terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Inglaterra em tempos de crise: luta por paz e liberdade



Aproximei-me dos militantes para perguntar se tinham alguma ação direta programada para aquele dia. Em seguida, uma garota alta de cabelos longos me ofereceu uma cadeira ao seu lado e se despiu da máscara para dizer que o único plano concreto do movimento era seguir com a acampada
por Fabíola Munhoz no LeMondeBrasil
(Acampamento dos "Indgnados" em Londres)
Se, por um lado, o que é novo tem a capacidade de reciclar nosso olhar mais puro, por outro, deparar-se com o diferente é também lançar-se à crítica e ao distanciamento. Tive essas percepções quando, em vésperas de natal, pisei pela primeira vez em solo inglês. Ali, conheci uma Londres bonita, limpa e incrivelmente organizada. Em toda sua qualidade de vida avessa ao caos das metrópoles latinoamericanas, com as quais estou acostumada, a cidade me pareceu perfeita demais para ser real. Seus pubs aconchegantes, ônibus em estilo retrô de dois andares, edifícios históricos bem preservados e prédios modernos e climatizados causavam deslumbre sem que eu me sentisse parte de tudo aquilo.
Foi assim, como forasteira cética e ingênua, que perdi boa parcela do dinheiro que havia levado, na conversão de euros para libras esterlinas. O Pound era vendido a 1,33 euros no aeroporto, mais a cobrança de uma taxa pelo serviço de câmbio. Soube depois que, caso tivesse sacado minhas libras diretamente de algum banco, usando um cartão de débito internacional, teria economizado um valor considerável das minhas preciosas divisas.
E, de fato, qualquer moeda de 5 centavos (ou cinco coins) é bem raro para o turista que chega a Londres. O custo de vida na capital inglesa é altíssimo, um dos maiores do mundo. É verdade que os salários locais também são mais altos e, para quem recebe em unidades dessa moeda tão forte, viver ali deve ser como estar em qualquer outro lugar. Mas, tive a impressão de que por essa estabilidade da economia os cidadãos pagam o preço de serem reféns do trabalho. Por metrôs, ruas e lojas, homens e mulheres transpiram pressa por fazer ou consumir algo. Os caixas de supermercado são máquinas de atendimento automático para poupar tempo. E não se manter ao lado direito da escada rolante por distração é emperrar o ritmo frenético da cidade. 
Loucuras como essa podem ser sentidas e sofridas em qualquer metrópole moderna, mas soaram piores, naquela ocasião, porque se aproximava o dia 25 de dezembro, com seu apelo comercial transformador de populações em formigueiros desvairados, e também pelo frio que fazia na capital inglesa, para mim motivo de mau humor. A Oxford Street, rua famosa por sua diversidade de lojas, via-se infestada de consumidores e, enquanto caminhei por ali, observando mais os prédios e luzes decorativas que os produtos expostos nas vitrines, recordei a notícia publicada naquele mesmo dia (12/12) pelos principais jornais europeus, de que o primeiro-ministro britânico, David Cameron, não havia concordado em ratificar o último pacto proposto pela União Europeia para recuperação das economias do continente.
O acordo anunciado pelo Parlamento Europeu, em Bruxelas, no dia 9 de dezembro, tinha como meta exigir dos Estados-membros da zona do euro maior disciplina orçamentária, com o objetivo de enfrentar a crise econômica. Essa unidade em política fiscal foi rejeitada por Cameron sob os argumentos de que o pacto não garante proteção aos países e a rejeição da Inglaterra ao seu conteúdo seria uma salvaguarda necessária ao mercado financeiro inglês.
É de se compreender a decisão do primeiro-ministro. Em Londres, não pude observar qualquer sinal de crise financeira ou pobreza, e a moeda circulante, mais forte que o euro, refletia essa preocupação do governo britânico em manter como prioridade a defesa dos interesses internos, independentemente de sua posição ou influência dentro da Europa. Porém, embora formalmente a Inglaterra se resguarde de uma integração mais profunda à zona do euro, na prática, muitos londrinos sabem que a transnacionalização de políticas é inevitável no atual contexto de interdependência econômica que caracteriza o planeta. Inclusive, Londres tem sabido bem como mostrar-se aberta a essa interação com outros países sempre que lhe convém.
A partilha internacional de prejuízos econômicos e ambientais, bem como dos danos decorrentes de guerras lucrativas, realizadas ao redor do mundo, sucede desde que esse país se tornou potência. Sabendo disso, e descontentes com o atual modelo político e econômico adotado por seu país, um grupo de jovens indignados ingleses, acampados desde a manifestação internacional do dia 15 de outubro deste ano, passam o frio cortante do inverno londrino abrigados em tendas de lona instaladas frente à catedral de St. Paul, com o propósito de reivindicar participação política.
No dia 13 de dezembro, fui até o local, onde pude ver dezenas de barracas espalhadas pelo pátio frente à porta principal da igreja. A maioria delas estava decorada com mensagens contra as desigualdades sociais, a fome, a dominação dos mercados sobre os governos e o capitalismo financeiro. Poucos passantes paravam para ler esses reclames, talvez devido ao mau tempo. Com o frio excessivo, a maioria dos manifestantes também estava ausente.
Apenas três tendas centrais maiores tinham a presença de ativistas, uma destinada à informação sobre o movimento, outra onde aconteciam as assembleias gerais e uma terceira, que era cozinha comunitária. Depois de passar por esse último stand, onde jovens comiam pães e bolachas, enquanto um senhor sentado sobre uma cadeira de madeira lia poesias de sua autoria, voltei a caminhar entre as barracas menores. Nesse instante, encontrei um grupo de quatro jovens usando máscaras de anônimos. Um deles era entrevistado por três garotas, que se identificaram como estudantes de Audiovisual da Westminster School, interessadas em fazer um documentário sobre os indignados ingleses.
Aproximei-me dos militantes para perguntar se tinham alguma ação direta programada para aquele dia. Em seguida, uma garota alta de cabelos longos me ofereceu uma cadeira ao seu lado e se despiu da máscara para dizer que o único plano concreto do movimento era seguir com a acampada. “Aqui é território da Igreja, e temos permissão dela para permanecer acampados pelo tempo que a gente quiser. Não temos previsão de partida”.
Nossa conversa foi interrompida por outro ativista que me ofereceu um cobertor, enquanto convidava as estudantes documentaristas para uma conversa que, segundo ele, poderia ser gravada com tranqüilidade e proteção contra o frio num pub próximo dali. Seguimos então até o bar: eu e as três documentaristas, além de três garotas e cinco garotos que usavam máscaras de anônimos mais como identificação de sua militância que para preservar a própria identidade. Num papo regado a grandes canecas de uma cerveja encorpada, um dos indignados criticou o controle de grandes grupos econômicos e instituições financeiras sobre a política mundial, enquanto uma das estudantes, de cabelo negro e curto, dividia a atenção entre a fala do rapaz e os cuidados com o enquadramento da cena. Pouco depois, um militante magro e de movimentos rápidos (o mesmo que havia me oferecido o cobertor na praça da catedral) disse lutar por liberdade e por uma participação política que o permita discordar dos gastos de recursos públicos com a compra de material bélico. “O dinheiro que gastamos com a guerra hoje seria mais que suficiente para acabar com a fome no mundo”, falou antes de pedir licença e se dirigir ao jardim de inverno onde tinha permissão para fumar.
A entrevista durou cerca de uma hora. Depois, as documentaristas agradeceram pela ajuda e se separaram do grupo. Segui com os militantes de volta à Basílica de St. Paul e, durante esse caminho, pude conversar com uma jovem alemã de cabelos vermelhos, que vive em Londres há mais de uma década e não pensa em voltar ao seu país. Ela disse que conheceu o movimento dos indignados ingleses via internet, mas não acredita que as mídias sociais são as responsáveis pela atual onda de acampadas espalhadas por todo o mundo. “Essas ferramentas facilitaram o encontro entre as pessoas, mas a vontade de protestar e de mudar as coisas já existia dentro de cada um de nós”.
De volta ao alojamento, os indignados se separaram para realizar diferentes atividades, e eu me detive um minuto a observar a igreja que acumulava em sua porta principal uma fila gigantesca de turistas e devotos. “O que toda essa gente quer ver aí dentro?” – perguntou-me um rapaz cabeludo. Respondi que tampouco compreendia tanto interesse pelo edifício, já que não me considero devota a nada. Ele sorriu, dizendo que devia ser o Natal despertando a busca pela religião dentro da gente. Depois se apresentou como Willian, DJ, artista de rua e imigrante húngaro. Disse passar todos os dias pelo acampamento por concordar com os motivos da luta, embora não acreditasse muito na eficácia da realização de assembleias gerais. “É muito blá, blá, blá, e pouca ação concreta. Às vezes passam uns filmes interessantes, e eu acho legal a ideia. Mas, só se reunir aqui para falar não vai resolver nada”.
Decidi acompanhar uma dessas reuniões para saber se compartilharia a crítica de Willian. Eram 19h00 do dia 13 de dezembro, e o encontro havia acabado de começar, com um senhor de barba branca falando sobre a necessidade de se expandir o movimento para que cada vez mais pessoas tenham o direito de se expressar. A tenda onde a discussão ocorria foi se enchendo de gente, até o lugar se tornar pequeno. A assembleia, então, transcorreu como um debate sem fim entre idealistas radicais que queriam mudar o mundo e pediam o respeito de todos aos interesses comuns, e manifestantes mais preocupados em reclamar de temas internos, como a dúvida entre chamar ou não a polícia diante de um conflito particular entre acampados.
A discussão foi longa, com muitas interrupções, desrespeito a turno de palavras e um constante embate entre imigrantes e ingleses. Sentia-se também certa segmentação em grupos: negros, brancos, jovens de classe média e menos abastados mantinham relativa distância entre si. Foram tantas as discordâncias, os confrontos interpessoais e os desvios de tema, que nada foi decidido. Tive a impressão de que todos perdiam tempo quando em posse do microfone e poucos apresentavam disposição em ouvir. Um bebê, que permaneceu durante toda a assembleia quieto no colo de seu pai, apesar de gritos dos mais exaltados, mostrava-se o mais civilizado do ambiente. Devidos aos ânimos acirrados, a reunião terminou antes do previsto. Um garoto de gorro e olhos azuis, que se identificou como participante da organização da acampada, percebeu que eu era estrangeira e foi logo se desculpando pelo tumulto. “Nossas assembleias não são sempre assim. Hoje a situação fugiu um pouco do controle”. Nesse instante, o artista de rua húngaro interrompeu a conversa, discordando do jovem inglês, sem disfarçar certa intenção em hostilizá-lo. “Como eu te disse, quem está aqui não sabe muita coisa, eles estão protestando há muito pouco tempo. Você devia mesmo era conhecer aqueles que estão acampados há anos em frente ao Parlamento”, sugeriu Willian.
Por coincidência, eu já havia visitado essa outra acampada. Passando por volta das 14h00 daquele mesmo dia (13/12), frente ao portão principal do Parlamento inglês, onde se encontra o Big Ben, constatei a presença de cerca de quinze barracas instaladas da outra banda da rua. Os cartazes pregados ao lado das tendas indicavam que a luta daquelas pessoas estava diretamente relacionada com sua discordância em relação à participação da Inglaterra em guerras, como as iniciadas pelos países aliados contra o Iraque e o Afeganistão.
Billy, um senhor com cerca de 70 anos de idade, que recolhia assinaturas num abaixo-assinado pelo fim dos gastos do erário inglês em campanhas belicistas, contou-me que aquela acampada, conhecida como Peace Strike Parliamente Square (Greve pela paz da Praça do Parlamento) já existe há dez anos, e essa resistência tem rendido algumas conquistas, como a promessa do governo inglês de que as tropas do país que atualmente se encontram no Afeganistão regressarão a casa a partir de 2014. Essa informação me foi dada com otimismo por Billy, que é escocês e disse ter abandonado a profissão de engenheiro para se dedicar ao ativismo pela paz.
Curiosamente, o militante já foi soldado. Aos 17 anos de idade, quando atuava num embate entre Escócia e Islândia (1950-1960) por uma disputa de território marítimo, foi obrigado a cometer seu primeiro assassinato legalmente justificável. “Eu poderia ter atirado na perna do inimigo quando caiu no chão sem defesa. Mas, não fiz isso. Sem pensar, simplesmente atirei para matar”. Seus olhos se encheram de água à medida que voltou ao passado, revelando uma mescla de culpa e sensibilidade para transformar traumas em ação por mudanças. Faz isso atualmente como diretor da Remind, organização de caridade e apoio a ex-servidores do Exército, com sequelas físicas e psicológicas decorrentes da guerra, e suas famílias.
Billy também é um dos principais incentivadores da acampada pela paz frente ao Parlamento, cuja última ação foi organizar um strike internacional, com o objetivo de chamar a atenção da sociedade mundial para os cortes em educação, saúde, liberdades civis, pensões, emprego, assistência legal e moradia, realizados pelo governo inglês, em consequência dos seus gastos com a guerra contra o Afeganistão. A iniciativa, prevista para durar do dia 30 de novembro a 3 de dezembro de 2011, abrangeu greve trabalhista; boicote a shoppings, supermercados e distribuidoras de petróleo; paralisação de enfermarias, instituições de ensino e sistemas de transporte não essenciais, e o corte de audiência à TV, em protesto contra o sensacionalismo e o retrato da guerra como espetáculo.
Além disso, o foco maior da luta das pessoas que ali se encontram com suas barracas é o risco de que Estados Unidos, Israel e Europa iniciem uma guerra contra o Irã. “Sabemos que esse país é o próximo da lista e que a guerra é lucrativa. Mas não podemos permitir que isso aconteça. O povo não decidiu a favor desses conflitos, foram eles”, disse Billy apontando ao Parlamento.
O movimento, apesar do muito tempo em que se mantém ocupando um passeio público, jamais sofreu repressão policial ou tentativa de desalojo porque sua ação é permitida por lei. Essa liberdade para protestar e a qualidade de vida do cidadão inglês, que, quando desempregado, tem acesso a uma bolsa mensal, contrastam com a torre luxuosa do Parlamento, que parece alcançar o céu enquanto se distancia das pessoas comuns e da realidade das ruas, controlando o tempo a cada badalada do seu imenso relógio. Divago assim até ser acordada por outra fala de Billy, temperada com o senso prático de um verdadeiro escocês: “Embora diferente do seu país, Londres também é realidade”.

