terça-feira, 3 de abril de 2012

Uma crise estrutural exige uma mudança estrutural

por István Mészáros [*]
Mészáros, ainda jovem. Quando se afirma a necessidade de uma mudança estrutural radical é necessário que fique desde logo claro que não se trata de um apelo a uma utopia irrealizável. Bem pelo contrário, a característica essencial das teorias utopistas modernas é precisamente a projecção de que o melhoramento das condições de vida dos trabalhadores pode ser alcançado no quadro estrutural existente nas sociedades criticadas. Foi neste espírito que Robert Owen de New Lanark, que mantinha uma parceria insustentável com o filósofo utilitarista liberal Jeremy Bentham, tentou realizar as suas reformas sociais e pedagógicas. Ele exigia o impossível. Como sabemos, o sonante princípio moral utilitarista do "maior bem para o maior número" não teve, desde que Bentham o advogou, nenhuma tradução real. O problema é que, sem uma correcta compreensão da natureza económica e social da crise do nosso tempo – que hoje já não pode ser negada nem sequer pelos defensores da ordem capitalista, mesmo que estes continuem a rejeitar a necessidade de uma mudança estrutural – as hipóteses de chegar a bom porto ficam seriamente comprometidas. O deperecimento do "Estado Social", mesmo nos poucos países privilegiados onde chegou realmente a ser implementado, apresenta-se como uma grande lição neste domínio.

Permitam-me começar por citar um artigo recente dos editores de The Financial Times, jornal diário de referência da burguesia internacional.

Ao abordar os perigos das crises financeiras – reconhecidas agora até pelos seu editores como perigosas – terminam o seu editorial com as seguintes palavras: "Os dois lados (Democratas e Repúblicanos) são responsáveis pelo vazio de liderança e pela ausência de uma decisão responsável. É uma falha grave de governação e mais perigosa do que aquilo que Washington pensa." [1] A sabedoria editorial não vai mais longe que isto no que toca à questão das "dívidas soberanas" e do crescente défice orçamental. Aquilo que torna o editorial do Financial Times ainda mais vazio que o "vazio de liderança" que critica é o sonante subtítulo do artigo: "Washington deve parar de fazer pose e começar a governar". Como se os editoriais deste tipo não contribuíssem mais para a pose do que para a governação propriamente dita. Pois o que está realmente em questão é o endividamento catastrófico da toda-poderosa "casa-mãe" do capitalismo global, os Estados Unidos da América, onde a dívida do governo (excluindo as dívidas individuais e privadas) atinge já o valor de 14 milhões de milhões (trillions) de dólares – valor que aparece projectado na fachada de um edifício público de Nova Iorque a atestar a tendência crescente da dívida.

O que pretendo sublinhar é que a crise com que temos de lidar é uma crise profunda e estrutural que necessita da adopção de medidas estruturais e abrangentes, de modo atingirmos uma solução duradoura. É também necessário relembrar que a crise estrutural com que lidamos hoje não teve a sua origem em 2007, com o "rebentar da bolha" do mercado imobiliário americano, mas, pelo menos, quatro décadas antes. Eu já tinha exposto esta situação, nestes termos, em 1967, ainda antes da explosão do Maio de 68 em França [2] , e escrevi, em 1971, no prefácio à terceira edição de Marx's Theory of Alienation, que os acontecimentos e desenvolvimentos que então se davam: "testemunhavam de forma dramática a intensificação da crise estrutural global do capital".

A este respeito é necessário clarificar as diferenças relevantes entre os vários tipos e modalidades de crise. Não é de somenos importância o facto de uma crise na esfera social poder ser considerada periódica (conjuntural), ou de os seus fundamentos serem muito mais profundos do que isso. Pois, como é evidente, a forma de lidar com uma crise estrutural, uma crise dos fundamentos, não pode ser conceptualizada nos mesmos termos e segundo as mesmas categorias que se utilizam para lidar com as crises periódicas ou conjunturais. A diferença fundamental entre estes dois tipos de crise contrastantes é que a crise periódica ou conjuntural pode ser compreendida e resolvida dentro da estrutura actual, enquanto que a outra afecta a própria estrutura estabelecida no seu todo.

Em termos gerais, a diferença não se reduz a uma mera questão de gravidade contrastante entre os dois tipos de crise. Uma crise periódica ou conjuntural pode revelar-se de uma gravidade dramática – como foi o caso da Grande Depressão de 1929-1933 – e ainda assim poder ser resolvida dentro dos parâmetros do sistema em que ocorre. Da mesma forma, mas em sentido inverso, o carácter "não explosivo" de uma crise estrutural prolongada, contrastando com as "grandes tempestades" (palavras de Marx) nas quais se dão e se resolvem as crises conjunturais, pode levar à concepção de estratégias erradas resultantes de uma má interpretação induzida pela ausência de "tempestades"; Como se a ausência dessas "tempestades" fosse a prova cabal da estabilidade infinita do "capitalismo organizado" e da "integração da classe operária" no sistema.

Nunca é demais assinalar que a crise que vivemos não pode ser compreendida se não a remetermos para a estrutura social no seu todo. Isto quer dizer que, para clarificarmos a natureza desta crise, cada vez mais grave e duradoura, que afecta hoje o mundo inteiro, devemos considerar a crise do sistema capitalista no seu todo. Pois a crise do capital que experimentamos hoje é uma crise estrutural que tudo abrange.

Vejamos, de forma tão breve e concisa quanto possível, as caractéristicas fundamentais da crise estrutural com que lidamos.
A novidade histórica da crise actual manifesta-se em quatro aspectos:

  • O seu carácter universal, por oposição ao carácter circunscrito a uma esfera particular determinada (financeira ou comercial, ou afectando este ou aquele ramo específico da produção, ou aplicando-se a um tipo de trabalho, com a sua esfera específica de capacidades e níveis de produção, e não a outro, etc...)
  • O seu âmbito é verdadeiramente global (no mais ameaçado sentido literal do termo) ao invés de estar confinado a um conjunto determinado de países (como estiveram as maiores crises do passado),
  • A sua escala de tempo é extensa, contínua – permanente se preferirem – em vez de ser limitada e cíclica, como se acabaram por ser as anteriores crises do capital.
  • A sua forma de desdobramento, contrastando com os colapsos mais espectaculares e mais dramáticos do passado, pode ser considerada gradual, não excluindo no mesmo movimento a hipótese de violentas convulsões futuras: ou seja, quando a complexa máquina que se ocupa hoje da "gestão da crise", acabar, com o inevitável agravamento futuro das contradições crescentes, por perder vapor.
Neste ponto é necessário tecer algumas considerações gerais sobre os critérios que definem uma crise estrutural, bem como acerca das formas que pode tomar a sua superação.

Para o pôr em termos mais simples e mais gerais, a crise estrutural afecta a totalidade de um complexo social, e todas as relações entre as partes que o constituem (ou sub-complexos), bem como a sua relação com outros complexos aos quais possa estar ligado. Em sentido inverso, uma crise não estrutural afecta somente as partes do complexo em questão, e assim, por mais grave que seja para as partes afectadas, não põe em perigo a sobrevivência da estrutura no seu todo.

Consequentemente, o deslocar das contradições é possível apenas enquanto a crise for parcial, relativa e controlável internamente pelo sistema, necessitando apenas de viragens - mesmo que de grandes dimensões - relativamente autónomas dentro do próprio sistema. Desta forma uma crise estrutural põe em questão a existência da totalidade do complexo envolvido, postulando a sua transcendência e a sua substituição por um complexo alternativo.

Este mesmo contraste pode ser revelado pelos limites imediatos que um complexo social particular tem, em qualquer período de tempo, quando comparados com aqueles que ficam além do seu alcance. Assim, uma crise estrutural não se prende aos limites imediatos, mas sim aos derradeiros limites de uma estrutura global... [3]
Assim, e num sentido óbvio, nada pode ser mais sério que a crise estrutural do modo de reprodução metabólico do capital (que define os derradeiros limites da ordem estabelecida). Mas, apesar da profunda seriedade nos seus parâmetros gerais, a crise estrutural pode, à primeira vista, não aparentar ser de uma importância assim tão decisiva quando comparada com as vicissitudes dramáticas de uma grande crise conjuntural. De facto, as "tempestades" com que se manifestam as crises conjunturais são bastante paradoxais, na medida em que, pelo seu modo de desdobramento, as crises conjunturais não só descarregam tais tempestade mas acabam, no mesmo movimento, por se resolver enquanto crises (na medida em que as circunstâncias o permitem). Isto é possível graças ao seu carácter parcial, que não implica os limites últimos da estrutura global estabelecida. Ao mesmo tempo, e pela mesma razão, as crises parciais podem apenas solucionar os problemas estruturais subjacentes - que inevitavelmente se continuarão a manifestar sob a forma de crises conjunturais - de forma temporária, parcial e bastante limitada: até a próxima crise estrutural começar a surgir no horizonte da sociedade.

