A
maior fraude com dinheiro público da história do Rio Grande do Sul
carrega nos ombros o sobrenome ilustre de Germano Rigotto. O irmão do
ex-governador gaúcho, Lindomar, brilha como o principal implicado entre
as 22 pessoas e 11 empresas denunciadas pelo Ministério Público e
arroladas na CPI da Assembléia gaúcha que investigou há 14 anos uma
milionária falcatrua na construção de 11 subestações da Companhia
Estadual de Energia Elétrica (CEEE). Foi uma tungada, em valores
corrigidos, de aproximadamente 800 milhões de reais – quase 15 vezes o
valor do mensalão do governo Lula, três vezes o valor dos desvios
atribuídos ao clã Maluf em São Paulo, cerca de 20 vezes o valor apurado
no escândalo do Detran que expôs a governadora gaúcha Yeda Crusius a um
pedido de impeachment.
Esta história foi contada em detalhes, em 2001, por um pequeno
jornal de Porto Alegre, com tiragem de apenas cinco mil exemplares numa
capital com quase 1,5 milhão de habitantes – e está recontada, a partir
desta semana, numa edição extra do JÁ que chega às bancas e no seu site.
O JÁ é um bravo mensário que sobrevive há 24 anos pela
teimosa resistência de seu editor, Elmar Bones da Costa, nascido há 65
anos em Santana do Livramento, cidade gaúcha no limite com o Uruguai,
de onde ele trouxe a rebeldia indomável do fronteiriço. Ao longo de 40
anos de carreira, Bones construiu com talento uma sólida e reconhecida
biografia na imprensa nacional que passa pelas redações de Veja, Gazeta Mercantil, Jornal do Brasil, O Estado de S.Paulo, IstoÉ e Folha da Manhã.
Seu troféu mais lustroso, porém, é o CooJornal, um mensário
editado pela extinta Cooperativa dos Jornalistas de Porto Alegre
(1976-1983) nos duros anos de chumbo da ditadura. Era um jornal de
reflexão sobre a imprensa e seus profissionais, que abria espaço para a
memória e a história recente do país, contada por intelectuais de peso
e cores que não tinham lugar na imprensa tradicional. Em 1980, ainda em
plena ditadura, Bones publicou um documento sigiloso do Exército em que
os generais faziam uma dura autocrítica à atuação de suas tropas na
repressão às guerrilhas do Vale da Ribeira e do Araguaia. Os militares
não gostaram e ele, junto com três colegas do CooJornal, foi condenado a 18 meses de prisão. Gramou 15 dias de cadeia e foi libertado com sursis.
Duas mortes
A mesma intolerância dos generais da ditadura recrudesceu, depois,
com os Rigotto da democracia. A família sentiu-se ultrajada pela
primeira página da edição 287 de maio de 2001 do JÁ, que
anunciava: "O Caso Rigotto – Um golpe de US$ 65 milhões e duas mortes
não esclarecidas". Três meses depois, a matriarca da família, Julieta
Vargas Rigotto, mãe de Lindomar e de Germano, entrou na Justiça com
duas ações. Uma pelo Código Penal contra o jornalista que assina a
reportagem, Elmar Bones, acusado de calúnia e difamação. Outra pela Lei
de Imprensa contra a editora do JÁ, pedindo indenização por dano moral.
Nos dois anos seguintes, Bones ganhou todas as ações contra ele, em
todas as instâncias, e o processo foi arquivado. Mas, em dezembro de
2003, a Vara Cível do Tribunal de Justiça condenou o JÁ ao
pagamento de uma indenização que hoje alcança 54 mil reais, penhorando
seus bens para cumprir a decisão. Desde agosto de 2009 um perito da
Justiça vasculha mensalmente as conta do jornal para bloquear 20% de
sua receita bruta. Assim, estranhamente, uma mesma reportagem gerou na
Justiça duas sentenças díspares, contraditórias: uma absolvendo por
unanimidade, outra condenando.
O pequeno mensário, que já teve 22 jornalistas e uma dezena de
estagiários e colaboradores na Redação de uma ampla casa alugada no
bairro do Bonfim, hoje está reduzido a Bones e sua companheira,
Patrícia Marini, também jornalista, uma estagiária, uma secretária,
dois computadores, um telefone e uma dezena de contas atrasadas,
acuados em duas salas pequenas do antigo prédio na avenida Borges de
Medeiros, no centro da cidade, onde funciona a Associação Riograndense
de Imprensa (ARI), que até hoje não se manifestou sobre o caso Rigotto
vs. JÁ. Assim, a ação de 54 mil reais de uma veneranda mãe que
se diz injuriada está asfixiando, aos poucos, um destemido jornal
nanico que ousou contar a verdade sobre uma quadrilha, identificada
pela CPI e pelo Ministério Público, que roubou 800 milhões de reais do
povo gaúcho. Dona Julieta Rigotto, aos 88 anos de vida, está matando um
jornal alternativo que ainda não atingiu seus tenros 25 anos de
existência. E tudo disso com o aval da Justiça.
