O Estado moderno no Brasil ganhou passos relevantes desde a
Revolução de 30. Ademais de reverter a longa trajetória liberal
consagrada pelo Estado mínimo, que exercia fundamentalmente o monopólio
da violência (concedido às forças policiais e militares), da emissão
monetária (unidade monetária e criação de moeda) e da tributação
(arrecadação fiscal), houve a construção da ossatura inicial do Estado
social.
Por Marcio Pochmann, no Valor Econômico via VERMELHO
De um lado, a atuação do Ministério
da Fazenda convergindo com os interesses do capital urbano em meio aos
esforços da industrialização nacional enquanto de outro a ação
integradora do Ministério do Trabalho orientando a organização do
mercado formal de trabalho por meio da garantia dos direitos sociais e
trabalhistas.
Sem interromper o curso dessa mesma trajetória, o regime militar (1964-1985) notabilizou-se pelo maior fortalecimento das ações do Ministério da Fazenda (combate à inflação, elevação das exportações, entre outras) simultaneamente ao enfraquecimento do Ministério do Trabalho, mais sensível à repressão de dirigentes sindicais e aplicação da legislação de arrocho salarial.
Em função disso, as medidas de caráter social e trabalhista, como o Funrural e a inclusão dos trabalhadores rurais à Consolidação das Leis do Trabalho, se mostraram incapazes para reduzir a discrepância entre o avanço econômico e a letargia social.
A crise da dívida externa no início da década de 1980 explicitou a intransparência na gestão pública a partir da existência de vários orçamentos públicos (monetário, fiscal, previdência social e das empresas estatais) à margem de qualquer controle democrático. Com a recessão econômica geradora do desemprego e do rebaixamento das condições de trabalho, a desorganização das finanças públicas terminou sendo respondida pelos governos democráticos por meio de um novo patamar para a gestão da economia.
Isto é, a modernização gradual e contínua da atuação do Ministério da Fazenda, com o fim da escandalosa conta-movimento e a criação da Secretaria do Tesouro Nacional, que completa 25 anos de existência. Além disso, a unificação orçamentária e a presença de representantes da sociedade na gestão dos fundos públicos foram confirmadas pela Constituição de 1988.
Ao longo da década de 1990, outras inovações na atuação do Ministério da Fazenda ocorreram em paralelo ao esvaziamento de sua capacidade de coordenação e implementação das políticas industrializantes. Destacam-se, por exemplo, a Lei de Responsabilidade Fiscal e a definição de metas de superávit fiscal e de inflação. Com base nisso, a sociedade passou a acompanhar e a julgar o desempenho dos governos com base no cumprimento das metas estabelecidas pela equipe econômica.
Não obstante os avanços do regime democrático, a área social não perseguiu o mesmo sentido reorganizativo registrado pela condução econômica dos governos. O Ministério do Trabalho, por exemplo, não recuperou plenamente o seu protagonismo do período pré-regime militar, embora a área social tenha ampliado funções e capacidade de gasto público, ainda que acompanhada de sua maior fragmentação institucional.
O fortalecimento dos grandes complexos do Estado social (saúde, educação, previdência e assistência social) permitiu que a despesa social agregada quase dobrasse em relação ao Produto Interno Bruto (PIB) durante os últimos 25 anos. Afora a programação por setor de governo, a área social seguiu sem a existência de metas globais, como havia ocorrido na esfera econômica, o que tornou mais difícil à sociedade avaliar a sua capacidade de mudar a realidade nacional.
Por conta disso, a recente decisão do governo Dilma de definir o valor de uma linha nacional de pobreza extrema tem o mérito político de estabelecer as bases do aperfeiçoamento do Estado social no Brasil. Por não ser um mero valor monetário definidor da dimensão dos extremamente pobres, a linha de pobreza extrema estabelece a dimensão multidisciplinar das carências da base da pirâmide social e que precisam ser globalmente atendidas pelas mais diversas políticas públicas.