Contrariamente, atendendo à natureza necessariamente complexa e prolongada de uma crise estrutural, que, não sendo episódica nem fugaz, se manifesta num tempo histórico determinado e é condicionada pelo sentido de uma época, é na inter-relação cumulativa do todo que a questão se decide, mesmo sob a (falsa) aparência de normalidade. Isto ocorre assim porque numa crise estrutural tudo está em jogo, envolvendo os mais abrangentes e derradeiros limites da ordem em questão, dos quais não pode haver uma instância particular simbólica. Sem a compreensão do todo das relações e implicações sistémicas dos acontecimentos particulares, perderemos a noção das mudanças significativas reais e das correspondentes alavancas de uma possível intervenção estratégica que possa afectar positivamente o problema, em vista da sua transformação sistémica. A nossa responsabilidade social clama por uma vigilância crítica e determinada das inter-relações cumulativas emergentes, que não se pode contentar nem reconfortar com a normalidade ilusória que antecede o desabamento do tecto que jaz sobre as nossas cabeças.

É por demais necessário sublinhar que, durante as três décadas que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, a expansão económica dos países capitalistas de proa gerou a ilusão, mesmo junto dos mais distintos intelectuais de Esquerda, da superação histórica da "crise do capitalismo", e do surgimento de uma nova fase de "capitalismo organizado avançado ". Gostaria de ilustrar este problema com algumas passagens da lavra daquele que foi um dos maiores intelectuais militantes do século XX: Jean-Paul Sartre; por quem, como ficou claro no livro que escrevi sobre a sua obra, tenho a maior das considerações. No entanto, a verdade é que a adopção da ideia de que pela superação da "crise do capitalismo" a ordem estabelecida se tornou num "capitalismo avançado" foi para Sartre fonte de grandes dilemas. Isto é ainda mais significativo dado que ninguém poderá negar o compromisso que Sartre mantinha com a busca de uma solução emancipatória viável, nem tão pouco a sua integridade moral. Em relação ao nosso problema é da maior utilidade recordar a importante entrevista que Sartre concedeu ao grupo italiano Manifesto – depois de clarificarmos a sua concepção das insuperáveis implicações negativas da sua própria categoria explicativa da institucionalização inevitavelmente prejudicial, que ele chamava "grupo em fusão" na sua Critica da Razão Dialéctica – na qual ele chegou a esta dolorosa conclusão: "Ao mesmo tempo que reconheço a necessidade de organização tenho de confessar que não vejo como é que podem ser resolvidos os problemas aos quais se confronta uma qualquer estrutura organizada" [4]

A dificuldade prende-se com o facto de os termos da análise social de Sartre serem concebidos de uma forma tal que vários factores e correlações, que na realidade estão interligados, constituindo as diferentes faces de um mesmo complexo societal, são apresentados separadamente, por dicotomias e oposições, gerando um dilema insolúvel e condenando ao fracasso as forças emancipatórias sociais. Isto é claramente demonstrado na entrevista ao grupo Manifesto:
Manifesto: Em que bases precisas é que se pode preparar uma alternativa revolucionária?

Sartre: Repito, é mais na base da "alienação" do que na base das "necessidades". Em suma na reconstrução do individual e da liberdade, reconstrução essa tão necessária que as mais refinadas técnicas de integração não se podem dar ao luxo de ignorar. [5]
Desta forma Sartre, pela sua compreensão estratégica de como superar o carácter opressivo da realidade capitalista, constrói uma oposição indefensável entre a "alienação" dos trabalhadores e as suas "necessidades" alegadamente já satisfeitas, tornando muito difícil prever uma solução prática exequível. O problema não se prende apenas com a desmesurada credibilização das "refinadas técnicas de integração", teoria sociológica refinada e muito em voga, mas muito superficial. Infelizmente, o problema é bem mais sério.

O real problema é o da validação do "capitalismo avançado", e da tese subsequente da "integração" da classe operária no sistema, que Sartre partilha em larga medida com Herbert Marcuse. A verdade é que, em contraste com a integração (sem dúvida possível) de alguns trabalhadores na ordem capitalista, a classe trabalhadora - antagonista estrutural do capital, e que representa a única alternativa hegemónica historicamente possível ao sistema do capital - não pode ser integrada na estrutura exploradora e alienante de reprodução social do capital. O que torna impossível tal assimilação é o antagonismo estrutural subjacente entre capital e trabalho que decorre necessariamente da realidade das relações de classe, isto é, da incontornável relação de domínio e subordinação que entre elas existe.

Neste discurso, até a plausibilidade mínima da falsa alternativa, de tipo Sartriano e Marcusiano, entre contínua alienação e "satisfação das necessidades" é "estabelecida" com base na descarrilhante compartimentalização das (suicidárias) indeterminações estruturais do capital, globalmente implementadas e globalmente insustentáveis, das quais depende a mais elementar viabilidade sistémica da hegemónica ordem social vigente do capital. Assim é extremamente problemático separar o "capitalismo avançado" das chamadas "zonas marginais" e do "terceiro mundo". Como se a ordem reprodutiva do "capitalismo avançado" se pudesse sustentar por um qualquer período de tempo, e no futuro mesmo indefinidamente, sem a exploração constante das "zonas marginais" e sem o domínio imperialista do "terceiro mundo".

É aqui necessário citar a passagem na qual Sartre trata destes problemas. Essa passagem reveladora é a seguinte:
O capitalismo avançado, em relação com a consciência que tem da sua própria condição, e apesar das enormes disparidades na distribuição de dividendos, consegue satisfazer as necessidades elementares da maior parte da classe operária – ficam ainda por satisfazer as zonas marginais, 15 por cento dos trabalhadores dos Estados Unidos, os negros e os imigrantes, os idosos e, a uma escala global, o "terceiro mundo". Mas o capitalismo satisfaz certas necessidades primárias, e também satisfaz certas necessidades artificialmente criadas, como por exemplo a necessidade de ter um carro. Esta situação, obrigou-me a rever a minha "teoria das necessidades" uma vez que estas necessidades já não estão, no "capitalismo avançado", em oposição fundamental ao sistema. Pelo contrário, elas tornaram-se, pelo menos em parte e quando controladas pelo sistema, num instrumento de integração do proletariado em certos processos produzidos e dirigidos pelo lucro. O trabalhador esgota-se para produzir um carro e para ganhar o dinheiro para poder comprar um carro; esta compra dá-lhe a impressão de ter suprimido uma necessidade sua. O sistema explora-o ao mesmo tempo que lhe oferece um objectivo e a possibilidade de o alcançar. A consciência do carácter intolerável do sistema já não deve ser procurada na impossibilidade de satisfazer as necessidades básicas, mas sobretudo na consciência da alienação – por outras palavras, no facto de que esta vida não merece ser vivida e não tem significado, que este mecanismo é enganador, que estas necessidades são falsas, artificialmente criadas, extenuantes e que só servem uma lógica de lucro. Mas unir uma classe com base nisto é ainda mais difícil. [6]
Se aceitarmos sem mais esta caracterização da ordem do "capitalismo avançado", a tarefa de produção de uma consciência emancipatória não é apenas "mais difícil", é impossível. Mas o fundamento dúbio a partir da qual podemos chegar a um tal conclusão apriorística, pessimista e derrotista – que prescreve, do alto da "nova teoria das necessidades" formulada pelos intelectuais, a renúncia dos operários, às suas "ávidas necessidades artificiais", representadas pelos carros, e a sua substituição pelo postulado, completamente abstracto, de que "esta vida não vale a pena ser vivida e não tem sentido" (um postulado nobre, mas considerávelmente abstracto, e de resto efectivemente contrariado pela necessidade real que têm os membros da classe trabalhadora de assegurar as condições de uma existência economicamente sustentável) – é simultaneamente a aceitação de afirmações insustentáveis e a omissão, igualmente inaceitável, de algumas das mais vitais determinações do actual sistema do capital na sua crise estrutural historicamente irreversível.

Desde logo, falar de "capitalismo avançado " – quando o sistema do capital, enquanto forma de reprodução social metabólica, se encontra na fase descendente do seu desenvolvimento histórico, e, portanto, é avançado apenas de um ponto de vista capitalista e sob nenhuma outra forma, visto que apenas se mantém de uma forma cada vez mais destrutiva e, em última análise, auto-destrutiva – é muito problemático. Outra asserção: a caracterização da esmagadora maioria da humanidade – a categoria da pobreza, que inclui "os negros e os imigrantes", os "idosos" e "em grande escala, o terceiro mundo" – como pertencente a "zonas marginais" (no sentido dos "marginais" de Marcuse), é igualmente insustentável. Pois, na realidade, é o "mundo capitalista avançado" que constitui uma margem privilegiada no seio do sistema, que é, a longo prazo, totalmente insustentável, e que nega à maior parte do mundo as suas necessidades mais básicas. Esta é a verdadeira margem e não aquilo que Sartre descreve na sua entrevista ao grupo Manifesto como constituindo as "zonas marginais". Mesmo no que diz respeito aos Estados Unidos, a margem de pobreza é consideravelmente subestimada: apenas 15% da população. Para além disso, caracterizar os carros dos operários como meras "necessidades artificiais" que apenas "servem o lucro" é ter um ponto de vista completamente unilateral. Pois, ao contrário de muitos intelectuais, nem todos os operários relativamente bem pagos, para já não falar da classe trabalhadora como um todo, têm a sorte de ter o seu local de trabalho ao lado da porta do seu quarto.

