Na hora mais grave de sua história, os
ingleses, na linguagem de seus liberais cívicos e trabalhistas, cunharam
o lema do “Estado do Bem-Estar Social”. Este grito de civilização
contrastava com o outro, da barbárie, vindo da Alemanha de Hitler, o
Estado da guerra, da máquina de guerra nazista. “Sangue, suor e
lágrimas”, os ingleses uniram a Nação e resistiram. Hoje, decerto, não
há nenhum Hitler às portas do Brasil, mas quem ousaria negar que a
barbárie da violência social ainda ronda o nosso cotidiano e, pode, se a
linha vitoriosa nestas eleições for neoliberal, voltar a crescer? O
artigo é de Juarez Guimarães.
À Maria Rita Kehl
Em seu poema
mais terno, comovente e terrível, o maior poeta negro brasileiro, Cruz
e Souza, versa sobre o berço do recém nascido:
“Meu filho
que eu adoro e cubro de carinhos,/ que do mundo vilão ternamente
defendo,/ Há de mais tarde errar por tremendais e espinhos/ Sem que o
possa acudir no suplício tremendo.”
E mais adiante:
“Tu
não sabes, jamais, tu nada sabes, filho,/ Do tormentoso Horror, tu nada
sabes, nada.../ O teu caminho é claro, é matinal de brilho,/ Não
conheces a sombra e os golpes da emboscada.”
Postado assim no
livro “Faróis”, um pouco antes do belíssimo “Litania dos pobres” ( “As
sombras das sombras mortas,/Cegos, a tatear nas portas./ Procurando o
céu, aflitos/ E varando o céu de gritos./ Faróis à noite apagados/ Por
ventos desesperados/ Inúteis, cansados braços/ Pedindo amor aos
Espaços./ Mãos inquietas, estendidas/ Ao vão deserto das vidas.” e mais
adiante : “ Bandeiras rotas, sem nome,/ Das barricadas da fome.”), o
poema “Meu filho” de Cruz e Souza parece-se como uma oração desesperada
de todos os pobres do Brasil aos recém nascidos de seu amor.
A
consciência mais alta dos abolicionistas brasileiros, no fim do século
XIX, chegou à conclusão de que a abolição não era principalmente um
imperativo de modernização econômica nem apenas uma dádiva humanitária
para com os negros. O que estava em jogo ali era um princípio de
civilização: enquanto houvesse escravidão, não seria possível formar uma
moralidade do cidadão, toda cultura cívica seria cínica, a própria
dignidade do trabalho seria negada. Hoje, nestes inícios do século XXI, o
que está em jogo mais do que a força econômica autônoma do Brasil,
muito além da comiseração com a vida de humilhações e carências dos
pobres, é também um princípio de civilização.
Ou retornamos ao
princípio de civilização dos anos noventa, da era Fernando Henrique
Cardoso, o qual, pela apologia do mercado, se legitimava a exposição
ostensiva da riqueza em meio à legião dos pobres e o cultivo da
diferença social como sinal de status, ou vamos formar a casa comum da
democracia brasileira, vamos aparar os extremos em direção ao predomínio
das “classes médias”, vamos formar, enfim, o cidadão e a cidadã de
direitos e deveres simétricos. O que está em jogo é a nossa moralidade, a
possibilidade de nossa cultura cívica republicana, o destino
democrático que formamos na crítica ao nosso passado de violenta
exclusão.
As engenharias mercantis da produção da miséria em
massa produzem a morte física: pela fome ou subnutrição, pelas epidemias
evitáveis ou pela vida subtraída pelo cuidado sanitário precário, pelas
genocídios de jovens pobres nas periferias. Ao final dos anos noventa,
pela primeira vez na história brasileira no século XX, a esperança média
de vida dos brasileiros parou de crescer. Mas a injustiça – legitimada
ou cinicamente absorvida – produz um aleijão na alma do cidadão: as
nossas crianças e jovens – mesmo as mais protegidas – não ficam imunes à
legião dos pobres nas ruas mais suntuosas, pessoas a cata dos restos
nos lixos dos bairros mais ricos, o pobre suspeito de ser criminoso e o
rico absolvido de todos os crimes.
Não se trata de dividir o
mundo pequeno dos privilegiados ou socializar os privilégios para todos.