Fabíola Munhoz - Jornalista

FST 2012: Boaventura de Sousa Santos analisa o processo do Fórum Social Mundial

Fórum Mundial de Educação abre atividades discutindo a crise capitalista


 Texto: Ane Nunes / Comunicação FST2012

O Salão de Eventos da Reitoria da Universidade Federal do Rio Grande do Sul recebeu nesta terça-feira, 24, mais de 300 pessoas para a abertura do Forum Mundial de Educação (FME), evento que integra a programação do Fórum Social Temático. Além dos representantes de movimentos ligados à educação de diversos estados brasileiros, participaram também educadores de Portugal, Peru, Chile, Bélgica, Espanha, Itália, África, Haiti, Uruguai, Bolívia e Argentina. Sob a coordenação de Leslie Campaner de Toledo a primeira atividade do FME contou com a participação de educadores ligados a atividades alternativas de educação.

Sérgio Haddad, do movimento Ação Educativa (Brasil), abriu a primeira mesa de debates, cujo eixo central tratou da crise capitalista, suas causas, impactos e conseqüências para o mundo da educação. Haddad contextualizou a evolução histórica do sistema capitalista e destacou a importância de analisar com calma a crise e como os movimentos sociais que estão em constante organização tem ocupado papel importante no processo de identificação de soluções potenciais.
Ele disse, ainda, que essa crise converge num momento muito particular e que seus reflexos ainda não chegaram aos países emergentes como Brasil, China, África do Sul e Índia porque esses povos estão buscando mecanismos econômicos que permitem sua colocação no mercado internacional. Entretanto, alguns sinais da crise já podem ser observados nesse cenário, como a onda de imigração de haitianos para o Brasil que está se formando devido à intensa redução da qualidade de vida no Haiti. “Sem serviços públicos adequados a distância de cada país é maior a cada ano e as diferenças entre os indivíduos também aumentam. A mídia internacional tem mostrado o aumento do número de pobres e de milionários, o que cria um espaço muito grande entre esses dois tipos de indivíduos. Além disso, com a qualidade e o nível de consumo que a população realiza hoje não há bens naturais suficientes de maneira sustentável”.
Haddad criticou ainda o quanto o modelo capitalista tem criado também uma crise de natureza conceitual onde o valor das pessoas se dá pelo consumo e sua relação com o mercado, que por sua vez produz bens para satisfazer cada vez mais essa falsa necessidade. “O valor está naquilo que indivíduo tem, aquilo que ele usa, quanto ele tem no banco e não no que ele realmente é. Esse modelo está criando uma crise civilizatória”, completa.

Haddad chamou a atenção também que o sistema capitalista é insustentável em relação à questão ambiental, social e econômica por se pautar na separação dos povos entre os países e entre indivíduos do mesmo país. Sobre o modelo de “esverdear”a economia, Haddad colocou que há um grande avanço no movimento que é válido, mas que a profundidade da crise exige que se pense em outro modelo com outros valores alternativos . “Ações individuais são importantes, mas as grandes corporações devem assumir suas responsabilidades sócio-ambientais. Não podemos nos satisfazer apenas com uma roupagem ambiental. Temos que trabalhar para que o ser humano e o ambiente existam em harmonia para um modelo realmente sustentável”.

Nélida Cespedes (CEAAL, Perú), iniciou sua participação focando na preocupação que os educadores devem ter para não formarem apenas consumidores. Ela reforçou a idéia de que a crise civilizatória se expressa em todos os aspectos da vida, em todo o planeta e conseqüentemente será também percebida na educação. Nélida compartilhou experiências com o público e questionou “Que articulações estamos fazendo ou propondo no âmbito local ou nacional em termos de justiça, democracia e justiça ambiental?”. Além disso, comentou que são muitas perguntas e que devemos seguir formulando novas perguntas para que mais respostas surjam e cada vez mais se criem políticas que sustentem outra forma de educação. “Precisamos conjugar eu, tu e nós com um único sonho social e com a mesma intensidade”, destacou a educadora peruana.
Finalizando a primeira mesa de debates a educadora das Filipinas Gigi Francisco, destacou que o modelo capitalista de educação que é baseado em acúmulo financeiro e contratos sociais voltados para o consumo está se quebrando em diversos lugares do mundo. O modelo de educação atual ainda está voltado apenas para a formação de indivíduos em áreas que contemplem essa necessidade de consumo e isso tem criado níveis intermediários de trabalho. “Outro modelo de educação que valorize mais cursos com questões mais humanas seria uma forma mais produtiva de formação”, ressaltou Gigi Francisco.
O FME segue nesta quarta-feira, 25, com a mesa “Justiça ambiental: práticas educativaspara a construção de um outro mundo possível”. Confira a programação completa aqui.

Assista a marcha de Abertura do FST ao vivo....

Fórum Social num mundo de incertezas

Por Altamiro Borges

Teve início hoje, em Porto Alegre (RS), o Fórum Social Temático-2012. O evento, que faz parte do Fórum Social Mundial inaugurado nesta mesma cidade em 2001, deve reunir cerca de 40 mil ativistas de várias partes do planeta. Eles participarão de cerca de 900 oficinas, debates, marchas e shows, num rico processo de reflexão sobre os desafios dos movimentos sociais na atualidade.



O debate de abertura, realizado no Palácio Piratini, contou com as presenças de José Graziano, recém-empossado diretor-geral da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), do governador do Rio Grande do Sul, Tarso Genro, e do presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), Alberto Broch, entre outros convidados.

