Em entrevista, o jornalista José
Arbex Jr. incita os movimentos sociais brasileiros a criar um
instrumento político que se organize contra o Estado, galvanizando os
excluídos do sistema capitalista e com um programa construído nas bases
Nilton Viana
da Redação do
Brasil de Fato
Em
meio à crescente exclusão promovida pelo avanço do capitalismo liberal
nas últimas décadas, o jornalista José Arbex Jr. defende que os
movimentos sociais formem um novo partido no Brasil. Para ele, essas
organizações são as únicas da esquerda que conseguem dialogar com os
setores alijados da economia capitalista, como os sem terra e sem teto.
Esses grupos tendem ser mais e mais massacrados, uma vez que o
neoliberalismo é incapaz de incorporá-los – pelo contrário – na sua
dinâmica. Assim, o Estado assume um caráter cada vez mais repressor e
segregacionista para poder manter uma certa estabilidade social. O que
Arbex propõe, então, é que os movimentos sociais impulsionem um
instrumento político que, aglutinando os excluídos, parta do pressuposto
de que o Estado brasileiro foi construído contra a nação, e coloque a
questão do poder, dando um salto qualitativo em relação à sua condição
atual.
Brasil de Fato – No Brasil, negros, pobres e
as comunidades carentes, principalmente dos grandes centros urbanos,
têm sido vítimas de todas as formas de violência, principalmente da
violência policial, do Estado. Como você avalia esse caos social que o
Brasil vive hoje?
José Arbex Jr. – Se
você comparar a situação de hoje com a de outubro de 1992, quando
ocorreu o massacre do Carandiru [em São Paulo-SP], você vai ver uma
diferença muito grande. Naquela ocasião, foram mortos 111 presos e isso
provocou uma grande polêmica nacional, um escândalo que a sociedade
tratou como um acontecimento inaceitável. Em comparação, hoje, o
governador do Rio de Janeiro [Sérgio Cabral – PMDB] exibe triunfalmente
a estatística de que a polícia está matando mais de 1.500 pessoas por
ano nos morros cariocas – um Carandiru por mês. E isso não provoca
nenhuma indignação na sociedade, é como se fosse normal. A polícia,
tanto no Rio como em São Paulo, vem usando um expediente que é
inconstitucional, que é o mandado de busca coletivo. Ou seja, ela tem o
direito de entrar na sua casa não porque você seja suspeito de ter
cometido um crime, não porque você seja suspeito de ter ligação com o
crime organizado ou algo do tipo, mas simplesmente porque você mora
naquele lugar. Seria possível um mandado de busca coletivo no Jardins?
Eu não digo nem no bairro, digo em um quarteirão do Jardins, aliás, nem
em um quarteirão, um mandado coletivo em um prédio da rua Oscar Freire?
Acha que isso seria possível, todos os moradores serem passíveis de ter a
polícia dentro de seus apartamentos somente porque moram ali? É óbvio
que não. Então temos um Estado que trata alguns brasileiros como
portadores de direitos e outros como portadores de direito nenhum.
Estamos num processo de terror que atinge especificamente um setor mais
numeroso da população, que são os trabalhadores.
A
ONU tem divulgado dados que apontam o Brasil com uma das maiores taxas
de homicídios do mundo...
A ONU considera que o Brasil
tem uma das maiores taxas de homicídios do mundo, com algo em torno de
50 mil mortes por ano, e que a polícia e esquadrões da morte são os
maiores responsáveis por essa façanha. Morre muito mais gente baleada no
Brasil do que no Iraque, na Palestina e em outras áreas conflituosas do
planeta. Só para efeito de comparação: os 30 anos de guerra civil entre
protestantes e católicos na Irlanda, iniciada em 1968 e considerada de
extrema violência, produziram menos de 3 mil mortes, isto é o
equivalente a três semanas normais no Brasil. Isso é uma situação
permanente, que a mídia acoberta e que está se tornando algo natural. É
muito perigoso. Nós sabemos no que dá quando você naturaliza a matança, a
segregação do Estado, o terror sobre populações indefesas... Basta
olhar a história recente da Alemanha. Isso é muito preocupante e é o
traço mais terrível da conjuntura nacional hoje.
E quem
são os principais responsáveis por essa situação?