“A felicidade ou é compartilhada ou não vigora”, escreveu o presidente
Lula como dedicatória ao livro de sua biografia presenteado a Dom
Luciano Mendes, como este mesmo próprio revelou a uma platéia de
ouvintes comovidos. O que se trata exatamente é a meta de por fim aos
privilégios: expandir o espaço da vida de cada um pela expansão da
riqueza da vida social, prosperar o nosso quinhão de afetos pela amizade
e amorosidade da vida em comum, modular em aquarela as cores de nossa
vida subjetiva ao sentimento do mundo, como versou o poeta maior.
Desterrados na própria terra?
Talvez
a mais fina leitura do livro “Raízes do Brasil”, do mestre Sérgio
Buarque de Holanda, revelou que em sua primeira edição ele escrevia na
abertura uma contradição: ao modo de Gilberto Freyre, ele trazia o
reconhecimento de que havia se enraizado aqui uma civilização nos
trópicos ; mas, ao mesmo tempo, ao modo de Euclides da Cunha, éramos
desterrados na própria terra. Nas edições seguintes, esta tensão
criativa teria se apagado, ficando soberana a noção do desterro. O fino
leitor, porém, preferia a tensão, ao modo da obra que cresce na sua
abertura de sentidos.
O fato é que esta tensão veio hoje ao
centro da democracia brasileira. Continuaremos a ser desterrados na
nossa própria terra, como uma nação que não se fez, ou construiremos
aqui a mais bela e generosa civilização democrática e interracial dos
trópicos, na utopia mesma de Darcy Ribeiro?
O tema do desterro
ou do exílio estrutura a cultura brasileira desde o século XIX, quando
ela começou a procurar nossa identidade, entre a cópia do centro ou a
busca da originalidade. Origem, identidade e destino, amarrados na mesma
imaginação: de onde viemos, o que somos e para onde vamos ? Na clareira
da dúvida, emergiu o tema do sertão: dentro de nós, ao redor de nós,
presença do mal ou ausência do bem, o lugar onde vige a violência na
ausência da lei, nossas veredas. Como numa comédia farsesca, o “bem” e o
“mal” voltaram hoje a terçar armas em busca da consciência dos
brasileiros. Mas nem Hermógenes (o princípio do mal no sertão) nem o
fero belo Diadorim (o princípio do bem absoluto no sertão) : mas
Riobaldo e sua fala sábia, humanizando o imperfeito do vivido,
repropondo para nós o caminho do livre e do justo.
No desterro,
os ricos abandonam a noção de nação e migram para seus oligárquicos céus
do cosmopolitanismo: os de tradição, para a Europa, os “novos ricos”
para Miami, erguem fossos e pontes levadiças em seus condomínios de
luxo. Os pobres, ah! Os pobres, estes migram para os infernos: para o
anonimato do desemprego ou os sem nome do emprego precário, para as
drogas e seus circuitos, para o sobre humano esforço pela sobrevida de
cada dia.
E as classes médias o que fazem: elas vão ao limbo, sem
identidade de Nação, sem futuro para os filhos, com a universidade cada
vez mais restrita ou mais cara e os planos de saúde que faltam na hora
mais crítica, com a humilhação de ser brasileiro, fugindo da bala
perdida e evitando as zonas do “no man´s land” das cidades perigosas.
No
governo Lula, o sertão não virou mar mas recomeçamos a construção
interrompida da Nação. A nação democrática e republicana é, por sua
própria natureza, a identidade e futuro das classes médias brasileiras.
Vamos retornar ao limbo?
Estado do Bem-Estar Social
Na
hora mais grave de sua história, os ingleses, na linguagem de seus
liberais cívicos e trabalhistas, cunharam o lema do “Estado do Bem-Estar
Social”. Este grito de civilização contrastava com o outro, da
barbárie, vindo da Alemanha de Hitler, o Estado da guerra, da máquina de
guerra nazista. “Sangue, suor e lágrimas”, os ingleses uniram a Nação e
resistiram. Hoje, decerto, não há nenhum Hitler às portas do Brasil,
mas quem ousaria negar que a barbárie da violência social ainda ronda o
nosso cotidiano e, pode, se a linha vitoriosa nestas eleições for
neoliberal, voltar a crescer?