A pequena editora de Bones, além das 396 edições do JÁ,
publica uma revista mensal e quatro guias de bairro e ostenta 35
títulos de livros publicados. Ganhou oito prêmios ARI, o mais
importante do Rio Grande do Sul, e em 2004, superando os grandes
jornais e revistas do centro do país, faturou a categoria principal do
maior prêmio do jornalismo brasileiro, o Esso, com "A tragédia de
Felipe Klein" – um texto dramático, arrebatador do repórter Renan
Antunes de Oliveira sobre a vida e morte de um jovem e atormentado
suicida de Porto Alegre.
A reportagem de quatro páginas de 2001 que tanto incomodou os
Rigotto é outra vencedora: conquistou o prêmio daquele ano da hoje
silente ARI e o valioso Prêmio Esso Regional, carimbo de sua qualidade
e relevância jornalística. A cirúrgica manchete do jornal – "O Caso
Rigotto – Um golpe de US$ 65 milhões e duas mortes não esclarecidas" –
expressava a mais pura verdade. O golpe era aquele destrinchado na CPI
da CEEE.
Alta voltagem
A primeira morte era de uma garota de programa, Andréa Viviane
Catarina, 24 anos, conhecida nas boates da capital como "Amanda". No
fim da tarde de 29 de setembro de 1998, ela despencou, nua, do 14º
andar do Solar Meridien, um prédio na rua Duque de Caxias, no centro de
Porto Alegre, a duas quadras do palácio que Germano Rigotto ocuparia
cinco anos mais tarde.
O dono do apartamento de onde caiu Andréa era o irmão do futuro
governador, Lindomar Rigotto, que estava em casa na hora do incidente.
À polícia ele contou que a garota tinha bebido uísque e ingerido
cocaína. Os exames de laboratório não encontraram vestígios de álcool
ou droga no sangue da jovem. A autópsia indicou que a vítima
apresentava três lesões – duas nas costas, uma no rosto – sem ligação
com a queda, indicando que ela estava ferida antes de cair. Três meses
depois, Rigotto foi denunciado à Justiça por homicídio culposo e
omissão de socorro. No relatório, o delegado Cláudio Barbedo cita o
depoimento de uma testemunha descrevendo o réu como "usuário e
traficante de cocaína".
A segunda morte, 142 dias depois, era a do próprio Lindomar Rigotto.
Então dono da boate Ibiza, na praia de Atlântida, a casa mais badalada
do litoral gaúcho, ele fechava o balanço do último baile do Carnaval de
1999, que animou sete mil foliões até o amanhecer daquela Quarta-Feira
de Cinzas, 17 de fevereiro. Cinco homens armados irromperam ali, no
momento em que Rigotto e seu gerente contavam a renda. Os ladrões
botaram o dinheiro numa sacola e fugiram, cantando pneu. Rigotto saiu
em perseguição no seu Gol branco e levou um tiro acima do olho. Morreu
a caminho do hospital, aos 47 anos. A bala fatal acabou arquivando o
processo pela morte da garota, mas reavivou o mistério em torno da
fraude milionária da CEEE.
Afundada em dívidas de quase 1,8 bilhão de dólares, a estatal gaúcha
de energia encontrava dificuldades para conseguir os 142 milhões de
dólares necessários para as subestações que iriam gerar 500 mil
quilowatts para 51 pequenas e médias cidades do Rio Grande. O então
governador Pedro Simon, preocupado com a situação pré-falimentar da
empresa, tinha ordenado austeridade total. Até que, em março de 1987,
criou-se o cargo de "assistente da diretoria financeira" para acomodar
Lindomar Rigotto. "Era um pleito político da base do PMDB em Caxias do
Sul", confessou na CPI o secretário de Minas e Energia da época,
Alcides Saldanha. O líder do governo Simon na Assembléia e chefe da
base serrana era o deputado caxiense Germano Rigotto.
Treze pessoas ouvidas pela CPI apontaram Lindomar como "o verdadeiro
gerente das negociações" com os dois consórcios, agilizando em apenas
oito dias a burocracia que se arrastava havia meses. Os contratos nº
1.000 e nº 1.001 foram assinados em dezembro numa solenidade festiva no
Palácio Piratini pelo governador e pelo secretário. Logo após a
assinatura, pagamentos foram antecipados, contrariando as normas
explícitas baixadas por Simon para vigiar de perto as contas da
estatal.