Em
primeiro lugar é o Estado. É o Estado que abriu mão de universalizar as
leis. As leis são válidas para todos os cidadãos, independentemente de
sua religião, cor, raça, de sua conta bancária. Elas são universais e é
para isso que o Estado serve – mesmo o burguês –, para tornar as leis
universais e não para beneficiar determinados grupos da sociedade. Em
segundo lugar, a responsabilidade é de um governo – tanto federal como
local – que privilegia o pagamento anual de R$ 200 bilhões de juros para
os bancos ao invés de criar uma infraestrutura básica – de educação,
saúde, transportes e saneamento básico... – que tornaria decente a vida
das pessoas, assegurando-lhes aquilo que a burguesia garantiu, por
exemplo, na França, nos Estados Unidos, na Inglaterra. Não estou falando
de socialismo, mas de direitos burgueses. Hoje, você tem um governo que
destrói cada vez mais o Estado em nome do superávit primário e faz com
que a vida de milhões de pessoas que habitam nas periferias seja um
inferno total. Os grandes grupos interessados na especulação
imobiliária, as empreiteiras e os agentes do capital financeiro e os
grupos que controlam o Estado no Brasil fazem configurar esse tipo de
política social. Os responsáveis estão muito bem estabelecidos. Com
isso, não estou desculpando a bandidagem, não estou dizendo que a
periferia tem muito bandido porque não tem a presença do Estado e que a
bandidagem se justifica pela ausência do Estado. O que estou dizendo é
que evidentemente é muito mais propício o desenvolvimento do crime
organizado e da bandidagem numa situação de degradação moral de uma
população do que numa situação na qual as pessoas tenham vida digna. As
pessoas, numa situação desesperada, veem como saída o narcotráfico, a
organização em gangues, porque elas não encontram outra saída; é óbvio. O
terror do Estado alimenta o crime e o crime alimenta o terror de
Estado.
E a principal vítima desse sistema é a juventude.
Principalmente.
Se você pegar os índices de homicídios que o próprio Estado brasileiro
divulga, você vai ver que a imensa maioria é de homens entre 16 e 28
anos. Negros, pobres, claro a imensa maioria pobres, morando nestes
setores considerados malditos, a chamada periferia. Eu nem gosto de usar
o nome periferia porque periferia acabou adquirindo uma conotação
pejorativa como se houvesse uma homogeneidade no modo de vida e
interesses culturais etc., em todo o Brasil. Quando você fala em
periferia, parece que a periferia em São Paulo é igual a do Rio, que é
igual a do Recife, de Salvador, de Belém... E não é verdade, cada um
desses lugares tem os seus dilemas sociais, culturais, morais,
econômicos. São distintos. Mesmo aqui em São Paulo você não pode
comparar Jardim Ângela, por exemplo, com Heliópolis. Quer dizer, a
periferia é um todo, cinzento, inventado pela mídia para designar uma
mancha, que ameaça a estabilidade social, a vida dos cidadãos decentes,
que somos nós da classe média, os que vivem no centro urbano, como se
houvesse um cordão de ameaça àqueles que são os “bons cristãos”. Mesmo
esse termo periferia já é um rótulo que acoberta o assassinato da
juventude. Logo, se o cara é assassinado pela polícia, aí você fala:
“mas ele é da periferia”... pronto, já está justificado.
Aliás nós
temos um movimento muito importante hoje no Brasil que são as Mães de
Maio, que são as mães daquelas 600 pessoas (mais ou menos) assassinadas
em maio de 2006, que a polícia matou como represália aos ataques do PCC.
Entre os assassinados tinham uns jovens entregadores de pizza cujo
único crime foi – eles estavam ouvindo música naqueles walkman – não
ouvir a sirene da polícia e não parar a moto. Os jovens são assassinados
sob o rótulo da periferia, que tornam todos suspeitos. É como na
Alemanha nazista, você falava “é judeu”, pronto, estava justificado.
O
governo do Rio de Janeiro está construindo muros para isolar os pobres.
Como você vê isso?
É o muro da segregação. Os muros
agora estão se multiplicando pelo mundo inteiro e são uma decorrência do
próprio sistema capitalista, que já não encontra saída para integrar
bilhões de seres humanos na economia. Eles não têm como integrá-los. A
única forma que encontram para preservar a ordem é criar muros. Mas
então você vai me dizer: mas não é um exagero falar em bilhões? Não.
