Miguel Urbano Rodrigues
Embora
crescentemente desmentidos pela arqueologia, pela genética e pela
historiografia séria, os mitos de que se alimenta o sionismo continuam a
constituir a base em que assenta a reivindicação de legitimidade do
estado etnocrático, confessional, racista e colonialista de Israel. O
«Estado do Povo Judeu» assume-se como democrático. Mas a realidade nega a
lei fundamental aprovada pelo Knesset. Não pode ser democrático um
Estado que trata como párias de novo tipo 20 % da população do país, um
Estado nascido de monstruoso genocídio em terra alheia, um Estado cuja
prática apresenta matizes neofascistas.
Uma
chuva de insultos fustigou em Israel Shlomo Sand quando publicou um
livro cujo título - «Como foi inventado o povo judeu” * - desmonta mitos
bíblicos que são cimento do Estado sionista de Israel.
Professor de Historia Contemporânea na Universidade de Tel- Aviv,
ele nega que os judeus constituam um povo com uma origem comum e
sustenta que foi uma cultura especifica e não a descendência de uma
comunidade arcaica unida por laços de sangue o instrumento principal da
fermentação proto-nacional.
Para ele o «Estado judaico de Israel», longe de ser a concretização
do sonho nacional de uma comunidade étnica com mais de 4 000 anos, foi
tornado possível por uma falsificação da história dinamizada no seculo
XIX por intelectuais como Theodor Herzl.
Enquanto académicos israelenses insistem em afirmar que os judeus são um povo com um ADN próprio, Sand, baseado numa documentação exaustiva, ridiculariza essa tese acientífica.
Enquanto académicos israelenses insistem em afirmar que os judeus são um povo com um ADN próprio, Sand, baseado numa documentação exaustiva, ridiculariza essa tese acientífica.
Não há aliás pontes biológicas entre os antigos habitantes dos reinos da Judeia e de Israel e os judeus do nosso tempo.
O mito étnico contribuiu poderosamente para o imaginário cívico. As suas raízes mergulham na Bíblia, fonte do monoteísmo hebraico. Tal como a Ilíada, o Antigo Testamento não é obra de um único autor. Sand define a Bíblia como «biblioteca extraordinária» que terá sido escrita entre os séculos VI e II antes da Nossa Era. O mito principia com a invenção do «povo sagrado» a quem foi anunciada a terra prometida de Canaã.
O mito étnico contribuiu poderosamente para o imaginário cívico. As suas raízes mergulham na Bíblia, fonte do monoteísmo hebraico. Tal como a Ilíada, o Antigo Testamento não é obra de um único autor. Sand define a Bíblia como «biblioteca extraordinária» que terá sido escrita entre os séculos VI e II antes da Nossa Era. O mito principia com a invenção do «povo sagrado» a quem foi anunciada a terra prometida de Canaã.
Carecem de qualquer fundamento histórico a interminável viagem de
Moisés e do seu povo rumo à Terra Santa e a sua conquista posterior.
Cabe lembrar que o actual território da Palestina era então parte
integrante do Egipto faraónico.
A mitologia dos sucessivos exílios, difundida através dos séculos,
acabou por ganhar a aparência de verdade histórica. Mas foi forjada a
partir da Bíblia e ampliada pelos pioneiros do sionismo.
As expulsões em massa de judeus pelos Assírios são uma invencionice. Não há registo delas em fontes históricas credíveis.
O grande exilio da Babilónia é tão falso como o das grandes diásporas. Quando Nabucodonosor tomou Jerusalém destruiu o Templo e expulsou da cidade um segmento das elites. Mas a Babilonia era há muito a cidade de residência, por opção própria, de uma numerosa comunidade judaica. Foi ela o núcleo da criatividade dos rabinos que falavam aramaico e introduziram importantes reformas na religião mosaica. Sublinhe-se que somente uma pequena minoria dessa comunidade voltou à Judeia quando o imperador persa Ciro conquistou Jerusalém no séc. VI antes da Nossa Era.
O grande exilio da Babilónia é tão falso como o das grandes diásporas. Quando Nabucodonosor tomou Jerusalém destruiu o Templo e expulsou da cidade um segmento das elites. Mas a Babilonia era há muito a cidade de residência, por opção própria, de uma numerosa comunidade judaica. Foi ela o núcleo da criatividade dos rabinos que falavam aramaico e introduziram importantes reformas na religião mosaica. Sublinhe-se que somente uma pequena minoria dessa comunidade voltou à Judeia quando o imperador persa Ciro conquistou Jerusalém no séc. VI antes da Nossa Era.
Quando os centros da cultura judaica de Babilonia se desagregaram,
os judeus emigram para a Bagdad abássida e não para a «Terra Santa».
Sand dedica atenção especial aos «Exílios» como mitos fundadores da identidade étnica.
Sand dedica atenção especial aos «Exílios» como mitos fundadores da identidade étnica.
