Fernando de La Cuadra
Claudia Hilb. Silêncio, Cuba. A esquerda democrática diante do regime da Revolução Cubana. Trad. Miriam Xavier. São Paulo: Paz e Terra, 2010. 111p.
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Quando
os tanques soviéticos invadiram Praga e o socialismo real se
apresentava aos nossos olhos — junto com o fascismo — como um grande
pesadelo do século XX, a revolução cubana surgia como uma experiência
inédita, diáfana e enaltecedora. E, inclusive, os fuzilamentos que se
seguiram ao triunfo de Santa Clara foram considerados consequências
inevitáveis das dores do parto.
Mas como fazer a critica de uma
revolução que gerou tanta esperança na região e no mundo? Como
questionar um processo que se enraizava nos valores mais elevados da
humanidade, o fim da exploração dos mais desprovidos, dos mais
vulneráveis? Como abordar as práticas autoritárias do regime cubano, sem
fazer causa comum com os setores mais “reacionários”? Estas e outras
perguntas de similar teor acabaram por imunizar Cuba da crítica da
própria esquerda democrática. Por isso, já passadas mais de cinco
décadas desde aquele 1º. de janeiro de 1959, ainda existe um silêncio
cúmplice sobre os erros de rumo de uma revolução que continua
assombrando os intelectuais progressistas e a esquerda assumidamente
democrática.
É precisamente esse silêncio incômodo que estimula a reflexão de Claudia Hilb.
Esta socióloga e cientista política argentina, militante da esquerda
radical, teve de sair para o exílio depois do golpe de 1976. Em Paris,
realizou estudos de pós-graduação e frequentou os seminários de Claude Lefort,
sua principal fonte de inspiração intelectual. Colocada diante da
pergunta sobre a razão pela qual a esquerda democrática tem guardado um
conspícuo silêncio frente aos traços autoritários do regime cubano, ela
tenta responder através da seguinte hipótese: a recusa desta esquerda a
se pronunciar a este respeito se deve, em grande parte, ao fato de que
reconhece o esforço realizado pelo regime em termos de justiça social,
ou seja, este setor da esquerda reconhece “algumas realizações
indiscutíveis do regime em questão, particularmente o fato de igualar as
condições sociais e universalizar o acesso à saúde e à educação” (Hilb,
2010, p. 14).
Mas isso é suficiente para legitimar um regime
político que diz lutar por um mundo mais justo, livre e solidário?
Certamente não. Claudia Hilb decompõe os meandros deste dilema e conclui
com a certeza inquietante de que os esforços pela igualação radical das
condições de vida do povo cubano, na primeira década da revolução,
foram um fenômeno entrelaçado com o processo de concentração total do
poder nas mãos de Fidel Castro.
Ainda mais, no percurso do texto
a autora demonstra consistentemente como uma vocação de dominação
total, sustentada na vontade do líder máximo, transformou o entusiasmo e
a virtude revolucionária em obediência acrítica. De modo análogo, a
gesta revolucionária de inspiração emancipadora produziu, através do
medo, um comportamento oportunista e paralisador dos mesmos sujeitos
ativos da revolução. Ela argumenta que o processo de concentração de
poder nas mãos do Comandante Fidel foi um fenômeno de teor organicista,
pelo qual o líder se vê como reitor de uma sociedade, situado
legitimamente no topo de uma pirâmide a partir da qual o social torna-se
visível em sua plenitude.
Foi assim que, como consequência
inevitável desta visão, Fidel Castro se transformou na encarnação
suprema da revolução. Tudo o que provém dele representa a revolução, e,
como ele mesmo sentenciou na mensagem dirigida aos intelectuais cubanos
no ano seguinte ao seu triunfo, “dentro da Revolução, tudo; contra a
Revolução, nada.”
Desta forma — relata Hilb —, o regime passou a
cooptar ou subordinar a totalidade das dimensões que conformavam a
realidade cubana — as universidades e o movimento estudantil, as
fábricas e os sindicatos, os intelectuais e as entidades da cultura —,
numa velocidade vertiginosa e arrasadora que se consolida já nos
primeiros anos do regime socialista, sepultando qualquer vestígio de
critica, ainda que fosse realizada por eminentes figuras surgidas no
seio da própria luta revolucionária, como Huber Matos, Carlos Franqui ou
Heberto Padilla. O caso deste último foi o mais dramático e patético:
“A lamentável paródia da sua confissão de culpa foi o sinal definitivo
de que a possibilidade de discordar dentro da área cultural
revolucionária ficava eliminada e também foi um sinal que, apesar dos
esforços por ignorar o rumo que a Revolução tomava já há muito tempo,
muitos dos seus antigos amigos já não conseguiram ou quiseram deixar de
ouvir” (Hilb, op. cit., p. 35).