Basta analisar as estatísticas recentes da FAO, que é o órgão da ONU
para a agricultura, que você vai ver que, pela primeira vez na história
da humanidade, o sistema econômico conseguiu produzir a fantástica cifra
de 1 bilhão de famintos. Se associar esse 1 bilhão de famintos àqueles
chamados subnutridos – que são os que não são famintos porque conseguem o
mínimo de calorias necessárias para se manter vivos nas próximas 24
horas –, já são 2 bilhões. E se associar isso à rede extra-econômica
para conseguir comida – os subnutridos que roubam para conseguir 1 litro
de leite para dar ao fi lho –, teremos metade da humanidade. Bilhões de
seres humanos que não são e não serão integrados à economia. A única
saída para o sistema é considerá-los descartáveis. E, para isolar os
descartáveis, cria muros.
Esse cenário coloca para a
esquerda, que tem se mostrado incapaz de organizar essa imensa maioria
da população, um desafio muito grande. Como você vê a esquerda
brasileira diante desse quadro?
Tenho uma visão muito
particular sobre isso. Considero que o MST encontrou historicamente uma
maneira de integrar os setores mais excluídos e miseráveis da sociedade
brasileira num movimento organizado, que confere aos seus participantes
dignidade, consciência política e a oportunidade de assumir os seus
próprios destinos como cidadãos. Isso faz do MST o movimento mais
importante da história do Brasil, com certeza da história republicana. O
MST e boa parte desses movimentos espelhados na sua experiência, como o
MTST [sem teto], o MAB [atingidos por barragens] e tantos outros,
encontraram uma fórmula de organizar suas bases e, se fizermos uma
radiografia daquilo que acontece hoje nos morros urbanos, no campo, em
todos os setores que sofrem discriminação, nós vamos descobrir que
existe uma boa base de organização. Não acho que existe uma dispersão
total.
Agora, o problema é que esses movimentos sociais no seu
conjunto precisam dar um salto de qualidade e criar um movimento que
aponte concretamente a questão do poder. O momento que vivemos no Brasil
provou o esgotamento da fórmula do partido eleitoral do tipo PT para
resolver os problemas dos grandes setores de massa no Brasil. O PT não
resolveu esse problema, ele chegou ao poder e não fez reforma agrária;
conduziu a macroeconomia ao agrado do capital financeiro mundial; e,
hoje, uma revista como a Veja e jornais como O Estado de São Paulo
afirmam claramente que tanto faz Dilma Rousseff ou José Serra porque os
dois vão aplicar a mesma macro-política. Pode ter diferença cosmética,
no sentido de que talvez a Dilma seja menos repressiva e prossiga com
alguns programas que dão migalhas sociais. Mas isso não resolve os
problemas anteriormente apontados. Portanto, acho que os movimentos
sociais precisam dar um salto de qualidade e criar uma organização que
aponte uma alternativa estratégica, que coloque a questão do poder. É
necessário um instrumento político que reúna esses movimentos sociais e
aponte uma alternativa de poder. Está na hora de um novo partido no
Brasil. Ou de uma frente plural de partidos – partidos ou movimentos
sociais. Teria de se pensar uma forma criativa de realizar essa
organização, mas que dê um salto qualitativo. Nesses anos todos, os
movimentos criaram e construíram direções que são conhecidas
nacionalmente e internacionalmente, identificadas com transformações da
sociedade, que não se deixaram cooptar por esse processo de participação
lucrativa na economia neoliberal, que não aceitaram participar do
esquema, direções identificadas com as lutas cotidianas dos
trabalhadores brasileiros na cidade e no campo. Essas direções existem,
são reconhecidas e elas têm a responsabilidade, na minha opinião, de
assumir esse novo momento da história brasileira.
Você
está defendendo a criação de um novo instrumento político. Isso
significa que os atuais partidos e organizações da esquerda não têm
conseguido dar respostas às necessidades da imensa maioria da população e
não conseguem enfrentar essa nova realidade brasileira como um
instrumento de transformação?
Sem dúvida nenhuma.