Três temas centrais

Ainda na manhã desta terça-feira, teve início o Fórum Mundial da Educação, que ocorre paralelamente ao Fórum Temático. Já no período da tarde, acontece a tradicional marcha de abertura do evento. Ativistas sociais, intelectuais de renome e governantes de vários países participarão da rica programação do FST. A presidente Dilma Rousseff, num gesto positivo, confirmou a sua participação.

Entre outros temas, três deverão concentrar as atenções dos participantes: a crise mundial do capitalismo, as novas ameaças de guerra e a defesa do meio ambiente. Inaugurado em janeiro de 2001, o Fórum Social Mundial já deu importantes contribuições às lutas dos povos no planeta. Ele serviu como plataforma programática para a vitória de vários governos progressistas na América Latina.

Crise capitalista e risco de guerra

Estes onze anos, porém, não verificaram apenas avanços da humanidade. Muito pelo contrário. O mundo hoje está mais perigoso e carregado de incertezas. Nos EUA e Europa, os trabalhadores são as principais vítimas da prolongada e sistêmica crise capitalista, com a explosão do desemprego, a regressão de direitos e a ascensão de governos dos banqueiros, num novo tipo de fascismo.

Na crise, as potências capitalistas se tornam mais agressivas. Barack Obama frustrou todas as expectativas de mudança e aguçou a política belicista e expansionista dos EUA. Na Europa, os governos de direita também acionam a Otan na carnificina imperialista. Há fortes indícios de que está em curso uma nova guerra de rapina, desta vez no Irã, com efeitos imprevisíveis.

Nesta semana, de 24 a 29 de janeiro, os lutadores sociais que tomam Porto Alegre e outras cidades da região metropolitana serão chamados a refletir sobre estes enormes desafios e a adotar plataformas e planos de ação contra esta onda regressiva e destrutiva do capitalismo. A unidade e ousadia nas respostas serão decisivas para concretizar o lema de que “Outro mundo é possível”.

Dilma Rousseff defende Enem como deselitização da universidade


Da Redação do SUL21

A presidenta Dilma Rousseff aproveitou cerimônia nesta segunda-feira (23) ao lado do ministro da Educação, Fernando Haddad, para reagir às críticas feitas nos últimos meses ao Exame Nacional do Ensino Médio (Enem).
“Quero fazer a defesa do Enem como a forma mais democrática de acesso dos jovens brasileiros ao ensino universitário”, afirmou Dilma, durante cerimônia pela concessão de um milhão de bolsas de estudo do Programa Universidade para Todos (ProUni). O ato transformou-se em uma despedida antecipada de Haddad, que deixa Brasília nesta terça-feira (24/01) para ser o candidato do PT à prefeitura de São Paulo.
“Acredito que o Enem é o exemplo da determinação do ministro Fernando Haddad no sentido de assegurar uma transformação e uma deselitização do ensino universitário no Brasil.” Dilma também fez questão de lembrar da mudança no foco da educação iniciada no governo Lula, deixando de enxergar cada nível como separado dos demais e apostando na valorização de todos os ciclos. “Hoje achamos óbvio (…). Teve uma época que esse foi o tema da discussão e isso explica por que nossas universidades foram sucateadas.”
Mais tarde, em conversa com jornalistas, Dilma informou que a ideia é que duas edições do Enem sejam realizadas em 2013. O cancelamento da prova em abril deste ano foi o último motivo para críticas ao trabalho de Haddad. O ministro culpou a decisão judicial que deu acesso de estudantes a provas do exame realizadas no ano passado pela dificuldade em realizar duas edições já neste ano.
O Enem entrou no centro das críticas desde que teve alterado seu objetivo, deixando de ser um instrumento para estabelecer uma espécie de ranking de universidades para ser o principal método, em termos numéricos, para o acesso ao ensino superior. A nota do Enem vale para o Sistema de Seleção Unificada (Sisu), que dá vagas em universidades federais, e para o ProUni, que distribui bolsas de estudo em instituições privadas.
Nas últimas semanas, as críticas ganharam força com a confirmação da saída de Haddad para ser candidato em São Paulo. Alguns veículos de comunicação consideram que o fato de ser novato em disputas eleitorais pode ser a grande fraqueza do ministro, apesar de não haver denúncias sobre sua atuação política.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Após repressão policial, moradores de Pinheirinho procuram um lugar para viver


 

Pinheirinho
Muitos moradores saíram apenas com os documentos e a roupa do corpo | Foto: Divulgação/Sindicato dos Metalúrgicos de São José dos Campos

Samir Oliveira no SUL21

O pedreiro Benedito Alves, de 52 anos, acordou às 5h30 de domingo (22) para tomar um copo d’água. O dia mal se anunciava, mas ele já percebia que havia algo estranho em Pinheirinho. “Escutei barulho de helicóptero e, quando saí para a rua, tinha 200 policiais na volta”, lembra.
Benedito só teve tempo de chamar sua esposa, que tem 64 anos, e sair correndo de casa, conforme ordenavam os homens fardados com armas nas mãos. No meio da confusão, o pedreiro não escapou de ser alvejado na perna. “Mandaram sair e pegar somente os documentos e uma muda de roupa. Fui agredido, levei um tiro de borracha na perna, foi um caos muito grande”, comenta o morador de Pinheirinho – bairro pobre da cidade de São José dos Campos, em São Paulo, que foi invadido pela Polícia Militar, que executava uma ação de reintegração de posse sem a permissão da Justiça Federal.

Deslocado para uma igreja na região, junto com cerca de 1,5 mil dos mais de 5 mil moradores de Pinheirinho, Benedito não sabe para onde irá depois que o templo não mais lhe der abrigo. “Minha casa vai ser demolida, e tudo que eu tenho está lá dentro. Não tenho para onde ir. O certo mesmo seria eu ir morar na casa do Cury”, comenta, irritado, ao mencionar o nome do prefeito de São José dos Campos, Eduardo Cury (PSDB).
Pinheirinho
Expulsos de suas casas, moradores se amontoam em abrigos improvisados | Foto: Filipe Jordão
Expulso de sua casa e jogado num abrigo sem colchão, banheiro, cobertor ou perspectivas, o pedreiro apela ao único poder no qual confia: “Só mesmo Deus para nos ajudar numa hora dessas”.

“Nos tiraram de lá que nem cachorros”

A diarista Climelta de Souza Abreu, de 30 anos, está desesperada. Expulsa do lugar onde vivia há oito anos, ela não sabe o que dizer a suas filhas – de 14, 10, 9 e 6 anos. “Eles me perguntam onde nós vamos morar e eu não tenho nenhuma resposta para dar. Não tenho para onde ir”, lamenta, sem conseguir conter as lágrimas.
Assim como toda a população de Pinheirinho, Climelta foi escorraçada de sua casa e agora se amontoa com suas crianças numa igreja nas redondezas. A diarista ainda está horrorizada com a maneira como ela e seus vizinhos foram tratadas pela polícia. “Nos tiraram de lá que nem cachorro. Bateram em várias mulheres, inclusive em grávidas”, conta.

“Virou um campo de guerra”

A ação da Polícia Militar de São Paulo para desocupar a comunidade de Pinheirinho, em São José dos Campos, não ocorreu por acaso num domingo. Assim como não foi por acaso que ocorreu sem nenhum tipo de aviso prévio.
Pinheirinho
Foto: Kit Gaion

O poder público sabia que os mais de 5 mil moradores do local estavam dispostos a proteger com a vida o terreno inativo há mais de 30 anos e que utilizavam como lar desde 2004. Nas últimas semanas, na iminência de uma ação policial, os habitantes de Pinheirinho haviam se armado com paus, escudos e canos de PVC.
Pegos de surpresa na manhã de domingo, mal tiveram condições de reagir diante dos mais de 2 mil policiais, 220 viaturas, 100 cavalos, 40 cães e dois helicópteros que cercaram o local. Sitiados em seu próprio bairro, alguns moradores começaram a jogar pedras. Em troca, recebiam bombas de gás lacrimogêneo e balas de borracha.
“Estavam sitiados com a tropa de choque na porta de suas casas. Começou uma reação dos moradores e virou um campo de guerra”, descreve a jornalista Eliane Mendonça, do Sindicato dos Metalúrgicos de São José dos Campos e Região.

“A Justiça trabalha pelo direito à propriedade, não pelo direito à dignidade”, critica deputado

Assim que ficou sabendo da ação policial para arrancar os moradores de Pinheirinho de suas casas, o deputado federal Ivan Valente (PSOL-SP) se deslocou para o local, onde chegou ainda na manhã de domingo (22). Assim como todas as autoridades que tentaram interceder para que a operação não ocorresse, o parlamentar não conseguiu transpor a barreira policial que bloqueava o acesso ao bairro.
Pinheirinho
Foto: Divulgação/Sindicato dos Metalúrgicos de São José dos Campos

O deputado lamenta que a ação da polícia tenha ocorrido à revelia de duas liminares que impediam a desocupação de Pinheirinho: uma extinguindo por 15 dias o processo de falência da empresa detentora do local – de propriedade do empresário Naji Nahas –, e outra da Justiça Federal impedindo a reintegração de posse. “É uma Justiça que trabalha pelo direito à propriedade, não pelo direito à dignidade humana e à vida”, critica Ivan Valente.
Presente para avalizar a ação, o desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, Rodrigo Capez, irmão do deputado estadual Fernando Capez (PSDB), ignorou a liminar entregue por um oficial da Justiça Federal e garantiu a continuidade da desocupação.
Também presente no acesso a Pinheirinhos, o deputado federal Paulo Teixeira (PT-SP) aponta suas críticas ao governo estadual, do tucano Geraldo Alckmin. “Foi mais uma demonstração de que o PSDB ainda trata o tema social como caso de polícia”, condena o petista.
Ivan Valente está recolhendo denúncias de abusos ocorridos contra moradores e pretende convocar uma audiência pública para tratar do caso na Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados. “Vamos convidar testemunhas e autoridades, inclusive o prefeito Eduardo Cury”, adianta.