Eram documentos de alta voltagem financeira de uma estatal quase
falida. Tanto que a CEEE teve que recorrer três meses depois a um
empréstimo de 50 milhões de dólares do Banco do Brasil, dinheiro
captado por sua agência no paraíso fiscal de Nassau, nas ilhas Bahamas.
Apesar da importância em dinheiro, o presidente da estatal, Osvaldo
Baumgarten, e o secretário de Minas e Energia confessaram candidamente
na CPI que não leram a papelada que assinaram. "Eu não tinha condições
de ler todos os contratos firmados pela CEEE", defendeu-se Alcides
Saldanha, mais tarde ministro dos Transportes do governo Fernando
Henrique Cardoso.
Uma investigação da área técnica da CEEE percebeu que havia
problemas na papelada – documentos adulterados, folhas numeradas a
lápis, licitação sem laudo técnico provando a necessidade da obra. Em
fins de 1989, Rigotto decidiu sair para cuidar da "iniciativa privada",
dividindo o controle com o irmão Julius do Ibiza Club, uma rede de
quatro casas noturnas no Rio Grande e Santa Catarina. A sindicância
interna na CEEE recomendou a revisão dos contratos, mas nada foi feito.
Conluio e papelão
A recomendação chegou ao governo seguinte, o de Alceu Collares (PDT)
e à sucessora de Saldanha na secretaria de Minas e Energia, chamada
Dilma Rousseff. Ela ficou eletrificada com o que leu: "Eu nunca tinha
visto nada igual", diria Dilma, pouco depois de botar o dedo na tomada
e pedir uma nova investigação. Ela não falou mais no assunto porque, em
nome da santa governabilidade, o PDT de Collares precisava dos votos do
PMDB de Rigotto para aprovar seus pleitos na Assembléia. Mesmo assim,
antes de deixar a secretaria, em dezembro de 1994, Dilma Rousseff teve
o cuidado de encaminhar o resultado da sindicância para a Contadoria e
Auditoria Geral do Estado (CAGE), que passou a rastrear as fagulhas da
CEEE com auditores do Tribunal de Contas do Estado (TCE) e do
Ministério Público.
O tamanho apurado da fraude tinha níveis de tensão diferentes em
reais ou dólares, mas dava o mesmo choque: 65 milhões de dólares
segundo a CAGE, ou 78,9 milhões de reais de acordo com o Ministério
Público.
O deputado Vieira da Cunha, hoje líder da bancada do PDT na Câmara
Federal, propôs em 1995 a CPI que jogaria mais luzes sobre a fraude na
CEEE. Vinte e cinco auditores quebraram sigilos bancários, fiscais e
patrimoniais dos envolvidos. Em 13 depoimentos, Lindomar Rigotto foi
apontado como a figura central do esquema, acusação reforçada pelo
chefe dele na CEEE, o diretor-financeiro Silvino Marcon. A CPI
constatou que os vencedores, gerenciados por Rigotto, apresentaram
propostas "em combinação e, talvez, até ao mesmo tempo e pelas mesmas
pessoas". Os dois consórcios apresentaram propostas para dois
subconjuntos, B1 e B2.
O JÁ de Elmar Bones lembrou:
"Apurados os vencedores, constatou-se que o consórcio Sulino venceu
todas as subestações do grupo B2 e nenhuma do B1. Em compensação, o
Conesul venceu todas as obras do B1 e nenhum do B2. A diferença entre
as propostas dos dois consórcios é de apenas 1,4%".
A CPI foi ainda mais chocante:
"É forçoso concluir pela existência de conluio entre as empresas
interessadas que, se organizando através de consórcios, acertaram a
divisão das obras entre si, fraudando dessa forma a licitação".
A quebra de sigilo bancário de Rigotto revelou em sua conta um
crédito de 1,170 milhão de reais, de fonte não esclarecida. O diretor
Silvino Marcon justificou à CPI os 156 mil reais encontrados em sua
conta particular como sendo "sobras da campanha de 1986".
O relatório final da CPI caiu nas mãos de outro caxiense, que não poupou ninguém, apesar do parentesco. O petista Pepe
Vargas, que foi prefeito de Caxias e hoje é deputado federal pelo
Partido dos Trabalhadores, é primo de Lindomar e Germano Vargas
Rigotto. "De tudo o que se apurou, tem-se como comprovada a prática de
corrupção passiva e enriquecimento ilícito de Lindomar Vargas Rigotto",
escreveu o primo Pepe no relatório final.