Historicamente, os partidos brasileiros – incluindo o PT, do qual eu
também fazia parte, portanto não estou me excluindo dessa história –
foram capazes de atingir uma massa de trabalhadores com carteira
assinada, funcionários públicos, operários da grandes metalurgias, da
indústria de automóveis etc. e até uma faixa de pequenos comerciantes,
uma classe média pauperizada. Até aí esses partidos chegaram. Mas isso
constitui uma minoria da população. A grande maioria está hoje na
periferia, no campo, no Brasil profundo. E esses setores nunca foram
organizados pelos partidos. Eles foram muito mais organizados pela Rede
Globo, que chega em qualquer lugar, no ponto extremo da Amazônia, os
caras têm uma antena parabólica e vão assistir a novela Viver a Vida.
Logo, quem atingiu esses setores? O MST, o MAB, o MTST atingiram. Hoje,
temos uma situação na qual os partidos que dizem representar a população
não dialogam com esses setores. Ou melhor, dialogam na forma da
porrada, do terrorismo de Estado. E, por outro lado, os movimentos
sociais que organizam esses setores estão excluídos da esfera do poder.
Isso configura uma situação absolutamente intolerável, porque significa
que o Estado brasileiro existe para um determinado setor da sociedade e
para outro não. Então, os partidos historicamente fracassaram nessa
missão e os movimentos sociais foram bem sucedidos em organizar esses
setores. Quando eu digo bem sucedidos não significa que o serviço já
está feito. Ainda há muita coisa para fazer. E o MST mostrou que o
caminho existe. Ou seja, é possível organizar esses setores. Assim, ou
os movimentos sociais assumem essa tarefa de dar um salto político e
conduzir esses setores que nunca fi zeram parte da vida política
brasileira para uma outra saída estratégica na qual eles passem a fazer
parte – e devem fazer isso já, urgente – ou o que nós vamos ver é cada
vez mais esses setores pagando o preço terrível de não terem uma voz
política e serem segregados por muros.
E a ofensiva
permanente das elites para criminalizar os movimentos sociais e as
lutas, você acha que um instrumento político, tal qual você coloca,
ajudaria as organizações nessa batalha? Você acha que um partido
político legalizado seria um suporte fundamental frente a esse cenário?
Isso
me parece óbvio porque quando a direita faz sua ofensiva ela usa o
aparelho de Estado. Por exemplo, montam uma CPI para paralisar o MST,
que é obrigado a drenar toda a sua energia para se defender. Assim, o
aparelho de Estado monta a ofensiva, conta com o braço armado que é a
polícia e o exército, e vem para cima dos movimentos sociais. E cria um
consenso social na classe média por meio da mídia. O aparelho de Estado
não é neutro, como disse antes ele não universaliza as leis, e é lógico
que, se os movimentos sociais não tiverem um instrumento político que
coloque concretamente a questão do Estado, essa situação vai se
eternizar e conduzirá os movimentos sociais a um desastre absoluto,
porque hoje estão numa situação de impotência. Por exemplo, no caso de
Belo Monte. Populações inteiras serão expulsas de suas localidades por
causa de uma usina, um empreendimento que interessa a meia dúzia de
empreiteiras, e estão sem defesa. Eles estão dispostos ao
auto-sacrifício para preservar aquelas terras, dizem que irão para as
áreas que serão inundadas. Esse pessoal está sem a defesa de um
instrumento político, porque não tem um partido que os defenda de uma
forma decisiva, que mobilize a população, que seja capaz de articular
todos os movimentos sociais em sua defesa. Isso não existe. O PT não é
esse partido. Então, se não houver esse salto qualitativo, é óbvio que o
neoliberalismo, tendo como instrumento o Estado, vai produzir uma
matança, uma criminalização cada vez maior dos movimentos sociais.
Aliás, as últimas declarações, tanto do Serra quanto da Dilma, apontam
para esse caminho. O tucano multiplica diariamente acusações contra o
MST. E a petista, quando visitou os vários agrishow Brasil afora, disse
claramente que não apoia invasão de terra, e usou o termo invasão, que é
significativo, porque ela sabe que não se trata de ocupação.
Quais
elementos políticos centrais devem nortear um novo instrumento dessa
natureza, inclusive para não se incorrer em equívocos de tantos outros
partidos brasileiros?