Para além do mais, algumas das mais graves falhas e contradições estruturais encontram-se surpreendentemente ausentes da descrição feita por Sartre do "capitalismo avançado", o que esvazia virtualmente o conceito de sentido. Assim, uma das mais importantes necessidades, sem a qual nenhuma sociedade – passada, presente ou futura – pode sobreviver, é a necessidade de trabalhar, tanto para os indivíduos produtivamente activos – reunidos numa ordem social completamente emancipada – como para a sociedade em geral, na sua relação sustentável com a natureza. A incapacidade congénita do sistema do capital para resolver este problema estrutural fundamental, que afecta todas as categorias de trabalhadores, não apenas no "terceiro mundo", mas também nos mais privilegiados países do "capitalismo avançado", uma tal incapacidade, que leva a um aumento perigoso do desemprego, constitui um dos limites absolutos do sistema do capital no seu todo. Outro problema sério, que reforça a inviabilidade presente e futura do sistema do capital é o peso cada vez maior dado a sectores parasitários na economia – como a especulação aventureira, produtora de crise, que infesta (sob a forma de uma necessidade objectiva, muita vezes erroneamente representada sobre a forma de erro ou falha pessoal) o sector financeiro, e a fraude institucionalizada que se lhe associa – em contraste com os ramos produtivos da economia social, necessários à satisfação das necessidades humanas genuínas. Uma tal configuração manifesta um acentuado, e ameaçador, contraste com a fase ascendente do desenvolvimento histórico do capital, quando o prodigioso dinamismo expansionista do sistema (incluindo a revolução industrial) era devido a feitos produtivos socialmente viáveis e valorizáveis. Temos ainda que adicionar a tudo isto os fardos económicos perdulários impostos à sociedade de forma autoritária pelo estado e pelo complexo militar/industrial – a permanente indústria de armamento e as guerras correspondentes – como parte integral do perverso "crescimento económico" do "capitalismo avançado organizado". E, para mencionar apenas mais uma das consequências catastróficas do desenvolvimento sistémico do capital "avançado", devemos ter em mente a perdulária transgressão ecológica do nosso insustentável modo de reprodução social metabólico num planeta finito [7] a sua exploração ganaciosa dos recursos materiais não-renováveis e a cada vez mais perigosa destruição da natureza. Dizê-lo não é tentar parecer sábio depois do facto consumado. Escrevi na mesma altura em que Sartre deu a sua entrevista ao grupo Manifesto que:
Outra contradição básica do sistema capitalista de controlo é que ele não pode separar "avanço" de destruição, nem "progresso" de desperdício – independentemente de quão catastrófico seja o resultado. Quanto mais liberta o seu poder produtivo, mais desencandeia o seu poder destrutivo; e quanto mais aumenta o seu volume de produção, mais é obrigado a enterrar tudo sob montanhas de desperdícios. O conceito de economia é radicalmente incompatível com a "economia" da produção do capital que, necessariamente, junta ultraje ao ultraje ao usar primeiro, num ganacioso desperdício, os recursos limitados do nosso planeta, para depois agravar o resultado através da poluição e do envenenamento do ambiente humano, com a sua produção massiva de lixos e eflúvios. [8]
Assim, as asserções problemáticas e as importantes omissões presentes na caracterização sartriana do "capitalismo avançado" enfraquecem consideravelmente o poder de negação do seu discurso emancipatório. Baseando-se num princípio dicotómico, que afirma repetidamente "a irredutibilidade da ordem cultural à ordem natural", Sartre procura sempre soluções de "ordem cultural", ou seja, ao nível da consciência individual, através do trabalho intelectual comprometido da "consciência sobre a consciência". Sugere assim que a solução está num aumento da "consciência da alienação" - na "ordem cultural" - ao mesmo tempo que rejeita a viabilidade de uma estratégia revolucionária baseada numa necessidade de "ordem natural". As necessidades materiais, aliás consideradas como estando já satisfeitas para a maioria dos trabalhadores, constituiriam um "mecanismo ilusório e falso" e um "instrumento de integração do proletariado".

Sartre está certamente bastante preocupado com o desafio que representa responder à questão de como aumentar "a consciência do carácter intolerável do sistema". Mas, como é inevitável notar, a própria base tida como condição vital para o sucesso de tal empresa – o poder da "consciência da alienação" sublinhado por Sartre – necessita fortemente de um suporte material. De outra forma, a ideia (mesmo deixando de lado a fraqueza da dita base e a sua circularidade auto-referencial) de que tal consciência "pode prevalecer face ao carácter intolerável do sistema" está condenada a ser posta de lado, como um ideal nobre, mas ineficaz. As declarações pessimistas de Sartre a propósito de necessidade de vencer a realidade materialmente e culturalmente destrutiva, mas solidamente estruturada, deste "conjunto miserável que é o nosso planeta", com as suas "horríveis, feias e más determinações, sem esperança", mostram que esta questão é problemática mesmo se vista do interior do sistema de representações sartriano.

Nesta medida, a questão primeira diz respeito à demonstrabilidade, ou não, do carácter objectivamente intolerável do sistema, pois se tal demonstração carecer de substância, como é proclamado pela noção de um "capitalismo avançado" capaz de satisfazer todas as necessidades materiais, com a mera excepção das "zonas marginais", então "o longo e paciente trabalho de construção da consciência" advogado por Sartre torna-se quase impossível. Este é o tal embasamento objectivo que é necessário (e actualmente pode) ser estabelecido dentro dos seus próprios termos de referência, e que requer a desmistificação radical do carácter cada vez mais destrutivo do "capitalismo avançado". A " consciência do carácter intolerável do sistema" só pode ser construída sobre este terreno material – que inclui o sofrimento causado pela incapacidade do capital "avançado" satisfazer mesmo as necessidades mais elementares nas suas "zonas marginais", o que é claramente demonstrado pelos motins alimentares que têm lugar em vários países – de forma a poder ultrapassar a dicotomia (postulada) entre a ordem cultural e a ordem natural.

Na sua fase ascendente, o sistema do capital pôde basear os seus feitos produtivos num dinamismo expansionista interno – sem ser ainda imperiosa uma orientação monopolista/imperialista que permita aos países mais avançados garantir militarmente o domínio do mundo. No entanto, na senda da circunstância historicamente irreversível que é a sua entrada numa fase produtiva descendente, o sistema do capital tornou-se inseparável de uma necessidade, cada vez mais intensa, de expansão militarista/monopolista e de uma distensão constante da seu quadro estrutural, tendendo, na sua lógica produtiva interna, para o estabelecimento criminoso e perdulário de uma "indústria do armamento permanente", que vai de par com as guerras que necessariamente se lhe encontram associadas.

Na verdade, ainda antes do despoletar da Primeira Guerra Mundial, Rosa Luxemburgo havia identificado claramente a natureza deste fatídico desenvolvimento monopolista/imperialista, rumo a uma orientação destrutivamente produtiva, ao escrever no seu livro A acumulação de Capital que: "O Capital em si mesmo controla, em última análise, o movimento rítmico da produção militar através do poder legislativo e da imprensa, cuja função é a de moldar a chamada "opinião pública". É por isso que esta região particular de acumulação capitalista parece, à primeira vista, capaz de uma expansão infinita." [10]

Por outro lado, a utilização cada vez mais perdulária de energia e de recursos materiais vitais e estratégicos, manifesta não apenas a articulação cada vez mais destrutiva das determinações estruturais do Capital no plano militar (através de uma manipulação legislativa da "opinião pública" que nunca é questionada, e muito menos regulamentada), mas também a cada vez maior usurpação da natureza. Ironicamente, mas de forma nada surpreendente, este momento do desenvolvimento histórico regressivo do sistema do Capital trouxe também consigo amargas consequências para a organização internacional do trabalho.

Com efeito, esta nova articulação do sistema do capital, iniciada no último terço do século XIX, com a sua fase imperialista monopolista intimamente ligada a um domínio global total, deu inicio a uma nova modalidade de dinamismo expansionista (ainda mais antagonista e, em última análise, insustentável), que dá lucros esmagadores a um punhado de países imperialistas privilegiados, e que, assim, adia o "momento da verdade", inseparável da irreprimível crise estrutural vivida pelo sistema nos nossos dias. Este tipo de desenvolvimento imperialista monopolista impulsionou inevitavelmente a possibilidade de uma acumulação e expansão capitalista militar, independentemente do preço a pagar pela destrutividade cada vez maior deste novo dinamismo, que assumiu já a forma de duas guerras mundiais devastadoras, bem como a da total aniquilação da humanidade implícita numa terceira guerra mundial, isto sem contar com a destruição da natureza, que se tornou evidente na segunda metade do séc. XX.

Hoje em dia, estamos a assistir ao aprofundamento da crise estrutural do sistema do capital. A sua destrutividade é visível em todo o lado, e não dá sinais de diminuir. Para o futuro, é crucial a forma como conceptualizamos esta crise, no sentido de encontrar uma solução. Pelo mesmo motivo, é também crucial reexaminar algumas das mais significativas soluções propostas no passado. Aqui não nos será possível mais do que mencionar, com uma brevidade estenográfica, os pontos de vista contrastantes que foram defendidos no passado e indicar a sorte que conhecem nos dias de hoje.

