. De um lado, conjuntos habitacionais, de outro, um milharal. Mas o fato é que nossa região metropolitana está expulsando a produção agrícola.
 
A idéia é possuir reprodutores orgânicos que possam ficar na franja na cidade, oferecendo produtos frescos e abarcando a questão da segurança alimentar, ao contrário do grande produtor, que usa muito agrotóxico e fica longe. O estado de São Paulo está deixando de produzir alimentos, por não conseguir competir com o agronegócio.
 
Correio da Cidadania: Esse seria um tipo de medida viável no curto prazo, no sentido de reverter algumas lógicas da cidade e melhorar sua macro-drenagem?
 
Ermínia Maricato: Sem dúvidas. Mas isso significaria gravar o solo apenas para uso rural. Imagina o que não acontece no Brasil se fazem isso! Aí as pessoas simplesmente deixariam a terra lá, ociosa, engordando e especulando. É complicado quando não se quer ter controle sobre o uso do solo e enfrentar a especulação; não se consegue implementar o que o capitalismo central implementou, um certo controle sobre a valorização e especulação imobiliária.
 
Correio da Cidadania: Você enxerga como possível que esse debate acerca da crescente imbricação entre questões urbanas e rurais seja colocado no curto e médio prazos?
 
Ermínia Maricato: Acredito que regredimos nos debates sobre as cidades nos últimos anos, apesar da criação do Ministério das Cidades. Se levarmos em conta a proposta da agenda da reforma urbana, com um movimento unificado, nacional, hoje ela se encontra mais fragmentada. Por exemplo, no Congresso, a bancada da reforma urbana é mais fraca do que já foi, assim como a unidade nacional dos movimentos. Creio que a bandeira do Plano Diretor como algo central é um equívoco, como definiram alguns movimentos, pois é a luta social que deve realmente conduzir a reforma urbana.
 
Eu não sei se alguma vez na história desse país o automóvel foi tão determinante, absorvedor de recursos públicos orçamentários. Dessa forma, mesmo diante do fato de a história ser dinâmica, creio que teremos uma volta do tema urbano, que pode ser datado de 1963 pelo menos, sob a ditadura, que fez o que fez com as reformas urbanas. O tema chegou a ter muitas vitórias institucionais, apesar de muitas serem letra morta, avanços reais numa série de prefeituras com governos diferentes, mas, neste momento, eu diria que há um recuo das forças mais progressistas e sua unidade.
 
Assim, acredito que teremos uma retomada, que não pode ignorar outra questão: devemos passar do urbano ao regional. Se pegarmos São Paulo, boa parte da questão urbana tem de ser debatida no plano regional. Há três regiões metropolitanas muito próximas (Campinas, São Paulo e Baixada Santista; a vista aérea permite ver claramente como se aproximam), com um território bem mais loteado do que há 40 anos (apesar da ilegalidade). Ou seja, há uma necessidade de se discutir o tema regionalmente.
 
Correio da Cidadania: Ainda que estejamos a léguas de distância do enfrentamento estrutural dos atuais problemas, que deveria passar pela questão da terra e da especulação imobiliária, algumas medidas paliativas são o que resta para ‘amenizar’ as tragédias. Como você analisa, nesse aspecto, as medidas anti-enchentes que vêm sendo anunciadas, mais ou menos nos mesmos moldes dos últimos anos?
 
Ermínia Maricato: Ah, não sei nem o que pensar disso... Ao mesmo tempo, o prefeito anunciou uma nova via expressa e o mercado imobiliário está aí, trabalhando em cima disso.
 
A verdade é que não há o menor avanço em brecar a lógica impiedosa de destruição da cidade: os governantes estão começando obras que eles podem acabar em quatro anos, ou seja, não são obras de longo prazo. Drenagem e sistema de transporte de massa não são obras para quatro anos. A criação de uma gestão sobre o solo urbano, e seu controle, não é coisa de curto prazo.
 
Ah, e passado o período das chuvas, agora vem o da poluição atmosférica.
 
Correio da Cidadania: E dentro dessa lógica, vemos o prefeito da cidade pronunciar-se reiteradamente sobre sua mudança de partido, e pouco falar dos problemas que têm afligido São Paulo em meio às últimas chuvas...
 
Ermínia Maricato: Não é só o Kassab, cá entre nós. Todo mundo parece que só cuida disso agora, é um pragmatismo... Eu não li essa coisa da Carta Capital que insinua que a esquerda está namorando o prefeito... Que esquerda quer esse cara, pelo amor de deus?! Ele e esse governo prejudicam tanto a cidade, mas tanto! Se existe uma coisa que é prioridade nessa cidade é o transporte de massa. E vemos que a cidade pára a cada chuva, incidindo em novos problemas de saúde, de epidemias...
 
Correio da Cidadania: Foi citada acima a hipótese de uma retomada da questão urbana. Onde você vislumbraria alguma mínima possibilidade de a cidade sair das amarras da especulação imobiliária, que prejudica a vida da grande maioria da população que nela habita?
 
Ermínia Maricato: Somente existirá esta possibilidade quando algumas forças se organizarem, porque se esperar a Câmara Municipal... Eu não sei por que o povo agüenta esse transporte de forma tão pacífica, um transporte caro, ineficiente, que perde tanto tempo... As pessoas que ficam nos carros também se acomodaram em perder horas, gastar combustível, emitir gases poluentes... Fora o número de acidentes, absolutamente bárbaro. Quer dizer, é uma cidade selvagem, doente!
 
Por isso acho que discutir Plano Diretor é firula. Claro que é necessário um plano, uma orientação. Mas é preciso encarar o que impede as soluções, não adianta só falar que "falta planejamento urbano", "falta prevenção"...
 
Há situações evidentes que tomaram conta de tudo e estão mais fortes que há tempos atrás: os interesses do automóvel, das mega-empreiteiras, do capital imobiliário, das campanhas eleitorais...
 
Correio da Cidadania: Não basta criticar, é preciso intensificar as lutas práticas.
 
Ermínia Maricato: Só criticar, falar que falta planejamento urbano, é muita ingenuidade, porque na verdade existe um poder ocupando o espaço do planejamento urbano.
 
Correio da Cidadania: E que planejou exatamente dessa forma.
 
Ermínia Maricato: Sim, há esta lógica. Mas não estamos diante de algo que se possa chamar de planejamento. O que existe é uma orientação, uma direção política, que implica na relação da infra-estrutura construída com o mercado imobiliário, como por exemplo na Água Espraiada, nas Operações Urbanas, nos investimentos. E obviamente que esta tônica não pode resultar em algo planejado.
 
Em resumo, tem-se o que se pode chamar de "máquina do crescimento", conceito de dois americanos que analisam o agrupamento de interesses diversos para orientar a cidade numa direção determinada
 
Correio da Cidadania: E quanto ao novo governo estadual, com Alckmin à frente, o que vai significar para São Paulo a persistência do tucanato no poder? Essa lógica prosseguirá com toda a força?
 