Pela primeira vez, entre as 139 CPIs criadas no estado do Rio Grande
do Sul desde 1947, eram apontados os corruptos e os corruptores. Além
de Lindomar Rigotto e outras 12 pessoas, a Assembléia Legislativa
gaúcha aprovou o indiciamento pela CPI de 11 empresas, sem poupar nomes
poderosos como os da Alstom, Camargo Corrêa, Brown Boveri, Coemsa,
Sultepa e Lorenzetti. As 260 caixas de papelão da CPI foram remetidas
no final de 1996 ao Ministério Público, transformando-se no processo n°
011960058232 da 2ª Vara Cível da Fazenda Pública em Porto Alegre. Os
autos somam 30 volumes e 80 anexos e envolvem 41 réus – 12 empresas e
29 pessoas físicas. E tudo isso corre em segredo de Justiça.
Coisa de mãe
Essa história incrível, contada sem peias pelo jornal nanico de
Elmar Bones, parece também um segredo de imprensa. Nenhum dos grandes
veículos de comunicação do Rio Grande do Sul recontou o caso, o mais
vultoso entre os 200 processos abertos pelo Ministério Público nos
últimos 15 anos. Menos atenção ainda provocaram as duras reações
judiciais da família Rigotto, que podem matar o único jornal que se
atreveu a jogar luz sobre a milionária treva financeira que se abateu
sobre a CEEE.
O ex-governador Germano Rigotto costuma apregoar aos amigos suas
boas relações com os dois maiores grupos de mídia do Rio Grande – a
Caldas Júnior (jornal Correio do Povo, rádio Guaíba e Rede Record) e a RBS (jornal Zero Hora,
rádio Gaúcha e rede RBS, retransmissora da Globo). Isso não impediu,
porém, que a brava Julieta Vargas Rigotto processasse a TV-COM, o canal
comunitário da RBS, por ter classificado a morte do filho Lindomar na
praia como "queima de arquivo". Ela ganhou na Justiça, em 2003, o
direito de receber 150 salários mínimos, com juros, pela ofensa que
remetia o fim violento do filho à morte da garota e aos
curtos-circuitos contábeis da CEEE.
Quando perguntado diretamente sobre o absurdo dessa situação, o
ex-governador Germano Rigotto refugia-se na saia materna: "Não tenho
nada a ver com isso. É coisa da minha mãe", manda dizer o irmão do réu
central da maior fraude da história gaúcha, escapulindo da
responsabilidade de um caso de marcantes implicações políticas, não
filiais.
Diante da primeira ação de dona Julieta na Justiça, o promotor
Ubaldo Alexandre Licks Flores rebateu o pedido de processo, em novembro
de 2002:
"[não houve] qualquer intenção de ofensa à honra do falecido Lindomar Rigotto. Por outro lado é indiscutível que os três temas [a CEEE e as duas mortes] estavam e ainda estão impregnados de interesse público".
Duas semanas depois, a juíza Isabel de Borba Luca, da 9ª Vara Criminal de Porto Alegre, deu a sentença que absolvia Bones:
"(...) analisando os três tópicos da reportagem conclui-se pela
inexistência de dolo (...) em nenhum momento tem por intenção ofender
(...) não se afastou da linha narrativa (...) teve por finalidade o
interesse público".
Em agosto do ano seguinte, por unanimidade dos sete votos, os
desembargadores do Tribunal de Justiça negaram o recurso da bravíssima
dona Julieta. E o caso foi encerrado na área criminal.
Andou e prosperou, porém, na área cível. Em dezembro de 2003, o
relatório do desembargador Luiz Ary Vessini de Lima transbordava
emoção:
"Não há como afastar a responsabilidade da ré pelas matérias
veiculadas, que atingiram negativamente a memória do falecido, o que
certamente causou tristeza, angústia e sofrimento à mãe do mesmo
(...)".
E assim acabou condenado o JÁ e seu editor, que recorda ao Observatório da Imprensa a falta de simetria do processo atual e da cadeia que levou pela publicação de documentos da repressão antiguerrilha.
Fala Elmar Bones:
"A sentença que nos condenou, agora, é uma piada. O processo de 1980
era um absurdo só explicável num regime ditatorial. Os ditos
`documentos sigilosos´ eram relatórios de campo sobre ações do Exército
no combate à guerrilha, narrando fatos ocorridos já havia mais de dez
anos e que só tinham importância porque, na época em que se deram, a
censura não permitiu que fossem noticiados. Essa ação de agora é mais
absurdo ainda porque estamos em pleno regime democrático e a Justiça
não conseguiu apontar nenhum erro ou inverdade na reportagem sobre o
assassinato de Lindomar Rigotto. Nosso objetivo com ela era mostrar que
Lindomar, assassinado em circunstâncias duvidosas, era o principal
implicado em dois outros crimes não esclarecidos – a morte de uma
prostituta e o desfalque na CEEE, o maior já ocorrido no Sul e que está
encoberto pelo segredo de Justiça. Há 14 anos foram apontados os
corruptores e os corruptos e até agora ninguém foi punido. Só o JÁ está pagando o pato."