Hoje, qualquer articulação
política séria no país tem que partir de um pressuposto, tem que ter uma
discussão muito séria de que no Brasil a nação se organizou contra o
Estado. Isto é uma formulação do professor Istvan Iancson – que faz
parte da antiga geração de professores universitários que eram de fato
professores universitários. Ele mostra que, no Brasil, durante 400 anos
de escravidão houve uma política de Estado destinada a reprimir a imensa
maioria da população, composta de povos originários e de escravos
trazidos da África. Paralelamente, nunca houve no Brasil nenhum setor da
burguesia disposto a produzir um movimento revolucionário semelhante ao
que houve na França e outros países, que tinham como objetivos integrar
a população trabalhadora ao processo produtivo. Mesmo na história
republicana, nos 30 primeiros anos da oligarquia do café com leite; no
Estado Novo de Getúlio Vargas, que embora tivesse um projeto nacional,
comandou esse projeto na base da outorga de uma estrutura sindical
atrelada ao Estado, na qual os trabalhadores jamais foram independentes
para construir a sua autonomia do Estado; e na ditadura militar que
durou vinte e tantos anos. Quer dizer, temos uma longa história de
sucessivas catástrofes que demonstram que, no Brasil, o Estado sempre
foi considerado pelas elites como um órgão privado delas. O surgimento
do PT e da CUT produziu uma espécie de abalo nessa história, porque,
pela primeira vez, você teve a formação de uma central independente, que
foi a CUT, e a formação de um partido político que não era um
impulsionado a partir das elites e que conseguiu produzir abalos na
estrutura do Estado que os partidos tradicionais de trabalhadores como o
PC e outros nunca conseguiram produzir. Assim, é inegável que o
surgimento do PT e da CUT produziram esse abalo, algo extremamente
importante na história do brasileira. Porém, acho que tanto o PT quanto a
CUT não levaram até o fi m essa dimensão de que o Estado foi construído
contra a nação. E que, simplesmente, participar da atual estrutura do
Estado não resolve o problema, porque é um Estado construído contra a
nação brasileira.
As estruturas do Estado permanecem
inalteradas.
É, continuam inalteradas. Por exemplo, para
tornar bem visível o que estou falando, acho equivocado dizer que no
Brasil não funciona o sistema de saúde. Ou não funciona o sistema de
educação pública. Funciona perfeitamente. Ou alguém acha que em algum
momento desse país as elites, que mandam no Estado, pretenderam
construir um sistema realmente eficaz e que garantisse saúde e educação
de qualidade para a maioria do povo brasileiro? Alguém acha isso? Só se
for louco! Então, eu acho que esses sistemas funcionam perfeitamente bem
à luz do que é o Estado brasileiro, à luz dos jagunços que mandam nesse
país há 500 anos. Assim, se você construir um partido que não coloque
na ordem do dia essa questão de que é preciso haver uma revolução que
transforme o Estado brasileiro e que crie as condições para que haja uma
integração entre Estado e nação, ele vai fracassar como todos os outros
partidos. Eu acho que o único partido que teria condições de fazer isso
é um partido que nasça das bases – e aí bases eu quero dizer os setores
mais excluídos, mais pobres, mais miseráveis da população brasileira,
que são os movimentos sociais, os camponeses, os trabalhadores
desempregados, os sem teto, os que têm que se virar todo dia para
conseguir comida para as próximas 24 horas, os povos originários. Todos
eles constituem essa camada social que jamais foi integrada pelo Estado
brasileiro e que sabem exatamente o que significa o Estado brasileiro.
Então, na minha opinião, embora a experiência do PT e da CUT tenha sido
extremamente positiva porque produziu abalos nessa relação do Estado e
nação, eles não foram até o fi m. O PT nunca se constituiu de fato como
um partido anticapitalista. Nunca se colocou com a tarefa de destruir o
capitalismo.
O objetivo desse novo partido contra o
Estado brasileiro vai ser o quê? Vai ser um partido socialista, social
desenvolvimentista, vai querer desenvolver o capital interno?
Não
sei. Não sou a Mãe Diná. Acho que não cabe a uma direção iluminada
dizer o que esse partido vai ser. Nesse momento, o que se coloca em
primeiro lugar é uma formulação que consiga agregar esse conjunto de
movimentos sociais. Isso estabelece uma primeira base de discussão, ou
seja, como é que vamos agregar esses movimentos sociais e, a partir das
discussões feitas por esses movimentos sociais, dos núcleos de base. Uma
discussão programática vai surgir da base. E que tenha necessariamente o
seguinte: nós não queremos um partido que se integre ao Estado
brasileiro tal como ele existe hoje. Esse é o ponto. O resto a gente
discute. Não podemos colocar uma série de pré-condições que funcionariam
como obstáculos à formação de um grande partido de base, realmente
popular.