Ermínia Maricato: O governo estadual, como qualquer um do país, é muito ausente da questão urbana e metropolitana. A questão metropolitana está no limbo. Ninguém fala dela, as iniciativas existem, mas são muito incipientes. E esses problemas que citamos, como a macro-drenagem, não são questões apenas municipais. O transporte de massa nos grandes centros também não. A água de esgoto e mesmo o destino final do lixo tampouco.
 
Dessa forma, na medida em que não há ninguém, nenhuma instituição, partido, universidade, mídia, puxando a questão metropolitana para ser pensada, nossas metrópoles viram um amontoado de políticas paroquiais e clientelistas. Com aquela validade de quatro anos.
 
Correio da Cidadania: Qual a importância e significado que tem hoje para o Planalto o Ministério das Cidades?
 
Ermínia Maricato: Bom, saiu uma equipe que lutou a vida inteira pela reforma urbana e entra o partido do Maluf e do Severino Cavalcante. É verdade que tem gente boa lá dentro, mas, aqui entre nós, não se faz política urbana acomodando as politiquinhas...
 
Correio da Cidadania? E o que pensa do novo ministro das Cidades, Mário Negromonte, que substituiu Márcio Fortes?
 
Ermínia Maricato: Não posso falar muito, mas pelo que sei é um empresário da área de construção. Não entendo isso! É a mesma coisa que botar o cabrito pra tomar conta da horta.
 
Correio da Cidadania: Segundo notícias trazidas pela imprensa, o Ministério das Cidades deverá sofrer o maior corte de despesas, com redução de R$ 8,57 bilhões no Orçamento. Não se tem aí mais uma evidência da posição subalterna do projeto desse ministério na arena política?
 
Ermínia Maricato: A verdade é que esses cortes são principalmente de emendas que, em grande parte, fazem pouca diferença para a melhoria da qualidade das cidades brasileiras. O Ministério das Cidades já sofria esses cortes enormes. Fora isso, o Palocci está de volta, com a mesma política do início do governo Lula.
 
Correio da Cidadania: Mas não é muito paradoxal o anúncio de um corte dessa ordem logo na seqüência da tragédia da Região Serrana do Rio de Janeiro?
 
Ermínia Maricato: Seria se os recursos fossem aplicados de forma planejada, seguindo orientações de políticas públicas. Mas se temos um grande corte nas emendas dos deputados, é o caso de olharmos as emendas. Muitas delas contrariam o adequado crescimento da cidade. O deputado escolhe um bairro e pede verba...
 
Veja bem: no Congresso Nacional, o sujeito escolhe um bairro da cidade pra ser asfaltado e pega verba no Ministério das Cidades. O que você acha?
 
Correio da Cidadania: Mais políticas paroquiais e clientelistas, como você disse.
 
Ermínia Maricato: Não resta dúvida. Mas também me refiro à irracionalidade que é espalhar um dinheiro aqui e ali sem seguir plano algum. Eu me lembro que, quando estava no Ministério, o que mais existia era emenda pra asfalto. E estamos aqui falando da impermeabilização de São Paulo.
 
Eu não estou dizendo que sou contra asfaltar bairros onde as pessoas andam na lama. Mas o que eu vi muitas vezes foram bairros nos quais nem deveriam morar pessoas, na extrema periferia. O sujeito vai e consegue uma emenda pra asfaltar. E assim vamos contrariando tudo que é falado sobre o adequado crescimento urbano, o que rezam os Planos Diretores. É a lógica das emendas parlamentares. No Congresso Nacional, o sujeito atua muito mais como um vereador.
 
Correio da Cidadania: Qual a sua expectativa quanto ao governo de Dilma? Apesar desse começo pouco auspicioso no Ministério das Cidades, acredita que se possa retomar, de uma forma ou outra, algumas das suas concepções iniciais?
 
Ermínia Maricato: Acho difícil. Eu pensei que seria um governo à esquerda do Lula. Mas quando o Palocci foi pra Casa Civil, já fiquei com o pé atrás.
 
Não sei, mas as informações mostram que é um governo que repete os primeiros anos de Lula. Foi exatamente assim: cortes profundos nos ministérios, tanto que me lembro que, nas primeiras reuniões, reclamavam de falta de papel higiênico, contingenciamento, cortes, aumento de juros... Esse ralo de dinheiro público que escoa para o sistema financeiro ao mesmo tempo em que se contingenciam recursos públicos...
 
É o filme do primeiro governo Lula.
 
Correio da Cidadania: Portanto, avançar na questão da democratização da terra chega a ser uma utopia para os próximos anos?
 
Ermínia Maricato: Na terra, o governo Lula não tocou. Fora Raposa Serra do Sol, não tocou na questão da terra. E não adianta querer fugir dela.
 
Não existe desenvolvimento social, ambiental, regional e territorial, inclusive no campo, sem tocar na questão da terra. Não existe! Não existe resolver o problema urbano sem tocar na questão da terra.
 
E ela é cada vez mais central, inclusive na globalização. A gente vê isso no Brasil, no mundo inteiro, as grandes corporações e até estados nacionais estão comprando terra. E continuamos tentando fingir que não vemos nada.
 
Correio da Cidadania: Finalmente, pode-se dizer que o programa Minha Casa Minha Vida, bandeira do governo Lula, toma parte neste loteamento irresponsável da terra urbana e rural?
 
Ermínia Maricato: O impacto que o Minha Casa Minha Vida teve sobre o preço da terra, em todas as cidades brasileiras, foi bárbaro, e todo mundo finge que não percebe. Os empresários dão as explicações mais estapafúrdias e todo mundo engole ou ignora, ninguém fala em regular. Assim, estão sendo geradas novas áreas de risco e novas exclusões territoriais.
 
Tenho muito medo de ver as pessoas se dividirem entre otimistas e pessimistas. Isso me incomoda muito. Até reconheço que na pequena agricultura houve alguns avanços, apesar de o agronegócio ter sido muito mais aquinhoado. Reconheço alguns progressos, como, por exemplo, com o Pronaf (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar) e a Conab (Companhia Nacional de Abastecimento).
 
Até pode resultar algum impacto em torno das regiões metropolitanas em função da manutenção de pequenos agricultores, seria muito interessante. Mas a questão urbana, de fato, foi rifada pelo governo Lula, rifada pelo PT e aparentemente rifada pelo governo Dilma.
 
Valéria Nader, economista, é editora do Correio da Cidadania; Gabriel Brito é jornalista.
 