As duas «expulsões» dos judeus no período Romano, a primeira por
Tito e a segunda por Adriano, que teriam sido o motor da grande
diáspora, são tema de uma reflexão aprofundada pelo historiador
israelense.
Os jovens judeus aprendem nas escolas que «a nação judaica» foi
exilada pelos Romanos apos a destruição do II Templo por Tito em 70, e
posteriormente, por Adriano, em 132. Por si só o texto fantasista de
Flavius Joseph, testemunha da revolta dos zelotas, retira credibilidade a
essa versão, hoje oficial.
Segundo ele, os romanos massacraram então 1 100 000 judeus e
prenderam 97 000.Isso numa época em que a população total da Galileia
era segundo os demógrafos atuais muito inferior a meio milhão…
As escavações arqueológicas das últimas décadas em Jerusalém e na
Cisjordânia criaram aliás problemas insuperáveis aos universitários e
teólogos sionistas que «explicam» a história do povo judeu tomando a
Torah e a palavra dos Patriarcas como referências infalíveis.
Os desmentidos da arqueologia perturbaram os historiadores. Ficou provado que Jericó era pouco mais do que uma aldeia sem as poderosas muralhas que a Bíblia cita. As revelações sobre as cidades de Canaã alarmaram também os rabinos. A arqueologia moderna sepultou o discurso da antropologia social religiosa.
Os desmentidos da arqueologia perturbaram os historiadores. Ficou provado que Jericó era pouco mais do que uma aldeia sem as poderosas muralhas que a Bíblia cita. As revelações sobre as cidades de Canaã alarmaram também os rabinos. A arqueologia moderna sepultou o discurso da antropologia social religiosa.
Em Jerusalém não foram encontrados sequer vestígios das grandiosas
construções que segundo o Livro a transformaram no seculo X, a época
dourada de David e Salomão, na cidade monumental do «povo de Deus» que
deslumbrava quantos a conheceram. Nem palácios nem muralhas, nem
cerâmica de qualidade.
O desenvolvimento da tecnologia do carbono 14 permitiu uma
conclusão. Os grandes edifícios da região Norte não foram construídos na
época de Salomão, mas no período do reino de Israel.
«Não existe na realidade nenhum vestígio - escreve Shlomo Sand - da
existência desse rei lendário cuja riqueza é descrita pela Bíblia em
termos que fazem dele quase o equivalente dos poderosos reis da
Babilonia e da Pérsia». «Se uma entidade política existiu na Judeia do
seculo X antes da Nossa Era, acrescenta o historiador, somente poderia
ser uma microrealeza tribal e Jerusalém apenas uma pequena cidade
fortificada».
É também significativo que nenhum documento egípcio refira a «conquista» pelos judeus de Canaã, território que então pertencia ao faraó.
É também significativo que nenhum documento egípcio refira a «conquista» pelos judeus de Canaã, território que então pertencia ao faraó.
O SILENCIO SOBRE AS CONVERSÕES
A historiografia oficial israelense, ao erigir em dogma a pureza da
raça, atribui a sucessivas diásporas a formação das comunidades judaicas
em dezenas de países.
A Declaração de Independência de Israel afirma que, obrigados ao
exilio, os judeus esforçaram-se ao longo dos seculos por regressar ao
país dos seus antepassados,
Trata-se de uma mentira que falsifica grosseiramente a História.
Trata-se de uma mentira que falsifica grosseiramente a História.
A grande diáspora é ficcional, como as demais. Apos a destruição de
Jerusalém e a construção de Aelia Capitolina somente uma pequena minoria
da população foi expulsa. A esmagadora maioria permaneceu no país.
Qual a origem então dos antepassados de uns 12 milhões de judeus hoje existentes fora de Israel?
Na resposta a essa pergunta, o livro de Shlomo Sand destrói
simultaneamente o mito da pureza da raça, isto é da etnicidade judaica.
Uma abundante documentação reunida por historiadores de prestígio mundial revela que nos primeiros séculos na Nossa Era houve maciças conversões ao judaísmo na Europa, na Asia e na Africa.
Uma abundante documentação reunida por historiadores de prestígio mundial revela que nos primeiros séculos na Nossa Era houve maciças conversões ao judaísmo na Europa, na Asia e na Africa.
Três delas foram particularmente importantes e incomodam os teólogos israelenses.
O Alcorão esclarece que Maomé encontrou em Medina, na fuga de Meca,
grandes tribos judaicas com as quais entrou em conflito, acabando por
expulsá-las. Mas não esclarece que no extremo Sul da Península Arábica,
no atual Iémen, o reino de Hymar adotou o judaísmo como religião
oficial. Cabe dizer que chegou para ficar. No seculo VII o Islão
implantou-se na região, mas, transcorridos treze seculos, quando se
formou o Estado de Israel, dezenas de milhares de iemenitas falavam o
árabe, mas continuavam a professar a religião judaica. A maioria emigrou
para Israel onde, aliás, é discriminada.
No Imperio Romano, o judaísmo também criou raízes, mesmo na Itália. O
tema mereceu a atenção do historiador Díon Cassius e do poeta Juvenal.