Secretário da presidência da República levou um tiro na perna

Não foram somente os moradores pobres de Pinheirinho que foram alvejados pela polícia durante a ação de reintegração de posse ocorrida no último domingo (22). Dessa vez, a repressão foi, a seu modo, democrática: atingiu até os altos escalões de Brasília.
O secretário nacional de Articulação Social, Paulo Maldos, subordinado ao ministro Gilberto Carvalho, da Secretaria-Geral da Presidência da República, foi atingido na perna por uma bala de borracha enquanto tentava, em vão, interceder junto à polícia.
Claudio Vieira /O VALE / Rede Brasil Atual
Na semana passada, moradores haviam se armado para esperar a polícia executar reintegração de posse | Foto: Claudio Vieira /O VALE / Rede Brasil Atual

A identificação oficial e a autoridade de quem representava a presidente Dilma Rousseff não foram o bastante frente à truculência. “Peguei o meu cartão da Presidência, mas o que recebi foram armas apontadas para mim”, disse o secretário, em declaração à imprensa nesta segunda-feira (23).
“Percebendo um perigo real, voltei e fui conversar com os moradores. De repente, começaram a voar bombas de gás. Todos saíram correndo e eu levei um tiro, que me atingiu na perna. Eu, como representante da Presidência da República, fui atingido por uma bala. Estou indignado”, comentou.
Depois de ser alvejado, Paulo Maldos tentou, novamente, se identificar como representante da Presidência da República. A única resposta que ouviu de um oficial da Polícia Militar foi um deboche: “Se você quiser, vai pedir para a sua presidente vir falar comigo”.

Informações desencontradas sobre mortos e feridos

Até agora, nenhuma informação oficial sobre a ação de reintegração de posse em Pinheirinho apresenta número de mortos ou feridos. A Polícia Militar de São Paulo diz apenas de foram detidas 16 pessoas e que tudo ocorreu “com tranquilidade”.
Porém, entre os moradores expulsos de suas casas, pipocam inúmeras informações, dentre elas a de que teriam ocorrido sete mortes – inclusive a de uma menina de quatro anos, que teria sido atingida no pescoço por uma bala de borracha. Além disso, há denúncias de que pessoas estão desaparecidas.
Pinheirinho
Foto: Divulgação/Sindicato dos Metalúrgicos de São José dos Campos

“Oficialmente, nem a prefeitura nem a polícia confirmam nada. Mas cada morador tem uma história para contar. Há crianças desaparecidas, mães que procuram seus filhos e filhos que procuram seus pais idosos”, relata a jornalista Eliane Mendonça, que passou a segunda-feira (23) numa igreja convertida em acampamento.
O presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB de São José dos Campos, Aristeu César Pinto Neto, garantiu que a operação policial fez vítimas fatais. “O que se viu foi a violência do Estado típica do autoritarismo brasileiro, que resolve problemas sociais com a força da polícia. Há mortes, inclusive de crianças. Estamos fazendo um levantamento no IML e tomando as providências para responsabilizar os governantes que fizeram essa barbárie”, disse, em entrevista à TV Brasil.

Slavoj Zizek: A privatização do conhecimento intelectual

A Revolta da Burguesia Assalariada

Slavoj Žižek, no London Review of Books, traduzido por Heloisa Villela para o VIOMUNDO