Em primeiro lugar, há que recordar que é mérito do filósofo liberal John Stuart Mill ter notado quão problemático poderia ser um crescimento capitalista infinito, consideração que o levou a propor como solução um "estado estacionário da economia". Naturalmente, um tal "estado estacionário" no quadro do sistema do capital não é mais do que uma ilusão, uma vez que é totalmente incompatível com o imperativo de expansão e acumulação do capital. Mesmo actualmente, quando tanta destruição é causada por um crescimento inadequado e pelas mais ineficazes utilizações dos nossos recursos energéticos e estratégicos vitais, a mitologia do crescimento constante é constantemente reafirmada, juntamente com a projecção ideal de uma "redução da pegada ecológica" em 2050, quando na realidade se está a seguir uma direcção completamente contrária a um tal objectivo. Assim, a realidade do liberalismo revelou-se ser a destrutividade agressiva do neoliberalismo.

Um destino semelhante teve a perspectiva social-democrata. Marx formulou claramente os seus receios acerca deste perigo na sua Critica do Programa de Gotha, mas eles foram totalmente ignorados. Também aqui a contradição entre a promessa Bernsteiniana de um "socialismo evolutivo" e a sua realização prática se revelou impressionante. E isto não apenas graças à capitulação dos partidos e governos sociais-democratas face ao engodo das guerras imperialistas, mas também através da conversão da social-democracia em geral – incluindo o "New Labour" britânico – a versões mais ou menos evidentes de neo-liberalismo, levando ao abandono não apenas do "caminho do socialismo evolutivo", mas de toda e qualquer promessa de reforma social significativa.

Para além disso, uma solução muito propagandeada, após a II Guerra Mundial, às desigualdades crescentes do sistema do capital, foi a difusão mundial do Estado Social. No entanto, a realidade prosaica deste alegado feito histórico é hoje em dia evidente, não só na total incapacidade para instituir o dito Estado Social onde quer que seja no chamado "Terceiro Mundo", mas através da liquidação, em curso, das conquistas relativas desse Estado Social do pós-guerra – nos campos da segurança social, saúde e educação – até mesmo nos poucos países privilegiados onde ele alguma vez chegou a ser instituído.

E, claro, não podemos ignorar a promessa (feita por Estaline e outros) de realizar a fase mais elevada do socialismo através da derrube e da abolição do capitalismo, pois, tragicamente, sete décadas após a Revolução de Outubro, os países da antiga União Soviética e da Europa de Leste vivem uma restauração do capitalismo na sua forma regressiva neoliberal.

O denominador comum de todas estas tentativas – apesar das suas diferenças fundamentais – é que todas elas tentaram alcançar os seus objectivos do interior do quadro estrutural da ordem metabólica social estabelecida. Todavia, como nos ensina a dolorosa experiência histórica, o nosso problema não é simplesmente "derrubar o capitalismo". Pois, mesmo que um tal objectivo possa ser alcançado numa determinada extensão, ele está condenado a ser um feito muito instável, visto que tudo o que é derrubado pode também ser restaurado. A verdadeira – e muito mais difícil – questão, é a da necessidade de uma mudança estrutural radical.

O significado tangível de uma tal mudança estrutural é a completa erradicação do capitalismo do processo social metabólico, ou, por outras palavras, a erradicação do capital do processo metabólico de reprodução societal.

O capital é em si mesmo um modo de controlo global; o que significa que ou ele controla tudo ou implode enquanto sistema de controlo societal reprodutivo. Consequentemente, o capital, enquanto tal, não pode ser controlado nalguns dos seus aspectos, enquanto outros são deixados de lado. Todas as medidas e modalidades experimentadas para "controlar" as várias funções do capital de forma permanente, falharam. De acordo com a sua incontrolabilidade estrutural – que significa que não é concebível, dentro do quadro estrutural do sistema do capital, uma qualquer alavancagem que permita manter o próprio sistema controlado de forma duradoura – o capital deve ser completamente erradicado. Este é o sentido central do trabalho de Marx.

Nos nossos dias, a questão do controle – através de uma mudança estrutural que responda ao aprofundamento da crise estrutural – tornou-se urgente, não só no sistema financeiro, devido ao desperdício de biliões de dólares, mas em todos os sectores. Os mais importantes jornais financeiros capitalistas queixam-se de que "a China está sentada sobre três milhões de milhões de dólares em dinheiro", alimentando ilusões de que, através de um "melhor uso desse dinheiro", possa surgir uma solução. Mas a dura verdade é que o endividamento global crescente do capitalismo eleva-se a um valor dez vezes superior ao dos dólares "não usados" pela China. Para além disso, mesmo que o enorme montante da dívida pudesse ser eliminado de alguma forma, ainda que ninguém saiba dizer como, a verdadeira questão mantém-se: Como é que ele foi gerado e como podemos estar seguros que não o voltará a sê-lo no futuro? É por isso que a dimensão produtiva do sistema – nomeadamente a própria relação do capital – deve sofrer uma mudança fundamental no sentido de ultrapassar a crise estrutural através de uma mudança estrutural apropriada.

A dramática crise financeira que vivemos durante os últimos três anos é apenas um aspecto das três vertentes da destrutividade do sistema do capital:
1. No campo militar, as intermináveis guerras que o capital tem gerado desde que surgiu, nas últimas décadas do séc. XIX, o imperialismo monopolista, e as ainda mais devastadoras armas de destruição massiva surgidas nos últimos sessenta anos.
2. A intensificação do impacto destrutivo do capital no domínio ecológico, que afecta directamente e põe em risco a base mais elementar da própria existência humana; e
3. No domínio da produção material, um desperdício cada vez maior, resultante do desenvolvimento de uma "produção destrutiva", que se substitui à anteriormente louvada, "destruição produtiva" ou "criativa"
Estes são os graves problemas sistémicos da nossa crise estrutural, que apenas podem ser resolvidos através de uma mudança estrutural abrangente.

Como conclusão, gostaria de citar as últimas cinco linhas de Dialéctica da Estrutura e da História, , onde se lê:
"Naturalmente, a dialéctica histórica, por si só e em abstracto, não nos pode garantir um desfecho positivo. Esperar tal coisa seria renunciar ao nosso papel no desenvolvimento da consciência social, que é parte da dialéctica histórica. A radicalização da consciência social num sentido emancipatório é o que precisamos, mais do que nunca, para o futuro." [11]
Notas
1. "Breaking the US budget impasse," The Financial Times, June 1, 2011, http://ft.com
2. Ver a minha entrevista de 2009 ao Denate Socialista, republicada como "The Tasks Ahead," em The Structural Crisis of Capital (New York: Monthly Review Press, 2010), 173–202.
3. Esta citação é retirada da secção 18.2.1 de Beyond Capital (New York: Monthly Review Press, 1995), 680–82.
4. Entrevista de Sartre ao grupo italiano Manifesto publicada em: "Masses, Spontaneity, Party" in Ralph Milliband and John Saville, eds., The Socialist Register, 1970 (London: Merlin Press, 1970), 245
5. Ibid., 242
6. Ibid., 238-39
7. A gravidade deste problema não pode continuar a ser ignorada. Para nos apercebermos da sua magnitude, é suficiente citar um excerto de um excelente livro que nos dá uma visão global do desenvolvimento do processo de destruição da natureza, na medida em que ele resulta do ultrapassar de determinadas barreiras proibitivas traçadas pelas ciências do ambiente: "estes limiares já foram nalguns casos ultrapassados e, noutros, sê-lo-ão se se mantiver o curso actual do desenvolvimento económico. Para além disso, isto pode ser reconduzido, em todos os casos, a uma causa primeira: o padrão recorrente do desenvolvimento sócio-económico global, ou seja, o modo de produção capitalista e as suas tendências expansionistas. O problema pode ser designado, em termos globais, como "brecha ecológica global", se nos referirmos à quebra generalizada da relação humana com a natureza que nasce de um sistema alienado de acumulação capitalista infinita. Tudo isto sugere que o uso do termo Antropoceno para descrever uma nova era geológica, que se substitui ao Holoceno, é simultaneamente a descrição de um novo fardo sobre os ombros da Humanidade e o reconhecimento de uma crise imensa – um acontecimento potencialmente terminal na ordem da evolução geológica, que poderá destruir o mundo tal como o conhecemos. Por um lado, tem-se verificado uma grande aceleração do impacto humano no sistema planetário desde a revolução industrial e, mais particularmente, desde 1945 – ao ponto de os ciclos bio-geo-químicos, a atmosfera, o oceano e o sistema terrestre como um todo já não poderem ser vistos como impermeáveis à actividade económica humana. Por outro lado, o curso actual dos acontecimentos não poderá tanto ser descrito como o aparecimento de uma nova era geológica estável (o Antropoceno), mas mais propriamente como um Holoceno terminal, ou, mais sinistramente, como um fim do Quaternário, o que é uma forma de nos referirmos às extinções em massa que geralmente separam as eras geológicas. Os limites e pontos de ruptura planetários, que levam à degradação das condições de vida na Terra, podem ser alcançados dentro em breve, diz-nos a ciência, se se prosseguir o rumo actual. O Antropoceno pode ser o separador mais breve, um momento rapidamente aniquilado na linha do tempo geológico." John Bellamy Foster, Brett Clark and Richard York, The Ecological Rift: Capitalism's War on the Earth (New York:Monthly Review Press, 2010), 18-19.
8. Ver a minha conferência em memória de Isaac Deutscher The Necessity of Social Control na London School of Economics em 26 de Janeiro de 1971.Reeditada em Beyond Capital, 872-97.
9. Sartre, 239
10. Rosa Luxemburg, The Accumulation of Capital (London: Routledge, 1963), 466
11. István Mészáros, Social Structure and Forms of Consciousness, vol. 2: The Dialectic of Structure and History (New York: Monthly Review Press, 2011), 483