Para o Jornal da Globo a culpa é do oprimido



Alexandre Haubrich

“As mulheres reclamam muito dos salários baixos, mas pesquisa revela: muitas delas têm medo de pedir aumento”. Essa foi a chamada para uma matéria do Jornal da Globo desta quinta-feira. Na escalada do jornal, o texto perguntou: “Medo de quê? Por que as mulheres tem mais dificuldade em pedir aumento?”.
Essa é a explicação encontrada pela Globo para os salários mais baixos recebidos por mulheres em cargos iguais aos dos homens. A mesma matéria já aproveita para explicar as maiores dificuldades das mulheres em ascender na carreira: apenas 28% delas pensam em promoção, contra 39% dos homens.
Após algumas entrevistas nas ruas, nas quais todas as falas que foram ao ar são de mulheres dizendo que nunca pediram aumento – referendando a tal pesquisa –, o repórter, em off, acusa: “Quase metade delas diz que ganha mal, mas também não faz nada para mudar essa situação”. No fim da matéria, a entrevistada é uma alta executiva. A partir de sua posição privilegiada, ela faz uma análise sociológica: “Não vejo limitações. Quem coloca limitações é a própria pessoa, o mercado está aberto”, afirma.
Entre tantas aspas destacando frases absurdas, um comentário do Mirgon Kayser, no Twitter, resumiu a situação com precisão: “Padrão Globo sim… Em geral a Globo valoriza as explicações mercadológicas que diluam e mascarem machismo / racismo / homofobia, etc”.  É isso. No caso específico das mulheres, é a reprodução e o fortalecimento do pensamento segundo o qual a mulher estuprada é a responsável pelo estupro.
A culpa por ser pobre é do próprio pobre, a culpa do desemprego é do desempregado que não gosta de trabalhar, a culpa de todas as formas de exploração e/ou opressão é sempre do explorado e oprimido. É assim que a Rede Globo quer fazer as pessoas pensarem, alimentando, dessa forma, a segregação, o preconceito e a exclusão por parte das elites, ao mesmo tempo em que tira dos oprimidos a percepção da necessidade de luta coletiva para se alcançar uma verdadeira mudança social. Individualiza a percepção e a luta, colaborando, através da construção desse discurso, com a manutenção das mais diversas formas de opressão.

quinta-feira, 10 de março de 2011

Leonardo Avritzer e a sociologia otimista

Ruda Ricci
 
Há anos Avritzer produz uma série histórica sobre o orçamento participativo e o associativismo em capitais do Brasil. Trata-se de um autor respeitado. Mas desconfio que há um problema de base de coleta de dados em suas pesquisas. Que gera - ou é gerada - um otimismo surreal em relação ao avanço da democracia deliberativa no Brasil. Já nas suas pesquisas a respeito do orçamento participativo, onde vê avanço, percebo estagnação e envelhecimento precoce. A experiência é, ainda, basicamente petista e, mesmo assim, não envolve todas administrações deste partido. Não se espraia pelo país e mesmo após tantos anos, não atinge 5% das localidades brasileiras.
Ontem, a CBN me entrevistou e questionava a conclusão da última pesquisa de Avritzer, segundo a qual Belo Horizonte possui a maior prática associativa entre capitais brasileiras, incluindo Rio de Janeiro e São Paulo. Perguntei sobre vários dados da pesquisa e fiquei surpreso. Acredito que o problema está na base de dados, excessivamente oficial e/ou quantitativa. É evidente que Belo Horizonte não possui uma prática ou cultura associativa muito desenvolvida. Veja os casos de alteração da Lei Orgânica no ano passado (que não foi acompanhada por organizações de base, mas apenas pelo Nossa BH) ou reação da população à chacina no Aglomerado da Serra (envolvendo reações emocionais desorganizadas) ou mortes no Anel Viário da capital. Veja a total ausência de reação à tentativa de destruição dos conselhos de gestão pública pelo vereador Leonardo Mattos (PV). Não há nenhum sinal de articulação ou reação do "associativismo" de Belo Horizonte. Mas a ação social em Recife é visível à olho nú. Me preocupa saber que em localidade onde o governo promotor da institucionalização da participação popular na gestão, ao perder, não deixa um legado cultural, não consegue inscrever estas práticas como direito da população. Em Belo Horizonte, as experiências participacionistas são todas tuteladas e alimentadas pelo governo local e, mesmo assim, vêm decaindo ano a ano.
O mesmo já ocorria nas pesquisas sobre o orçamento participativo. Avritzer envia pedido de dados para as prefeituras e são elas que respondem. Como ter controle sobre o dado oferecido? Trata-se de um problema de metodologia científica. Nesta pesquisa mais recente, se os dados são também quantitativos e oficiais, não há como ter controle sobre o resultado. Em tempo: a medida sobre a cultura participativa está na mudança do processo decisório das políticas públicas de uma localidade (incluindo a mudança de rotinas das secretarias de governo) e o impacto real na cultura política (nos valores e representações) da população pesquisada. O que exige um fôlego razoável de investigação.
Sempre tive um orgulho não explícito ao ouvir que a sociologia é a ciência do desencanto porque ela é a expressão do pensamento crítico sobre todos aspectos da vida social. Uma desconfiança que me parece a alma de qualquer investigador.

Receita muda normas para a declaração do IR de 2011



A declaração do Imposto de Renda Pessoa Física (IRPF) 2011 será a última com os benefícios fiscais da correção da tabela progressiva mensal estabelecida pela Medida Provisória (MP) 340. Editada em 2006, a medida corrigiu parte das perdas da renda dos trabalhadores com a inflação. A tabela progressiva mensal do Imposto de Renda passou a ser corrigida em 4,5% a partir da declaração de 2008 (ano-calendário 2007). A MP estabeleceu os valores para as alíquotas em cada ano-calendário até 2010 e, posteriormente, foi convertida na Lei 11.482.
Foram incluídas duas novas alíquotas na tabela do imposto de renda: uma de 7,5% e outra de 22,5% como forma, segundo anunciou na época o ministro da Fazenda, Guido Mantega, de estimular o consumo e reduzir o peso do imposto no bolso do cidadão das camadas mais baixas. Com as alterações, passou-se a ter uma faixa de isenção e quatro alíquotas do imposto de renda: 7,5%, 15%, 22,5% e 27,5% mantendo-se a correção de 4,5% na tabela progressiva mensal no período.
Para as declarações de 2012, a tabela a ser usada pelos contribuintes será a mesma que servirá de base para as declarações entregues em 2011. Isso porque a Lei 11.945 de 2009 alterou alguns incisos da legislação anterior e estabeleceu uma última tabela a ser utilizada a partir das declarações preenchidas em 2011, ano-calendário 2010. Uma nova mudança a partir de agora, com novas correções, dependerá de nova lei.
Consultada, a Receita Federal não revelou se existem estudos para propor um projeto de lei ao Congresso Nacional com novas correções na tabela mensal progressiva do ano-calendário 2010. Nada impede, porém, que o governo proponha até o final do ano que vem mudanças para a tabela do imposto de renda que será declarado pelas pessoas físicas em 2012.
A edição desta segunda-feira do Diário Oficial da União publicou as regras para o preenchimento da declaração no ano que vem.
Novos procedimentos
Entre as novas normas e procedimentos para a declaração do IRPF de 2011, ano-calendário de 2010, divulgadas nesta manhã, pela Receita Federal, está obrigada a apresentar a declaração a pessoa física que: recebeu rendimentos tributáveis acima de R$ 22.487,25; recebeu rendimentos isentos, não tributáveis ou tributados exclusivamente na fonte, acima de R$ 40 mil; e/ou obteve ganho de capital na alienação de bens ou direitos ou realizou operações no mercado financeiro.
O valor mínimo para a obrigatoriedade de apresentação da declaração foi corrigido em relação ao determinado por Medida Provisória no final de 2008. Na ocasião, a tabela progressiva colocava como valor mínimo de rendimentos tributáveis R$ 17.989,81.
A Receita também determina a obrigatoriedade para a apresentação da declaração da pessoa física que: teve a posse ou a propriedade de bens ou direitos de valor total superior a R$ 300 mil; passou à condição de residente no Brasil; optou pela isenção do IR incidente sobre o ganho de capital auferido na venda de imóveis residenciais, cujo produto da venda seja aplicado na aquisição de imóveis residenciais, no prazo de 180 dias da venda.
A norma também determina a obrigatoriedade relativa à atividade rural e os casos em que a pessoa física está dispensada da apresentação quando dependente, além de definir as normas para a opção pelo desconto simplificado.
Para a declaração do ano que vem, a Receita determinou a obrigatoriedade da elaboração via computador, por meio de programa a ser distribuído na página do órgão na internet. A declaração deverá ser apresentada de 1º de março a até 23h59min59s do dia 29 de abril. As declarações poderão ser enviadas pela internet ou, caso apresentadas em disquete, entregues nas agências da Caixa Econômica Federal ou do Banco do Brasil.
A Receita ainda divulgou as normas e prazos para a apresentação de retificação da declaração, quando for necessário, e das multas em caso de entrega foram do prazo. Também apresentou a maneira de realizar a declaração e dispôs sobre quais bens devem ser declarados, além da forma de pagamento do IR.