Como foi que Bill Gates se tornou o homem mais rico dos Estados Unidos? A riqueza dele não tem nada a ver com a Microsoft produzir bons programas a preços mais baixos que a competição, ou com ‘explorar’ seus trabalhadores com mais sucesso (a Microsoft paga um salário relativamente alto a seus trabalhadores intelectuais). Milhões de pessoas ainda compram programas da Microsoft porque a Microsoft se impôs quase como um padrão universal, praticamente monopolizando o mercado, como uma personificação do que Marx chamou de “intelecto geral”, com o que ele quis dizer conhecimento coletivo em todas as suas formas, da Ciência ao conhecimento prático. Gates privatizou eficazmente parte do intelecto geral e ficou rico ao se apropriar do aluguel deste intelecto.
A possibilidade de privatização do intelecto geral é algo que Marx nunca previu nos seus escritos a respeito do capitalismo (em grande parte porque ele negligenciou a dimensão social do capitalismo). Ainda assim, isso está no centro da luta atual sobre propriedade intelectual: na medida em que o papel do intelecto geral – baseado no conhecimento coletivo e na cooperação social – aumenta no capitalismo pós-industrial, a riqueza se acumula de forma desproporcional no trabalho gasto na sua produção. O resultado não é, como Marx parecia esperar, a autodissolução do capitalismo, mas a gradual transformação do lucro gerado pela exploração do trabalho em renda apropriada através da privatização do conhecimento.
O mesmo vale para os recursos naturais, cuja exploração é uma das principais fontes de renda do mundo. Existe uma luta permanente sobre quem fica com essa renda: os cidadãos do Terceiro Mundo ou as corporações ocidentais. É irônico que ao explicar a diferença entre trabalho (que produz valor excedente) e outras commodities (que consomem todo seu valor no uso), Marx tenha dado como exemplo o petróleo, uma commodity ‘ordinária’. Hoje, qualquer tentativa de ligar as flutuações do preço do petróleo às oscilações de seu custo de produção ou ao preço da exploração do trabalho não faria o menor sentido: o custo de produção é insignificante como proporção do preço que pagamos pelo petróleo, preço que na realidade é a renda que os donos do recurso podem extrair graças à oferta limitada de petróleo.
A consequência do aumento de produtividade causado pelo crescimento exponencial do conhecimento coletivo é uma mudança no papel do desemprego. É o próprio sucesso do capitalismo (maior eficiência, aumento de produtividade, etc.) que produz desemprego, tornando mais e mais trabalhadores inúteis: o que deveria ser uma bênção – menor necessidade de trabalho pesado – se torna uma maldição.
Ou, para explicar de outra maneira, a oportunidade de ser explorado em um emprego de longo prazo agora é experimentada como um privilégio.
O mercado mundial, como disse Fredric Jameson, é “um espaço onde todo mundo já foi um trabalhador produtivo e no qual o trabalho começou, em toda parte, a se precificar fora do sistema”. No atual processo de globalização capitalista, a categoria dos desempregados não se limita mais ao “exército industrial de reserva” de Marx; ela também inclui, como nota Jameson, “essas massas populacionais do mundo que ‘despencaram da história’, que foram deliberadamente excluídas dos projetos modernizadores do Primeiro Mundo capitalista e descartadas como casos terminais ou sem esperança: os chamados estados falidos (Congo, Somália), vítimas da fome ou de desastres ecológicos, os que caíram na armadilha pseudo-arcaica dos ‘ódios étnicos’, objetos da filantropia ou das ONGs ou alvos da guerra ao terror”.
A categoria dos desempregados foi, assim, expandida para incluir uma vasta esfera de pessoas, dos desempregados temporariamente aos que não podem mais conseguir emprego e estão permanentemente desempregados, aos habitantes de guetos e favelas (quase todos esses descartados por Marx como parte do lumpemproletariado), e finalmente todas as populações e estados excluídos do processo capitalista global, como os espaços vazios de mapas antigos.
Alguns dizem que esta nova forma de capitalismo oferece novas possibilidades de emancipação. Essa é a tese de “Multitude”, de Hardt e Negri, que tenta radicalizar Marx, afirmando que se nós simplesmente cortarmos a cabeça do capitalismo, teremos o socialismo. Marx, eles argumentam, estava limitado historicamente: ele pensou em termos de trabalho industrial centralizado, automatizado e organizado hierarquicamente. Como resultado, entendeu o “intelecto geral” como algo semelhante à agência de planejamento central; somente hoje, com o surgimento do “trabalho não-material”, uma mudança revolucionária se tornou “objetivamente possível”.
Esse trabalho não-material se estende entre dois polos:  do trabalho intelectual (a produção de ideias, textos, programas de computador, etc.) a trabalhos afetivos (desempenhados por médicos, babás e comissários de bordo). Hoje, o trabalho não-material é hegemônico, no sentido com que Marx proclamou, no capitalismo do século 19, que a produção industrial em larga escala era hegemônica: ele se impõe não através da força dos números, mas por desempenhar um papel-chave, emblemático de toda a estrutura.
O que emerge é um vasto novo domínio chamado de “commons”: conhecimento compartilhado e novas formas de comunicação e de cooperação. Os produtos da produção não-material não são objetos, mas novas relações sociais e interpessoais; a produção não-material é biopolítica, é a produção da vida social.
Hardt e Negri descrevem aqui o processo que os atuais ideólogos do capitalismo pós-moderno celebram como a passagem da produção material para a simbólica, da lógica da hierarquia centralizadora para a lógica da auto-organização e da cooperação multicentralizada.
A diferença é que Hardt e Negri são fiéis a Marx: eles tentam provar que ele estava certo, que o surgimento do intelecto geral é, a longo prazo, incompatível com o capitalismo. Os ideólogos do capitalismo pós-moderno afirmam exatamente o oposto: a teoria marxista (e a prática), argumentam, continua limitada pela lógica hierárquica do controle centralizado do estado e por isso não consegue lidar com os efeitos sociais da revolução da informação.
Existem boas razões empíricas sustentando o argumento deles: o que de fato arruinou os regimes comunistas foi sua incapacidade de se acomodar à nova lógica social sustentada pela revolução da informação. Eles tentaram dirigir a revolução, fazer dela mais um projeto em grande escala de um governo centralizado. O paradoxo é que o que Hardt e Negri celebram como uma oportunidade única para derrubar o capitalismo é comemorado pelos ideólogos da revolução da informação como o surgimento de um capitalismo novo, sem ‘fricção’.
A análise de Hardt e Negri tem alguns pontos fracos, o que nos ajuda a entender como o capitalismo tem conseguido sobreviver ao que deveria ser (em termos marxistas clássicos) uma nova organização da produção que o tornaria obsoleto. Os dois subestimaram a extensão do sucesso do capitalismo de hoje (ao menos no curto prazo) na privatização do intelecto geral, além de subestimarem a dimensão de como os trabalhadores, mais do que a própria burguesia, estão se tornando supérfluos (com um número cada vez maior de trabalhadores se tornando não apenas desempregados temporários, mas estruturalmente não-empregáveis).
Se o capitalismo antigo idealmente envolvia o empresário que investia (o seu ou emprestado) dinheiro na produção, que ele organizava e geria, e depois tirava lucro disso, um novo tipo ideal está surgindo hoje: não mais o empresário que é dono de sua companhia, mas um administrador especializado (ou um conselho de administração presidido por um CEO), que governa a empresa de propriedade dos bancos (também geridos por administradores, que não são donos do banco) ou investidores diversos.  Neste novo tipo de capitalismo ideal, a velha burguesia, tornada desfuncional, é reciclada como gerenciadora assalariada: os membros da nova burguesia recebem salários, e mesmo quando são donos de parte da empresa, ganham ações como parte de sua remuneração (“bônus” pelo seu “sucesso”).
Essa nova burguesia ainda se apropria da mais-valia, mas no formato (mistificado) do assim chamado “superávit salarial”: eles recebem bem mais que o “salário mínimo” do proletariado (quase sempre um ponto mítico de referência, cujo único exemplo real na economia global de hoje é o salário dos trabalhadores na indústria têxtil da China ou da Indonésia), e é esta distinção em relação proletário comum que determina o status da nova burguesia.
A burguesia no sentido clássico, assim, tende a desaparecer: capitalistas reaparecem como um subsetor de trabalhadores assalariados, como administradores qualificados para ganhar mais pela virtude de sua competência (por isso a avaliação pseudocientífica é crucial: ela legitima as disparidades).  Longe de se limitar aos administradores, a categoria de trabalhadores que ganha superávits salariais se estende a todo tipo de especialista, administradores, servidores públicos, médicos, advogados, jornalistas, intelectuais e artistas. O superávit assume duas formas: mais dinheiro (para gerentes, etc.), mas também menos trabalho e mais tempo livre (para – alguns – intelectuais, mas também para administradores do estado, etc.).
O processo de avaliação usado para decidir quais trabalhadores devem receber superávit salarial é um mecanismo arbitrário de poder e ideologia, sem conexão séria com a verdadeira competência; o superávit salarial existe não por razões econômicas, mas políticas: para manter uma “classe média” e preservar a estabilidade social.
A arbitrariedade na determinação da hierarquia social não é um erro, mas objetivo do sistema, com papel análogo ao da arbitrariedade no ’sucesso de mercado’.
A violência não ameaça explodir quando existe muita contingência no espaço social, mas quando se tenta eliminar a contingência. Em “La Marque du sacré”, Jean-Pierre Dupuy trata a hierarquia como um dos quatro procedimentos (“dispositivos simbólicos”) que têm como função tornar não humilhante a relação de superioridade: a própria hierarquia (uma ordem imposta externamente que me permite experimentar meu status social mais baixo de forma independente do meu valor inerente); desmistificação (o procedimento ideológico que demonstra que a sociedade não é uma meritocracia, mas o produto de disputas sociais objetivas, que me permite evitar a conclusão dolorosa de que a superioridade de alguém sobre mim é resultado dos méritos e realizações do outro); contingência (mecanismo parecido, através do qual entendemos que nossa posição na escala social depende de uma loteria natural e social; os sortudos nascem com os genes certos, em famílias ricas); e complexidade (forças incontroláveis têm consequências imprevisíveis; por exemplo, a mão invisível do mercado pode me levar ao fracasso e o meu vizinho ao sucesso, mesmo que eu trabalhe muito mais e seja bem mais inteligente).
Ao contrário do que parece, esses mecanismos não contestam ou ameaçam a hierarquia, mas a tornam mais palatável, já que “o que dispara o tumulto da inveja é a ideia de que o outro não merece a sorte que tem e não a ideia oposta – a única que se pode expressar abertamente”. Dupuy tira desta premissa a conclusão de que é um grande erro pensar que uma sociedade razoavelmente justa, que se enxerga como justa, estará livre de ressentimento: pelo contrário, é nessas sociedades que aqueles que ocupam as posições inferiores encontrarão nas explosões violentas de ressentimento um veículo para seu orgulho ferido.
Isso está conectado ao impasse que a China enfrenta hoje: o ideal das reformas de Deng era introduzir o capitalismo sem uma burguesia (já que ela formaria a nova classe dominante); agora, porém, os líderes da China estão descobrindo dolorosamente que o capitalismo sem uma hierarquia estabelecida, possibilitada pela existência de uma burguesia, gera instabilidade permanente. Então, que caminho a China seguirá?
Os ex-comunistas estão emergindo como os administradores mais eficientes do capitalismo porque sua inimizade histórica com a burguesia como classe casa perfeitamente com a tendência atual do capitalismo de se tornar um capitalismo administrativo, sem burguesia – nos dois casos, como Stalin disse faz tempo, “os quadros decidem tudo”. (Uma diferença interessante entre a China e a Rússia de hoje: na Rússia, os professores universitários têm salários ridiculamente baixos – eles já são, de fato, parte do proletariado – enquanto na China recebem um superávit salarial confortável para garantir sua docilidade).
A noção de superávit salarial também coloca sob nova ótica os constantes protestos “anticapitalistas”.  Em momentos de crise, o candidato óbvio para apertar o cinto são as classes mais baixas da burguesia assalariada: protestos políticos são seus únicos recursos se quiserem evitar se juntar ao proletariado.
Apesar de seus protestos serem, nominalmente, dirigidos contra a lógica brutal do mercado, elas estão protestando, de fato, contra a erosão gradual de sua posição econômica privilegiada (politicamente).
Em “Atlas Shrugged”, Ayn Rand tem a fantasia de fazer greve contra capitalistas “criativos”, uma fantasia que encontra realização pervertida nas greves de hoje, quase todas sustentadas por “burguesias assalariadas” movidas pelo medo de perder o superávit salarial. Esses não são protestos proletários, mas protestos contra a ameaça de ser reduzido a proletariado.
Quem tem coragem de entrar em greve hoje, quando ter um salário fixo é, em si mesmo, um privilégio? Trabalhadores com baixos salários (o que resta deles) da indústria têxtil, etc., não; mas os trabalhadores privilegiados que têm emprego garantido (professores, empregados dos transportes públicos, policiais), sim. Isso também explica a onda de protestos estudantis: sua principal motivação é, sem dúvida, o medo de que a educação superior não garanta um superávit salarial mais tarde, na vida.
Ao mesmo tempo está claro que o grande renascimento de protestos no último ano, da Primavera Árabe à Europa ocidental, do Occupy Wall Street à China, da Espanha à Grécia, não deve ser descartado meramente como uma revolta da burguesia assalariada. Cada caso deve ser analisado de acordo com seus próprios méritos. Os protestos estudantis contra a reforma universitária na Grã-Bretanha são claramente diferentes dos distúrbios de agosto, que foram um carnaval consumista de destruição, uma verdadeira explosão dos excluídos.
Pode-se argumentar que os levantes no Egito começaram, em parte,  como uma revolta da burguesia assalariada (com jovens educados protestando por conta de sua falta de perspectiva), mas este foi apenas um dos aspectos de um protesto mais amplo contra um regime opressivo. Por outro lado, o protesto não mobilizou, realmente, trabalhadores mais pobres e camponeses e a vitória eleitoral dos islâmicos deixa clara a estreita base social do protesto secular original. A Grécia é um caso especial: nas últimas décadas, foi criada uma nova burguesia assalariada (especialmente na inchada administração estatal), graças à ajuda financeira da União Europeia, e os protestos, em boa parte, foram motivados pela ameaça do fim disso.
A proletarização das camadas mais baixas da burguesia casa, no oposto extremo, com a alta remuneração irracional de administradores e banqueiros do topo (irracional como demonstraram as investigações nos EUA, já que ela tende a ser inversamente proporcional ao sucesso da companhia). Ao invés de submeter essas tendências à crítica moralizante, devemos lê-las como sinais de que o sistema capitalista não é mais capaz de uma estabilidade autorregulada – em outras palavras, ele ameaça ficar fora de controle.

Um ótimo lugar para se visitar durante o FST de Porto Alegre

Um local de Porto Alegre:o universo da Lancheria do Parque

André Carvalho no SUL21

- “Um suco de laranja batido”;
- “Dois pasteis de carne”;
- “uma torrada com ovo”.

Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Quem já foi na Lancheria do Parque (Av. Osvaldo Aranha, 1086) certamente reconhece as clássicas frases descritas acima. É assim que – aos gritos –, os garçons da Lanchera, como é popularmente conhecida, anunciam a seus colegas no balcão os pedidos dos clientes. Com a Redenção como seu pátio e menção ao parque em seu nome, o local é conhecido por seus lanches e sucos relativamente baratos. Porém, nas décadas de 80 e 90, o seu forte era a venda de cervejas.
Nessa época, o Bom Fim era o bairro boêmio de Porto Alegre e a Avenida Osvaldo Aranha era rodeada por bares como o Ocidente, o Bar João, o Lola, o Viva a Vida, o Luar, Luar, o Bar Fim e o Escaler, entre outros, além do clássico cinema Baltimore. Hoje, restaram apenas o Ocidente, além da própria Lancheria, como “sobreviventes” daquele período.
Naqueles tempos, a propósito, a Lanchera era conhecida por ser um dos últimos lugares abertos na madrugada porto-alegrense, fechando sempre depois das 05h da manhã e por vender cerveja barata, fato que acabava reunindo nas noites de sexta e sábado mais de quinze mil pessoas na sua frente. “A gente fechava aqui e ia sentar nos cordões da calçada com a galera pra conversar. Mas eu não sei o que aconteceu, se as condições sociais foram mudando ou o quê… Mas em tão pouco tempo a madrugada no Bom Fim se tornou bem violenta”, garante Mauri Fachini, funcionário, atendente, com 20 anos de Lancheria.
“Hoje em dia, a cerveja sai bem pouco e já não reunimos mais grandes multidões. Se temos mil clientes diários, é muito”, explica Fachini, que acrescenta: “O bom, pelo menos, é que hoje, os clientes que antes vinham tomar cervejada vêm agora tomar suco. Eles não deixaram de freqüentar a Lancheria”, complementa.

