Frei Betto*
Escritor e assessor de movimentos sociais
Entre
os 15 países mais desiguais do mundo, 10 se encontram na América Latina e
Caribe. Atenção: não confundir desigualdade com pobreza. Desigualdade resulta
da distribuição desproporcional da renda entre a população.
O
mais desigual é a Bolívia, seguida de Camarões, Madagascar, África do Sul,
Haiti, Tailândia, Brasil (7º lugar), Equador, Uganda, Colômbia, Paraguai,
Honduras, Panamá, Chile e Guatemala.
A ONU
reconhece que, nos últimos anos, houve redução da desigualdade no Brasil. Em
nosso continente, os países com menos desigualdade social são Costa Rica,
Argentina, Venezuela e Uruguai.
Na
América Latina, a renda é demasiadamente concentrada em mãos de uma minoria da
população, os mais ricos. São apontadas como principais causas a falta de
acesso da população a serviços básicos, como transporte e saúde; os salários
baixos; a estrutura fiscal injusta (os mais pobres pagam, proporcionalmente,
mais impostos que os mais ricos); e a precariedade do sistema educacional.
No
Brasil, o nível de escolaridade dos pais influencia em 55% o nível educacional
a ser atingido pelos filhos. Numa casa sem livros, por exemplo, o hábito de
leitura dos filhos tende a ser inferior ao da família que possui biblioteca.
Na
América Latina, a desigualdade é agravada pelas discriminações racial e sexual.
Mulheres negras e indígenas são, em geral, mais pobres. O número de pessoas
obrigadas a sobreviver com menos de um dólar por dia é duas vezes maior entre a
população indígena e negra, comparada à branca. E as mulheres recebem menor
salário que os homens ao desempenhar o mesmo tipo de trabalho, além de
trabalharem mais horas e se dedicarem mais à economia informal.
Graças
à ascensão de governos democráticos-populares, nos últimos anos o gasto público
com políticas sociais atingiu, em geral, 5% do PIB dos 18 países do continente.
De 2001 a 2007, o gasto social por habitante aumentou 30%.
Hoje,
no Brasil, 20% da rendas das famílias provêm de programas de transferência de
renda do poder público, como aposentadorias, Bolsa Família e assistência
social. Segundo o IPEA, em 1988 essas transferências representavam 8,1% da
renda familiar per capita. De lá para cá, graças aos programas sociais do governo,
21,8 milhões de pessoas deixaram a pobreza extrema.
Essa
política de transferência de renda tem compensado as perdas sofridas pela
população nas décadas de 1980-1990, quando os salários foram deteriorados pela
inflação e o desemprego. Em 1978, apenas 8,3% das famílias brasileiras recebiam
recursos governamentais. Em 2008, o índice subiu para 58,3%.
A
transferência de recursos do governo à população não ocorre apenas nos estados
mais pobres. O Rio de Janeiro ocupa o quarto lugar entre os beneficiários
(25,5% das famílias), antecedido por Piauí (31,2%), Paraíba (27,5%) e
Pernambuco (25,7%). Isso se explica pelo fato de o estado fluminense abrigar um
grande número de idosos, superior à media nacional, e que dependem de
aposentadorias pagas pelos cofres públicos.
Hoje,
em todo o Brasil, 82 milhões de pessoas recebem aposentadorias do poder
público. Aparentemente, o Brasil é verdadeira mãe para os aposentados. Só na
aparência. A Pesquisa de Orçamentos Familiares do IBGE demonstra que, para os
servidores públicos mais ricos (com renda mensal familiar superior a R$
10.375), as aposentadorias representam 9% dos ganhos mensais. Para as famílias
mais pobres, com renda de até R$ 830, o peso de aposentadorias e pensões da
previdência pública é de apenas 0,9%.
No
caso do INSS, as aposentadorias e pensões representam 15,5% dos rendimentos
totais de famílias que recebem, por mês, até R$ 830. Três vezes mais que o
grupo dos mais ricos (ganhos acima de R$ 10.375), cuja participação é de 5%.
O
vilão do sistema previdenciário brasileiro encontra-se no que é pago a
servidores públicos, em especial do Judiciário, do Legislativo e das Forças
Armadas, cujos militares de alta patente ainda gozam do absurdo privilégio de
poder transferir, como herança, o benefício a filhas solteiras.
Para
Marcelo Neri, do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getulio Vargas, no
Brasil "o Estado joga dinheiro pelo helicóptero. Mas na hora de abrir as portas
para os pobres, joga moedas. Na hora de abrir as portas para os ricos, joga
notas de cem reais. É quase uma bolsa para as classes A e B, que têm 18,9% de
suas rendas vindo das aposentadorias. O pobre que precisa é que deveria receber
mais do governo. Pelo atual sistema previdenciário, replicamos a desigualdade.”