Na Cirenaica, a revolta dos judeus da cidade de Cirene exigiu a mobilização de várias legiões para a combater.
Mas foi sobretudo no extremo ocidental da África que houve
conversões em massa à religião rabínica. Uma parcela ponderável das
populações berberes aderiu ao judaísmo e a elas se deve a sua introdução
no Al Andalus.
Foram esses magrebinos que difundiram na Península o judaísmo, os
pioneiros dos sefarditas que, apos a expulsão de Espanha e Portugal, se
exilaram em diferentes países europeus, na Africa muçulmana e na
Turquia.
Mais importante pelas suas consequências foi a conversão ao judaísmo
dos Khazars, um povo nómada turcófono, aparentado com os hunos, que,
vindo do Altai, se fixou no seculo IV nas estepes do baixo Volga.
Os Khazars, que toleravam bem o cristianismo, construíram um
poderoso estado judaico, aliado de Bizâncio nas lutas do Império Romano
do Oriente contra os Persas Sassânidas.
Esse esquecido império medieval ocupava uma área enorme, do Volga à
Crimeia e do Don ao atual Uzbequistão. Desapareceu da Historia no seculo
XIII quando os Mongóis invadiram a Europa, destruindo tudo por onde
passavam. Milhares de Khazars, fugindo das Hordas de Batu Khan,
dispersaram-se pela Europa Oriental. A sua principal herança cultural
foi inesperada. Grandes historiadores medievalistas como Renan e Marc
Bloch identificam nos Kahzars os antepassados dos asquenazes cujas
comunidades na Polonia, na Rússia e na Roménia viriam a desempenhar um
papel fulcral na colonização judaica da Palestina.
UM ESTADO NEOFASCISTA
Segundo Nathan Birbaum,o intelectual judeu que inventou em 1891 o
conceito de sionismo, é a biologia e não a língua e a cultura quem
explica a formação das nações. Para ele, a raça é tudo. E o povo judeu
teria sido quase o único a preservar a pureza do sangue através de
milénios. Morreu sem compreender que essa tese racista, a prevalecer,
apagaria o mito do povo sagrado eleito por Deus.
Porque os judeus são um povo filho de uma cadeia de mestiçagens. O que lhes confere uma identidade própria é uma cultura e a fidelidade a uma tradição religiosa enraizada na falsificação da Historia.
Nos passaportes do Estado Judaico de Israel não é aceite a na
cionalidade israelense. Os cidadãos de pleno direito escrevem «judeu». Os palestinos devem escrever «árabe», nacionalidade inexistente.
Porque os judeus são um povo filho de uma cadeia de mestiçagens. O que lhes confere uma identidade própria é uma cultura e a fidelidade a uma tradição religiosa enraizada na falsificação da Historia.
Nos passaportes do Estado Judaico de Israel não é aceite a na
cionalidade israelense. Os cidadãos de pleno direito escrevem «judeu». Os palestinos devem escrever «árabe», nacionalidade inexistente.
Ser cristão, budista, mazdeísta, muçulmano, ou hindu resulta de uma
opção religiosa, não é nacionalidade. O judaísmo também não é uma
nacionalidade.
Em Israel não há casamento civil. Para os judeus, é obrigatório o casamento religioso, mesmo que sejam ateus.
Essa aberração é inseparável de muitas outras num Estado confessional, etnocracia liberal construída sobre mitos, um Estado que trocou o yiddish, falado pelos pioneiros do «regresso a Terra Santa», pelo sagrado hebraico dos rabinos, desconhecido do povo da Judeia que se expressava em aramaico, a língua em que a Bíblia foi redigida na Babilónia e não em Jerusalém.
Essa aberração é inseparável de muitas outras num Estado confessional, etnocracia liberal construída sobre mitos, um Estado que trocou o yiddish, falado pelos pioneiros do «regresso a Terra Santa», pelo sagrado hebraico dos rabinos, desconhecido do povo da Judeia que se expressava em aramaico, a língua em que a Bíblia foi redigida na Babilónia e não em Jerusalém.
O «Estado do Povo Judeu» assume-se como democrático. Mas a realidade
nega a lei fundamental aprovada pelo Knesset. Não pode ser democrático
um Estado que trata como párias de novo tipo 20 % da população do país,
um Estado nascido de monstruoso genocídio em terra alheia, um Estado
cuja prática apresenta matizes neofascistas.
O livro de Shlalom Sand sobre a invenção do Povo Judeu é, além de um
lúcido ensaio histórico, um ato de coragem. Aconselho a sua leitura a
todos aqueles para quem o traçado da fronteira da opção de esquerda
passa hoje pela solidariedade com o povo mártir da Palestina e a
condenação do sionismo.
_
Vila Nova de Gaia, 31 de Dezembro de 2012~
_
Vila Nova de Gaia, 31 de Dezembro de 2012~
*Shlomo Sand, «Comment fut inventé le peuple juif» Flammarion, Paris 2010