Você, como intelectual, imagino que estaria
neste partido. Você acredita que outros intelectuais, a universidade,
estariam também num partido com esses objetivos? Temos reserva moral na
esquerda brasileira que seja capaz de impulsionar um partido dessa
natureza?
Claro que temos reserva moral... e prefiro não
citar nomes para não cometer injustiças... Mas, se realmente o MST é um
movimento de importância histórica no Brasil, logo, é claro que, desse
ponto de vista, os dirigentes e porta-vozes do MST estão entre aqueles
que podem e devem impulsionar o processo. Acho que o João Pedro Stedile
tem um papel particular nisso, por sua visibilidade nacional e
internacional. Mas há muita gente boa nos movimentos sociais, nos
partidos de esquerda e mesmo dentro do PT que se empolgaria por uma
proposta de construção de um poderoso partido anticapitalista no Brasil.
Agora,
ao mesmo tempo, acho que esse partido provocaria um susto em um vasto
setor da classe média brasileira. Imagina o que vai acontecer no momento
em que um partido conseguir juntar o MST, os movimentos que se
organizam na periferia, hip hop, as Mães de Maio etc. e começa a dar
visibilidade para o Brasil de cara feia. Ou seja, não é o Brasil que vai
fazer compra em shopping center. Mesmo dentro da universidade, pessoas
que hoje se dizem a favor de uma transformação social fi cariam
assustadas quando elas vissem a cara da transformação social. Mas, ao
mesmo tempo, isso geraria um efeito fantástico de produzir um senso de
auto-estima e de dignidade em dezenas de milhões de brasileiros que hoje
estão em baixa porque acham que não têm futuro. Você imagina o que
significa para um trabalhador que trabalha 15 horas por dia para ganhar
um salário-mínimo e que se afoga na cachaça, de repente, perceber que
pode participar de algo desse porte? Isso daria um impulso tremendo à
organização política brasileira. Seria algo muito superior ao que está
acontecendo hoje na Venezuela com o Hugo Chávez. Superior dado o porte
da economia brasileira, o número de habitantes e o poder que teriam
esses milhões de trabalhadores organizados, que tem uma tradição de luta
negada pela elites, o que é um completo absurdo. Se você pensar desde
os Quilombos dos Palmares até o MST, passando pelas Ligas Camponesas,
por Canudos, pela Revolta dos Malês e pelo século 19 inteiro de revoltas
regionais, esse povo não parou de lutar uma década. Portanto, nós temos
uma experiência de combate, uma história de luta. E um partido desse
porte teria um poder enorme de galvanizar a nação brasileira. Desde que
esse partido não caia no conto de se integrar ao Estado brasileiro tal
como ele existe hoje. É um partido que tem que ter o compromisso de
ruptura. Sem esse compromisso não conseguiria galvanizar ninguém. E acho
que, nesse processo, toda a gente acabaria formulando aquilo que todo
mundo diz e anseia, que é um programa para o Brasil feito com base na
realidade brasileira e não nas formulações europeias. Não que eu esteja
aqui negando Karl Marx ou outro pensador europeu, seria uma estupidez. O
que estou dizendo é que justamente a ausência do povão na política é
produzir um tipo de pensamento que é muito intelectualizado, muito
antenado com concepções de vanguarda que existem na Europa e que foram
formuladas na Europa, mas que se ressentem do diálogo com o povão mesmo,
que tem sua própria história e que não é a história europeia. É uma
outra história. Acho que isso produziria uma transformação na própria
universidade. Quer dizer, os intelectuais teriam que responder ao
desafio para eles mesmos como intelectuais com um partido desse tipo.
Quem
é
José Arbex Jr. é editor especial da revista Caros
Amigos, é doutor em história social pela Universidade de São Paulo
(USP), professor de jornalismo na Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo (PUC-SP), autor de Showrnalismo – A Notícia Como Espetáculo e O
Jornalismo Canalha (editora Casa Amarela). Durante os anos de 1980 e
1990, trabalhou no jornal Folha de S. Paulo e, em 2003, foi editor-chefe
do Brasil de Fato.