quarta-feira, 9 de março de 2011

“A liberação feminina não pode ocorrer sob nenhuma religião”, afirma Nawal El Saadawi


Entrevista publicada originalmente no El País, via Sul21


Ela tem 79 anos de idade e uma vivacidade surpreendente. A entrevista foi concedida por telefone, durante sua visita a Oslo, na semana passada. Está agora em Nova Iorque e no próximo dia 26 chega a Espanha para participar na conferência de Mulheres em Segóvia. Nawal El Saadawi é uma líder feminista árabe, a primeira a denunciar a castração de mulheres. Sua crítica amarga das leis e da interpretação do Islã que institucionalizou o patriarcado repressivo que impedia as mulheres de crescerem socialmente levou-a primeiro a perder todos os cargos que ocupava na saúde pública de seu país, depois a prisão e ao exílio. Hoje, depois de ter participado nos motins de Tahrir Square, que encerrou 30 anos de ditadura de Hosni Mubarak, ele se sente mais esperançosa do que nunca: “É a hora da mulher egípcia”, diz ela, feliz.
Pergunta: O que fez a Revolução da Praça Tahrir para as mulheres?
Resposta: Muitíssimo. Pela primeira vez, mulheres e homens, no Egito, foram iguais. Mulheres de todas as idades e classes estiveram na Praça Tahir, inclusive mães com crianças de colo dormiam na praça.
P: Você foi para a praça?
R: Claro que sim. Desde o início, muitos dias. Agora estarei algumas semanas fora do Egito, mas quando voltar regressarei à Tahrir todas as vezes que for necessário até que ganhemos.
P: O que você espera concretamente?
R: Uma de nós deveria ter sido incluída na comissão de reforma constitucional. Foram nomeados oito homens e nenhuma mulher, por isso estamos a organizar uma marcha de um milhão de mulheres para terça-feira (hoje, dia 8) no Cairo, e esperamos receber o apoio de mulheres da Espanha.
P: Qual é o objetivo da marcha?
R: Que todas as comissões e instituições do novo Egito devem contar com mulheres. Temos que acabar com o fato de que só os homens decidem.
P: Você tem medo de que depois da revolução fique tudo como antes?
R: Não, nós conseguimos que caísse Mubarak e alguns de seus homens, mas o problema das mulheres é crônico e está enraizado no patriarcado e na religião. Por isso, pedimos uma constituição laica, um código de família laico e um Estado laico separado da religião. As mulheres morreram na Praça Tahrir da mesma forma que os homens. Eles tem que levar isso em conta.
P: Você concorda com as reformas constitucionais que fez tal comissão, que deverão ser votadas no próximo dia 19?
R: É uma comissão muito tradicional. Fez apenas pequenas mudanças. Nossa marcha é para exigir as mudanças radicais que as egípcias necessitam.
P: Não é contraproducente exigir tanto?
R: Não vamos aceitar a discriminação outra vez após participar da revolução. Temos que nos rebelar e lutar por nossos direitos. Não temos medo de perder alguma coisa, porque não temos nada, exceto a nossa alma.
P: Por que explodiu a revolução?
R: Pela acumulação de opressão e corrupção. O regime era tão corrupto que se tornou
insuportável.
P: Que papel desempenharam as mulheres?
R: Todos, inclusive o de morrer. Nós estávamos lá desde o início, dispostas a tudo, sem diferenças com os homens.
P: Esperava algo assim?
R: Eu sonhava com isso desde que tinha 10 anos, o que significa que esperei 70 anos. Não fiquei surpresa porque já tinha passado uma vida inteira lutando pela revolução, mas a forma como ela irrompeu foi surpreendente. Estou feliz por ter chegado a ela viva!
P: Você pensava que as mulheres egípcias seriam tão ativas?
R: A minha casa chegam muitos jovens, homens e mulheres, que estão interessadas em meus livros; são progressistas com os quais debato de diversos temas, mas ninguém acreditava que milhões de egípcios tomariam as ruas. Mais de seis milhões de pessoas estiveram na Praça Tahir naqueles dias.
P: Você acha que este é o despertar das mulheres egípcias?
R: Sim, das mulheres e os homens, porque não podemos separar umas dos outros. A mulher não pode ser liberada se o homem não é liberado, da mesma forma como o homem não pode ser liberado sem a mulher sem liberada. Todos precisam de um país livre.
P: Como está sendo organizada a Marcha de um Milhão de Mulheres?
R: Na verdade a ideia veio de um grupo de homens jovens e progressistas, que têm acesso ao Twitter, Facebook e outras redes sociais. Foi organizada em minha casa. Somos um grupo em que trabalham homens e mulheres.
P: Você voltará ao Cairo para a manifestação?
R: Não, eu não sou indispensável. Temos outras lideranças e são especialmente os jovens que devem liderar a marcha. Eu sou apenas um respaldo. Eles dizem que eu sou a madrinha, a mãe espiritual da revolução…
P: Qual é a situação das mulheres egípcias hoje?
R: Há muita discriminação. Nós ainda queremos abolir a poligamia e o gênero de divórcio no qual o homem pode separar-se sem deixar nada para a esposa.
P: A Constituição apoia a poligamia?
R: Sim, ela diz que o Código de Família não pode contradizer a sharia (lei islâmica) e a sharia permite a poligamia. O Egito tem um dos códigos familiares mais atrasados do mundo árabe.
P: É por isso que você queria ter mulheres na comissão de reforma constitucional?
R: Claro que sim. Homens e mulheres jovens, porque eles colocaram lá somente homens tradicionais e religiosos. Deveria ter sido homens e mulheres seculares.
P: Você considera que a elaboração de uma nova Constituição será a principal conquista da revolução?
R: Sim, se tivermos uma Constituição radicalmente secular e se homens e mulheres, cristãos e muçulmanos forem iguais perante a lei, terá sido dado um grande passo contra o Estado tradicional. O secularismo é fundamental para uma democracia autêntica. As mudanças ocorridas nestes dias tem mantido o Artigo 2, que afirma que o islamismo é a religião do Egito. Ele deveria desaparecer.
P: Você acredita que a discriminação tem origem religiosa?
R: Sem dúvida. A religião é uma ideologia política e é preciso separar a religião e a política. A mulher não pode ser liberada sob nenhuma religião, cristianismo ou judaísmo ou islamismo, porque as mulheres são inferiores em todas as religiões.
P: Você não acha que esse argumento é muito radical para o Egito?
R: Não. Quando eu estava em Tahrir eu conheci muitas pessoas que compartilhavam das mesmas ideias. Muitos jovens progressistas, incluindo muitos homens da nova geração dos Irmãos Muçulmanos.
P: Você tem receio de que o novo Egito fique sob o controle da Irmandade Muçulmana?
R: Não. Eu tenho medo é dos Estados Unidos e Israel apoiando a Irmandade Muçulmana. Eu estava no Irã no início da revolução de 1979. A revolução iraniana era, à princípio, laica e socialista, mas os EUA se sentiram ameaçados pela uma revolução socialista e impuseram um aborto das intenções iniciais. Khomeini chegou ao Irã pelas mãos da França, do Reino Unido e dos Estados Unidos. Eles preferiram uma revolução religiosa ao invés de uma socialista. O socialismo é o verdadeiro inimigo do capitalismo. No Egito aconteceu o mesmo: repentinamente, apareceu um respeitado clérigo na Praça Tahrir (Yusef el Karadawi, de 84 anos e exilado no Catar) para falar à Praça. Somos contra isso, mas não tememos a Irmandade Muçulmana, porque eles são uma minoria.
P: O que você pediria ao novo governo?
R: Termos conseguido a demissão de Ahmed Shafik (primeiro-ministro designado nos últimos dias de Mubarak) também foi uma conquista da Praça Tahrir. Confiamos que o novo chefe de governo Essam Sharaf apoiará a criação de um Conselho Presidencial composto por homens e mulheres honestos que exerçam o poder que hoje está nas mãos do militares e que, sem pressa — porque é necessário tempo para formar e organizar novos partidos – convoque eleições livres e a elaboração de uma nova constituição secular.
P: Você confia na vontade de democratizar do Conselho Supremo das Forças Armadas, que agora dirige o Egito?
R: Não é uma questão de confiança, mas de poder. Se os manifestantes forem para casa agora e as pessoas se calarem novamente, os militares farão o mesmo que fazia o regime de Mubarak. Se o poder não exercer seu poder, se não houver um Parlamento ao qual se preste contas, o Egito e qualquer país cairá novamente em uma ditadura. Se os militares não cumprirem seus compromissos com o povo, voltaremos à Praça Tahrir. Isto é uma revolução.
P: E você acredita na revolução?
R: Sim, acredito, E acredito que a revolução ainda não acabou. Seguiremos na Praça Tahrir até que os compromissos sejam cumpridos.
P: Você acha que o novo Egito teve um bom começo?
R: Sim, o país está cheio de esperança e esperança é poder.