Cooperativa Lancheria do Parque

Eles não param | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sobre o termo “funcionário”, Mauri Fachini faz questão de salientar: “Aqui não temos funcionários, temos colegas de trabalho”. Isso porque há aproximadamente 12 anos, o Seu Ivo e a Dona Inês, proprietários da Lancheria do Parque, decidiram transformá-la em uma cooperativa, tornando seus demais colegas sócios do local.
“Quando o Seu Ivo fez a proposta da sociedade, trabalhavam aqui 10 pessoas. Ele nos informou que não iríamos mais ter férias, não teríamos mais horário normal pra trabalho e queria que a gente se dedicasse integralmente à Lancheria. Porém, daquele dia em diante, deixaríamos de ser funcionários e passaríamos a ser sócios da empresa”, explica Mauri.
Atualmente, trabalham na Lanchera 27 pessoas — porém, Fachini não sabe precisar quem é sócio e quem é trabalhador de carteira assinada. “No momento que começa a trabalhar aqui, não interessa se faz parte da sociedade ou não, porque vai pegar junto igual, vai fazer as mesmas coisas, trabalhando em média 08h, 09h por dia”.
Seu Ivo | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Para ele, a maior vantagem da sociedade foi o ganho financeiro. “Uns ganham um pouquinho mais, outros um pouquinho menos, depende do tempo que se tem de Lancheria”, conta. Além disso, Mauri explica que quando o bar ganha um novo sócio, ninguém tem sua porcentagem diminuída, a não ser o Seu Ivo e a Dona Inês. “Como eles ficaram com a maior porcentagem da sociedade, ao entrar alguém novo, ele faz a divisão dos lucros a partir da cota dele, sem diminuir o que os outros ganham”.
Por se tratar de uma cooperativa, a Lancheria não visa lucros. Isso justifica as suas instalações simples, mas que não desmotivam as pessoas de frequentarem o local.  “Nós não temos ar condicionado, nossos bancos e mesas são os mesmos desde há muito tempo e mesmo assim, as mais variadas pessoas vêm aqui diariamente”, argumentou Fachini. Sobre a divisão dos valores arrecadados, ele explica: “Com a sociedade, nós deixamos de ter salários, trabalhamos com um caderninho. Hoje eu preciso de 500 reais, outro de 300. E aí vai anotando quanto cada um retirou. Chega ao final do dia e faz uma redistribuição. Com isso, nós não trabalhamos com dinheiro em caixa e consequentemente, nunca sabemos quanto ganhamos no mês”.

O confuso – mas nem tanto – sistema de organização da Lancheria

Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Não há quem vá na Lanchera e não se surpreenda com o “diferenciado” sistema de organização de seus cooperativados. Após anotar o pedido na comanda, o garçom avisa ao colega que está no balcão, o que o cliente quer. Para o seu colega e para todos os demais frequentadores, na verdade, já que é aos gritos que eles se comunicam. E o mais curioso é que aquele que faz um lanche ou um suco já está de costas, nem olhando para o garçom.
Mauri garante que, apesar da organização parecer confusa para quem vê de fora, o sistema do grupo não tem mistério. “A gente já se acostumou. Depois de uma semana tu já conhece as vozes que trabalham contigo, sabe quem vai gritar. O chapista pode estar conversando, aí o garçom gritou e ele já vai lá e faz. É automático. Pra quem esta de fora pode parecer difícil, mas pra nós é barbada. Complica quando troca de setor, mas em um ou dois dias já se entra no ritmo”, acrescenta.
Citando o filme Tempos Modernos, de Charles Chaplin – onde o ator passa todo o tempo apertando um mesmo parafuso, cumprindo a mesma função, Fachini explica que a Lancheria tentou fugir dessa lógica, pois cada um trabalha onde trabalha por opção e não por obrigação. “Eu, por exemplo, não tenho função. Eu vivo todos os setores. Se precisar limpar o banheiro, eu vou limpar, se precisar trabalhar na cozinha eu vou pra lá, se precisar cortar fruta, eu vou cortar. Aí tu acabas sabendo de tudo um pouco”. E complementa: “Se um dia tu quiseres sair daqui e montar o teu próprio negócio, tu vai estar apto. Quem trabalha aqui, só tem a ganhar. Tem muitos que saíram daqui e estão se dando bem em outros setores”.

O futebol da madrugada
Balcão vazio é uma foto difícil durante o dia | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

É muito comum encontrar os trabalhadores da Lancheria do Parque em mais de um turno trabalhando arduamente. Isso porque o sistema de horário da cooperativa é diferenciado. “Uns trabalham oito, nove, às vezes até 10 horas diretas, outros preferem trabalhar quatro horas de manhã e o restante de noite, isso varia muito”, conta Mauri.
Porém, o que ninguém imagina, é o que eles fazem assim que as portas do local se fecham. Ao invés de aproveitar o tempo que deveria ser destinado para o descanso, o grupo prefere atravessar a Avenida Osvaldo Aranha e entrar no estádio público Ramiro Souto, localizado dentro do Parque da Redenção.
A partida inicia tradicionalmente às 02h e não tem hora para terminar. Segundo Fachini, o jogo acaba quando o primeiro se cansa ou até “o sol se despontar”. “Eu não jogo mais, joguei por 18 anos, mas agora encerrei minha carreira. Mas o futebol ainda rola. A galera joga no inverno, agasalhado, com neblina, chuvisco, zero grau, menos um. Sempre de madrugada. Tem colega que não trabalha no turno da noite, mas vem pra cá só pra jogar futebol”, conta, faceiro.
Mas o jogo não ocorre somente entre os colegas de Lancheria. Vez que outra o grupo recebe a visita do time de médicos do HPS, do Clínicas, de músicos famosos de Porto Alegre, ou de estudantes da UFRGS para fazer um confronto na madrugada. “Eles estão sempre na noite. Esse é o horário que eles têm para o lazer”, conclui Fachini.
Mas a curiosidade não para na partida de futebol. Mauri conta que tirando o Seu Ivo, que chega há trabalhar cem dias sem tirar um dia de folga, os demais colegas folgam uma vez por semana. Porém, ele diz que em seus dias de folga o local que ele mais gosta de ir é na própria Lancheria do Parque. “Às vezes minha mulher pergunta: ‘Onde é que tu quer comer?’ E eu respondo: “Ah, quero comer na Lanchera”. Por quê? Porque eu sei quem está fazendo, sei de onde veio a comida e sei que é coisa boa. A não ser que eu queira comer um churrasco, aí eu vou pra outro lugar. E não sou só eu, os demais colegas também gostam de vir comer aqui”.

 Lancheria do Parque: um local da diversidade cultural

O famoso suco no copo de liquidificador | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Aproximando-se do seu trigésimo aniversário, a ser comemorado no dia 09 de maio, a Lancheria do Parque é consagrada por seus frequentadores como um dos pontos mais tradicionais e ecléticos da capital. Para Mauri Fachini, a Lancheria é um dos poucos lugares da cidade onde o rico e o pobre encontram-se no mesmo espaço e têm atendimento igual. “Tu podes vir a qualquer hora do dia ou da noite e poderás encontrar um executivo, de terno e gravata, em uma mesa, e um operário, um pedreiro em outra. Aqui dentro eles são iguais e terão um tratamento igual. É isso que a Lancheria quer”, garante.
Porém, não são apenas os trabalhadores comuns que freqüentam o local. Para a classe artística em geral, a Lancheria do Parque é parada obrigatória entre o ensaio e o show, ou para o café da manhã, depois da longa madrugada. Segundo Fachini, “esse pessoal nem são clientes da Lancheria, eles são da casa. O pessoal da Cachorro Grande, do Papas da Língua, Apanhador Só, Pata de Elefante. Às vezes a gente convive mais com eles do que com a nossa própria família”, comenta. E aproveitando a deixa, conta uma historia recente: “Outro dia o André Damasceno veio aqui e falou uma coisa muito engraçada: ‘A Lancheria do Parque tem o segundo melhor bauru de Porto Alegre’. Quando perguntei qual seria o primeiro ele respondeu: ‘O primeiro ainda não se sabe, porque ninguém descobriu’”, concluiu, aos risos.
Se por um lado a classe artística é grande freqüentadora da Lanchera, a dos políticos há muito tempo desistiu de tomar os tradicionais sucos nas horas vagas. “Político do grande escalão só vem, quando vem, em época de eleições, pra fazer política. O Olívio Dutra vinha bastante, agora não vem mais”, conta Fachini.
Questionado por outros nomes, Mauri responde: “A Fê (Fernanda Melchionna, Vereadora de Porto Alegre) vem muito, mas ela nem é vereadora, ela é nossa colega. Outra que vinha muito é a Manuela D’Ávila, mas depois que ficou grande não veio mais. Agora só vem a irmã dela. A Juliana Brizola vem com freqüência também”.
Outra classe que frequenta bastante a Lanchera, segundo Fachini, é a dos jornalistas. “A imprensa vem muito aqui. Nós conhecemos todos os jornalistas, de todas as emissoras de Porto Alegre, temos uma amizade com eles. Um que vinha bastante era o Kenny Braga, o David Coimbra também. Ele até fez uma biografia da nossa cozinheira uma época”.

Mais que uma Lancheria, um ponto turístico da cidade

O toldo vermelho da Osvaldo | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Para muitos a Lancheria do Parque é um local das refeições diárias ou tomar refrescantes sucos. Porém, para muitos outros, o local transcende o conceito de bar ou restaurante, sendo também considerado um ponto turístico de Porto Alegre. São raras as pessoas que, ao receber parentes do interior, ou de outros cantos do Brasil, não os levam a Lancheria, especialmente aos domingos, visto que, costumeiramente, o tradicional passeio porto-alegrense é caminhar no Brique da Redenção, tomar um chimarrão no parque e ao final da tarde ir tomar um suco na Lanchera.
Fachini conta que, certa vez, foi surpreendido por um grupo de chineses que queriam conhecer a Lancheria do Parque. “Eu estava caminhando na rua, quando fui surpreendido pelo grupo. Eles estavam com uns bilhetinhos e me perguntaram: ‘sabe onde fica esse endereço?’, aí eu olhei, ‘pô, é Lancheria do Parque’, nem acreditei”.
Graças a estas e outras coisas, Mauri garante: “Nesses 20 anos de Lancheria, eu conheci o mundo sem sair daqui de dentro. Tenho amizade com pessoas do mundo inteiro. Isso não tem preço. Aí quando tu saí, tu vê que isso é real. As pessoas te conhecem, no lugar que tu for, tu tem pessoas conhecidas, é impressionante”.