A excepcionalidade da
experiência cubana se transformou no mesmo pesadelo de matriz
stalinista, em que o poder do povo se transforma em poder do partido
revolucionário, deste se transfere para o comitê central e, finalmente, o
dito poder acaba concentrado nas mãos do ditador. Mas o que salienta a
autora, e certamente representa uma importante afirmação, é que este
processo de concentração do poder foi concomitante com as intensas e
veementes ações em prol do nivelamento das condições de vida da
população cubana. As mobilizações espontâneas de apoio à revolução —
como a campanha pela alfabetização, o trabalho voluntário durante a
safra do açúcar — foram constituindo-se numa prática formal destinada a
obter maiores benefícios e prebendas da parte do regime. Por sua vez, à
vasta e incondicional adesão e ao entusiasmo inicial captado pelo
movimento revolucionário seguiu-se um período de desconfiança e medo,
causado pelo crescente e perverso patrulhamento ideológico, a espionagem
e a delação entre vizinhos, fato este não só amplamente documentado em
milhares de relatórios sobre direitos humanos na ilha, mas também em
inumeráveis expressões no campo da cultura (literária e artística), como
o romance de Guillermo Cabrera Infante, Três tristes tigres, ou o livro autobiográfico de Reinaldo Arias, Antes que anochezca, levado posteriormente para o cinema.
Assim,
o regime cubano foi institucionalizando apoios e alimentando medos, e,
paradoxalmente, o custo político evidente de uma manifestação de
descontentamento também se estendeu a uma postura neutra. A
neutralidade, afinal, era uma posição mais sintomaticamente política que
qualquer adesão resignada e conservadora marcada pelo interesse
individual para obter benefícios do governo ou como disfarce diante de
possíveis represálias dos aparelhos de vigilância (por exemplo, os
Comitês de Defesa de Revolução — CDR). A “neutralidade” gerava igual ou
maior suspeita que uma posição decididamente opositora e, em definitivo,
resultava ser tanto ou mais perigosa que o enfrentamento direto: se
falo, sou um inimigo, mas, se não falo, também sou um inimigo em
potencial. Como depois seria emulado pelo socialismo bolivariano, o
regime cubano foi criando uma extensa trama de aduladores e seres
desprezíveis que fazem da complacência acrítica uma fórmula fácil para
ganhar as simpatias do líder e aceder aos privilégios proporcionados
pelo Estado, no melhor estilo stalinista descrito magistralmente por
George Orwell em seu romance distópico 1984.
Neste breve e
contundente ensaio, a autora nos lembra também que o ponto de vista
organicista não é privilégio somente das correntes “reacionárias” do
pensamento, mas também de certas vertentes que se dizem de esquerda ou
socialista. No caso cubano, é sintomático que qualquer arroubo de
crítica tenha sido automaticamente reprimido, qualquer sinal de
pensamento dissidente imediatamente expurgado, qualquer indício de
criatividade distinto do cânon institucionalizado igualmente extirpado,
como um câncer maligno que pretendesse se alastrar pelo conjunto do
corpo social.
Sistemas conceituais fechados de explicações
absolutas e totalizadoras não dão espaço para o debate democrático,
pois, qualquer que seja a natureza do questionamento das restrições às
liberdades políticas e individuais, a resposta quase sempre será que
aquele que age dessa forma pensa a partir de uma perspectiva
“pequeno-burguesa”, razão pela qual possui valores deturpados e uma
compreensão ofuscada da realidade derivada da sua condição privilegiada
de classe. Portanto, não existe espaço para devaneios e diletantismos
teóricos: “dentro da Revolução tudo; contra a Revolução, nada”, segundo o
axioma mencionado. O Comandante encarna, em última instância, o fulgor e
a epopeia revolucionária e, consequentemente, é também quem decide o
que está dentro e o que está fora.
Atribuindo-se a
si mesmo o espírito e o comando da revolução, Fidel conseguiu num breve
período de tempo — durante a primeira década do regime — concentrar
todo o poder do Estado cubano e sufocar qualquer tipo de iniciativa
política que pudesse colocar em risco sua liderança e autoridade. E
precisamente neste ponto a autora nos conduz para uma reflexão
perturbadora a respeito do fato de que a experiência revolucionária
acumulada — Rússia e China, entre outras — nos demonstraria que a
afinidade entre personalização e concentração de poder revolucionário
representa uma tendência constante e inevitável, baseada na “convicção
de que o afã construtivista, a pretensão de moldar de cima a sociedade
está indissoluvelmente ligada à convicção de que esta tarefa deve ser
encarada de modo onipotente desde o ponto mais alto da sociedade”. É aí
que a figura do Líder emerge como uma espécie de alquimia para organizar
o todo social, para definir metas, funções e responsabilidades de cada
um dos membros desse organismo. Assim, durante o processo de construção
da Revolução Cubana esse papel foi concentrado na pessoa de Fidel, que
com seu carisma e liderança resolveria, “definitiva e brutalmente”, a
polissemia revolucionária.