Tradução de Milton Ribeiro

terça-feira, 8 de março de 2011

O 8 de março é vermelho!!!


“O dia das operárias de 1917 foi uma data memorável na história. Nesse dia, as mulheres russas levantaram a tocha da revolução proletária e atearam fogo ao mundo. A revolução de fevereiro acabara de começar". (Alexandra Kollontai) [1]

Com a chegada do Dia Internacional (de luta) da Mulher, nós, enquanto feministas, temos o dever de colocar algumas discussões em pauta, pois com a transformação do 8 de março em uma data bastante comercial (que,além de tudo, joga com a função social de sermos mulheres femininas, dóceis e perfumadas), muitas pessoas acreditam que não há mais sentido em comemorá-lo (como se fosse realmente uma comemoração...). Há quem diga, ainda, que o 8 de março é sexista e que deveria haver um dia do homem, mas esse discurso vem daqueles que acreditam que o movimento feminista busca escravizar os homens (e outras bobagens), portanto, nem vale a pena ficar muito tempo discutindo isso.

O que queremos discutir aqui é justamente a origem dessa data e resgatar seu caráter original. Em primeiro lugar, não é uma data que nos foi cedida como uma homenagem, diferentemente de outras, como o dia dos pais, das mães, dos namorados etc. O peso que traz o 8 de março não é para nos presentear, ou mesmo nos parabenizar. A vitória não é ser mulher, pura e simplesmente, mas sim lutar para sermos mulheres à nossa maneira, lutar contra todos os tipos de opressões. Uma coisa que deveria ser óbvia, mas muitos não enxergam é que mulheres e homens não vivem em pé de igualdade; por isso o dia da mulher ser um dia de luta. É um dia simbólico que lembra (ou deveria lembrar) a todos que vida de mulher não é fácil. O Dia Internacional de Luta da Mulher é uma conquista nossa, algo que foi desencadeado justamente pela luta feminista.

Porém, outra coisa que devemos lembrar é que ele não é um simples dia de luta feminista. Ele é um dia de luta feminista e socialista. E é aqui que entram as origens do Dia Internacional da Mulher.

Há um mito de que o Dia Internacional da Mulher tem sua origem em uma greve de tecelãs no ano de 1857, em Nova York. A grevistas teriam sido presas dentro da fábrica e os patrões ateado fogo ao lugar, resultando em mais de 130 trabalhadoras mortas. A data teria sido marcada para relembrar esse dia.

Isso, todavia, é a história que nos contam nas escolas e se divulga na mídia. A realidade é que não existem evidências históricas da existência dessa greve. Diversas foram as pesquisas feitas sobre o assunto, entre elas, a de Renée Coté, autora do livro O Dia Internacional da Mulher – Os verdadeiros fatos e datas das misteriosas origens do 8 de março, até hoje confusas, maquiadas e esquecidas. A autora buscou referência à greve de 1857 e à morte das mulheres em vários jornais, inclusive operários, mas não encontrou nada.

"Em 3 maio de 1908 em Chicago, nos Estados Unidos, se comemorou o primeiro "Woman's
day” (Dia da Mulher), presidido por Corinne S. Brown, documentado pelo jornal mensal The Socialist Woman, no Garrick Theather, com a participação de 1500 mulheres que "aplaudiram as reivindicações por igualdade econômica e política das mulheres; no dia consagrado à causa das trabalhadoras". Enfim, foi dedicado à causa das operárias, denunciando a exploração e a opressão das mulheres, mas defendendo, com destaque, o voto feminino. Defendeu-se a igualdade dos sexos, a autonomia das mulheres, o direito de voto para as mulheres, dentro e fora do partido.

Já em 1909, o “Woman's Day” foi atividade oficial do partido socialista americano e organizado pelo comitê nacional de mulheres, comemorado em 28 de fevereiro de 1909. O material de publicidade da época convocava o "Woman suffrage meeting", ou seja, um encontro em defesa do voto das mulheres, em Nova York. Renée Coté apura que as socialistas americanas sugerem um dia de comemorações no último domingo de fevereiro. Assim, o “Woman's day”, no início, registra várias datas e foi ganhando a adesão das mulheres trabalhadoras, inclusive grevistas e teve participação crescente.