Coube a Maria Lúcia Werneck Vianna
falar, pela primeira vez entre nós, ainda no final dos anos oitenta, da
americanização perversa de nossa vida social. “Escolas para ricos”
segregadas de “escolas para pobres”; “saúde para ricos” e “saúde para
pobres”; previdência privada e imprevidência para todos. Mas como dizia o
Relatório Beveridge, fundador do sistema de Bem-Estar inglês, uma
medicina só para pobres será sempre uma pobre medicina. No final dos
anos noventa, já se falava entre nós das dinâmicas de apartação social,
isto é, estávamos reproduzindo aqui no Brasil o sistema do apartheid
vigente na África do Sul, só que com o estigma social da riqueza e da
pobreza.
O Estado do Bem-Estar é, por natureza, o lugar do
interesse público, do encontro necessário e possível entre trabalhadores
e classes médias, entre os direitos do trabalho e os direitos da
mulher, da educação pública e do SUS pleno, do emprego garantido e da
previdência firmada, da economia do setor público e dos avanços da
democracia.
Em um regime do Bem-Estar, as classes médias podem
realizar, de modo universalista, seus interesses: a inclusão de
miseráveis e pobres, que no Brasil quase equivalem a uma França inteira,
gera uma plataforma de milhões de novos empregos para engenheiros,
médicos, dentistas, psicólogos, advogados, comunicadores e economistas. A
expansão das funções públicas do Estado gera uma profusão de concursos
públicos. A recuperação dos bancos públicos produz uma pressão de baixa
nos juros e o crédito para a compra de casas torna-se acessível; a
retomada dos investimentos em ciência e tecnologia alenta as carreiras
universitárias. Crescem as receitas do Estado, diminuem as dívidas
públicas e as políticas sociais podem almejar metas de universalização. A
violência social diminui claramente e os jovens de periferia entram,
com passos firmes, no circuito da civilização, das artes e da educação,
com suas próprias identidades. A reforma agrária e a agricultura
familiar expandem e barateiam a produção de alimentos. A força da
economia do setor público permite planejar e evitar a predação da
natureza que nos ameaça.
Com uma dinâmica de Bem-Estar, cria-se
uma infra-estrutura econômica propícia à retomada da moralidade pública,
de desprivatização do Estado e de suas cadeias alentadoras de
privilégios ou de rentismos. O interesse público passa se a base de uma
vida política pública virtuosa.
O governo Lula deve ser
reconhecido como o que mais fez até hoje na luta contra a corrupção:
através do fortalecimento da Controladoria Geral da União (CGU), da
multiplicação das operações da Polícia Federal, da criação de
Corregedorias em todos os ministérios, da auditagem das verbas federais
que vão para os municípios e estados, da garantia da independência do
Ministério Público Federal, da punição aos corruptores, da transparência
dos gastos públicos e do envio ao Congresso Nacional de novas leis de
punição exemplares aos corruptos. Mas é evidente que , por seu caráter
histórico e sistêmico, a corrupção exige medidas mais profundas, como a
Reforma Política, e uma postura mais intransigente.
A voz da república
Com
os ricos e grandes capitalistas e banqueiros e agro-business alinhados
com Serra e pobres, sindicatos e sem-terra mais alinhados com Dilma, o
segundo turno destas eleições presidenciais de 2010 será decidido pelo
voto das classes médias.
Serra oferece a elas uma apologia
virulenta de um sentimento contra a esquerda, contra as morais
emancipatórias da mulher e um ressentimento de quem vê seus privilégios
ameaçados, ao mesmo tempo, que satura os seus programas de televisão de
pobres, tentando fugir à identidade de ser o candidato dos “bem...
ricos”, como diz o refrão da campanha de Dilma.
O argumento moral
que solda liberdade e justiça, o sentimento da identidade e orgulho de
ser brasileiro e o rico mundo dos interesses públicos do Estado
Bem-Estar Social constituem três grandes argumentos para o seu voto em
Dilma.
Se Vinícius de Moraes estivesse presente entre nós, ele
apenas aconselharia as classes médias brasileiras a ouvir a bela canção
de Orfeu, que ele figurou como um menino negro no alto de uma favela
brasileira.