A esperança
é que a presidente Dilma Rousseff promova reformas estruturais, incluída a da
Previdência, desonerando 80% da população (os mais pobres) e onerando os 20%
mais ricos, que concentram em suas mãos cerca de 65% da riqueza nacional.
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Artigo 2:
Os sonhos de Kepler
Os sonhos de Kepler
No
século XX, o ser humano conquistou o "impossível". Sabemos voar como
os pássaros, navegar sob as águas como os peixes, correr mais rápido do que os
coelhos e somos capazes de nos comunicar a distâncias outrora inimagináveis.
Somos a geração automotiva. O relógio mede cada segundo do nosso tempo, cavalos
e carruagens cederam lugar a carros e aviões, trovadores invisíveis cantam
através de nosso equipamento de som, arautos sem rosto divulgam os fatos pelo
rádio, o circo e o teatro irrompem em nossa sala nas dimensões de uma pequena
tela eletrônica.
Melhor
do que dividir a história em antiga, medieval, moderna e contemporânea, é
distingui-la pelas eras agrícola, que durou 10.000 anos; industrial, nos
últimos 100 anos; e, agora, cibernética. Johannes Kepler, nascido na Alemanha
em 1571, atraído pelo faro estético dos gregos -que acreditavam ter o Universo
uma natural simetria- descobriu a arquitetura do sistema solar e levou quatro
anos para calcular a órbita de Marte, uma elipse perfeita. Com um computador,
bastariam quatro segundos.
Kepler,
que escreveu um livro intitulado O Sonho, teria invejado a nossa geração se
imaginasse quanto tempo poderíamos poupar. Daria asas à imaginação, sonhando em
fazer tudo aquilo que o trabalho exaustivo não lhe permitia: desfrutar da vida
campestre, perder tempo com os amigos, ficar na igreja ouvindo o som inebriante
do órgão, contemplar o céu noturno para captar a música das estrelas. O que ele
jamais poderia supor é que, com tanta tecnologia, a nossa geração dispõe cada
vez mais de menos tempo.
Somos
incorrigivelmente vorazes. Queremos processar o máximo de informações no mínimo
de tempo. Desafiamos, a cada momento, as barreiras do espaço. Ansiamos por
estar lá -não no caminho- e, por isso, afundamos o pé no acelerador do carro
possante e afugentamos os pedestres, disputando com o motorista ao lado um
palmo de asfalto, como se à frente não houvesse sinais vermelhos contrários à
nossa sofreguidão. Reduzimos as distâncias com telefones celulares e operações
digitais no computador.
Ainda
que no trânsito ou no aeroporto, no trabalho ou no clube, a "coleira
eletrônica" impede que nos percam de vista. Entre uma marcha e outra, uma
flexão abdominal e outra, uma decisão e outra no trabalho, controlamos os
filhos, as aplicações financeiras, os negócios geograficamente distantes. Como
Prometeu, queremos arrebatar o fogo dos deuses, fazendo de conta que não somos
frágeis e mortais.
Porque
precisava pensar, Kant nunca saiu de Königsberg, onde construiu uma obra
filosófica monumental. Ora, para que livros se há milhares de vídeos
interessantes? Basta saber que o patrimônio cultural da humanidade se encontra
armazenado nas bibliotecas. Relaxados, passamos horas, dias, meses e anos de
nossas vidas vendo um punhado de homens correrem atrás de uma bola e carros
velozes desafiando as curvas da morte. Nossos heróis estão distantes da arte
musical de Mozart, da física de Planck ou da literatura de Machado de Assis.
Veneramos aqueles que quebram limites. O Evangelho da "pós-modernidade"
são os índices do mercado financeiro. A Bíblia, o
Guiness Book of the Records. Pelé fez 1.000 gols. Michael Jackson
coloriu de branco sua pele negra. Ayrton Senna andou mais depressa grudado ao
solo que qualquer outro mamífero.
Só
não descobrimos o elixir da felicidade. Por que nenhuma empresa vende o que
mais procuramos? Ora, talvez possamos deixar de pagar, com o sacrifício da
própria vida, o preço letal dessa busca, se abraçarmos os sonhos de Kepler: a
vida campestre, a roda de amigos, o coro de anjos numa igreja e a melodia das
estrelas.
[Frei
Betto é escritor, autor do romance "Um homem chamado Jesus” (Rocco), entre
outros livros. www.freibetto.org -
twitter:@freibetto