Em 1910, os jornais noticiaram a comemoração do “Woman's day” em Nova York, em 27 de fevereiro de 1910, no Carnegie Hall, com 3000 mulheres, onde se reuniram as principais associações em favor do sufrágio. O encontro foi convocado pelas militantes socialistas mas contou também com participação de mulheres não socialistas. Também participaram dessa comemoração várias operárias do setor têxtil que há poucos dias haviam terminado uma longa greve, que durou de novembro de 1909 a fevereiro de 1910, terminando 12 dias antes do Woman's Day. Essa foi a primeira greve de mulheres de grande amplitude nos Estados Unidos, denunciando as condições de vida e trabalho, e demonstrou a coragem das mulheres costureiras, recebendo apoio massivo do movimento sindical e do movimento socialista." [2]

Ou seja, não só não existe a mítica greve de 1857, como toda a luta das mulheres estadounidenses é feminista e claramente classista.

No mesmo ano de 1910, no Segundo Congresso Internacional de Mulheres Trabalhadoras, Clara Zetkin, militante socialista alemã, apoiando-se na experiência das operárias dos Estados Unidos, propõe que exista um Dia Internacional da Mulher Operária, ou Dia Internacional das Mulheres Trabalhadoras, sem uma definição de dia. A informação mais exata (pois há muitas) é de que ficaria a cargo de cada país escolher a melhor data. As Alemãs escolheram o 19 de março:

No dia 19 de Março no ano da revolução de 1848, o rei Prussiano reconheceu pela primeira vez a força do povo armado e concedeu perante a ameaça de uma insurreição proletária. Entre as várias promessas feitas, que mais tarde não manteve, estava a introdução do voto para as mulheres. [3]

Alexandra Kollontai, em seu texto “Uma celebração militante” [4], afirma ter sido oficializado o 8 de março como o Dia Internacional da Operária em 1913 (primeiro ano em que comemorou-se o dia na Rússia, aliás). Por outro lado, há informações de que em 1914, na Alemanha, as comemorações tenham sido realizadas no 8 de março somente pelo fato de que essa seria a melhor data.

Em 1917, na Rússia, em meio a grandes e diversas manifestações femininas, eclode uma greve de operárias têxteis justamente no Dia Internacional da Mulher, 23 de fevereiro no calendário russo, correspondente ao nosso 8 de março. Trotski descreve esse acontecimento como uma mobilização de papel decisivo para a revolução que se seguiria pelos próximos dias:

Trotski conta que o dia 23 de fevereiro (8 de março), era o Dia Internacional da Mulher. Estavam programados atos, encontros etc. Mas não se podia imaginar “que o Dia da Mulher pudesse inaugurar a revolução”. Estavam sendo pensadas ações revolucionárias, mas sem data prevista. Mas pela manhã, a despeito das diretivas, as operárias têxteis deixam o trabalho de várias fábricas e enviam delegadas para solicitar o apoio à greve... “o que se transforma em greve de massas.... todas descem às ruas. [5]

Por fim, em 1921, na Conferência Internacional das Mulheres comunistas, coloca-se o 8 de março como data oficial do Dia Internacional da Mulher Operária, em homenagem ao levante das trabalhadoras russas.

A data, portanto, como podemos observar, não é um dia do calendário que nos foi ironicamente dedicado pelo patriarcado e pelo capitalismo por sermos mulheres. Foi uma data conquistada, pelo feminismo socialista. Uma data que deve ser lembrada como luta por um mundo sem exploração.

O Dia Internacional da Mulher surge como uma proposta socialista, pois a luta da mulher é socialista. Sim, existem vertentes do feminismo que não questionam a sociedade de classes, mas esse feminismo limita-se à conquista de direitos formais iguais aos dos homens. E bem sabemos que isso não basta. A tentativa de retirada do caráter socialista do Dia Internacional da Mulher (aliás, há de se afirmar: a retirada de qualquer tipo de politização, mesmo que não socialista) serve apenas para fomentar ilusões de que as mulheres já tiveram seus direitos conquistados, quando, na verdade, para ter-se direitos, é preciso comprá-los. Bem sabemos que meia dúzia de executivas se deram bem na vida (ainda que sim, sofram de machismo em seu ambiente de trabalho), mas para a mulher trabalhadora ainda há um longo caminho a ser traçado.

É por isso que afirmamos: o 8 de março é classista. Socialista.
O 8 de março é vermelho.

Fonte: blog nascermulher

[1] KOLLONTAI, Alexandra. International Women's Day. Disponível em: http://www.marxists.org/archive/kollonta/1920/womens-day.htm
[2] Dia Internacional da Mulher: em busca da memória perdida - SOF: Sempreviva Organização Feminista. Disponível em: http://www.sof.org.br/publica/Dia_Internacional_da_Mulher-SOF-Em_busca_da_memoria_perdida-ATUALIZACAO2010.pdf
[3] KOLLONTAI, Alexandra. Uma Celebração Militante. Disponível em: http://www.esquerda.net/dossier/uma-celebra%C3%A7%C3%A3o-militante , texto integral em inglês: http://www.marxists.org/archive/kollonta/1920/womens-day.htm
[4] Idem
[5] Dia Internacional da Mulher: em busca da memória perdida - SOF: Sempreviva Organização Feminista. Disponível em: http://www.sof.org.br/publica/Dia_Internacional_da_Mulher-SOF-Em_busca_da_memoria_perdida-ATUALIZACAO2010.pdf

Diferenças entre Espiritualidade e Religião....

Recebi uma mensagem com a comparação entre religião e espiritualidade. O remetente alegava desconhecer a autoria. Li todo o texto, aproveitei sua essência e o reescrevi, todo. Fora a frase "a religião é para os que dormem", todas as frases foram modificadas ou trocadas por completo.
                                                                                                             

Tomei essa liberdade por minha conta, mesmo, por achar algumas colocações incompletas, outras precárias, outras equivocadas, algumas mal colocadas, enfim, procurei lapidar a mensagem, sem querer tirar onda de superioridade - pensando na recepção, na absorção e na compreensão.

Abraços a todos,
                          
Eduardo

"Nascer" - óleo sobre tela, 53x68cm - Rio, maio/junho de 2000


Religião ou Espiritualidade


Há centenas de religiões, cada uma se proclamando portadora da verdade e desqualificando as outras.
A espiritualidade é apenas uma, em exercício permanente e sem forma única.

A religião possui templos para louvores e adorações.
O templo da espiritualidade é o ser, o mundo, o universo.

A religião é para os que dormem.
A espiritualidade é para os que despertam.

A religião é para aqueles que necessitam de um código externo e precisam ser guiados.
A espiritualidade é para os que ouvem e praticam o embrião da consciência, a voz interior.

A religião é um conjunto de regras e dogmas, não admite questionamentos.
A espiritualidade te leva à reflexão, a raciocinar sobre tudo, a questionar tudo.