[*] Professor emérito na Universidade de Sussex, onde ocupou durante 50 anos a cátedra de Filosofia.   O seu livro, Marx's Theory of Alienation, foi galardoado com o Isaac Deutscher Prize em 1970. É também autor de Beyond Capital, Socialism or Barbarism. The Structural Crisis of Capital, The Challenge and the Burden of Historical Time (vencedor do Premio Libertador al Pensamiento Crítico de 2008) e de Social Structure and Forms of Consciousness (2 vol.) – todos eles publicados pela Monthly Review Press .   Esta comunicação foi apresentada no Brasil em Junho de 2011 e na Conferência Marxism 2011, em Londres, em Julho do mesmo ano.

O original encontra-se em http://monthlyreview.org/2012/03/01/structural-crisis-needs-structural-change .
Tradução de Miguel Queiroz e Inês Félix.


Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

Malvinas: memória, verdade e justiça

A Crise Estrutural do Sistema do Capital

Sebastião no blog ARQUIVOS CRITICOS
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O modo de produção capitalista tem como característica essencial a extração da mais-valia, ou seja, a exploração dos trabalhadores. Essa exploração ocorre devido ao fato de os trabalhadores encontrarem-se despossuídos dos meios de produção. Seu trabalho e sua produção encontram-se fora do seu domínio. O produtor direto está alienado das condições de produção e reprodução da sociedade, dominado pelas forças sociais que ele mesmo criou. O fetichismo da mercadoria ou a reificação das relações sociais dominam o ser e a consciência tanto dos trabalhadores como dos burgueses. É desse ocultamento das relações sociais por trás da produção de mercadorias e de valor, processo que aparece como eterno e natural, é dessas fantasmagorias que tira a sua força a ideologia burguesa que, domina as mentes dos indivíduos sob o capitalismo.[1]

 O capital, portanto, tira sua força da exploração do trabalho da classe trabalhadora. O trabalhador produz o valor necessário para pagar a sua reprodução, o seu salário, e além disso produz um valor não pago, que é a apropriado pelo capitalista, a mais-valia. E é com a apropriação da mais-valia, do trabalho não pago, que o capital se expande e se acumula de forma intensa e permanente até encontrar seu limite imposto por suas próprias contradições. E essas contradições, como veremos adiante, são as responsáveis pelas crises do capitalismo.

A acumulação do capital, sua razão de ser, encontra-se determinado pela teoria do valor-trabalho. É esta lei que explica as características essenciais do modo de produção capitalista. Tendo sido elaborado pela economia política clássica, por Smith e por Ricardo, foi somente com Marx que esta teoria alcançou sua plenitude teórica e prática. Foi a partir da teoria do valor-trabalho que Marx desvendou os mistérios da produção da riqueza do capitalismo. Ao descobrir que é o trabalho, ou mais precisamente, o tempo de trabalho socialmente necessário que produz o valor e a mais-valia, Marx ultrapassou os limites da economia clássica e descobriu o motor da riqueza capitalista, e os limites também do modo de produção capitalista.

Com a teoria do valor trabalho e seu corolário, a expropriação da mais-valia, Marx atingiu o coração do sistema do capital, o seu conteúdo, injusto e desumano.[2] E mais, ele vislumbrou seus limites históricos e sua superação dialética por um modo de produção superior, racional e verdadeiramente humano.

Por ser uma “contradição viva”, como afirmava Marx, o sistema do capital teve a sua história marcada por auges e depressões, fluxos e refluxos, expansões e crises, continuidades e rupturas. Nenhum modo de produção teve tantas contradições como o sistema do capital. Nenhum foi também tão revolucionário e conservador ao mesmo tempo, estável e instável no seu movimento de expansão mundial.

O movimento do capital é insaciável.[3] Sua acumulação, seu moto contínuo, é determinado pela taxa de lucro, que por sua vez é determinada pela taxa de mais-valia. E a taxa de mais-valia, assim como a taxa de lucro, dependem da composição orgânica do capital: c/v. Como o capital investe cada vez mais nos meios de produção, ou no capital constante, proporcionalmente do que em trabalhadores, ou o capital variável, a tendência é que a composição orgânica aumente, devido o crescimento da proporção do capital constante.

Como a mais-valia é criada pela parte variável do capital, com a sua queda, a tendência é de que caia também a taxa de mais-valia. Caindo a taxa de mais-valia ocorre também a tendência da queda da taxa de lucro. E como resultado destas tendências temos a diminuição ou a interrupção do processo de acumulação. Na verdade é um processo que se auto-alimenta, acumulação e queda da taxa de lucro são movimentos concomitantes, que influenciam e determinam um ao outro. Marx explica este processo:

“Queda da taxa de lucro e acumulação acelerada são apenas aspectos diferentes do mesmo processo, no sentido de que ambas expressam o desenvolvimento da produtividade. A acumulação acelera a queda da taxa de lucro, na medida em que acarreta a concentração dos trabalhos em grande escala e com isso composição mais alta do capital. A queda da taxa de lucro por sua vez acelera a concentração do capital e sua centralização, expropriando-se os capitalistas menores, tomando-se dos produtores diretos remanescentes o que ainda exista para expropriar. Assim, acelera-se a acumulação, em seu volume, embora sua taxa diminua com a queda da taxa de lucro”.[4]

Temos, portanto, no capitalismo, um desenvolvimento que desemboca sempre em crises, a interrupção da produção da mais-valia, ou seja, da acumulação. Isto quer dizer que a lógica da acumulação do capital o leva sempre a entrar em crises. E essas crises se tornam cíclicas e, com o tempo, cada vez mais profundas, ameaçando todo o modo de produção capitalista com a possibilidade de seu colapso e de sua superação. Marx explica melhor a razão dessas crises:

“No modo capitalista de produção, relativamente à população, desenvolve-se em demasia a produtividade, e, embora sem atingir a mesma proporção, aumentam os valores-capital (e não só o substrato material desses valores) de maneira mais rápida, que a população. Os dois fatos colidem com a base - que, em relação à riqueza crescente, é cada vez mais estreita, e para a qual opera essa produtividade imensa – e com as condições de valorização do capital que se expande. Daí as crises”.[5]

Podemos perceber que o desenvolvimento da produtividade do capital leva à queda da taxa de lucro, criando uma superprodução de capital que não consegue se realizar. Eis a contradição viva e seu desfecho final, o colapso, seja ele agudo ou crônico, como veremos adiante. O que vale salientar é que o capital tem limites para sua expansão e que esses limites indicam para o seu esgotamento e o seu fim.

Mas o capital cria contra-tendências para evitar a queda da taxa de lucro, a super produção e as crises. Essas contra-tendências são: 1) aumento do grau de exploração do trabalho; 2) redução dos salários; 3) baixa de preço dos elementos do capital; 4) superpopulação relativa; 5) comercio exterior e 6) aumento do capital em ações.

Ao utilizar esses mecanismos o capital conseguiu superar suas graves crises ao longo do século XIX. Isto foi possível até a grande crise do inicio do século XX, o crack de 1929. A partir desta crise o capital precisou criar mais um mecanismo para se salvar de seu colapso. Esse mecanismo foi a adoção das chamadas políticas keynesianas de intervenção do Estado na economia para garantir a continuidade do processo de acumulação do capital. Essa intervenção se deu principalmente através do gato públicos em obras de infra-estrutura, em gastos militares, no chamado complexo industrial-militar.

É a partir do final da Segunda Grande Guerra que o capital passa a adotar as políticas keynesianas com o objetivo de regular o capitalismo, evitando as crises e o colapso. A adoção dessas políticas keinesianas e o medo da ameaça do avanço da revolução socialista no mundo todo levam o capital a criar o que ficou conhecido como o Estado do Bem-Estar Social (Welfare State).

As origens do Welfare State remontam ao final do século XIX. O governo de Bismarck, na Alemanha foi um dos primeiros a utilizá-lo. Na sua origem o Welfare State surge como uma resposta dada pelo capital para frear o ímpeto revolucionário da classe trabalhadora européia.[6] Mas o Estado do Bem-Estar Social só se torna hegemônico no capitalismo depois da Segunda Guerra Mundial. Esse Estado tem como substancia a seguridade social, que garante uma serie de garantias políticas, sociais e econômicas para os trabalhadores. Entre elas estão as conquistas concernentes ao financiamento público consagradas ao ensino, aos serviços de saúde, às pensões e à indenização do emprego.