Voltar ou morrer
Na terça-feira (24/11) em que se divulga a edição nº 565 deste Observatório completam-se 116 dias de censura sobre o jornal O Estado de S.Paulo,
impedido por decisão de um juiz amigo e camarada do senador José Sarney
de publicar os dados oficiais da "Operação Boi Barrica", da Polícia
Federal, que investigou seu filho, o empresário Fernando Sarney,
flagrado em grampos telefônicos e conversas que induzem ao tráfico de
influência no setor público. "Não tenho nada a ver com isso. É coisa do
meu filho", diz o presidente do Senado Federal.
Na mesma terça-feira completam-se 112 dias que um perito da Justiça devassa, lá dentro da Redação, as contas do jornal JÁ
para garantir a indenização de dona Julieta Rigotto, que se diz
caluniada pela mera repetição de detalhes escabrosos na gestão do
dinheiro público de uma estatal gaúcha, sob responsabilidade de seu
finado filho, Lindomar, revelados numa CPI e acolhidos pelo Ministério
Público. "Não tenho nada a ver com isso. É coisa da minha mãe", diz o
ex-governador Germano Rigotto, virtual candidato do PMDB ao Senado em
2010.
Assim, sujeitos ocultos de ações legais de mães e filhos que ferem a
liberdade de expressão e afrontam a verdade, o ex-governador Rigotto e
o senador Sarney imaginam furtar-se de suas responsabilidades políticas
e éticas. No caso do Estadão, rijo e forte aos 134 anos de
vida, não se teme por sua saúde e sobrevivência, já que tem os meios
para derrubar, cedo ou tarde, a restrição absurda que se abate sobre
ele. Quanto ao JÁ, jornal nanico de Porto Alegre, o caso
inspira cuidados e graves temores sobre suas reais chances de
sobrevida. O único alento, até agora, é o fato de que o recurso do JÁ ao
Supremo Tribunal Federal caiu nas mãos do implacável ministro Joaquim
Barbosa, um juiz que dá esperança e fôlego até aos moribundos
desenganados pela ciência e pela lei dos homens.
Elmar Bones revela seu desalento no título do editorial ("Voltaremos. Ou não?") da edição extra do JÁ
que desembarca esta semana nas bancas com a foto de um mascarado de
terno e gravata e uma manchete acabrunhante na primeira página: "O RIO
GRANDE CORRUPTO. Escândalos sucessivos abalam o mito do `Estado mais
politizado do Brasil´".
Bones adverte no editorial de tom sombrio:
"Pela primeira vez em quase 25 anos, não podemos garantir aos leitores que o jornal JÁ
voltará a circular. (...) Um pequeno jornal condenado por `dano moral´
numa ação movida pela família de um político influente, ex-governador
do Estado, num mercado em que as maiores agências de publicidade têm
contas do governo. (...) Quanto perdemos no mercado publicitário? (...)
Voltaremos! Ou não?"
Ninguém sabe ainda responder. Se o JÁ não voltar, não será
mais um jornal a morrer, diante do silêncio inexplicável de alguns, da
omissão de muitos, da complacência de todos nós. A morte iminente de um
jornal como o JÁ – somado ao desalento de um jornalista como
Elmar Bones – é um fundo golpe nas convicções de todos que acreditam
nos fundamentos da democracia, da justiça, da verdade e de uma imprensa
livre. A limpa folha corrida do jornal de Porto Alegre e a digna
biografia de resistência de seu editor não merecem ser comparados com o
prontuário de alguns dos homens públicos que hoje nos representam,
julgam e governam.
Em qualquer país sério do mundo, o clamor da sociedade se levantaria
já, agora, imediatamente, em defesa de um pequeno jornal, punido apenas
por ser correto, preciso, exemplar e corajoso. A inacreditável saga de
resistência de Elmar Bones, que precisa fazer agora na democracia o que
antes fazia na ditadura, mostra que perdemos algo intangível,
irremediável neste rito de passagem. Perdemos a vergonha na cara.
Precisamos decidir se morreremos juntos com o JÁ. Ou se voltaremos com ele. Agora. Já.
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