A religião ameaça, amedronta, impõe e cobra.
A espiritualidade procura, desenvolve, liga causas e conseqüência, serenamente.

A religião aponta pecados e declara culpas.
A espiritualidade aponta a ignorância e toma o sofrimento como ensinamento.

A religião reprime, condena e acusa.
A espiritualidade transcende, compreende e esclarece.

A religião inventa.
A espiritualidade descobre.

A religião determina formas.
A espiritualidade desenvolve conteúdos.

A religião não indaga, nem questiona.
A espiritualidade duvida, experimenta, observa e procura absorver..

A religião é crença.
A espiritualidade é busca.

A religião é humana, é uma organização com regras.
A espiritualidade é ligação e não tem regras.

A religião divide, secciona e discrimina.
A espiritualidade une, respeita e abraça.

A religião lhe busca para que acredite.
A espiritualidade, você precisa buscá-la.

A religião necessita do (e determina o que é) sagrado.
A espiritualidade busca o sagrado, em tudo.

A religião se alimenta do medo e da ignorância.
A espiritualidade se alimenta na busca e no desenvolvimento da consciência.

A religião se ocupa com fazer.
A espiritualidade se ocupa com ser.

A religião ensina a evitar o mal por medo do castigo e fazer o bem por interesse na recompensa.
A espiritualidade ensina que o plantio é livre, mas a colheita é obrigatória.

A religião é adoração e temor.
A espiritualidade é reflexão e amor.

A religião tortura o presente com os valores do passado, ameaçando com castigos no futuro.
A espiritualidade vive o presente, levando em conta as lições do passado, fazendo o plantio do futuro.

A religião condena e encarcera a natureza.
A espiritualidade desenvolve a consciência para tratar com a natureza.

A religião manda crer na vida eterna.
A espiritualidade nos permite viver a eternidade da vida.

A religião promete o encontro com Deus depois da morte.
A espiritualidade busca o encontro com Deus dentro de nós mesmos, a cada momento.

A religião determina e inquieta.
A espiritualidade desabrocha e aquieta.

Religião é tirania espiritual.
Espiritualidade é consciência existencial.

Mzuri Issa luta pelo poder das mulheres de Zanzibar

 Por Paula Torres de Carvalho, em Bruxelas 
Mzuri Issa. É como se chama a mulher, de lenço colorido, olhos amendoados, sorriso inteiro. Veio da Tanzânia, na África Oriental, onde nasceu e onde vive há 35 anos, que é a sua idade. Quase 20 horas foi o tempo que demorou a viagem que fez até Bruxelas. À sua frente, numa sala do Centro de Imprensa Internacional, estão 15 jornalistas de vários países da Europa e alguns funcionários da Comissão Europeia que participam num seminário sobre igualdade entre sexos que decorreu de 27 de Fevereiro a 2 de Março, promovido pelo Centro de Jornalismo Europeu.
Mzuri Issa  
Mzuri Issa (Charlotta Asplund)

Mzuri vem falar da Associação de Mulheres para os Media da Tanzânia (TAMWA) que há 20 anos se dedica à defesa dos direitos humanos, particularmente das mulheres. E vem pedir ajuda para a continuação de um dos projectos da associação que, há três anos, é financiado pela União Europeia. Chama-se The Women Empowerment in Zanzibar Project (Weza), um projecto para fortalecer o poder das mulheres de Zanzibar, arquipélago formados pelas ilhas de Unguja e Pemba, ao largo da costa da Tanzânia.

Longa distância e muito dinheiro separam a realidade em que vivem as mulheres de Zanzibar da que faz parte do dia-a-dia das mulheres dos países europeus. E, contudo, são realidades contemporâneas.

Mzuri Issa conserva o seu sorriso largo, apesar das desigualdades de que fala. A questão, afirma, está no desenvolvimento.

O que ela quer dizer aos jornalistas, primeiro, e ao mundo, depois, é que o aumento do poder para as mulheres das ilhas de Zanzibar e da igualdade de direitos em relação aos homens, "passa pela diminuição da pobreza, por mais justiça social, condições essenciais para o desenvolvimento".

É esta ideia que tem estado na base do projecto, no qual a União Europeia já investiu 750.000.00 euros. Este projecto é dirigido a cerca de seis mil mulheres rurais, pobres e analfabetas, tendo em vista o desenvolvimento das comunidades existentes nas duas ilhas. Elas foram envolvidas em diferentes actividades económicas e sociais, tais como a agricultura, a indústria e o artesanato, o aproveitamento dos recursos naturais e os programas de saúde primária.

Os objectivos específicos, explica Mzuri Issa, são o aumento dos salários e ultrapassar as barreiras sociais, culturais e políticas que impedem que a mulher tenha mais influência na sociedade tanzaniana. "O que se pretende é melhorar as suas vidas e dar-lhes possibilidade de alcançar o seu potencial humano", afirma a activista.

A maioria das participantes no projecto tem entre 25 e 50 anos, religião muçulmana e mais de três crianças em casa. Muitas vezes, porém, a intervenção junto das comunidades "não tem sido fácil", confessa Mzuri ao P2. Porque "há muitas mulheres que só aderem depois da autorização dos maridos".

Além da pobreza extrema, a activista refere também a iliteracia como outro obstáculo para o progresso das mulheres e conta como a TAMWA tem contribuído para divulgar esta realidade no seu país e a nível internacional. Mostra números e slides, fala de conquistas e de obstáculos.

Mzuri Issa acredita no papel do jornalismo "para mudar a sociedade", informando e "agitando os poderes". E conta que são cada vez mais as mulheres que aderem às campanhas para a defesa dos seus direitos. Esta é uma causa que tem perseguido na TAMWA, de que é uma das fundadoras, para "lutar contra a violência e a humilhação de que as tanzanianas são vítimas há tantos anos", diz.

Espancada "de gatas"
"O meu nome é Purcherie Mbonimpa, casei-me com 18 anos, quando o meu marido tinha 26. Temos sete filhos, quatro rapazes e três raparigas. Vivemos sobretudo da agricultura, cultivando feijões e batata-doce e temos uma pequena plantação de bananas". É assim que começa um dos depoimentos recolhidos durante o trabalho de campo das activistas tanzanianas e que consta de um relatório entregue em Bruxelas. Este é bem esclarecedor da desigualdade entre sexos e dos mecanismos de poder em Zanzibar.

Purcherie continua o seu relato, contando que, nos primeiros meses de casamento, o marido lhe disse: "Eu casei contigo, mas nunca saberás quem eu sou".

"Como o meu marido não fala muito, reflecti sobre o que aquilo queria dizer. Não sabia o que ele queria dizer. Éramos muito pobres. Eu só tinha um pano, uma peça de roupa tradicional que as mulheres usam aqui. O meu marido tinha um par de calças e uma camisa, gostava muito de álcool e não ligava muito à família. Não havia muita comunicação entre nós e eu não sabia o que podia e não podia fazer."O marido de Purcherie não a deixava sair para visitar amigos ou a família, nem que participasse em qualquer reunião da comunidade. "Eu era constantemente espancada sem saber o que tinha feito de errado", revela.