Vale ressaltar que essas conquistas são resultados da luta operária e do medo da ameaça da revolução socialista. Alem disso o Welfare State garante a estabilidade da acumulação capitalista, pelo menos entre 1945 e 1968, mais ou menos, período que fica conhecido como os “Anos Gloriosos” do capitalismo do século XX. Cabe ressalvar, no entanto, que esta experiência política-econômica, que permitiu uma significativa melhoria do nível de vida dos trabalhadores, ficou restrita aos países do chamado 1º mundo, excluindo, por isso, a maioria da humanidade.

Mas este período de prosperidade ininterrupta, principalmente para o capital, durou pouco e no final da década de sessenta entra em crise, demonstrando mais uma vez as limitações do sistema capitalista. Mas a crise do Welfare State reflete apenas a crise do capital, dessa vez numa dimensão estrutural. Os ideólogos neoliberais, entretanto, atribuem a crise do Estado do Bem-Estar ao fracasso das políticas econômicas de cariz keynesiana e à intervenção do Estado na economia. Como solução para esta crise, que é ao mesmo tempo de estagnação e de inflação, eles defendem as velhas receitas liberais, agora chamadas de neo, quer dizer, que somente o mercado regule a organização econômica da sociedade, como sua benevolente “mão invisível”. Os neoliberais, agora de volta a moda, atacam a intervenção estatal e recomendam a cartilha rezada pelos “Deus” mercado como solução para a crise econômica.

Esses economistas neoliberais, entretanto, só ficam na superfície do problema, aliás, como manda a tradição apologética. Acontece que a crise econômica e a crise do Welfare State são apenas a aparência do fenômeno, a sua manifestação mais visível. A essência desse fenômeno, ou seja, a causa da crise do Welfare State e de toda a economia capitalista desenvolvida, deve ser encontrada na própria crise da acumulação capitalista. E a crise de acumulação se deve, como já vimos, a lei da queda tendencial da taxa de lucro.

Desenvolvendo mais um pouco, é uma crise da acumulação da mais-valia mundial. Não passa da confirmação da lógica contraditória da produção e da reprodução capitalista. E o Estado neste novo contexto deixa de impedir a crise do capital. Deste modo o capital vai retomar as velhas formas para superar a queda tendencial da taxa de lucro desfazendo neste processo as conquistas trabalhistas do período dos “Anos Gloriosos”. Isto não acontece sem a resistência dos trabalhadores e neste mesmo período, final dos anos 1960, o mundo se encontra abalado por greves e revoltas de trabalhadores e estudantes que questionam a lógica exploradora do capital e sua ideologia individualista e consumista propagada pela forma keynesiana de organização política e socioeconômica. Podemos dizer que o capital é questionado em sua base sociometabólica. Infelizmente os trabalhadores perdem mais essa batalha para o capital e são obrigados a aceitar a imposição das políticas econômicas neoliberais.

A partir do inicio da década de 1970, o sistema do capital entra numa crise estrutural. Diferentemente das outras crises, onde o capital conseguia superar as crises expandindo sua acumulação para regiões inexploradas do planeta, agora ela o afeta em sua totalidade. É uma crise que atinge o capital já plenamente amadurecido, quer dizer, plenamente mundializado. Outra particularidade desta crise é que devido ao intenso desenvolvimento da técnica e da ciência aplicadas à produção, o capital variável passa a diminuir sua parte na composição orgânica do capital. O aumento descomunal da produtividade tende a solapar a base de acumulação do capital. A criação do valor e da mais-valia ficam seriamente comprometida. Neste sentido a razão de ser do capitalismo passa a enfrentar um obstáculo intransponível para continuar sua expansão.

Com este agravante, a diminuição da produção do valor e da mais-valia, o capital busca se valorizar como capital fictício na esfera financeira do capitalismo mundializado. É neste período que os paises desenvolvidos rompem com os acordo de Bretton Woods, que regulavam o movimento dos capitais a nível mundial. Ao romper com essa regulação, entre elas a câmbio fixo e a conversibilidade do dólar em ouro, os paises ricos, liderados pelos Estados Unidos deixam o caminho livre para livre mobilidade dos capitais, criando aquilo que Keynes chamou de capitalismo-cassino.

Com essa desregulamentação o capital retira seu dinheiro da esfera produtiva e passa a aplicá-lo na esfera financeira atrás de uma valorização maior e mais fácil do que a que ele encontrava na produção. A partir desse momento a especulação do capital mundializado passa a comandar hegemonicamente sua razão de ser e sua lógica de acumulação. O capital produtivo se torna refém do capital fictício e o capital ingressa numa crise estrutural crônica e permanente que se estende até os dias atuais.

O conhecido processo de globalização ou para sermos mais preciso, o processo de mundialização do capital, significa a expansão do modo de produção capitalista para todo mundo segundo sua própria lógica de acumulação, comandado, desta vez, pelos interesses do capital fictício, que agora subordina a produção à especulação.


Outra alternativa que o sistema do capital encontrou para tentar superar sua crise foi a utilização da taxa de utilização decrescente das mercadorias.[7] Esta taxa está relacionada aos avanços da produtividade e significa tornar descartáveis o mais rápido possível mercadorias que antes eram consideradas bens duráveis. Segundo Mészáros a taxa de utilização decrescente afeta de forma negativa todas as três dimensões fundamentais da produção e do consumo capitalistas, que são: 1) bens e serviços; 2) instalações e maquinaria; 3) força de trabalho.

Com relação ao primeiro, a tendência é aumentar a velocidade da circulação do capital para compensar as tendências mais destrutivas do capital. No segundo caso ela significa a sub-utilização crônica, ligado a uma pressão crescente, reagindo à própria tendência, encurtando o ciclo de amortização dos mesmos. Acompanha tudo isto a ideologia da “inovação tecnológica”, que sucateia maquinário totalmente novo após utilizá-lo muito pouco. E a ultima, a taxa de utilização decrescente da força de trabalho se manifesta na forma de desemprego crescente. Das três esta é a saída mais explosiva para o capital, pois a força de trabalho não é só um mero fator de produção, mas também massa consumidora vital para o ciclo da reprodução capitalista e da realização da mais-valia.

As duas primeiras formas da taxa de utilização decrescente podem produzir canais para a expansão do capital, mas a terceira forma permanece latente, com todos os seus riscos para o capital e o seu prejuízo para os trabalhadores. Mészáros relata este perigo para os trabalhadores:

“Só quando o potencial das duas primeiras dimensões – tal como manifestas em relação a (1) bens e serviços; e (2) instalações e maquinários – para afastar as contradições inerentes à taxa de utilização decrescente não conseguir um efeito suficientemente abrangente, somente então será ativado o selvagem mecanismo de expulsão em quantidades maciças de trabalho vivo do processo produção”.[8]

Como conseqüência do mecanismo da taxa de utilização decrescente, temos o que ficou conhecido como “desemprego estrutural”. Contraditoriamente, num primeiro momento o capital consegue superar sua crise aumentando sua rotação e lucratividade, mas num segundo momento temos o retorno da crise, causada pelo desemprego em massa, pela queda do consumo e, por conseguinte a superprodução e a queda da taxa de lucro.

Alem disso o capital criou mais uma alternativa para sua crise de acumulação: o complexo militar-industrial. Este complexo apresentou-se ao capital como o modo de combinar o máximo de expansão com a taxa de utilização decrescente mínima. Esse meio de solucionar a crise de superprodução já havia sido adotado antes da Primeira Guerra Mundial, mas sua adoção geral ocorreu somente após a Segunda Guerra Mundial. A grande inovação do complexo militar-industrial para o capitalismo é obliterar a diferença vital entre consumo e destruição. Mészáros analisa este complexo e sua principal função:

“O complexo militar-industrial não só aperfeiçoa os meios pelos quais o capital pode agora lidar com todas essas flutuações e contradições estruturais, mas também dá um salto quantitativo no sentido de que o alcance e o tamanho absoluto de suas operações rentáveis se tornam incomparavelmente maiores do que poderia ser concebido nos estágios anteriores dos desdobramentos capitalistas”.[9]

As conseqüências para a humanidade desta nova tentativa do capital de superar suas crises são catastróficas e ameaçam concretamente o futuro da humanidade. Os investimentos no complexo militar-industrial colocam no horizonte da sociedade a auto-reprodução destrutiva ampliada, que acontece tanto na produção de mercadorias no campo civil como também no campo militar. Esta solução que o capital encontrou coloca em risco a sobrevivência de todos os seres humanos, ou melhor, de todos os seres vivos do planeta.

Podemos concluir reforçando que a crise e o capital andam sempre juntos. Que a partir da década de 1970 o capital passa a viver uma crise estrutural que se estende até os nossos dias. As três dimensões fundamentais do capital-produção, consumo e circulação – exibem perturbações cada vez maiores. Essas perturbações atingem a função vital do capital e impedem o deslocamento das suas contradições.