Em síntese, tem-se a metodologia pela qual deve ser privilegiada a ação do Estado social para atender a adultos analfabetos, crianças sem creches, adolescentes e jovens sem escolas, famílias sem renda e sem emprego, domicílios sem eletricidade, transporte e saneamento, entre outras tantas dimensões da pobreza extrema. A partir de agora, a sociedade tem condições de avaliar a atuação governamental no cumprimento das metas tanto para a economia (inflação e de superávit fiscal) como para a área social (pobreza extrema em suas variadas e complexas formas de manifestação).
Nesse contexto, a seminal experiência de implantação dos territórios de cidadania pelo governo Lula indicou a possibilidade de novos êxitos nas inovadoras ações sociais matriciais. Assim como o trabalhador sem-terra não se contenta mais com o acesso à propriedade fundiária, pois necessita de um conjunto de políticas públicas (posto de saúde, escola, estrada, transporte, energia elétrica, tecnologia, crédito, assistência técnica etc.), o cidadão extremamente pobre precisa contar com uma rede de políticas públicas voltadas à superação plena de sua condição social desfavorável.
A universalização da presença do Estado social para todos os brasileiros, especialmente para aqueles que mais precisam, representa um salto no enfrentamento de uma das mais graves mazelas sociais que atingem mais de 16 milhões de pessoas na condição de extrema pobreza. Isso pressupõe o comando único na estratégia de ações capazes de permitir o cumprimento da meta de superação da pobreza extrema concomitantemente com cronograma e orçamento estabelecidos transparentemente por decisão governamental.
Nesses termos, os programas de transferência de renda introduzidos pela administração federal em sequência às exitosas experiências de Campinas e do Distrito Federal respondem por importante salto organizativo na luta contra a pobreza. O que já fora possível ter sido superado ao final da década de 1970, quando o país ocupava a 8ª posição na economia mundial, encontra-se, agora, diante de uma nova oportunidade — o alcance da superação da pobreza extrema paralelamente ao horizonte de assumir a condição de 5ª economia do mundo.
A atuação precisa e ampla do governo no cumprimento da meta social, monitorada e avaliada pela sociedade, constitui passo significativo no aperfeiçoamento do Estado social brasileiro.
* Marcio Pochmann é presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e professor licenciado da Unicamp
Sem interromper o curso dessa mesma trajetória, o regime militar (1964-1985) notabilizou-se pelo maior fortalecimento das ações do Ministério da Fazenda (combate à inflação, elevação das exportações, entre outras) simultaneamente ao enfraquecimento do Ministério do Trabalho, mais sensível à repressão de dirigentes sindicais e aplicação da legislação de arrocho salarial.
Em função disso, as medidas de caráter social e trabalhista, como o Funrural e a inclusão dos trabalhadores rurais à Consolidação das Leis do Trabalho, se mostraram incapazes para reduzir a discrepância entre o avanço econômico e a letargia social.
A crise da dívida externa no início da década de 1980 explicitou a intransparência na gestão pública a partir da existência de vários orçamentos públicos (monetário, fiscal, previdência social e das empresas estatais) à margem de qualquer controle democrático. Com a recessão econômica geradora do desemprego e do rebaixamento das condições de trabalho, a desorganização das finanças públicas terminou sendo respondida pelos governos democráticos por meio de um novo patamar para a gestão da economia.
Isto é, a modernização gradual e contínua da atuação do Ministério da Fazenda, com o fim da escandalosa conta-movimento e a criação da Secretaria do Tesouro Nacional, que completa 25 anos de existência. Além disso, a unificação orçamentária e a presença de representantes da sociedade na gestão dos fundos públicos foram confirmadas pela Constituição de 1988.