Prejuízos dos bancos foram socializados com população, diz economista do Dieese


"A crise bateu mais forte exatamente no centro do capitalismo", alerta economista Adhemar Mineiro | Foto: Arquivo pessoal

Vivian Virissimo no SUL21

A ameaça de que a quebra do sistema financeiro resultaria em uma crise sistêmica provocou um efeito perverso: a socialização dos prejuízos dos bancos com a população dos países que aplicam as chamadas medidas de austeridade. Essa é a análise de conjuntura que faz o economista do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), Adhemar Mineiro, em entrevista concedida por telefone ao Sul21.
“A crise se inicia do lado privado e os mecanismos de salvamento nada mais foram que a socialização destes prejuízos”, disse ele. “Este espantalho do pior dos mundos acabou empurrando as alternativas para estes programas de salvamento dos bancos, que hoje mostram que sobre-endividaram os países e levaram a esta situação insustentável”, explica o pesquisador.
Na avaliação de Mineiro, a receita de garantir volumosos subsídios para as instituições bancárias e diminuir gastos sociais vai estender e agravar a crise na União Europeia. “No fundo, o mundo financeiro tem mostrado que permanece com o poder de tentar defender seus interesses em detrimento do restante dos setores, especialmente para os trabalhadores”, analisa o economista.
“A crise econômica atual é cíclica, mas também é uma crise de esgotamento da maneira de funcionar do capitalismo”

Sul 21 – O senhor avalia que vivemos uma crise estrutural do capitalismo ou é mais uma crise cíclica que ocorre de tempos em tempos? Que projeção se pode fazer diante desse quadro?

Adhemar Mineiro - Ela tem o componente das duas coisas. Ela é cíclica, mas também é uma crise de esgotamento da maneira de funcionar do capitalismo. Tem esse componente que é a impossibilidade de seguir esse processo que, de um lado, é de valorização muito grande da riqueza financeira a ritmo maior que o crescimento efetivo da riqueza real e, de outro lado, o sobre-endividamento das famílias e dos Estados nacionais que, digamos, era a contrapartida dessa especulação financeira.

Sul21 – O baixo crescimento econômico e os índices históricos de desemprego na União Europeia e nos Estados Unidos são uma demonstração disso?

Adhemar Mineiro - É, a crise bateu mais forte exatamente no centro do capitalismo. Por isso o componente mais estrutural dessa crise. A gente teve um série de crises dentro desse modelo de hegemonia do mundo financeiro desde os anos 1990, por exemplo, a crise asiática nos anos 1990, a crise entre Brasil e Argentina e a crise das empresas .com nos Estados Unidos. Todos são exemplos de crises recorrentes desse modo de funcionamento do capitalismo. Só que ele sempre voltava, conseguia se recompor e voltava a operar mantendo os mecanismos de valorização financeira e os mecanismos de endividamento. A partir de 2006 e 2007 isso ficou cada vez mais difícil, surgiu esta crise de 2008 e é no bojo dessa crise que nós ainda continuamos.
Concessão de subsídios para bancos e corte de gastos sociais vão "estender e agravar crise na União Europeia", diz Adhemar Mineiro | Foto: Reprodução

Sul21 – E essa receita seguida pela Comissão Europeia de conceder volumosos subsídios para os bancos e cortes de gastos nas áreas sociais é uma alternativa acertada? Como o senhor avalia isso?

Adhemar Mineiro – Isso vai estender e agravar a crise na União Europeia. No fundo, o mundo financeiro tem mostrado que permanece com o poder de tentar defender seus interesses em detrimento do restante dos setores, especialmente para a maior parte da população, dos trabalhadores. Os dados do início da crise, até 2007, por exemplo, indicam que países como Espanha ou Irlanda, que agora estão no olho do furacão, não tinham problema de dívida e não tinha problema fiscal. A Irlanda recorrentemente reduzia sua dívida e a Espanha também tinha superávit fiscal, uma situação muito mais sólida que a Alemanha. Na verdade essa questão fiscal e da dívida não está na origem da crise.

Sul21 – O que estaria na origem?

Adhemar Mineiro - Exatamente o processo de esgotamento da capacidade dos bancos e dos agentes financeiros de seguirem valorizando financeiramente a riqueza. A quebra desses mecanismos a partir de todas as relações de débito e crédito entre os agentes financeiros acaba atingindo fortemente o mercado financeiro europeu e é nos programas de salvamento dos bancos e do mundo financeiro que estes estados nacionais europeus entram em crise. Eles não tinham crise antes e exatamente na tentativa de salvar seus sistemas financeiros estes estados se sobre-endividam. Por outro lado, o próprio sistema financeiro aproveita essa situação para exigir taxas de riscos maiores nos países, o que agrava ainda mais capacidade de gerenciar as suas dívidas e o impacto disso no orçamento público. O que é hoje um problema fiscal, na verdade, é decorrente da própria situação dos bancos. A crise se inicia do lado privado e os mecanismos de salvamento nada mais foram que socializar estes prejuízos para os pagadores de impostos em geral, a população, sob a tal ameaça de que se deixasse quebrar o sistema financeiro entraria numa crise sistêmica. Este espantalho do pior dos mundos na verdade acaba empurrando as alternativas nacionais para estes programas de salvamento dos bancos, que hoje mostram que sobre-endividaram os países e levaram a esta situação insustentável.
“Foi sendo gerado um ambiente que permite a reprodução ampliada do capital financeiro, com força política para impor mais e mais liberalização”
Sul21 – Por que é necessária uma regulamentação mais forte do sistema financeiro para evitar um aprofundamento da crise?

Adhemar Mineiro - Porque na raiz desse processo especulativo tem uma desregulamentação que se iniciou no final dos anos 1970 e se acelerou nos governos liberais na Europa e nos Estados Unidos, particularmente Margaret Thatcher e Ronald Reagan, governos que foram adotando este tipo de matriz que foram pouco a pouco desfazendo mecanismos de regulação que se estabeleceram desde a crise dos anos 1930, que também foi uma crise de excesso de liberação. A experiência com esta crise levou, já na segunda metade dos anos 1930 e fortemente depois da 2ª Guerra Mundial, os países a adotarem uma série de medidas de regulação para evitar a repetição desta crise financeira. A lembrança que as pessoas têm mais forte é a crise da bolsa de Nova York de 1929, que foi uma crise de longo curso, resultado da especulação. Em função dela foram estabelecidos mecanismos que vigoraram e levaram a anos de ouro no capitalismo, nos anos 1950 e 1960, com forte crescimento, distribuição de renda nos principais países, com sistemas financeiros operando para agilizar a economia produtiva. Esses mecanismos de regulação, a partir do fim dos anos 1970, início dos anos 1980, foram desmontados progressivamente — o que se somou a novas tecnologias que permitem, por exemplo, operar 24 horas por dia através de rede de comunicação entre computadores. A bolsa de valores está fechando aqui no Brasil e está abrindo em outro lugar. Tudo isso foi gerando esse ambiente que permite a reprodução ampliada desse capital financeiro, com a força política que estes agentes vão tomando para impor mais e mais liberalização. Então é por isso que se fala que a saída da crise passa por restabelecer os mecanismos de regulação que existiam, digamos, até o final dos anos 1970. Não é fácil hoje, porque a regulação anterior era muito na esfera nacional e hoje os mecanismos financeiros estão muito mais internacionalizados. Além do restabelecimento da regulação anterior, teria que criar novas regulações que funcionassem em escala internacional que pudessem exatamente controlar o capital que se movimenta pelo mundo todo.
"Felizmente não entramos nesse acordo da ALCA, porque se tivéssemos entrado nossa situação seria ainda pior" | Foto: Arquivo pessoal

Sul21 — E está tendo algum movimento para garantir uma regulação internacional do mundo financeiro?

Adhemar Mineiro – Toda a discussão que está se fazendo sobre taxa, sobre transações financeiras, que era conhecida como taxa Toben, na verdade é uma sugestão de um novo mecanismo que poderia ajudar este processo de regulação dos movimentos internacionais de capitais e que seria já neste novo padrão. O G20 desde suas primeiras reuniões discute algumas medidas neste sentido: controle de paraísos fiscais, dar mais poder regulatório ao Fundo Monetário Internacional (FMI), ao Comitê de estabilidade financeira, ao comitê da Basiléia… Enfim, tem toda uma discussão de como criar essa nova regulação e de fato muita pouca coisa concreta avançou. Mesmo o controle dos chamados paraísos financeiros, que era consenso nas primeiras reuniões do G20, nem isso foi implementado. As primeiras reuniões foram no final de 2008 com a explosão da crise e esse tema era consenso e mesmo assim não saiu do papel.

Sul21 – Como a desvalorização do dólar tem impacto na industrialização brasileira?