O capital tem tentado administrar a crise estrutural, mas uma série de problemas tem impedido que ele consiga sucesso nessas tentativas. A novidade desta crise se resume nestes fatores: a) seu caráter é universal; b) seu alcance é global; c) sua escala de tempo é contínua e d) seu modo de se desdobrar é rastejante.[10] E os problemas que o capital tem encontrado são: 1) contradições internas do capital sob o controle do complexo industrial-militar e das transnacionais; 2) contradições sociais econômicas e políticas dos países pós-capitalistas, intensificando a crise do sistema do capital; 3) aumento das rivalidades entre os países capitalistas mais desenvolvidos; 4) dificuldade de manter o sistema neocolonial de dominação.[11]

Essas quatro categorias, como podemos ver nos dias que correm, tendem para intensificar e agravar os antagonismos existentes. E o capital e os Estados que o representam só conseguem atacar seus efeitos e não suas causas, pois isso colocaria em xeque a própria viabilidade do modo de produção capitalista. Podemos fechar concordando com a conclusão de Mészáros:

“O mais provável é ao contrário, continuarmos afundando cada vez mais na crise estrutural, mesmo que ocorram alguns sucessos conjunturais, como aqueles resultantes de uma relativa reversão positiva, no devido tempo, de determinantes meramente cíclicos da crise atual do capital”.[12]

A crise estrutural do capital nos ensina uma importante lição: dentro dos marcos do sistema do capital ela é insolúvel e, por isso, é preciso construir um caminho para além do capital, para garantir a continuidade da raça humana e de toda a vida.


[1] LUKÁCS, Georg. História e Consciência de Classe. Porto, Ed. Escorpião, 1974, p. 101..
[2] FAUSTO, Ruy. Marx: Lógica e Política I.São Paulo,Brasiliense,1983,p.28
[3] MARX, Karl. O Capital. Rio de Janeiro, Bertand Brasil, 1996. L.1, V. I, p. 171.
[4] MARX, Karl. O Capital. São Paulo, Difel, 1985. L.3, V. IV, p. 278.
[5] Idem, p. 305.
[6] BRUNHOFF, Suzanne. A Hora do Mercado. São Paulo, Ed. UNESP, 1991, p. 56.
[7] MÉSZÁROS, István. Para Além do Capital. São Paulo e Campinas, Ed. Boitempo e Unicamp, 2002, p. 634.
[8] Idem, p. 674.
[9] Idem, p. 690.
[10] Idem, p. 796.
[11] Idem, p. 808.
[12] Idem, p. 810.

segunda-feira, 2 de abril de 2012

Retorno àqueles dias “mal-ditos”

Jean Wyllys

Jornalista e linguista, é deputado federal pelo PSOL-RJ e integrante da frente parlamentar em defesa dos direitos LGBT. CARTA CAPITAL
A verdade sobre os porões de tortura, vôos da morte, assassinatos e sequestros para conter a resistência é certamente terrível, mas necessária. Temos direito a ela! Foto: Ag. O Globo

Eu nasci em 1974, quando o Brasil estava sob a ditadura do general Ernesto Geisel. Nasci na periferia miserável de Alagoinhas, cidade do interior da Bahia.
Quando me entendi por gente, lá pelos anos 1980, a ditadura ainda vigorava, mas lá, por aquelas bandas, não se fala em ditadura. Meus pais, meus tios e meus vizinhos – aquelas pessoas pobres em luta apenas pelo pão de cada dia – não falavam em ditadura.
E aquele comunicado da censura oficial que antecipava cada programa de tevê que eu via pela janela do único vizinho com aparelho em casa, aquele comunicado nada significava além de um alerta inócuo para mim e para os demais.
Só anos depois, já no final do ensino fundamental, pude perceber, pelos livros da biblioteca da casa paroquial (“Brasil: nunca mais”, o principal deles) que nós fazíamos parte da pátria mãe que dormia distraída enquanto era subtraída em “tenebrosas transações”, para citar Chico Buarque.
Aliás, por falar em Chico Buarque, a trilha sonora oficial daqueles “anos de chumbo” – que inclui, além de Buarque, Geraldo Vandré, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Gal Costa, Torquato Neto, Elis Regina e etc. – não era ouvida naquelas bandas.
O que se tocava nas poucas radiolas, autofalantes da “feira do pau” e na Rádio Emissora de Alagoinhas, eram artistas como Nelson Ned, Odair José, Agnaldo Timóteo, Paulo Sérgio, Cláudia Barroso, Waldick Soriano e Fernando Mendes, além, claro, de Roberto Carlos.
As verdades da ditadura – a censura, os conflitos, as torturas, os assassinatos, os exílios – não chegavam até nós, da mesma maneira que nossa verdade naqueles anos era – e é – ignorada pelos envolvidos na resistência à ditadura e responsável em parte pela construção da memória daquele período.
A memória é uma construção social e, sendo assim, pode cristalizar determinados aspectos de um tempo, em detrimento de outros que poderiam e podem ser muito importantes para se pensar o quadro político-social vigente naqueles anos (afinal, a visão de mundo das camadas populares, colocadas à margem do centro de decisão política, deve ter algo a nos dizer sobre a ditadura: elas não sabiam ou não queriam saber, ou tinham medo de saber ou eram simplesmente ignoradas em sua invisibilidade e subalternidade? Sabemos hoje que, durante a ditadura, o perigo rondava o conhecimento, e que, por isso, muitos oscilavam entre saber e esquecer).
Ora, o historiador francês Jacques Le Goff, afirma que é preciso interrogar-se sobre os esquecimentos.  “Devemos fazer o inventário dos arquivos do silêncio, e fazer a história a partir dos documentos e das ausências de documentos”.
Até onde se sabe, não existem documentos que recupere a memória do tratamento que os líderes dos movimentos revolucionários davam aos homossexuais (em especial às mulheres lésbicas) seja em seus “aparelhos”, seja nas prisões. Sendo assim, devemos trabalhar a partir dessa ausência e do silêncio sobre em torno desse assunto. Há muito para se dizer sobre aqueles dias “mal-ditos”.
A eleição da presidenta Dilma Rousseff – ela mesma uma vítima direta dos crimes da ditadura militar e agente da resistência ao terrorismo de estado praticado naqueles anos – abre um capítulo para a memória, que não consiste apenas em estabelecer uma verdade historiográfica daqueles crimes.
Tanto a verdade historiográfica quanto a temporada de julgamos que esperamos que se suceda à historiografia pressupõem uma construção de significados em um prazo longo (e não podemos ser ingênuos em acreditar que essa construção não resultará em conflito ideológico e de valor – vejam, por exemplos, a tagarelice do deputado e ex-militar Jair Bolsonaro, defendendo que se gozava de liberdade no período da ditadura; a ação de militares contra uma recente novela do SBT que tratou superficialmente daqueles dias “mal-ditos”; e o manifesto contrário à Comissão Nacional da Verdade assinado por mais de cem militares da reserva e seguido pela arrogante declaração do secretário-geral do Exército questionando a veracidade das torturas de que foi vítima a presidenta Dilma).
A verdade – ou verdades – sobre os porões de tortura, vôos da morte, assassinatos, sequestros, a desumanidade dos métodos dos repressores para conter a resistência é certamente terrível, sobretudo para quem sobreviveu aos fatos. Mas é necessária. Eu tenho direito a ela! Minha geração e as que vieram depois têm direito a ela!
A Comissão da Verdade, liberada do imediatismo dos fatos, poderá nos oferecer uma narrativa não unificadora, porque esta não seria desejável. Esperamos que todos os que escreveram aquelas páginas infelizes e sobreviveram a esse ponto de resgatá-las sejam ouvidos pela Comissão da Verdade.
Por isso, para garantir a lisura dos trabalhos da mesma e auxiliá-la ao mesmo tempo, um grupo de deputados da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara – do qual faço parte – decidiu instituir uma Subcomissão Parlamentar da Memória, Verdade e Justiça  que conta com  o coordenação da deputada Luiza Erundina. Assim que se noticiou a existência dessa subcomissão, chegou, ao meu gabinete, um exemplar do calhamaço “A verdade sufocada – a história que a esquerda não quer que o Brasil conheça”, escrito pelo coronel reformado Carlos Alberto Brilhante Ustra.
E eu já o li (criticamente, claro). Sabemos que tanto a Comissão Nacional da Verdade quanto a nossa subcomissão parlamentar não poderão reconstruir tudo, mas a utopia de tudo saber a respeito daquelas páginas infelizes de nossa história deve servir como um programa, um horizonte e uma advertência para o futuro.

Golpe de 64: 31 de março ou 1º de abril?

Deflagrado há 48 anos e encerrado há 27, o Golpe Civil-Militar de 1964 continua suscitando divergências no Brasil. Como todos os golpes e todas as ditaduras no mundo, teve seguidores e adversários e, ainda hoje, continua tendo defensores e detratores acerbos. Nesta semana, quando transcorre mais um de seus aniversários, têm ocorrido manifestações em diferentes lugares do país, umas comemorando seus feitos, outras os deplorando. Este jornal se coloca entre os que os deploram e registra aqui sua posição de modo claro.