No entanto, esta síntese que define o
destino do povo cubano perde desde muito cedo seu verdadeiro caráter
emancipatório. Se bem que o projeto revolucionário tenha conseguido
resolver drasticamente a desigualdade prevalecente nos tempos de
Batista, ele não permitiu, simultaneamente, realizar os anseios de
autonomia e participação democrática entre os habitantes da ilha. Pelo
contrário, a aspiração liberadora das “garras” da ditadura batistiana
transformou-se num breve espaço de tempo no império da censura, do medo e
da submissão.
Tal contradição do socialismo “realmente existente” já tinha sido denunciada, há anos, por Rudolf Bahro no seu livro Die Alternative
(1977) [1]. Nele o escritor alemão constata — entre outros aspectos —
como o socialismo real dos países da Europa Oriental optou por priorizar
(ainda que com evidentes limitações) a resolução da questão da
igualdade e da justiça social, à custa dos princípios da liberdade civil
e política e do respeito aos direitos de participação democrática e
autorrealização dos cidadãos.
Também em Cuba a pretensão
construtivista e igualitária supôs que um conjunto de valores
coletivistas poderia ser inoculado nas pessoas para que elas superassem o
individualismo e o egoísmo particularista, criando uma entidade — com
características do tipo puro ideal weberiano — chamada de “homem novo”.
Mas este projeto transformador se realizou desde cima, desprezando e
coibindo qualquer pulsão dos indivíduos em prol da formação de um novo organismo
ou corpo social em que primassem os princípios igualitários consagrados
pela épica revolucionária: “A fabricação vertical da sociedade exige
que cada um cumpra um papel que o poder, desde a cúpula, lhe atribui; se
não cumprir por consciência, cumprirá por temor”.
De tal
modo, o desejo de liberdade se transformou em aceitação da opressão, o
Terror e o medo substituíram a adesão e o fervor revolucionário do povo
cubano. Quem não compartilha estes princípios converte-se em traidor e
pária: um gusano [2]. A execração das “Damas de Branco”,
que viraram arquétipo da deslealdade e alvo do repúdio dos populares,
que descarregam contra elas a palavra de ordem: “as ruas são de Fidel”,
expressa sem maiores subterfúgios a consagração de uma sociedade
amordaçada e imobilizada pelo temor.
Por isto, nos interrogamos —
tal como se interroga a autora —, o que resta da promessa da Revolução?
O que resta do sonho libertário e emancipatório que encarnava a façanha
revolucionária dos barbudos? O que dele pode restar para uma esquerda
democrática e plural que acredita na construção de uma sociedade mais
justa, igualitária e livre da opressão? Muito pouco ou nada.
A
Revolução que se fez para igualar e libertar os “de baixo” acabou por se
construir pelo alto, domesticando a população através de mecanismos de
persuasão e de coerção. Transformou-se, assim, na negação da esperança
de um mundo pluralista e tolerante, marca iniludível de um socialismo
moderno que não pode abjurar dos princípios democráticos. Ou quiçá,
também, na negação da esperança de um tipo de socialismo associativo
que, segundo a formulação de Paul Hirst, aspire a constituir-se numa
democracia social alternativa ao socialismo autocrático de Estado e ao
liberalismo do livre mercado [3].
Nesse contexto, adquirem maior significado as palavras do recentemente falecido Antonio Cortés Terzi,
para quem os ideais inovadores e pioneiros de Allende têm mais de
“socialismo do século XXI” que as práticas ortodoxas dos irmãos Castro
ou de Chávez.
Estas últimas parecem aproximar-se mais do legado stalinista do século
passado que de um socialismo renovado e projetado para resolver os
desafios futuros de nossas sociedades.
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Fernando de La Cuadra é sociólogo chileno e membro da Rede Universitária de Pesquisadores sobre a América Latina (RUPAL).
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Notas
[1] No Brasil: A alternativa – Para uma critica do socialismo real. São Paulo: Paz e Terra, 1980.
[2] Este temor ao linchamento social cria paralelamente uma “dupla moral”, uma dissociação entre a moral pública de fidelidade e apoio ao regime e a moral privada, de sobrevivência, que utiliza inúmeros recursos ilegais para resolver restrições e problemas da vida cotidiana.
[3] Paul Hirst. A democracia representativa e seus limites. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992.
[1] No Brasil: A alternativa – Para uma critica do socialismo real. São Paulo: Paz e Terra, 1980.
[2] Este temor ao linchamento social cria paralelamente uma “dupla moral”, uma dissociação entre a moral pública de fidelidade e apoio ao regime e a moral privada, de sobrevivência, que utiliza inúmeros recursos ilegais para resolver restrições e problemas da vida cotidiana.
[3] Paul Hirst. A democracia representativa e seus limites. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992.