Adhemar Mineiro – Aqui tem outro mecanismo, que é a desregulação financeira no Brasil. Esse processo ocorre desde a segunda fase do governo Collor, em 1992, quando se desmontou uma série de mecanismos de controle e acabou permitindo a saída e entrada livre de movimentos de capital. Isso, nos momentos de saída, foi responsável por algumas crises, em 1998 e 2002, mas na maior parte do tempo levou a uma entrada maior de capital, buscando se aproveitar da rentabilidade financeira que é oferecida com taxas de juros muito altas. Essa entrada de capitais acaba forçando a desvalorização do dólar e uma valorização do real e isso tem impactado fortemente o setor produtivo, num quadro que também teve liberalização financeira nos anos 1990, teve uma série de rebaixamento de tarifas prometidos por exemplo, no nível da Organização Mundial do Comércio (OMC). Felizmente não entramos nesse acordo da ALCA, porque se tivéssemos entrado nossa situação seria ainda pior. E essa valorização do real dificulta tanto a situação das empresas exportadoras brasileiras quanto as empresas que aqui dentro competem com os produtos importados. Esse efeito já tem acontecido em vários momentos desde o início do plano real. Ao longo da cadeia produtiva vários setores sofrem impacto. Desde setores de tecnologias mais baixa, área de móveis, têxteis, sapatos, mas no período mais recente tem ido para áreas de tecnologias de ponta e de bens de capital, que são as máquinas para produzir maquinas.
“Não adianta pensar que só os países mais desenvolvidos vão garantir o suprimento de produtos industrializados”
Sul21 – Investir em modelos de integração como Mercosul, Alba e Unasul tem sido uma estratégia eficaz? Um contraponto?
Adhemar Mineiro - Os processos de integração são uma estratégia interessante neste momento porque permitiriam aos países da América do Sul, que têm situação mais tranquila, apostar num sistema de produção e consumo menos dependente deste cenário externo, que é um cenário de mais crise. Tem um impulso para caminhar neste sentido, mas não é fácil, especialmente quando se olha para os países e se vê que uma parte importante do desempenho produtivo desses países está voltado para exportação justamente para esses mercados internacionais. A América do Sul se especializou muito fortemente nos últimos quinze anos na exportação de commodities agrícolas, minerais ou energética. Mesmo países da área da alternativa bolivariana, a ALBA, que contestam mais fortemente o esquema, são fortes exportadores de petróleo, de commodities energéticas. A Argentina, que também expressa muitas críticas ao sistema, é um gigantesco exportador de soja. Fora países que, digamos, são mais simpáticos a essa integração internacional, no caso do Peru e Chile, que têm se especializado na exportação de commodities minerais. Isso dá um tom das dificuldades que tem esse processo de integração. Agora, eu acho que os países tem que apostar nisso (integração). É uma alternativa boa, face ao quadro internacional. O que é necessário hoje é um direcionamento mais político, políticas de integração de como se encaminha a integração das cadeias produtivas na região. Não adianta pensar que só os países mais desenvolvidos dentro da região vão garantir o suprimento de produtos industrializados. Pode ser que os países não topem esse esquema do Brasil exportar industrializados para a região, o que significa desindustrializá-los também. Teria que pensar em como disseminar as cadeias produtivas que hoje estão concentradas em alguns países, especialmente no Brasil.
Fernado Pimentel com o ministro do Comércio da China, Chen Deming: "Há uma relação comercial com a China análoga a que se tem com a Europa" | Foto: Fábio Pozzebom/ABr

Sul21 – O Brasil acerta ao fazer uma política econômica voltada para a relação Sul-Sul, privilegiando países da África e da Ásia, por exemplo?

Adhemar Mineiro - A diversificação é uma política positiva. Agora, tem que tomar cuidado quando se fala nessa questão Sul-Sul, especialmente quando se olha para os números do comércio. Há uma relação comercial com a China que nos últimos anos é digamos análoga a que se tem com a Europa. É uma relação tão desigual quanto que se tem com a Europa e com o Japão, outro país da Ásia. Se deve analisar o peso da China, que acaba reproduzindo a mesma relação com a Europa, Japão, Coreia, com países desse tipo de desenvolvimento. Mas a diversificação, a aposta que se pode fazer dos mercados do Sul, é importante e uma alternativa boa nesse momento.
Sul21 – O modelo de agroexportação pode ser afetado no caso dessa crise se espalhar para China, por exemplo? Que impacto teria?
Adhemar Mineiro - O modelo exportador é sempre perigoso, porque deixa o país na dependência dos mercados externos e não se sabe o que vai acontecer. Existem elementos econômicos e elementos geopolíticos que podem impactar. Num momento como esse, o ideal é contar com o seu mercado interno e esse tem sido o ponto forte em países como o Brasil que tem esse potencial, tem crescido inclusive com as políticas internas de distribuição de renda, aumento de salário mínimo. E nesse processo político é importante a integração regional, porque garante mais governabilidade pela proximidade com países mais similares do quais tem maior tradição de relação e negociação. Estas alternativas seriam as de menor risco. Quanto mais longe colocar seus horizontes, mais estará aumentando seu risco nesse momento de crise internacional e quanto maior a dependência do mercado externo também maior o risco.

Sul21 – Conquistas dos trabalhadores com valorização do salário mínimo nos últimos anos, como a valorização do salário mínimo, podem estar em risco diante desse quadro de crise?

Adhemar Mineiro - Espero que não, até porque essa foi nossa saída em relação à crise de 2008. A aposta forte no mercado interno, seja com valorização de salário mínimo, seja com crédito ao consumo popular, programas de transferência de renda e investimentos públicos em infra-estrutura foram o que garantiram voltar a crescer em 2010 fortemente. Essa é a melhor vacina frente à possibilidade de crise internacional. Contar com o mercado interno com motor de crescimento é uma saída importante e deste ponto de vista o que é a nossa fraqueza, o fato de ter uma renda concentrada, o fato de que a infra-estrutura é muito ruim, etc pode ser exatamente o nosso potencial de crescer distribuindo renda. Cada real que você dá para o trabalhador mais pobre vira consumo imediatamente, esse trabalhador não tem a opção de poupar. Então você ativa a economia por aí com toda a montagem, reciclagem e melhoria da estrutura brasileira, seja de saneamento, habitação, transporte… Tudo isso cria um ambiente que são necessários investimentos que podem potencializar o crescimento.
“Em um mês se paga a Taxa Selic de um ano. E isso mina a capacidade de continuar expandindo crédito”
Sul21 – E a oferta e expansão de crédito com taxas de juros muito altas podem representar problema para população brasileira?
Adhemar Mineiro - Está mais relacionado com o fato de que ainda se opera com taxas de juros muito altas, e essas sim podem sufocar os consumidores. Porque os níveis de endividamento no Brasil ainda são menores do que se tem nos principais países do mundo. Em vários países é o total da renda, em alguns é mais do que o total da renda. Na verdade o capitalismo sempre cresceu expandindo crédito: se for esperar poupar do seu salário para comprar um casa, um carro, não compra nunca, a não ser os muito ricos. Para as empresas a mesma coisa, se for esperar acumular lucros para montar o investimento necessário para uma nova fábrica, também não vai conseguir. Crédito sempre foi o grande motor do capitalismo, partindo inclusive do primeiro crédito que é dado pelo trabalhador a empresa, ele trabalha um mês até receber o seu salário. Esse sempre foi um mecanismo de funcionamento do sistema. O que complica no caso brasileiro são os juros e spreads bancários muito altos, que às vezes tornam as dividas muito pesadas. Até o momento se contornou isso. Parece que o consumidor brasileiro é mais sensível ao prazo do pagamento, se a parcela vai caber dentro do seu orçamento do que tentar visualizar o montante de juros que está pagando. Agora evidentemente isso tem fôlego curto: no momento seguinte os juros têm que cair.
"O capitalismo sempre cresceu expandindo crédito: se for esperar poupar do seu salário para comprar um casa, um carro, não compra nunca, a não ser os muito ricos" | Foto: Leo Caobelli/Flickr

Sul21 – A tendência é de redução de juros?

Adhemar Mineiro – Essa é uma boa discussão. O Ministério da Fazenda aposta nisso, mas o Banco Central (BC) está dizendo que não se deve contar com isso, que o processo de reduzir taxas de juros tem muitos limites. Essa é uma questão que teremos que discutir como um todo, não só a taxa básica do BC, mas também os spreads cobradas pelos bancos privados que fazem com que os juros do cartão de crédito sejam altos. Por exemplo, em um mês se paga a Taxa Selic de um ano. E isso mina a capacidade de continuar expandindo crédito e inclusive do sistema bancário privado de financiar investimento. Na verdade, o investimento brasileiro é financiado pelas próprias empresas ou pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Essa é uma discussão importante que tem que se fazer, de como se reforma o sistema financeiro de modo que as taxas de juros caiam. E não é uma discussão simples.

Sul21 – E pra finalizar, essa é uma crise da dívida pública na Europa. Em que patamar esta o endividamento brasileiro?

Adhemar Mineiro - No Brasil, a dívida pública tem até caído. O Banco Central, já há alguns anos, tem feito uma política aparentemente bastante consistente de reduzir a dívida pública, em proporção ao PIB, inclusive mais que o crescimento do PIB, e alterar o perfil da dívida pública, desvinculando de moeda estrangeira e tentando reduzir aplicações de baixo e curto prazo. O grande problema é que, se não muda os mecanismos da liberalização financeira e dessa possibilidade de que os capitais internacionais especulem contra o país, essa situação de redução da dívida pública não é uma garantia em nenhum momento. Um exemplo é a Irlanda, que vinha num processo de redução de uma dívida que era em torno de 100% do PIB e essa dívida caiu a 30% do PIB em 2007. Em 2008, 2009, depois dos programas de salvamento, depois de um ano, voltou para dívida de 100% do PIB. Então a redução proporcional da dívida pública em relação ao PIB por si só não garante nada. Porque por conta da não regulação os países continuam expostos, como é o caso do Brasil, a uma vulnerabilidade externa grande. Um exemplo disso é que o movimento da primeira semana do ano, nos primeiros dez dias de 2012, apresentou uma saída de dólares de quase U$ 800 milhões. Isso provavelmente é dinheiro que está saindo dos fundos de aplicação das empresas aqui para tentar salvar suas matrizes na Europa. Enquanto não discutir e mudar os mecanismos da liberação financeira, isso vai continuar exposto. Apesar de que, se olhar hoje para a dívida e o déficit está sob controle, o déficit público brasileiro é menor do que na Alemanha, o nível de reservas está alto como nunca esteve na história. Cada indicador isoladamente é verdadeiro. Obviamente se está numa situação geral mais confortável do que esteve em vários outros momentos da história, mas isso não garante que face a uma crise de grandes proporções, uma nova crise aguda como teve em 2008, esses elementos da liberalização e da vulnerabilidade externa não possam fazer com que o país seja fortemente afetado pela crise apesar de estar em uma situação mais confortável.