Os anos de 1960 e 1970 foram um período de acirramentos das tensões políticas internacionais, com a guerra-fria chegando ao seu auge. A partir do muro de Berlim, EUA e URSS dividiam o mundo e o disputavam, perfilando nações e populações sob os rótulos da democracia liberal e do comunismo marxista. Dois grandes sistemas de organização social, econômica e política estavam em confronto aberto, ainda que não se estabelecesse um litígio armado direto entre as nações que se colocavam como líderes de suas expansões e campeãs de suas defesas.

Na impossibilidade do confronto direto das duas novas grandes potências, pois o equilíbrio de forças então existente fazia com que elas se temessem mutuamente e se armassem desesperadamente, os embates foram transferidos para a periferia do sistema mundial, no então chamado Terceiro Mundo: América Latina, Sul da Europa, Oriente Médio, Ásia e África. Ditaduras se estabeleceram em todos os continentes, principalmente nos países mais pobres e/ou nos social e economicamente mais desiguais.

Eram tempos também de efervescência, com os avanços social-democráticos e dos direitos civis dos negros, a explosão da juventude e do rock ‘n roll, a disseminação da pílula anticoncepcional e o início da afirmação do poder feminino. Nas Américas, ocorria a Revolução Cubana e a possibilidade de sua expansão por todo o continente, com a emergência de governos nacionalistas e progressistas. Em contrapartida, as ditaduras começaram a eclodir na região, iniciando-se pelo Brasil e expandindo-se, posteriormente, por toda a América do Sul e Central, quase sem exceção de países.

Em 31 de março/1º de abril de 1964, o general Olímpio Mourão Filho parte com suas tropas de Minas Gerais em direção ao Rio de Janeiro e dá início ao Golpe que iria manter os militares no poder durante 21 anos. O governo João Goulart, progressista e que pretendia promover as então chamadas “reformas estruturais”, como a reforma agrária, a reforma fundiária urbana, a industrialização independente e a distribuição de renda no país, foi deposto sob a acusação de se alinhar com as forças e a ideologia comunista.

Convocados pelas “marchas com Deus e pela família”, realizadas nas principais cidades brasileiras e lideradas por representantes da UDN (União Democrática Nacional), por bispos e padres católicos e lideranças conservadoras, os militares depuseram o presidente da República constitucionalmente eleito prometendo “restabelecer a ordem” e rapidamente devolver o comando do país aos civis, mas se encastelaram no poder. Promoveram desenvolvimento econômico acelerado, durante os anos do chamado “milagre econômico brasileiro” (1968/1973), com crescimento do PIB na casa dos 10% ao ano, mas prenderam, torturaram e mataram quem se atrevesse a oferecer qualquer tipo de resistência às suas atividades e aos seus comandos.

A violência começou, na verdade, antes do desenvolvimento econômico e se estendeu por muito tempo depois de o país ter caído em estagnação. Desde as primeiras semanas do governo golpista, políticos legalmente eleitos, bem como lideranças sindicais, estudantis e sociais foram presas e submetidas a inquéritos policiais-militares, tiveram seus direitos políticos cassados e foram proibidas de atuar politicamente pelo prazo de 10 anos. Foi inicialmente desmantelada a estrutura sindical de trabalhadores no país, que começara, nos anos de 1960, a sair da tutela do Estado e tornar-se independente. Desmantelou-se, a seguir, o movimento estudantil, com a invasão do Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE), a prisão de todas as suas principais lideranças e a proibição de ações políticas nas escolas e faculdades, com a extinção dos Centros Acadêmicos e a promulgação do Decreto 477, que punia com a expulsão e o impedimento de se matricular em escolas públicas no país durante três anos para os que se envolvessem em atividades políticas.

Sem alternativas de ação legal, a juventude, principalmente, começou a agir na clandestinidade. Muitos partidos políticos e organizações paramilitares de esquerda foram criadas, quase todas dissidentes do antigo Partido Comunista, já dividido, naquele momento em PCB e PCdoB. Multiplicaram-se grupos armados, de guerrilha urbana e rural. A repressão se sofisticou. No âmbito militar foram criados os órgãos de investigação e tortura policial-militar, com a Operação Bandeirantes (OBAN), em São Paulo, e as agências no interior de cada uma das forças armadas: o DOI-CODI, do Exército, o PARASAR, da Aeronáutica, e o CENIMAR, da Marinha, todos eles órgãos especializados na repressão à “subversão e ao terrorismo”. A Escola Superior de Guerra, sob inspiração norte-americana, elaborou a “ideologia de segurança nacional”. Criou-se a Operação Condor, para ação conjunta dos aparelhos repressivos de todas as ditaduras do Cone Sul.

Os que detinham o poder político e das armas prenderam e arrebentaram. Os que se encontravam na oposição defenderam-se como puderam. Uns, no exercício de um poder ditatorial, afirmavam que estavam salvando o país do perigo comunista e que produziam o desenvolvimento. Outros, na resistência à ditadura, se esforçavam para construir uma alternativa econômica, social e política ao capitalismo e sonhavam como o socialismo. Os primeiros reinaram soberanos durante 21 anos, sem prestar contas dos seus atos, fossem eles políticos, econômicos ou sociais. Nunca se apurou a corrupção no período, pois a imprensa estava sob censura e os partidos políticos e as organizações da sociedade civil foram impedidos de se manifestar livremente. Os segundos foram presos, se esconderam, se exilaram ou foram mortos.

Com a crise econômica do final dos anos de 1970 e do início dos anos de 1980, ocorre o desgaste do governo militar e de suas políticas, permitindo que a sociedade civil se reorganize. Conquista-se, primeiro, a partir de uma ampla mobilização nacional, a anistia para os presos e exilados políticos (1979) e, depois, com a Campanha das Diretas-Já e a votação no Colégio Eleitoral, elege-se Tancredo Neves e inicia-se (1985) a Nova República. Em 1988, com a nova Constituição Federal, instaura-se, efetivamente, um novo período democrático que ainda perdura.

Mesmo sob a democracia, nunca foram abertos os arquivos da ditadura e dos seus órgãos de repressão. Os que abusaram do poder ditatorial, que prenderam ilegalmente, que bateram, torturaram, mataram e desapareceram com corpos nunca foram julgados nem punidos. A anistia de 1979, na verdade, além de conquista dos movimentos de resistência à ditadura, foi também um ardil dos ditadores para se autoproteger, pois que anistiou também os que, protegidos pela força do arbítrio, se excederam na repressão dos que lhes faziam oposição.

Em todos os países do Cone Sul nos quais houve ditaduras igualmente repressoras durante os anos da guerra-fria já foram instaurados inquéritos para apuração de responsabilidades e recuperação da memória histórica. Apenas no Brasil as resistências perduram. Os militares da reserva e da ativa ainda barram a instalação da Comissão da Verdade. É este o motivo pelo qual se valeram do Clube Militar para divulgar um documento de críticas ao governo Dilma Rousseff e a duas de suas ministras (Maria do Rosário, dos Direitos Humanos e Eleonora Menunicci, da Secretaria de Políticas para as Mulheres). Mesmo repreendidos, os agentes da antiga repressão contra-atacaram. Divulgaram um segundo documento, que já detêm mais de duas mil assinaturas e que conta, inclusive, com o apoio explícito de generais da ativa.

Os militares que atuaram na repressão e aqueles que lhes são solidários por ideologia e/ou por espírito de corpo (corporativismo) não se conformam com a possibilidade de terem suas ações vasculhadas. Temem serem colocados no ridículo de terem que explicar as violências que cometeram. Argumentam que se vivia em um “estado de guerra” e que “houve baixas de ambos os lados”. Esquecem-se, no entanto, que eles detinham a força e o poder de Estado e que a maioria de seus opositores só detinha o poder da persuasão, sendo ínfima a minoria que possuía armas, quase todas obtidas por meio das ações clandestinas que deflagravam. Estes já foram punidos, além disso, pelas prisões, pelas torturas, pelos abusos a que foram submetidos e até pela morte. O desequilíbrio de forças era enorme, quase incomensurável. Os agentes repressores contavam com a impunidade e a cobertura “legal” e do sistema, o que os torna terroristas de Estado e, por este motivo, ainda mais imperiosa a necessidade de que seus atos sejam revelados. Um país que não purga os seus erros vive sob o risco permanente de repeti-los.

Não há porque comemorar o 31 de março/1º de abril. O ato realizado no Rio de Janeiro na quinta-feira (29), na porta do Clube Militar e a repressão policial que desencadeou, com antigos militares, de um lado, querendo exaltar o Golpe Militar de 1964, e estudantes e ativistas de partidos de esquerda, de outro, vilipendiando a ditadura, é exemplar da exacerbação de ânimos no Brasil hoje. Os militares precisam ser contidos, pois estão se insubordinando à presidenta Dilma Rousseff, sua comandante suprema e a quem devem obediência. Se não o forem, os atos de provocação aumentarão e, muito provavelmente, os confrontos se intensificarão, gerando um clima de insegurança que em nada contribui para a estabilidade democrática. Cabe, inclusive, aqui, uma pergunta: a desestabilização da democracia não será a intenção dos antigos agentes da força e do arbítrio?