Ao longo da década de 1990, outras inovações na atuação do Ministério da Fazenda ocorreram em paralelo ao esvaziamento de sua capacidade de coordenação e implementação das políticas industrializantes. Destacam-se, por exemplo, a Lei de Responsabilidade Fiscal e a definição de metas de superávit fiscal e de inflação. Com base nisso, a sociedade passou a acompanhar e a julgar o desempenho dos governos com base no cumprimento das metas estabelecidas pela equipe econômica.
Não obstante os avanços do regime democrático, a área social não perseguiu o mesmo sentido reorganizativo registrado pela condução econômica dos governos. O Ministério do Trabalho, por exemplo, não recuperou plenamente o seu protagonismo do período pré-regime militar, embora a área social tenha ampliado funções e capacidade de gasto público, ainda que acompanhada de sua maior fragmentação institucional.
O fortalecimento dos grandes complexos do Estado social (saúde, educação, previdência e assistência social) permitiu que a despesa social agregada quase dobrasse em relação ao Produto Interno Bruto (PIB) durante os últimos 25 anos. Afora a programação por setor de governo, a área social seguiu sem a existência de metas globais, como havia ocorrido na esfera econômica, o que tornou mais difícil à sociedade avaliar a sua capacidade de mudar a realidade nacional.
Por conta disso, a recente decisão do governo Dilma de definir o valor de uma linha nacional de pobreza extrema tem o mérito político de estabelecer as bases do aperfeiçoamento do Estado social no Brasil. Por não ser um mero valor monetário definidor da dimensão dos extremamente pobres, a linha de pobreza extrema estabelece a dimensão multidisciplinar das carências da base da pirâmide social e que precisam ser globalmente atendidas pelas mais diversas políticas públicas.
Em síntese, tem-se a metodologia pela qual deve ser privilegiada a ação do Estado social para atender a adultos analfabetos, crianças sem creches, adolescentes e jovens sem escolas, famílias sem renda e sem emprego, domicílios sem eletricidade, transporte e saneamento, entre outras tantas dimensões da pobreza extrema. A partir de agora, a sociedade tem condições de avaliar a atuação governamental no cumprimento das metas tanto para a economia (inflação e de superávit fiscal) como para a área social (pobreza extrema em suas variadas e complexas formas de manifestação).
Nesse contexto, a seminal experiência de implantação dos territórios de cidadania pelo governo Lula indicou a possibilidade de novos êxitos nas inovadoras ações sociais matriciais. Assim como o trabalhador sem-terra não se contenta mais com o acesso à propriedade fundiária, pois necessita de um conjunto de políticas públicas (posto de saúde, escola, estrada, transporte, energia elétrica, tecnologia, crédito, assistência técnica etc.), o cidadão extremamente pobre precisa contar com uma rede de políticas públicas voltadas à superação plena de sua condição social desfavorável.
A universalização da presença do Estado social para todos os brasileiros, especialmente para aqueles que mais precisam, representa um salto no enfrentamento de uma das mais graves mazelas sociais que atingem mais de 16 milhões de pessoas na condição de extrema pobreza. Isso pressupõe o comando único na estratégia de ações capazes de permitir o cumprimento da meta de superação da pobreza extrema concomitantemente com cronograma e orçamento estabelecidos transparentemente por decisão governamental.
Nesses termos, os programas de transferência de renda introduzidos pela administração federal em sequência às exitosas experiências de Campinas e do Distrito Federal respondem por importante salto organizativo na luta contra a pobreza. O que já fora possível ter sido superado ao final da década de 1970, quando o país ocupava a 8ª posição na economia mundial, encontra-se, agora, diante de uma nova oportunidade — o alcance da superação da pobreza extrema paralelamente ao horizonte de assumir a condição de 5ª economia do mundo.
A atuação precisa e ampla do governo no cumprimento da meta social, monitorada e avaliada pela sociedade, constitui passo significativo no aperfeiçoamento do Estado social brasileiro.
* Marcio Pochmann é presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e professor licenciado da Unicamp