E Purcherie estava num buraco sem saída: "Não podia divorciar-me dele porque, na nossa cultura, quando uma mulher volta para casa dos pais, é um insulto e uma desgraça para a nossa família". As mulheres devem submeter-se "totalmente ao seu marido, obedecer-lhe mesmo quando é injusto, ou em situações de tortura e de violência."

"Um dia o meu cunhado encontrou-me de gatas, com os joelhos no chão, a ser violentamente espancada pelo meu marido. Olhou para mim e não disse nada, mas, quando regressou a casa, contou às minhas cunhadas", continua. Foram elas que a salvaram e que lhe abriram os olhos. "Elas vieram ter comigo e disseram-me: "Aceitas ser espancada de gatas pelo teu marido? És uma desgraça para as outras mulheres, não podes aceitar isso"". Foi naquele dia que Purcherie decidiu nunca mais se sujeitar àquilo e fugir do marido.

Pressão sobre o Governo

São mulheres como Purcherie que a TAMWA acompanha e divulga. Foi uma campanha, nos anos de 1990, para a criação de uma lei de protecção das vítimas da violência baseada no género, particularmente a violência sexual, que mais contribuiu para que esta associação se tornasse conhecida. As suas activistas investigam e divulgam a prática deste tipo de violência contra as mulheres e conseguiram pressionar o Governo para actuar e extinguir a lei.

A intervenção da TAMWA foi também decisiva para mudar uma outra lei que proibia as mulheres de terem filhos fora do casamento. Se não conseguissem provar que o acto sexual tinha sido cometido por coerção, eram punidas com dois anos de cadeia. Era uma "violação dos direitos humanos da mulher grávida e da criança recém-nascida", consideraram as activistas.

Mzuri Issa, sorriso brilhante, lenço colorido na cabeça, cumpriu mais uma missão importante em defesa dos direitos das mulheres de Zanzibar. Veio a Bruxelas pedir ajuda para continuar. Nas ilhas, as mulheres pobres, rurais e analfabetas, esperam.

A jornalista viajou a convite da Comissão Europeia

"A revolução sexual vai durar séculos", diz escritor Martin Amis


Em entrevista a J. M. Martí Font, para ao El Pais, o escritor Martin Amis (nascido em Oxford, Inglaterra, em 1949) comenta seu livro A Viúva Grávida (editora Anagrama / Empuries). Segundo ele, o livro é uma reflexão sobre a revolução sexual que começou na década de 1960 e que, segundo Amis, "vai durar séculos". No portal vermelho

El País: Preciso lhe fazer uma confissão. Há anos tive de fazer a resenha de seu primeiro romance, O Livro de Raquel. Gostei, mas não fiz uma boa crítica. Identifiquei-me de tal maneira com o personagem que pensei que para isso não era preciso escrever um romance. Agora me arrependo, ainda mais porque creio que A Viúva Grávida é de certo modo uma revisitação daquele livro e daquele momento.
Martin Amis: Sim, muito. Provavelmente eu concordaria com sua crítica porque tentei reler O Livro de Raquel e foi tão cru... Li 50 páginas e o deixei. Teria sido útil para me lembrar do que era ter 20 anos. Vi tantas imperfeições... Era um romance vívido, mas tecnicamente muito frágil. Mas gosto da última frase: "Recarrego minha pluma".

El País: Por que os escritores ingleses sempre voltam aos temas clássicos: religião e classe?
Amis: A religião é um dos sedimentos de nossas mentes, e acreditamos tê-lo superado. Não creio que superamos nada. As coisas perdem um pouco a importância, mas continuam aí. Quando comecei a sair com garotas, aos 15 anos, já a encontrava. Era quase sempre a religião que impedia a garota de ir mais longe. A religião era o princípio antiprazer, e esse era o meu argumento. É que não querem que você tenha prazer, dizia. O treinamento continua aí. Esperávamos que a religião desaparecesse, mas não aconteceu. É fascinante. Em certo sentido, a religião é uma das questões mais interessantes. Não se trata de crer ou não crer, isso não tem a menor importância, é um simples clichê, um monte de banalidades e respostas prontas para tudo. O importante é a atração humana pela religião, que é incurável.

El País: O senhor reivindica o legado de Thatcher?
Amis: É difícil ter algum tipo de afeto por essa mulher, embora meu pai [o escritor inglês Kingsley Amis] a adorasse - creio que tinha sonhos úmidos com ela; destruiu os sindicatos, conseguindo que a classe operária se voltasse contra si mesma, mas, como eu disse, também destruiu as conexões da aristocracia com o Partido Conservador. É a política que David Cameron admira, que Tony Blair admira. Todos lhe devem alguma coisa.

El País: O senhor misturou ficção com ensaio político. O que pensa sobre o que acontece no mundo árabe?
Amis: Acho excitante e me causa ansiedade. A revolução egípcia é uma maravilha. Eu dizia a mim mesmo: vai ser terrivelmente violenta, e foi magnífica. Veremos o que acontece em outros lugares. Lembro que Bruce Chatwin escreveu em meados dos anos 80, creio que em "Utz", que talvez o comunismo na Europa não acabasse em sangue e fogo, e sim como folhas movidas pelo vento na rua. E foi assim. Mubarak, que parecia uma grande estátua no meio da região, simplesmente se foi.

El País: Em seu romance não é muito amável com os jovens.
Amis: Creio que sou sim. Sou muito amável com as garotas...

El País: Mas não com os garotos.
Amis: Era mais fácil para os rapazes. Para as meninas era muito difícil. Tinham de tomar muitas decisões, enquanto os meninos não precisavam mudar, e sim ser mais meninos que nunca. As meninas pensaram no início que o que deviam fazer era ser como os rapazes. Fizeram isso durante alguns anos, mas perceberam que não eram rapazes e tampouco lhes interessava pretender que o fossem. Foi a face igualitária do feminismo, na qual as mulheres precisavam de uma referência e, olhando ao redor, tudo o que viam eram rapazes. Mas no final dos 70 essa atitude ficou desacreditada, tanto entre as mulheres como no feminismo. Então surgiu a ideia da mulher forte que não é como um homem. Mas a revolução sexual é uma revolução permanente que continuará durante séculos. Progredimos muito em um curto espaço de tempo, mas é surpreendentemente difícil conseguir um acordo bom, decente e razoável entre um homem e uma mulher, embora pareça que lentamente nos aproximamos.

El País: Parece-se mais com uma negociação permanente?
Amis: Sim, como algo que está no horizonte, do qual você se aproxima, mas nunca alcançará.

El País: Em seu romance o senhor define os 50 anos como um trem-bala onde os minutos às vezes se tornam intermináveis, mas os anos passam vertiginosamente. Agora já entrou nos 60. O que mudou?
Amis: Assim que cruzei a linha, disse para mim mesmo: isto não pode acabar bem. Não havia pensado assim antes. Há medo. É um massacre. Você não vai mais a casamentos, mas a enterros, e está na primeira fila. Olha para os necrológios e seus amigos morrem. Aterrorizante. E a ilusão de que você sempre seria mais corajoso, não a tem mais.

Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves