segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Antanas Mockus propõe cultura cidadã para a transformação social


Ex-prefeito de Bogotá (Colômbia) adotou sua Doutrina da Cultura Cidadã e trouxe melhorias, como a queda dramática na taxa de homicídios | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

André Carvalho no SUL21

Além de ser a capital da Colômbia, Bogotá era conhecida pelos abusos do crime organizado, a pobreza e as práticas de corrupção. Para mudar esse cenário, Antanas Mockus organizou um sistema de segurança da comunidade, com 7 mil homens, que diminuiu em 70% o número de homicídios e em 50% as mortes no trânsito.
Matemático, filósofo e ex-prefeito de Bogotá por duas gestões (de 1995 a 1997 e de 2001 a 2004), Mockus ficou conhecido por suas ações políticas pouco comuns, praticadas na cidade colombiana. Dentre elas, a que ganhou maior destaque foi a que ele chamou de Doutrina da Cultura Cidadã. O ex-prefeito de Bogotá, adepto da bicicleta como meio de transporte, acredita que as regras não são estáticas, devem sempre ser atualizadas de acordo com o seu momento, e que é a partir desta tripla relação que se transforma uma sociedade e melhora as relações sociais.
Seu governo distribuiu cartões com polegares para cima e para baixo aos motoristas, usados para manifestar descontentamento em incidentes de trânsito. Outra medida foi contratar mímicos para ridicularizar pessoas que violavam as leis de tráfego. Parte da estratégia das políticas de Mockus era de melhorar a capacidade de expressão e de comunicação dos cidadãos.
Em meados da década de 1990, Bogotá, com uma população de 7 milhões de habitantes e uma taxa de 80 homicídios por 100 mil habitantes, foi considerada a cidade mais violenta da América Latina. Dez anos depois, esse índice caiu para 23 por 100 mil (queda de 71%), e a previsão para este ano é de 18 homicídios por 100 mil habitantes.
O Sul21 teve a oportunidade de conversar com Mockus em sua visita a Porto Alegre, para o 10º Congresso Mundial Metropolis. Abaixo, os melhores momentos da conversa.
“As pessoas não nascem cidadãs. Assim como as pessoas têm predisposição a falar, elas têm a predisposição de tornarem-se cidadãs ao longo do tempo”
"A cultura cidadã é composta por três pilares: as leis do Estado, a moral dos indivíduos e a cultura da sociedade" | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21: Em que consiste exatamente esta política de Cultura Cidadã?

Antanas Mockus: Em primeiro lugar, é importante compreender que uma pessoa não nasce falando. Entretanto, há uma predisposição, uma tendência para falar. O mesmo vale para cidadania. O sujeito não nasce cidadão, ele passa a ser cidadão ao longo do tempo. Quero dizer, inicialmente ele não tem consciência de seus direitos, muito menos capacidade de defendê-los. Porém, assim como as pessoas têm uma predisposição a falar, elas têm uma predisposição a descobrir seus direitos e deveres e com isso, tornarem-se cidadãs. A cultura cidadã é composta por três pilares: as leis do Estado, a moral dos indivíduos e a cultura da sociedade. A partir do cruzamento destes três pontos, a formação cidadã do sujeito se constrói dentro de seis aspectos: O primeiro, parte do princípio de uma norma moral. Por exemplo, se eu te digo: “não jogue esse papel no chão”, tu certamente já teria ouvido alguém te dizer isso, mas a questão não está no pedido mas sim na ação. O que acontece se todo mundo começar a jogar os seus papéis no chão? Acontecerá a universalização da conduta criticada. Quero dizer, as ruas ficariam sujas, a cidade feia. Se criaria um péssimo hábito cultural. Não seria algo positivo, nem pro ator da ação, nem para o todo. Mas como essa é uma ação que sabemos que não deve ser feita, as pessoas vão aprendendo a raciocinar moralmente. Porém, este raciocínio moral está intrínseco a lógica de que somos educados por nossos pais, o que nos leva ao segundo aspecto, onde a partir dessa educação, surgem os princípios do que é bom ou é ruim, o que é certo ou é errado. O terceiro aspecto refere-se aos critérios sociais de reciprocidade, que normalmente surge no sujeito ainda criança. “Olha, te emprestei meu brinquedo, me empresta o teu”. E as crianças acabam aprendendo isso com a vida e levam isso consigo. Quero dizer, se uma criança empresta um boneco para um amigo, ele sabe que na lei da reciprocidade, ele poderá pegar um carrinho do outro. A quarta etapa diz respeito ao sentido das regras, tanto locais, quanto universais, onde o sujeito as reconhece e a partir disso, busca defendê-las ou transformá-las, utilizando-se de argumentos. Entretanto, a defesa é mais comum do que a transformação, visto que tradicionalmente a sociedade tem um pensamento conservador e por isso, resistente a mudanças. Mas é claro, isso não é uma regra e as mudanças também ocorrem, vindo especialmente por parte dos jovens. E aí entra a quinta etapa, que diz respeito as regras impostas pela sociedade e através de um discurso racional os jovens tendem a questioná-las sua funcionalidade e legitimidade. A partir destes questionamentos buscam melhorá-las e/ou adaptá-las para o contexto atual. Por fim, a sexta etapa é levantada por princípios éticos discutido pelos direitos humanos universais. A partir destes seis aspectos que fazem a formação cidadã do sujeito, é possível afirmar que ele composto por questões legais, morais e culturais, que são os pilares da Cultura Cidadã.

Sul21: Mas o que é exatamente ser cidadão?

Antanas Mockus: Ser cidadão é obedecer harmonicamente as normas, nos âmbitos legal, moral e cultural de três maneiras. A primeira é aceitar as regras e sacrificar interesses, controlar impulsos. A segunda, é fazer valer as normas perante os outros, ou seja, é utilizar a norma a favor individual, auxiliando o próximo a se adequar a ela também. Então, já não sou mais eu quem atira os papeis no chão, mas sim, sou eu quem digo “olha, você não deve atirar papel no chão”. Por fim, a terceira e a mais contemporânea, é acreditar e defender que as normas criadas podem ser mudadas, renovadas. Quero dizer, elas existem, mas não são estáticas, eternas. Muitas regras que hoje são consideradas ultrapassadas, antigamente foram consideradas modernas e as que hoje são consideradas modernas, antigamente eram consideradas absurdas.

Sul21: É possível transformar o cidadão? Quero dizer, após anos vivendo de uma maneira, é possível mudar as suas normas legais, morais e culturais?

Antanas Mockus: Com certeza. A partir de uma educação das emoções. Se você olhar as regras de Lei, Moral e Cultura, verá que elas funcionam porque envolvem emoções, visto que segui-las, ou não, desperta emoções no sujeito. Por isso, formar a cidadania é formar emoções. Um exemplo claro disso é o seguinte: um sujeito não nasce temendo a cadeia. Não conhece, mas imagina, vê, ouve e lê coisas sobre a cadeia e a partir disso se forma uma ideia do quão terrível é. Ele molda a cadeia no seu imaginário, a partir destas informações adquiridas ao longo da vida, e com isso, cria-se o medo de ir para lá. Ou seja, o cidadão comum evitará ao máximo ir para cadeia, pois ele se move dentro da sociedade ancorado pela Lei, pela Moral e pela Cultura. A questão é: ele se move por medo ou admiração a lei? Por medo à culpa ou gratificação moral? Por medo ao rechaço ou reconhecimento social?
“Quanto maiores forem os cuidados um com o outro, por exemplo, menor será a necessidade da polícia nas ruas”
Sul21: Então é possível ocorrer uma transformação das relações urbanas?

Antanas Mockus: Seguindo harmonicamente as normas destas três maneiras, a relação social entre as pessoas que convivem no mesmo lugar se altera. Isso é claro por exemplo, em Bogotá. Uma cidade com aproximadamente sete milhões de habitantes, e a partir da implantação desta cultura cidadã, as pessoas procuram cuidar de si e cuidar dos outros. A partir disso, quanto maior a autorregulação e a regulação social, menor será a necessidade de uma regulação legal. Digo, quanto maiores forem os cuidados um com o outro, por exemplo, menor será a necessidade da polícia nas ruas.
"Há 20 anos, discutir questões como o aborto, a legalização das drogas, o casamento entre gays, dentre tantos outros temas atuais, era considerado impossível" | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21: Anteriormente o senhor falou que as regras devem ser atualizadas, pois elas não são estáticas.

Antanas Mockus: Há 20 anos, discutir questões como o aborto, a legalização das drogas, o casamento entre gays, dentre tantos outros temas atuais, era considerado impossível. E os argumentos usados naquela época sobre estes assuntos, são hoje, considerados antiquados. Só o fato de se discutir estas coisas atualmente, já demonstra um avanço legal, moral e cultural da sociedade e consequentemente, de seus cidadãos.

Sul21: Uma de suas ações como prefeito foi acabar com estacionamentos nas vias públicas, transformando-os em ciclovias. Esta ação foi bem vista pela sociedade?

Antanas Mockus: Sim, porém, as duas coisas aconteceram separadamente. Quero dizer, primeiro, queríamos acabar com a ocupação dos carros nas ruas, pois os índices de roubos de carro eram enormes. Posteriormente veio a ideia de transformar o espaço em ciclovias. Entretanto, num primeiro momento, as ciclovias foram instaladas em alguns pontos da região central da cidade, o que foi visto positivamente pela sociedade. Posteriormente, fizemos um mapa cicloviário para ampliar os pontos de trânsito para as bicicletas. Além disso, quando fizemos as ciclovias, a ideia era usá-la para passeios, mas acabou virando um espaço de locomoção para estudantes e trabalhadores.
“Bogotá se tornou a única cidade do mundo em que o Dia Mundial Sem Carro é legalmente quase tão sólido quanto a constituição”
Sul21: Quais foram as consequências disso?

Antanas Mockus: Isso nos fez ver algo que a cidade pedia, mas ninguém estava dando a atenção merecida. Quero dizer, a partir da construção das ciclovias, passamos a ver a bicicleta de uma perspectiva de um transporte do cotidiano. Hoje em Bogotá, estima-se que mais de um milhão de pessoas tenha bicicletas. Além disso, tivemos uma redução de 50% no acidentes de trânsito. Historicamente a cidade estava pensada para o conforto dos carros. Bogotá é uma cidade muito quente, e os escritórios, os órgãos públicos, não possuem banheiros com chuveiros ou instalações adequadas para um funcionário que queira ir trabalhar de bicicleta. Esse é um exemplo. Por outro lado, aquele preconceito conservador que existia pouco a pouco foi deixando de existir, pois as pessoas foram vendo que a bicicleta é um meio de transporte muito mais agradável e que amplia a qualidade de vida que o carro. É tudo uma questão de posicionamento cultural.
"As pessoas foram vendo que a bicicleta é um meio de transporte muito mais agradável e que amplia a qualidade de vida que o carro" | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21: Ou seja, houve uma transformação efetiva da sociedade.

Antanas Mockus: Com certeza. Há 20 anos atrás, quando eu era reitor da Universidade de Bogotá fui conhecido no país por ser alguém que andava de bicicleta. Porém, naquele tempo algumas pessoas achavam um absurdo uma pessoa que tinha um cargo como eu ficar pedalando por aí. Mas isso me aproximava da cidade, me fazia ver a realidade cotidiana. Além disso, era uma excelente forma de me exercitar. Agora, para se ter uma ideia, Bogotá se tornou a única cidade do mundo em que o Dia Mundial Sem Carro é legalmente quase tão sólido quanto a constituição. E isso não sou eu quem falo, fizemos uma consulta popular e o uso das bicicletas foi aprovado quase que integralmente pela sociedade. Outro ponto positivo a respeito das ciclovias esta no fato de que uma quantidade de jovens se dispõem diariamente a ajudar aqueles que não sabem andar de bicicletas e fiscalizam aqueles que tem alguma conduta ilegal, como andar nas calçadas, ou não observam os sinais. Quero dizer, não precisamos de um fiscal de trânsito para os ciclistas, pois eles mesmos já fazem esse trabalho. Isso é a prática da cultura cidadã.

Sul21: Algum outro exemplo desta prática?

Antanas Mockus: No trânsito mesmo, as pessoas que andam de carro possuem dois cartões, um com um desenho de uma mão com um polegar pra cima e outro com um polegar para baixo. Se um motorista comete uma infração, como parar na faixa de pedestres, ou andar na contramão, por exemplo, os demais lhes mostram os cartões. Isso é uma política de psicologia social. Todos acabam cuidando. Além disso, eu coloquei mímicos nas ruas para fazer ironias com àqueles que não cumprem a lei de trânsito. Ao invés deles serem multados e penalizados, eles são “constrangidos” publicamente pela ação. Como o motorista ironizado também tem a responsabilidade de cuidar, ele acaba repensando na atitude, ao invés de ficar enraivado por ser multado.

domingo, 4 de dezembro de 2011

O lugar de Rosa Luxemburgo na história

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Revolutas - [Tonny Cliff] Franz Mehring, biógrafo de Marx, não exagerava quando disse que Rosa Luxemburgo era o melhor cérebro depois de Marx. Mas ela não trouxe apenas seu cérebro para o movimento da classe trabalhadora, deu tudo o que tinha. Seu coração, sua paixão, sua forte vontade, sua própria vida.

Rosa foi, acima de tudo, uma socialista revolucionária. E entre os principais líderes socialistas revolucionários ela tem um lugar histórico próprio.
Quando o reformista rebaixou o movimento socialista para exigir apenas o "estado de bem estar”, negociando com o capitalismo, tornou-se de fundamental importância fazer uma crítica revolucionária deste servo do capitalismo. É verdade que outros líderes do marxismo - Lênin, Trotsky, Bukharin, etc - conduziram uma luta revolucionária contra o reformismo. Mas eles tinham uma frente limitada contra a qual lutar. Na Rússia, seu país, as raízes desta erva daninha eram tão fracas e finas, que poderiam ser arrancadas de uma vez. Num lugar em que estava muito presente a ameaça de exílio na Sibéria ou morte pela forca para cada socialista ou democrata, quem poderia se opor, em princípio, ao uso de violência por parte do movimento operário? Quem, na Rússia czarista, poderia ter sonhado com uma via parlamentar para o socialismo? Quem poderia argumentar a favor de uma política de governo de coalizão, e que não tinha de fazê-lo? Onde apenas existiam sindicatos, quem poderia considerá-los como a panaceia do movimento operário? Lênin, Trotsky e outros dirigentes bolcheviques russos não precisavam combater os argumentos do reformismo com uma análise cuidadosa e precisa. Tudo o que precisavam era de uma vassoura para varrer o monte de esterco da história.
Na Europa Central e Ocidental, o reformismo conservador tinha suas raízes muito mais profundas, influência muito mais ampla sobre os pensamentos e maneira de ser dos trabalhadores. Os argumentos dos reformistas tinham que ser respondidos por outros melhores, e nisto Rosa foi excelente. Nestes países, o bisturi é uma arma muito mais útil do que a marreta de Lênin.
Na Rússia czarista, a maioria dos trabalhadores não estava organizada em partidos políticos ou sindicatos. Não havia a ameaça de surgirem poderosos aparatos controlados por uma burocracia ascendente da classe trabalhadora, como os movimentos operários bem organizados na Alemanha, e era natural que Rosa tivesse uma visão antecipada e mais clara do papel da burocracia sindical do que Lênin ou Trotsky. Ela percebeu muito antes que a iniciativa dos trabalhadores era a única força capaz de romper o emaranhado da burocracia. Seus textos sobre este assunto podem ser uma inspiração para os trabalhadores nos países industriais avançados, e são uma contribuição à luta para libertar os trabalhadores da ideologia perniciosa do reformismo burguês mais valiosa do que a de qualquer outro marxista.
Na Rússia, os bolcheviques sempre formaram uma grande e importante parcela dos socialistas organizados. Mas nem sempre, como seu nome sugere, eram a maioria. Por isso nunca emergiu realmente como um problema a questão da atividade de uma pequena minoria marxista conduzindo de forma conservadora uma organização massa. Demorou muito tempo para Rosa Luxemburgo desenvolver a correta aproximação a esta questão vital. O princípio que a guiava era: estar com as massas em todos os seus movimentos, e tentar ajudá-la. Por isso se opôs ao abandono da principal corrente do movimento operário, qualquer que fosse seu grau de desenvolvimento. Sua luta contra o sectarismo é extremamente importante para o movimento operário no Ocidente, especialmente hoje, quando o estado de bem-estar é um sentimento tão presente. O movimento trabalhista britânico, em particular, tem sofrido com o sectarismo e pode se inspirar em Rosa Luxemburgo para estabelecer uma luta contra o reformismo, com cuidado para não degenerar em uma fuga. Ela ensinou que um revolucionário não deve nadar com a corrente do reformismo, ou sentar-se a margem e olhar na direção oposta, ele deve nadar contra a corrente.
O conceito de Rosa Luxemburgo sobre as estruturas das organizações revolucionárias, que deviam ser construídas de baixo para cima, sobre uma consistente base democrática, se adapta às necessidades do movimento dos trabalhadores nos países avançados muito mais que a concepção de Lênin de 1902-1904, copiada pelos stalinistas em todo o mundo, adicionando um toque de burocracia.
Ela compreendeu mais claramente do que ninguém que a estrutura do partido revolucionário e as relações mútuas entre o partido e a classe teria grande influência, não só na luta contra o capitalismo e pelo poder dos trabalhadores, mas também sobre o destino deste poder. Estabeleceu profeticamente que sem a ampla democracia dos trabalhadores, "burocratas atrás de suas mesas" tomariam o poder político das mãos dos trabalhadores. Ela disse: "O socialismo não pode ser concedido ou implementado por um decreto".
A combinação de espírito revolucionário e compreensão clara da natureza do movimento operário na Europa ocidental e central estava relacionada, de alguma forma, com sua determinada marca de nascimento no Império czarista, sua longa permanência na Alemanha e sua plena atividade no movimento operário polonês e alemão. Qualquer um de menor estatura teria sido assimilado em um dos dois ambientes, mas não Rosa Luxemburgo. Para a Alemanha ela levou o espírito "russo", o espírito da ação revolucionária. Para a Polônia e a Rússia levou o espírito "ocidental" de confiança, democracia e auto-emancipação dos trabalhadores.
Sua obra “A acumulação do capital” é uma contribuição importante para o marxismo. Ao lidar com as relações entre os países industriais avançados e países agrários atrasados, dá destaque para a importante ideia de que o imperialismo, ao mesmo tempo em que estabiliza o capitalismo por um longo período, ameaça enterrar a humanidade sob suas ruínas.
Sua interpretação da história, que ela concebia como o resultado da atividade humana era crítica, dinâmica e não fatalista, e ao mesmo tempo revelava as profundas contradições do capitalismo. Rosa não considerou como inevitável a vitória do socialismo. Pensava que o capitalismo poderia ser tanto a ante-sala do socialismo como da barbárie. Nós, que vivemos à sombra da bomba H devemos interpretar este aviso e usá-lo como um estímulo à ação.
No final do século 19 e início do século 20, o movimento operário alemão, após décadas de paz, caiu na ilusão de continuidade desta situação. Aqueles que testemunharam as negociações sobre o desarmamento controlado, as Conferências de Cúpulas, Nações Unidas... o melhor que podemos fazer é aprender a partir da análise clara de Rosa Luxemburgo sobre os laços inquebráveis entre a guerra e o capitalismo, e sua insistência de que a luta pela a paz é inseparável da luta pelo socialismo.
Sua paixão pela verdade, fez Rosa Luxemburgo ter repulsa por qualquer pensamento dogmático. No período em que o stalinismo, transformou grande parte do marxismo em seu dogma, espalhando desolação no campo das ideias, seus textos são revigorantes e vitalizantes. Para ela não havia nada mais intolerável que reverenciar as "autoridades infalíveis." Como verdadeira seguidora de Marx, foi capaz de pensar e agir de forma independente do seu mestre. Apesar de compreender o espírito dos seus ensinamentos, Rosa Luxemburgo não perdeu as suas próprias faculdades críticas simplesmente repetindo as palavras de Marx, mas adaptando suas conclusões a diferentes situações. A independência de pensamento de Rosa Luxemburgo é a maior inspiração a todos os socialistas, em todos os lugares e a qualquer hora. Assim, ninguém censuraria mais fortemente do que ela qualquer tentativa de canonizá-la, torná-la uma "autoridade infalível" na condução de uma escola de pensamento ou ação. Rosa gostava muito do conflito de ideias como um meio de se aproximar da verdade.
Num período em que tantos se consideram marxistas e privam o marxismo de seu conteúdo humanista mais profundo, ninguém pode fazer mais do que Rosa Luxemburgo para nos livrar da cadeia sem vida do materialismo mecanicista. Para Marx, o comunismo (ou socialismo) era um "verdadeiro humanismo", "uma sociedade em que o pleno e livre desenvolvimento de cada indivíduo é o princípio dominante" (1). Rosa Luxemburgo foi a personificação dessas paixões humanas. A simpatia pelos pobres e oprimidos era motivo central em sua vida. Sua profunda emoção e sentimentos com os sofrimentos do povo e todas as coisas vivas estão expressos em tudo o que disse ou escreveu, em suas cartas da prisão e nos escritos de sua mais profunda pesquisa teórica.
Rosa Luxemburgo sabia que onde há tragédia humana em uma escala épica, as lágrimas não ajudam. Seu lema, como de Spinoza, poderia ter sido: "Não chore, não ria, mas compreenda", embora ela mesma teve sua cota de lágrimas e risos. Seu método voltava-se para a revelação das tendências da vida social, a fim de ajudar a classe trabalhadora a usar o seu potencial da melhor maneira possível em conjunto com o desenvolvimento objetivo. Ela apelou mais para a razão humana do que para a emoção.
Uma profunda simpatia humana, um desejo sincero de verdade, uma coragem e um cérebro primeira linha foram unidos em Rosa Luxemburgo para torná-la uma socialista revolucionária. Como expressou Clara Zetkin, sua amiga íntima, em seu funeral de despedida:
"Em Rosa Luxemburgo a ideia socialista foi uma paixão dominante e poderosa do coração e do cérebro, uma paixão verdadeiramente criativa que queimava incessantemente. A principal tarefa e a ambição dominante desta incrível mulher foi preparar o caminho para a revolução social, abrindo o caminho da história para o socialismo. Sua maior felicidade foi a experiência da revolução, lutar em todas suas batalhas. Devotou sua vida inteira e todo o seu ser para o socialismo com uma vontade, determinação, desprendimento e fervor que as palavras não podem expressar. Ela se entregou totalmente à causa do socialismo, não só pela sua morte trágica, mas ao longo de sua vida, cada dia e a cada minuto, através das lutas de muitos anos ... Foi a espada afiada, a chama viva da revolução ".

1. Marx, K; O Capital, Vol.I, p.649.

Cuba, qualidade e confiabilidade em serviços e tecnologias médicas

  Da agência  PRENSALATINA
Imagen activaCuba conta com uma ampla faixa de bens e tecnologias médicas desenvolvidas na ilha; nos quais se combina competitividade de preços, qualidade e alta confiabilidade, asseguraram especialistas durante a recém concluída XXIX Feira Internacional de Havana (FIHAV 2011).

  A Clínica Cira García, destinada à atenção de turistas e estrangeiros, entidades nacionais que operam em divisas, pessoal diplomático, entre outros dá resposta a todas as necessidades médicas clínicas e cirúrgicas, indicou à Prensa Latina, a doutora María Antonieta González, vice-diretora dessa entidade.

Inovadoras técnicas e programas avançados, junto a uma equipe de especialistas de alto nível garantem a qualidade da atenção prestada no prestigioso centro.

Destacado resulta também o Complexo Internacional Frank País, onde se aplica a moderna técnica de fixadores externos, exclusividade da ortopedia cubana, e outros aditamentos fabricados no próprio hospital, com os quais se atendem deformidades da coluna vertebral, tumores ósseos e de partes macias, paralisias periféricas e paraplégicas, infecções reumáticas e lesões de todo tipo, transtornos neurológicos e osteo-miarticulares, bem como toda a reabilitação pós-operatória que necessitar o paciente.

Sob a eficaz direção do prestigioso Professor Rodrigo Alvarez Cambras, no complexo brinda-se um valioso serviço e uma rápida e eficaz restauração.

Monoclinais e vacinas contra o câncer, do Centro de Imunologia Molecular, comercializadas pela empresa CIMAB S.A; bem como compostos de origem natural, de grande valor nutricional, e outros para controle de vetores, elaborados pelo grupo empresarial Labiofam, sobressaíram-se também durante a mostra expositiva.

Outro dos logros apresentados na FIHAV foi o Heberprot-P, um composto do Centro de Engenharia Genética e Biotecnologia (CIGB), que tem revolucionado o tratamento das úlceras de origem diabética, ao reduzir ao mínimo o número de amputações de membros inferiores por esta causa.

Cerca de 41 mil pacientes de 12 países foram tratados até o momento com este medicamento fruto da biotecnologia cubana, assinalou Manuel Raízes, especialista CIGB.

A vacina anti-meningite, a vax-MEN-AC, específica para os sorotipos A e C, logros da colaboração sul-sul, enfatiza a carteira de produtos da empresa Vacinas Finlay S.A.

Este é um biológico à medida de um problema africano para o qual trabalharam Cuba e Brasil. O princípio ativo deste produto indicado a pessoas que vivem em zonas da África onde a doença é altamente epidêmica, foi fabricado na ilha. Mais tarde se liofilizou e envasou na nação sul-americana, explicou Jorge Menéndez, diretor médico de Vacinas Finlay.

Milhões de doses já foram entregues à Organização Mundial da Saúde (OMS) para sua distribuição e aplicação, comentou o especialista.

Vacinas Finlay S.A., é a representante exclusiva do Instituto Finlay, um reconhecido centro de investigação científica localizado no pólo oeste da capital cubana, onde se trabalha em outros importantes compostos.

Tal é o caso da vacina anti-meningocócica MENGOC-BC, considerada o produto líder do Instituto, um preparado único no mundo que se utiliza numa grande quantidade de nações, em particular da América Latina, assegurou Menéndez.

Esta vacina surgiu em Cuba pela necessidade de enfrentar um aumento da morbidade habitual da doença causada pelo meningococo B, que em 1983 atingiu a maior taxa de incidência na população total.

A doença deixou de constituir um problema de saúde para os cubanos graças à descoberta da mesma e passou a fazer parte do esquema nacional de imunização.

Indicou também que as crianças nascidas em Cuba estão protegidos contra 13 doenças infecciosas por meio de vacinas, oito das quais são produzidas no referido centro.

Assim mesmo detalhou que na atualidade existem novos projetos de investigação para o desenvolvimento de biológicos contra o cólera, o pneumococo e a tuberculose, bem como em vacinas combinadas e outros antígenos.

Tecnologias SOMA, aplicadas para o diagnóstico de infecções congênitas, crônicas não transmissíveis, vigilância epidemiológica e a certificação do sangue, derivadas do Centro de Inmunoensayo, ocupam um espaço importante no desenvolvimento médico da ilha, onde também se trabalha no aperfeiçoamento de biomateriais para implantes ósseos, equipes de audiologias, eletro-encefalografia, eletro-miografía e potenciais evocados, através da Neuronic S.A. firma comercializadora de tecnologias resultado da investigação do Centro de Neurociências.

O homem que dá tapas na cara dos liberais

  Juremir Machado no CORREIO DO POVO

Paul Krugman é Prêmio Nobel de Economia.
Parece que esse prêmio tem outro nome.
Mas é assim que o mundo, inclusive o econômico, o vê.
Krugman escreve no pouco importante New York Times.
A poderosa Folha de S. Paulo o reproduz.
Outros no Brasil fazem o mesmo.
Toda semana Krugman dá uma bofetada na cara dos perfeitos idiotas neoliberais latino-americanos.
Na verdade, dá uma bofetada na cara dos perfeitos idiotas liberais do mundo inteiro.
Um exemplo sobre a crise europeia:
“Como as coisas deram tão errado? A resposta que você ouve o tempo todo é que a crise do euro foi causada por irresponsabilidade fiscal. Ligue sua TV e você provavelmente encontrará algum especialista declarando que se os Estados Unidos não cortarem gastos, nós acabaremos como a Grécia”.
A bofetada: “Mas a verdade é quase o oposto. Apesar dos líderes europeus continuarem insistindo que o problema é o gasto excessivo nos países devedores, o problema real é gastos insuficientes na Europa como um todo. E seus esforços para consertar as coisas, exigindo austeridade cada vez mais dura, têm exercido um grande papel no agravamento da situação”.
Uau!
Toda vez que ouvir um especialista na televisão dizendo que ar arrogante que o problema é o excesso de gastos, pense em Krugman e tenha a certeza de que está vendo um ideólogo cego pela sua ignorância falar.
Não se sinta intimidado.
Toda vez que ouvir a propaganda daquela campanha de gasolina com imposto zero, saiba que é demagogia.
Não existe nem pode existir (nem deve) imposto zero.
Mais uma porrada de Krugman do seu artigo mais recente:
“A propósito, grande parte dos empréstimos foi concedida ao setor privado, não para governos. Apenas a Grécia apresentava grandes déficits orçamentários durante os anos bons; a Espanha na verdade apresentava superávit às vésperas da crise. Então a bolha estourou. Os gastos privados nos países devedores caíram acentuadamente. E a pergunta que os líderes europeus deveriam ter feito era como impedir que esses cortes de gastos causassem uma recessão por toda a Europa. Em vez disso, eles responderam aos inevitáveis aumentos de déficit, causados pela recessão, exigindo que todos os governos –e não apenas os dos países devedores– cortassem gastos e aumentassem impostos. Os alertas de que isso aprofundaria a recessão foram rebatidos. “
A Europa, diz Krugman, precisa aceitar um pouco mais de inflação para sair do buraco.
Como é que deram um Nobel de economia para um ignorante desses?
Como é que não deram o Nobel para os articulas da Veja, que só falam em cortar gastos?
Krugman bate no fígado: “A combinação de austeridade para todos e uma obsessão mórbida do banco central com a inflação impossibilita que os países devedores escapem da armadilha da dívida, o que é uma receita para vários calotes de dívida, corridas aos bancos e colapso financeiro geral. Eu espero, para nosso bem assim como para o deles, que os europeus mudem de curso antes que seja tarde demais. Mas, para ser honesto, eu não acredito que mudarão. Na verdade, é muito mais provável nós os seguirmos na trilha para a ruína”.
Esse sujeito é um perigo.
Ousa contestar tudo o que nossos pseudo-especialistas afirmam todos os dias com ares de responsáveis, sérios, ponderados, equilibrados, conhecedores, engravatados e o escambau.
O soco do nocaute:
“Assim, da próxima vez que você ouvir alguém dizendo que se não cortarmos gastos nós nos transformaremos na Grécia, sua resposta deve ser a de que se cortarmos gastos enquanto a economia ainda está em depressão, nós nos transformaremos na Europa. De fato, nós já estamos a caminho”.
Nada como uma boa credencial.

sábado, 3 de dezembro de 2011

“Gozar virou uma obrigação que não tem nada a ver com prazer”, afirma historiadora


"O brasileiro continua profundamente racista, machista e homofóbico"

Rachel Duarte no SUL21

Sexo. Quais heranças do passado ainda estão presentes na sociedade quando o assunto é sexualidade e erotismo? A historiadora paulista Mary Del Priore, especialista em História do Brasil, conta como foi o rápido processo de transformação do comportamento da sociedade brasileira desde os tempos da censura até os dias de hoje. Autora do livro Histórias Íntimas: Sexualidade e Erotismo na História do Brasil (2010), Mary Del Priore descreve como, desde o século XVII, o sexo é considerado algo sujo, principalmente por influência católica. Apesar de evoluírem para relações mais livres, homens e mulheres ainda sofrem para compreender as mudanças e sua própria sexualidade.
De acordo com a historiadora, ainda que as pessoas digam que convivem melhor hoje com a homossexualidade, boa parte da sociedade vive uma dupla personalidade. “Na vida pública o brasileiro é descolado, gosta de piada suja, paquera a mulher do próximo e topa todas. Mas, na sua vida privada e intimidade, ele continua profundamente racista, machista e homofóbico”, afirma.
Outro aspecto que Mary Del Priore analisa na entrevista ao Sul21 é que as conquistas das mulheres ao longo da história foram positivas sob muitos aspectos, mas que o Brasil ainda careceria de políticas públicas para o gênero feminino. “Temos muitas mulheres nos governos, mas ainda precisamos de ações concretas visando a garantia de direitos”, critica. Ela cobra das próprias mulheres a mudança de postura diante da liberdade sexual para o enfrentamento do que chama de “cachorrice”, um comportamento massificado de mulheres que agem de forma a contribuir com a manutenção de esteriótipos machistas. “É um anacronismo a gente achar que as mulheres de antigamente — por não gozarem tanto quanto as de hoje — eram frustradas”, afirma.

Sul21 – A senhora lançou um livro sobre sexualidade e erotismo na História do Brasil. O quanto a sociedade se modificou e o quanto ainda estão presentes as heranças dos séculos passados?

Mary Del Priore - Sexualidade e erotismo sempre foram assuntos tratados na literatura mundial. Na Ásia, com as poesias eróticas; na Europa, principalmente na Itália e na França, houve grande produção de textos e contos eróticos nos séculos XVII e XVIII. Mas, aqui no Brasil, esta literatura só vai aparecer no final do século XIX. São textos curiosos porque os termos da linguagem chula e os palavrões eram alterados em razão da censura que sempre houve em relação ao assunto, então surgiam coisas engraçadas como ‘apêndice varonil’ ou ‘cetro’. Nada era dito de forma explícita. Sempre tivemos um mal estar para tratar das questões do sexo e do erotismo no Brasil. Estudos sobre a história da sexualidade brasileira são raros. Apareceram, por exemplo, implicitamente em outros trabalhos de autores como Ronaldo Vainfas e do antropólogo baiano Luis Moti. Poucos estudos foram sistemáticos.
"O sexo no Brasil, em razão da presença da Igreja Católica, de outras igrejas e de uma sociedade patriarcal, sempre foi sinônimo de sujeira, de pecado ou de alguma coisa que tinha que ser escondida debaixo do tapete"

Sul21 – Qual é a influência da miscigenação na sexualidade brasileira em termos de formação de padrões estéticos, corporais e sexuais?

Mary Del Priore – É uma história de muita repressão e ao mesmo tempo de muito espaço. O sexo no Brasil, em razão da presença da Igreja Católica, de outras igrejas e de uma sociedade patriarcal, sempre foi sinônimo de sujeira, de pecado ou de alguma coisa que tinha que ser escondida debaixo do tapete. Só podemos pensar em liberação nos anos 70, quando houve um movimento mundial não só de afirmação das minorias (mulheres, gays), mas também movimentos de liberação de costumes amplificados pela pílula anticoncepcional. Foi a época do maio de 68 na França, do movimento hippie nas universidades americanas, da batida pesada do rock com letras que falavam de sexo como “(I Can´t Get No) Satisfaction”, dos Rolling Stones. Então, na época, toda esta discussão mundial começou a chegar à praia brasileiras, contaminando a juventude universitária que se unia no movimento de militância contrária ao governo militar. A liberação sexual se integrou a isso. Então, eu digo que os anos 70 e 80 é quando todos os tabus começaram a ser colocados em xeque por nossa sociedade. Discussões sobre o orgasmo, discussões sobre casais mais igualitários, divórcio. É lógico que a sociedade machista respondeu rapidamente. Tal período de libertação foi quando ocorreram os crimes mais violentos contra as mulheres brasileiras. Isto deu origem ao primeiro movimento feminista intitulado “Quem ama não mata”. Mulheres foram mortas por usarem biquini, por fumar, por assistirem ao seriado Malu Mulher. Tudo era motivo para os homens mostrarem seu machismo frente às mudanças em curso.

Sul21 – No século 21, é possível dizer que sexo ainda é tabu?

Mary Del Priore – As regiões são diferentes. Rio Branco, no Acre, é diferente de Porto Alegre. A periferia do Amapá também não tem nada a ver com a periferia do Rio de Janeiro. O que eu acho interessante e procuro explorar no meu livro é a permanência de determinadas características que são muito antiquadas no que se refere ao sexo. Na vida pública, o brasileiro é descolado, gosta de piada suja, paquera a mulher do próximo e topa todas. Mas, na sua vida privada e intimidade, ele continua profundamente racista, machista e homofóbico. Eu acho lamentável, para um país que é a oitava economia do mundo, o fato de possuir uma cidadania tão partida. As pessoas não podem mais continuar vivendo com estas duas caras. Uma discussão precisará se impor. A legislação que protege as mulheres e garante o casamento homoafetivo ajuda a consolidar certas posições que foram duramente conquistadas. Mas precisamos avançar para uma tolerância maior das diferenças e uma aceitação das sexualidades diferentes.
Gozar virou uma obrigação que não tem nada a ver com ter prazer. Tudo isso é reflexo das mudanças muito rápidas e deveria fazer a sociedade brasileira refletir para onde está indo.
"Nas grandes cidades, a religião foi substituída por produtos religiosos"

Sul21 – Qual o limite entre a liberdade e a libertinagem?

Mary Del Priore - Aí é que está. O Brasil sempre foi um país pobre. Até a metade do século XIX, a maior parte das pessoas tinha relações sexuais em esteiras, no chão duro ou em redes. As pessoas não tinham dinheiro para comprar uma cama. O quarto do casal é uma coisa inventada e construída pela privacidade na metade do século XIX, assim como a chegada dos produtos de higiene que permitiram as relações com mais liberdade. Este processo de construção da privacidade foi completamente detonado com a chegada da era tecnológica. Hoje, com a aparelhagem eletrônica, computadores, câmeras, a internet, qualquer pessoa, mesmo na sua “privacidade”, pode se dar a ver. Qualquer moça pode mostrar sua nudez, se prostituir via internet. Temos o aumento da pedofilia e prostituição na internet. O mundo da telinha, seja ela do computador ou do celular, abriu uma possibilidade enorme para a pessoa ficar mostrando aquilo que elas têm de mais privado. É muito questionável a passagem desta liberdade para a chamada libertinagem. Eu diria que o que falta é a consciência das pessoas sobre seu próprio corpo e sua própria sexualidade. As transformações ocorreram de forma muito rápida. As mulheres foram drenadas para dentro do mercado de trabalho, associando trabalho com liberdade financeira, pílula, prazer. Foram bombardeadas por uma série de imagens em revistas e na televisão. Criou-se a ideia de que elas tem que gozar. Gozar virou uma obrigação que não tem nada a ver com ter prazer. Tudo isso é reflexo das mudanças muito rápidas e deveria fazer a sociedade brasileira refletir para onde está indo. Falta um momento de pausa para reflexão.

Sul21 – Como alcançar isto diante da complexidade que ainda é enfrentar o tema da sexualidade no Brasil? Qual é o papel do estado neste processo?

Mary Del Priore – Apesar de termos mulheres no poder, falta avançar nas políticas de valorização do gênero feminino. Faltam políticas de amparo da gravidez na adolescência, para crianças abandonadas, para mulheres que trabalham. Temos muitas mulheres na política e poucas políticas de gênero. Um exemplo grosseiro do que eu estou dizendo, é a iniciativa da ministra que tentou impedir a propaganda com a Gisele Bündchen. Ela é uma belíssima modelo, não tenho nada contra ela. Mas, uma propaganda destas na França, em que movimentos de mulheres são muito bem organizados, jamais iria ao ar. Eu acho que a ministra tinha toda a razão de retirar do ar este anúncio na medida em que ele “coisifica” a mulher brasileira e reitera que através do sexo se consegue tudo. Esta associação permanente da mulher como desfrute e com disponibilidade sexual tem que ser combatida.

Sul21 – A mudança comportamental da sociedade contemporânea sofre a influência da mídia, como a senhora mesmo salienta. O quanto mudou desde as chanchadas e contribuições de nomes como Nelson Rodrigues — os quais falavam de erotismo indiretamente, sem serem explícitos como as produções atuais — até os filmes pornográficos, hoje amplamente acessíveis?

Mary Del Priore – Os teóricos procuram matizar tudo isso.  Há quem defenda que a pornografia não é pornográfica. Há também quem defenda que a mídia não dita, ela apenas representa os anseios da sociedade, mas na verdade nós estamos num país de analfabetos, de pessoas muito pouco educadas. Não sou eu que digo isto. Há pesquisas internacionais que apontam o atraso do país em termos educacionais, isto não é novidade nenhuma. E é óbvio que com um baixo nível de escolaridade, o impacto da imagem é muito maior aqui do que em países em que a educação permite o discernimento sobre o que está sendo visto. A imagem acaba modelando comportamentos. Onde há educação, as pessoas se aproximam das informações de forma crítica. O que observamos, por exemplo, é que frente a esta “Cachorrice” — que é o movimento das meninas que frequentam os bailes funks e transam com todos e engravidam sem medir as conseqüências — , há o movimento das “Princesas”, originário das igrejas protestantes, que são moças querem casar virgem e valorizam a castidade. Haverá o momento em que iremos ver mulheres se organizando para  serem identificadas como algo além do que um pedaço de carne.

Sul21 – Qual o peso da igreja na sexualidade dos brasileiros?

Mary Del Priore – De novo temos que considerar as características das diferentes regiões. Nas áreas rurais, por exemplo, as religiões ainda ditam as normas, a igreja organiza a sociedade. As comunidades rurais tendem a ser controladas de forma mais próxima. É difícil que um adultério não seja logo conhecido ou que um gay não seja logo reconhecido e venha ter problemas. Tudo que “foge a regra” é mais fácil de perceber. Nas grandes cidades não. Nelas a religião assume outras formas. A religião institucional foi substituída por produtos religiosos. Shows, cultos, padre que canta e lança CD. Chamo isto de o “difuso religioso” que tomou conta das grandes capitais.
A autoestima masculina está tão baixa que eles passaram a usar o artifício da dor de cabeça para não ter relações sexuais.
Sul21 – Mas o modo como a igreja vê o matrimônio ainda castra e condiciona?
A capa do livro de Mary del Priore

Mary Del Priore – No meu livro, eu discorro sobre como o casamento é concebido pela Igreja Católica nos séculos XII e XIII. Ele acaba sendo uma espécie de não-lugar do erotismo. É apenas o lugar de encontro para a procriação. O mais importante era a família ter filhos. O sexo de lazer e diversão ficava para os homens no bordel. Eu lembro que é um anacronismo a gente achar que as mulheres da época, por não gozarem tanto quanto as de hoje, eram frustradas. Muito pelo contrário, as mulheres tinham outros projetos. A agenda delas era outra. Elas ficavam muito satisfeitas em criarem seus filhos, em serem mães de família, em terem poder de mando dentro de suas casas. O projeto feminino, até os anos 50, foi muito diferente do que o nosso hoje. Hoje é ter carreira, ascensão, é ganhar dinheiro. Nós estamos num percurso muito diferente. Então, enquanto o casamento era o lugar para a procriação, a igreja tinha enorme influência, sobretudo conduzindo os casais na forma estes deveriam se relacionar sexualmente. O sexo deveria ser breve, objetivo. Uma vez que a mulher engravidasse eram suspensas as relações sexuais. Durante a amamentação também não se podia ter relações sexuais. A partir do século XIX, a medicina também passa a exercer um papel importante na sexualidade, tentando associar a família feliz à família saudável. A família saudável era aquela que tinha filhos saudáveis, bem constituídos. Por isso, também se recomendava aos casais que não perdessem tanto tempo rolando na cama durante as relações, porque isso enfraqueceria os corpos. Já o século XX é o da descoberta do corpo, do esporte, da modificação da indumentária, da entrada da mulher no mercado de trabalho, do aparecimento da lingerie. Claro que estas questões impactam no casamento. Discussões de relações mais igualitárias começam a se fazer presentes. À medida que a mulher foi ganhando dinheiro, passou a controlar a sua procriação e foi em busca do prazer. Este se tornou um tema novo para os casais. Hoje as coisas estão bastante diversificadas também. Os homens também alegam estar com dor de cabeça, o que antes eram coisas das mulheres. Os homens estão sentindo o impacto destas transformações. A autoestima masculina está tão baixa que eles passaram a usar o artifício da dor de cabeça para não ter relações sexuais.
(risos)

Sul21 – O comportamento na era pós-moderna ou contemporânea caminha para termos uma futura sociedade poligâmica e bissexual?

Mary Del Priore – Não. No Brasil ainda se casa muito. O casamento ainda é uma instituição importante. O número de divórcios aumentou, mas ainda há a preocupação em constituir famílias, em se unir no matrimônio. A família ainda é uma instituição muito valorizada.  As relações parentais mudaram muito. As mulheres, por estarem no mercado de trabalho, passaram a ter filhos cada vez mais tarde. Então, quando eles vêm, são extremamente valorizados. O número de filhos caiu brutalmente para uma média de dois por família, não de seis como na década de 60. Tudo isso leva a uma valorização da vida do casal monoparental. Portanto, as coisas mudaram. O que é interessante, segundo a pesquisa do IBGE, é que homens e mulheres são realmente sexos opostos, no sentido de que eles definições muito diversas a respeito do casamento. Para o homem brasileiro, o casamento é o momento de constituir família. Portanto, brigas ou infidelidades não causam tantos arranhões. Para as mulheres é uma questão de amor e sobretudo o desejo de viver uma paixão. Quando elas não veem cumprida esta agenda, querem mudar de parceiro. Por isso, temos aumento de casamentos e também de divórcios.
Podemos terminar como na Alemanha, onde na maior parte dos domicílios vivem pessoas sozinhas. Não se precisa do outro. Você faz sexo sozinho, se comunicando e masturbando através da telinha.

Sul21 – Segundo dados do IBGE, as pessoas casam e se separam cada vez mais. Isto não seria uma espécie de poligamia?

Mary Del Priore - Poligamia eu acho que não. Mas eu até encerro meu livro dizendo que esta espetacularização do sexo trazida pela internet — em que se pode fazer sexo virtual, ver sexo na telinha, sozinho diante da mesma — , aponta para um individualismo crescente das relações. Podemos ficar como a Alemanha, onde na maior parte dos domicílios vivem pessoas sozinhas. Não se precisa do outro. Você faz sexo sozinho, se comunicando e masturbando através da telinha. Então, há autores que defendem que esta é a nossa tendência também. E há outros, mais liberais, que dizem que isto são experiências como outras quaisquer. Eu costumo dizer que, como historiadora, eu só posso olhar para o retrovisor. Eu não consigo projetar nada, isto é para os sociólogos. Mas, diante destas visões todas, acho que ninguém ousa dizer o que será daqui 30 anos.

Sul21 –  A decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a união homoafetiva e o aumento crescente de gays assumidos causam reações violentas no país. Parece que a homossexualidade passou a existir só agora.

Mary Del Priore – A história da homossexualidade no Brasil é horrível. Os casais homossexuais sempre sofreram brutalmente. O jovem homossexual, seja homem ou mulher, sofre muito com a segregação familiar. Se olharmos para trás, veremos que esta perseguição começa no século XVI, com as visitas da Santa Inquisição ao Brasil. Lá, já perseguiam os sodomitas. Eles perseguiam mais os homens do que as mulheres. Eles achavam que aquilo que as mulheres podiam fazer entre elas, como não haveria desperdício de sêmen, não era um pecado tão grave, diferentemente das relações entre homens. Toda a medicina do século XIX vai perseguir o que foi chamado de “missexuais”. Vai definir que estas pessoas são doentes. Vemos isto inclusive nos manuais de educação sexual que são publicados durante o governo Getúlio Vargas. A intenção era extirpar os homossexuais do Brasil. A obsessão pela virilidade torna o homossexual um bode expiatório. Como se não bastasse, o anúncio da chegada da Aids no Brasil, nos anos 80, foi feito no programa Fantástico, com o locutor, de voz fúnebre, anunciando a doença como uma doença de gays. Até os anos 80, os gays foram sempre associados a coisas terríveis das quais eles não tinham a menor culpa. Foi algo desumano e que só se explica pelo profundo machismo da nossa sociedade.

Sobre Gaza

O Governo de Israel segue desafiando as leis internacionais e as resoluções da ONU


Chico Alencar no BRASILdeFATO

Participei, junto com a Deputada Marina Sant´Anna (PT/GO), de 20 a 25 de novembro agora, de uma grande delegação de parlamentares de várias partes do mundo para testemunhar o sofrimento contínuo da população de Gaza, a convite do Council for European Palestinian Relations. E a partir dessa visita, pressionar as autoridades de Israel para acabar com o bloqueio ilegal da Faixa de Gaza e com as punições coletivas contra a população desse território. A situação do povo palestino é uma afronta à Humanidade e à paz mundial.
Mais de três anos e meio após o início do bloqueio à Gaza, e passados dois anos da operação “chumbo derretido”, do governo israelense, condenada internacionalmente, a situação humanitária e econômica de 1,5 milhões de habitantes de Gaza continua dramática, apesar da suposta “diminuição” do bloqueio. Oito em cada dez pessoas dependem da ajuda internacional e 39% estão desempregados! O Governo de Israel segue desafiando as leis internacionais e as resoluções da ONU.  A agência das Nações Unidas para Refugiados (UNRWA), que fornece educação básica, saúde e cobre as necessidades de habitação aos refugiados palestinos, tem apenas 7% dos seus projetos de construção aprovados por Israel. Desde a “diminuição” do bloqueio, apenas uma pequena fração dos materiais necessários para a realização destes 7% de obras aprovadas consegue realmente entrar no território. Grande parte dos projetos do UNRWA decorrem da necessidade de reconstruir as infraestruturas básicas, que foram destruídas durante o ataque israelense contra a população de Gaza, em janeiro de 2009. Há hoje necessidade de muitas novas moradias em Gaza.
Além disso, embarga-se o aumento no fornecimento de combustível para o funcionamento da usina elétrica de Gaza. Isso resulta em severa escassez de eletricidade e cortes de energia elétrica, inclusive em hospitais. Muitas das passagens em Gaza continuam fechadas, apesar das promessas de Israel de reabri-las. Nenhum tipo de exportação é autorizada a deixar Gaza. 1/3 das terras agrícolas e 85% de suas águas territoriais permanecem inacessíveis para os civis: são parte da “zona tampão” de Israel, mantida pela política de ‘atirar a olho nu’ por soldados israelenses.  22 membros do parlamento palestino estão detidos em prisões israelenses, e nos inserimos em campanha internacional pela sua imediata soltura.
Apesar disso tudo, o povo palestino resiste, pulsa, se recupera, afirma e reconstrói. Pudemos constatar o empenho de idosos, adultos, jovens e crianças, mulheres e homens, gente simples e autoridades, na construção de sua soberania, identidade e direito à pátria. A Palestina é uma terra histórica onde vivem, há séculos, mulçumanos, hebreus,  cristãos e ateus. Não é justo que ali só exista um Estado, não laico, em detrimento dos árabes e da diversidade de costumes e crenças. O reconhecimento do Estado Palestino, cuja criação foi determinada pela ONU em 1947, é processo irreversível, apesar da reação dos governos dos EUA e Israel, cada vez mais isolados nesse intento antidemocrático.
Todas as correntes políticas palestinas, coincidindo com nossa visita, fizeram acordo para realizar eleições nacionais em maio do próximo ano. A luta avança, portanto. O(a)s 78 parlamentares europeus e sul americanos lá presentes firmaram, em comovente ato público, a “Resolução de Gaza”, que reproduzo:
“O tempo dos discursos acabou. Governos e Organizações de Direitos Humanos de todo o mundo precisam empregar todos os poderes pacíficos à sua disposição para forçar um fim ao bloqueio. Essas ações devem incluir sanções econômicas, boicotes culturais e ações diplomáticas como a convocação dos embaixadores para retornarem aos seus países.
A Delegação Internacional convoca todos os governos e ONGs para usar esses meios e exigir:
- Fim às proibições de exportação;
- Fim a todas as proibições de importação e restrições relacionadas aos bens de consumo, saúde e indústria/negócios;
- Suspensão de todo controle sobre as águas territoriais de Gaza;
- Abertura da “Zona Tampão” ao longo da fronteira de Gaza com Israel;
- Trânsito livre de pessoas dentro e fora de Gaza, limitada apenas por verificações razoáveis de segurança e requerimentos de documentação;
- Aceitação internacional das escolhas democráticas do povo palestino nas próximas eleições, e um compromisso de se relacionar construtivamente com os representantes eleitos.
Os membros da Delegação irão trabalhar através de suas próprias redes para pressionar pela implementação desta Resolução”.


Chico Alencar é deputado federal (PSOl-RJ)

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

O Projecto para Redefinir o Islão: A Turquia como o Novo Modelo e “Islão Calvinista”


Mahdi Darius Nazemroaya*
O projecto de manipular e redefinir o Islão visa subordiná-lo aos interesses da Ordem Mundial capitalista dominante através de uma nova onda de “islamismo político”. Uma nova corrente do Islão está se moldando no que vem a ser chamado de “Islão Calvinista” ou uma “Versão Muçulmana da Ética Protestante do Trabalho”.
Este “Islão Calvinista” também não tem problemas com o “reba” ou sistema de juros, que é proibido pelo Islão E é este sistema que é utilizado para escravizar os indivíduos e sociedades com as correntes do débito ao capitalismo global. E é neste contexto que o Banco Europeu de Reconstrução e Desenvolvimento (EBRD) está clamando por supostas “reformas democráticas” no Mundo Árabe.


Como Washington e seu bando marcham para o Coração da Eurásia, eles têm tentado manipular o Islão como uma Ferramenta Geopolítica. Têm criado um caos político e social no processo. No decorrer do caminho têm tentado redefinir o Islão e subordiná-lo aos interesses do capital global inaugurando uma nova geração que se diz islâmica, em sua maioria, entre os próprios árabes.
A Turquia em sua presente forma é apresentada como um modelo democrático a ser seguido pelas massas árabes rebeldes. É verdade que Ancara tem progredido se compararmos aos dias em que os Curdos eram proibidos de falar em público, mas a Turquia não é uma democracia funcional, ela se parece muito mais com uma cleptocracia com tendências fascistas.
Os militares continuam desempenhando um papel importante nos negócios governamentais e de Estado. O termo “Estado profundo” que denota um Estado dirigido secretamente do topo para baixo por incontáveis pessoas e organizações, de facto, se originou na Turquia. Os direitos civis continuam a ser desrespeitados na Turquia e os candidatos a cargos públicos precisam passar por aprovação do aparato estatal e do grupo que o controla, o que serve para tentar filtrar qualquer um que queira ir contra o status quo na Turquia.
A Turquia não tem sido apresentada como um modelo democrático para os árabes por suas qualidades. Ela é apresentada como um modelo político para os árabes por causa do seu projecto político e socioeconómico “bida” (inovação) que envolve a manipulação do Islão.
Embora seja muito popular, a Justiça Turca e o Partido do Desenvolvimento ou JDO (Adalet ve Kalkinma ou AKP) chegou ao poder em 2002 sem nenhuma oposição dos militares turcos e das cortes turcas. Antes deste partido chegar ao poder a tolerância dos militares ao Islão político era muito baixa. O JDP/AKP foi fundado em 2001 e o tempo de sua fundação e sua vitória eleitoral em 2002 também estão amarrados ao objetivo de redesenhar o Sudoeste da Ásia e o Norte da África.
Este projecto de manipular e redefinir o Islão visa subordinar o Islão aos interesses da dominante Ordem Mundial capitalista através de uma nova onda de “islamismo político” assim como o JDP/AKP. Uma nova corrente do Islão está se moldando no que vem a ser chamado de “Islão Calvinista” ou uma “Versão Muçulmana da Ética Protestante do Trabalho”. É este modelo que agora é alimentado na Turquia e que estão apresentando ao Egipto e aos árabes por Washington e Bruxelas.
Este “Islão Calvinista” também não tem problemas com o “reba” ou sistema de juros, que é proibido pelo Islão E é este sistema que é utilizado para escravizar os indivíduos e sociedades com as correntes do débito ao capitalismo global. E é neste contexto que o Banco Europeu de Reconstrução e Desenvolvimento (EBRD) está clamando pelas supostas “reformas democráticas” no Mundo Árabe.
As famílias dominantes da Arábia Saudita e os Sheiks Árabes do Petróleo também são parceiros na escravização do Mundo Árabe através do débito. A este respeito o Qatar e os sheikados árabes do Golfo Pérsico estão em um processo de criação de um Banco de Desenvolvimento do Oriente Médio, banco que pretende dar empréstimos aos países Árabes para apoiar sua “transição para a democracia”. A missão de promoção da democracia do Banco de Desenvolvimento do Oriente Médio é um tanto quanto irónica, pois os países que o formam são todos ditaduras convictas.
É esta subordinação do Islão ao capitalismo global que tem causado os atritos internos no Irão.
Abrindo a Porta para uma Nova Geração de Islâmicos
A esperança em Washington é a de que o “Islão Calvinista” se enraíze através de uma nova geração de islâmicos sob a bandeira dos novos Estados democráticos. Estes governos irão efectivamente escravizar os seus países colocando-os mais endividados e vendendo activos nacionais.
Tel-Aviv também irá possuir uma larga influência entre esses novos Estados. De braços dados com esse projecto, diferentes formas de nacionalismo etnolinguísticos e intolerância religiosa também vem sendo promovidos para dividir a região. A Turquia também desempenha um importante papel, pois é um dos berços para essa nova geração de Islâmicos. A Arábia Saudita também desempenha seu papel apoiando a ala militante desses Islâmicos.
A Reestruturação de Washington no Tabuleiro Geoestratégico
Ter com objetivos o Irão e a Síria também faz parte desta ampla estratégia de controlar a Eurásia. Os interesses chineses têm sido atacados em todos os locais do mapa global. O Sudão foi balcanizado, e tanto o Sudão Norte quanto o Sudão Sul estão caminhando para o conflito. A Líbia foi atacada e está em vias de ser balcanizada. Estão pressionando a Síria para que esta se renda e entre na linha. Os EUA e a Inglaterra estão integrando seus conselhos de segurança de modo comparável com os corpos Anglo-Americanos da Segunda Guerra Mundial.
O acto de focar o Paquistão também está ligado à neutralização do Irão e ao ataque aos interesses chineses e qualquer futura união na Eurásia. Acerca disso, os EUA e a OTAN têm militarizado as águas ao redor do Iémen. Ao mesmo tempo, na Europa Oriental, os EUA estão construindo fortificações na Polónia, na Bulgária e na Roménia, visando neutralizar a Rússia e os países da antiga União Soviética. Bielorrússia e Ucrânia também foram postos sob pressão. Todos esses passos são parte de uma estratégia que visa sitiar a Eurásia e também controlar os recursos energéticos ou a afluência energética para a China. Da mesma forma, Cuba e Venezuela estão sob crescente ameaça. O laço militar está sendo apertado globalmente por Washington. O Pentágono, a OTAN e Israel podem ainda seleccionar algum destes novos governos para justificar novas guerras. Parece que os novos partidos islâmicos estão sendo formados e preparados pelos al-Sauds, com a ajuda da Turquia, para tomar o poder das capitais árabes.
É preciso mencionar que Norman Podhoretz, um membro original do Project for a New American Century (PNAC) sugeriu em 2008 um cenário futuro apocalíptico em que Israel lança uma guerra nuclear contra o Irão, a Síria e o Egipto entre outros países vizinhos. Isto pode incluir o Líbano e a Jordânia. Podhoretz descreveu uma Israel expansionista e também sugeriu que os israelenses poderiam ocupar militarmente as regiões petrolíferas do Golfo Pérsico.
O que por outro lado veio como singular em 2008 foi a sugestão de Podhoretz, que foi influenciada pela análise estratégica do Center for Strategic and International Studies (CSIS), de que Tel Aviv poderia lançar um ataque nuclear contra os seus leais aliados egípcios no poder em Cairo sob o Presidente Mubarak. Apesar do facto do antigo regime ainda persistir, não é mais Mubarak quem está no poder. Os militares egípcios continuam dando ordens, mas os islâmicos podem chegar ao poder. Isto está ocorrendo apesar do facto de o Islão continuar a ser demonizado pelos EUA e pela maioria dos aliados da OTAN.
Futuro Desconhecido: O que vem depois?
Os Estados Unidos, a União Europeia e Israel estão tentando utilizar os protestos no Mundo Turco-Arábico-Iraniano para promover os seus próprios objectivos, incluindo a guerra na Líbia e o apoio à insurreição Islâmica na Síria. Juntamente com os al-Sauds, eles estão tentando difundir a “fitna” ou a divisão entre os povos do Sudoeste da Ásia e os do Norte da África. A estratégia Khaligi-Israelense, formada por Tel Aviv e as famílias árabes dominantes no Golfo Pérsico, é crucial para isso.
No Egipto, as revoltas sociais estão longe de terminar e as pessoas estão se tornando mais radicais. Isto está resultando em concessões por parte da Junta Militar no Cairo. Os movimentos de protesto estão agora direcionando as críticas ao relacionamento entre a Junta Militar e Israel. Na Tunísia, os movimentos sociais também estão caminhando para a radicalização.
Washington e seu bando estão brincando com fogo. Eles podem pensar que este período de caos lhes apresente uma óptima oportunidade para confrontar o Irão e a Síria. A confusão que vem se estabelecendo no mundo Turco-Árabe-Iraniano terá resultados imprevisíveis. A resistência popular no Bahrein e no Iémen às ameaças de crescimento da violência infligida pelo Estado indicam que a articulação dos movimentos de protesto anti-EUA e anti-Sionista está mais coesa.

*Mahdi Darius Nazemroaya é especialista em Oriente Médio e Ásia Central. É Investigador Associado no Centre for Research on Globalization (CRG).
 
Traduzido para Diário Liberdade por E. R. Saracino.
 
O original encontra-se em (Global Research, 10 de Julho de 2011): The Powers of Manipulation: Islam as a Geopolitical Tool to Control the Middle East

Mato Grosso do Sul assumiu “luta anti-indígena” como política de Estado

 Gabriel Brito e Valéria Nader, da Redação   do CORREIO DA CIDADANIA

Na madrugada de 18 de novembro, o Brasil voltou a registrar novos e vergonhosos fatos relativos ao secular genocídio de povos indígenas, desta vez capitaneados pelo agronegócio e pela inoperância do governo federal. O cacique kaiowá guarani Nísio Gomes foi a vítima, executado covardemente dentro do acampamento Tekoha Guayviri, um dos 30 que os guarani mantêm mobilizados em beiras de estradas e portas de fazenda, à espera do sonhado retorno às terras originárias.

O mesmo processo de massacre ocorre com as tribos do Xingu que serão afetadas pela construção de Belo Monte, com quem a presidente Dilma se recusa a qualquer diálogo. Num contexto de radicalização da expansão capitalista no território brasileiro, com apoio e financiamento público, a causa indígena ganha contornos ainda mais dramáticos, uma vez que seus direitos são esmagados de forma escancarada.


Diante do quadro desesperador dos índios guarani, o Correio da Cidadania entrevistou o antropólogo Egon Heck, do Conselho IndigenistaMissionário no estado do Mato Grosso do Sul - local onde o racismo e a intolerância à diversidade se tornaram políticas de Estado, com aparelhamento do judiciário, cooptação da mídia, sempre a serviço do poder econômico, e uso simultâneo e mal disfarçado de forças de segurança públicas e privadas contra os indígenas.


Além de denunciar o mencionado processo de genocídio deliberado dos povos indígenas, Egon cobra ações efetivas do governo federal, único ente capaz de fazer a lei chegar onde a pistola e o dinheiro ainda são os determinantes dos rumos da vida. Com um agronegócio ávido por terras e pelas riquezas do Aqüífero Guarani (cada vez mais contaminado), ele afirma que estamos chegando a uma situação-limite, na qual, de um lado, os povos indígenas buscam o retorno imediato às terras originárias e, do outro, o agronegócio põe em prática ofensiva para dizimar tais povos, passando por cima de todas as leis e direitos humanos que conhecemos.


A entrevista completa pode ser lida a seguir.


Correio da Cidadania: Como você poderia descrever a situação do povo guarani nos últimos meses no Mato Grosso do Sul, agora agravada com o assassinato do cacique Nísio e o desaparecimento de outros dois índios?

Egon Heck: O que a gente percebe é, na verdade, uma prática articulada pelo poder econômico e político no Mato Grosso do Sul, baseada fundamentalmente na produção exportadora e na monocultura da soja, além da agroindústria da cana, que está se agravando em níveis extremamente perigosos e absurdos, pois há em curso uma possibilidade mais ou menos próxima de definição das terras indígenas. E o MS é o estado que menos demarcou terras indígenas, que conseguiu impedir por mais tempo esse cumprimento constitucional, haja vista que 90% delas ainda terão de ser homologadas. E as restantes ainda estão em processos de regularização, na maioria dos casos, paralisados por ações judiciais.

Portanto, temos uma situação muito preocupante do ponto de vista da regularização das terras indígenas, um poder econômico e político muito articulado contra os direitos dos povos indígenas, com opções claras colocadas em prática em sua atuação contra os povos indígenas e os movimentos sociais.

No caso concreto, existe uma avaliação dos setores anti-indígenas de que não se deve mais esperar pela justiça. Qualquer movimentação dos índios deve ser rechaçada imediatamente, através de paramilitares, milícias armadas, pistoleiros dos fazendeiros e todo o poder econômico. Isso por um lado. Como dizem, a justiça demora muito, porque, se se entra com ação de reintegração de posse, esta poderá ser questionada, depois terá de ser acatada ou não pela justiça, e, se acatada, pode ter a execução demorada... Diante disso, eles parecem colocar em prática a estratégia dos caminhos do poder bruto, da violência e da força, passando ao largo de qualquer legalidade.

De outro lado, temos as comunidades indígenas que estão no limite mesmo de espera de promessas, enganações, prazos, que já foram inúmeros, mas nunca cumpridos em favor das comunidades indígenas. Recentemente, foi assinado um TAC (Termo de Ajustamento de Conduta), uma tentativa extrema de obrigar o governo brasileiro a cumprir sua obrigação de demarcar as terras. Mas já era pra terem publicado os relatórios antropológicos das terras e ainda não o fizeram.

Assim, os índios se perguntam: “vamos aguardar o que, até quando, de que forma?”. Praticamente, como última alternativa, viabilizada pelos mais de 30 acampamentos indígenas no estado, resta a pressão sobre o governo federal pra demarcar as terras indígenas. E a única forma de pressão que tem surtido algum efeito em favor dos índios é o retorno às terras. E aí vemos armados os conflitos, em proporções que exigem uma atitude, pois poderão ceifar inúmeras vidas. De um lado, está o fim da paciência; de outro, está a firme decisão de impedir os índios de retornar às suas terras.

Correio da Cidadania: O que esta situação revela das políticas de governo, do poder judiciário, da sociedade e da mídia do estado do Mato Grosso do Sul e sua relação com os povos originários?

Egon Heck: Lamentavelmente, vivemos uma situação que vem historicamente se aprofundando, de negação de direitos ao diferente, à alteridade, principalmente aqui no MS, e isso vem se tornando evidente, vem sendo reforçado pelos meios de comunicação regionais.

Para se ter idéia, desde 2008, quando se assinou o TAC, vimos uma enorme campanha anti-indígena durante os anos que passaram, veiculada e financiada até pelo governo do estado. Repassava recursos aos municípios para ter assessorias jurídicas contra a demarcação de terras. Fez grandes campanhas de imprensa, em outdoors, veiculando intencionalmente mentiras muito óbvias, do tipo que o “estado seria inviabilizado se as terras fossem demarcadas”, “os povos estariam reivindicando 12 milhões de hectares das terras mais férteis do estado” (no cone sul do MS), “estariam inviabilizando 26 municípios”, “ocupando municípios”.  Um conhecido nosso dessas cidades disse expressamente que comprou armas para se defender porque o sindicato rural havia avisado de que os índios iam invadir tudo...

Por aí vemos o absurdo de tantas informações e mentiras no sentido de criar grande animosidade contra os índios, com vistas a impedir de ser efetivado seu direito sagrado a terra.

Essa realidade se acentuou muito nos últimos anos, creio que seja hoje uma das que mais geram violência aos povos indígenas, em função do não cumprimento da determinação constitucional, chegando a esse quadro lamentável de violências, mortes, ameaças, fome, desintegração social, tudo aquilo que se pode imaginar como conseqüência da negação de direitos básicos de sobrevivência de um povo ou comunidade. Um processo de negação da vida, genocida, como dizem claramente os estudiosos do tema.

Correio da Cidadania: E a polícia, pode ser acusada de atuar em perversa parceria com os latifundiários e os donos do poder econômico?

Egon Heck: As mais recentes demonstrações de violência têm mostrado características típicas de ações muito bem articuladas em nível estadual. Por exemplo: a repressão com balas de borracha.

Esta é uma prática comum nos meios urbanos, agora utilizada por milícias, organizadas no interior pra reprimir índios. Outra estratégia é dificultar ao máximo a identificação dos agressores, conseqüentemente garantindo sua impunidade. E há ainda a ocultação de cadáver, coisa que aconteceu três vezes desde 2009, com corpos deixados tanto do lado brasileiro quanto do lado paraguaio da fronteira.

Existem indícios de que os fazendeiros têm atuado com essas forças particulares, nas quais evidentemente existem presença e atuação de policiais aposentados etc.

Correio da Cidadania: E quanto ao governo federal, como avalia a sua postura, atualmente, diante deste episódio, após anos de lutas pela demarcação de terras já homologadas e inúmeras mortes de indígenas, sempre seguidas de impunidade?

Egon Heck: Eu tenho impressão de que o governo federal infelizmente só dá respostas com o mínimo de retorno nesses momentos extremos, em situações de grande violência e morte. Mas a questão indígena é responsabilidade total do governo federal, no sentido de garantir a vida e o acesso aos recursos e patrimônios da natureza.

Infelizmente, não se tem avançado no sentido, diversas vezes sugerido, de contar, ao menos num primeiro momento, com a ajuda da polícia e da Força Nacional de Segurança, equipes com preparação específica para atuar com grupos étnicos diferentes, de culturas diversas.

Infelizmente, a própria atuação da PF, em vários casos, tem deixado a desejar, talvez até pela falta de um preparo específico para atuar em tais áreas. E, por outro lado, notamos que, quanto mais próxima a PF está das áreas e regiões de conflito, mais suscetível ela fica a pressões do poder econômico e político regional. Portanto, as ações acabam não tendo a esperada imparcialidade, que seria o mais justo para se chegar a punições e prevenção a violências – ou seja, a atuação que deveria haver para oferecer segurança às comunidades indígenas.

Correio da Cidadania: Fica evidente que a PF está a serviço do poder econômico do latifúndio no estado.

Egon Heck: Na semana passada, saiu na mídia regional uma notícia da ação do Ministério Público Federal com relação ao assassinato dos senhores Rolindo Vera e Genivaldo Vera, informando que o inquérito da PF recomendava arquivamento, “por falta de provas objetivas” contra os implicados no assassinato. Claro que causou grande estranheza ao Ministério Público, pois existem muitas provas e indícios de vários nomes de participantes do crime.

O procurador Tiago da Luz, em entrevista, disse que viu “vários depoimentos dos índios, únicas testemunhas oculares, inclusive identificando nomes. Por que tais depoimentos não foram levados em conta pela Polícia Federal? Por acaso a palavra dos índios não vale nada?”.

Infelizmente, são esses os atores que têm ditado as regras. Precisamos de uma instância diferente, diversa, para tratar da segurança nas comunidades indígenas, com preparação prévia para se lidar com a cultura indígena, especificamente na agroecologia. Além de uma isenção maior em relação à realidade política e econômica local, porque, queira ou não, isso interfere concretamente contra os direitos indígenas.

Correio da Cidadania: E a FUNAI? Tem estado a serviço dos interesses e direitos indígenas ou vem sendo também varrida por essas mesmas pressões?

Egon Heck: A FUNAI é um pouco isso. Sofreu forte e recente sucateamento, está em processo de tentativa de recuperação, com atuação em favor dos povos indígenas através de contratações e concursos públicos, além de alguns funcionários mais comprometidos com a realidade dos povos indígenas.

Por outro lado, no entanto, sempre vemos a atuação ambígua e contraditória que no fundo marca a FUNAI. Às vezes tem gente, mas não tem recursos para colocar, de fato, 500 pessoas a serviço dos povos indígenas; às vezes tem que defender direitos constitucionais indígenas, mas não pode ofender os “direitos” econômicos e políticos hegemônicos. Quer dizer, tem de fazer de conta que defende o índio, pois não pode afetar o grande capital.

É dentro desse clima de contradições que a FUNAI tem tido na região atuações mais expressivas em favor dos índios, atitudes até corajosas de alguns funcionários - o que até tem feito com que, diante dos povos indígenas, a FUNAI regional tenha recuperado sua credibilidade.

Correio da Cidadania: Como avaliar, ademais, esta evolução dos acontecimentos, tendo em vista a tão comemorada demarcação contínua de Raposa Serra do Sol? Esta demarcação colaborou, de algum modo, no que toca um maior reconhecimento e respeito aos direitos dos índios brasileiros? As 19 condicionantes impostas pelo STF têm resultado em reveses?

Egon Heck: De fato, e é incontestável, a demarcação contínua das terras de Raposa Serra do Sol tem sido uma vitória para os wapichana, macuxi, ingarikó, patamona e taurepang. Porém, o preço para os povos indígenas, especialmente no MS, tem sido muito alto, ou seja, onde existe poder econômico e político,  faz-se uma leitura das condicionantes que inviabiliza qualquer outra demarcação de Terra Indígena. A questão da temporalidade é uma delas. Só teria direito às terras tradicionais os índios que em 1988 estivessem nas terras. Acontece que, evidentemente, o processo de expulsão violenta, seja pela ocupação econômica da região, seja pelos próprios órgãos oficiais da época, como o SPI e a FUNAI, que antes se prestavam a tirá-los da terra e colocá-los em áreas de confinamento, é simplesmente desconsiderado.

Em todos os momentos, dizem que os índios não estavam lá em 1988 e, portanto, não têm direito às suas terras tradicionais. O que é um absurdo, pois, dentro da própria leitura das condicionantes no Supremo, fica claro que os índios deveriam estar nas terras até em 1988, tendo também direito a elas em caso de expulsão anterior. Essa tem sido uma das teclas em que se tem batido. A outra condicionante usada é a da não ampliação das terras indígenas. Usam também a afirmação, falsa, de que as demarcações não são válidas para antigos aldeamentos, quando na verdade esse processo guarani só teve um aldeamento, no século 18, por parte dos jesuítas...

Enfim, procuram-se todos os meios de distorcer as próprias leis em favor do poder econômico e político regional.

Correio da Cidadania: Pode-se dizer que essa demarcação representou o início da imposição de retrocessos?

Egon Heck: Ela dificultou, digamos. Ou deu munição aos interesses contrários para tentar fazer aquilo que já vinham fazendo, mas munidos de argumentos jurídicos. Com isso, tentam barrar todo e qualquer processo de identificação e demarcação de terras.

Temos quase 20 processos de demarcação em andamento, quase todos parados por ações judiciais. Outros, em processo praticamente conclusivo, como no caso da terra dos nhanderu marangatu, homologada pelo presidente Lula, mas cassada liminarmente pelo ministro Nelson Jobim, em 2005. Dizia-se que logo no retorno das atividades do Supremo essa ação seria julgada. Passaram seis anos e a ação não foi julgada. E temos vários outros exemplos.

Podemos ver claramente que existe uma justiça ágil quando se trata de interesses contrários aos indígenas, e uma justiça extremamente morosa quando se trata de garantir os direitos indígenas.

Correio da Cidadania: O que você teria a responder aos argumentos que vêem nas demarcações de terras indígenas, especialmente se feitas de forma contínua, uma ameaça de internacionalização de nosso território, a partir de uma suposta susceptibilidade dos povos indígenas à ingerência externa?

Egon Heck: Responderia que teríamos que nacionalizar nosso país outra vez, já que ele foi entregue ao capital multinacional, às grandes corporações, que fazem o que querem.

Com os indígenas, as terras ficam ainda mais protegidas, pois, sendo terras da União, podem contar com dupla defesa. Além do mais, poderíamos conservar condições mais dignas de sobrevivência, onde ainda não se destruiu totalmente o meio ambiente e os recursos naturais, garantindo ao país as reservas necessárias ao equilíbrio ambiental.

Aqui no MS temos terras totalmente devastadas em relação à mata originária. Alguns municípios têm menos de 10% da mata original. Alguns deles, apesar de toda a pressão e confinamento sobre as terras indígenas, têm um pouco mais de árvores, com maior diversidade de vida preservada.

Creio que os povos indígenas, junto com os movimentos sociais e populares, têm muito a contribuir com um projeto realmente nacional, no lugar de um projeto de multinacionais. Um projeto que, principalmente, tenha como prioridade a vida, não um desenvolvimento desigual que beneficia somente pequenos grupos.

Correio da Cidadania: Qual a capacidade dos guarani de continuar resistindo, em meio a cerco tão violento dos pistoleiros e paramilitares, e quais as expectativas indígenas após essa nova onda de crimes contra suas lideranças, com grande repercussão internacional? Tempos mais sombrios continuam se anunciando?

Egon Heck: Entendemos que os guarani só atravessaram esses mais de 500 anos de turbulências, agressões, extermínios, doenças e tudo mais porque têm uma raiz de sabedoria milenar muito forte, sustentada principalmente em sua forte relação com o sobrenatural, com a espiritualidade, e ao mesmo tempo com a terra, sua mãe, espaço de vida e cura. E isso também lhes permitiu desenvolver uma estratégia de sobrevivência em meio a toda a adversidade. Apesar dessa violência toda, vemos um protagonismo dos guarani, no sentido de se mobilizar contra a violência, muito grande.

Também vemos uma grande mobilização, nacional e internacional, oferecendo recursos e solidariedade, o que é um dos fatores que podem contribuir muito, já que a solidariedade internacional tem um peso muito grande hoje em dia em relação aos direitos humanos e de minorias.

Tanto os movimentos de resistência quanto de solidariedade dão sinais muito fortes de que vão atravessar, não sem sofrimento, dor e sangue, esse difícil momento de recuperação da terra.

Correio da Cidadania: Que tipo de impacto poderá ter a aprovação do Código Florestal em discussão em Brasília sobre a situação dos povos indígenas, a seu ver? Os conflitos de interesses entre os povos indígenas e o capital poderão, por exemplo, acirrar-se, vulnerabilizando ainda mais as riquezas do Aqüífero Guarani?


Egon Heck: Creio que sim, que a aprovação dessa proposta de Código Florestal tende a acentuar os conflitos com os guarani pela questão da água e da agricultura, sem dúvida. O que mais causa devastação, além de toda a carga pesada dos agrotóxicos, é a instalação maciça de indústria da cana, através de vários projetos de usina, o que terá conseqüências muito fortes aos guarani. Em algumas usinas, como a de Rio Brilhante, já se usam as águas do aqüífero pra lavar a cana. Com isso, fragilizam a proteção da vida dos guarani que utilizem água dos rios, poluindo essa água, inviabilizando seu uso por parte dos guarani, afetando matas virgens... A indústria da cana é altamente rentável aos empresários e, infelizmente, utiliza a mão-de-obra indígena, que, por sua vez, tem sido cada vez mais dispensada com o processo de mecanização de tais usinas na região. Isso cria um novo problema social, pois grandes contingentes de indígenas que trabalhavam no corte da cana são dispensados e condenados à miséria.

O que colocamos como perspectivas, que os guarani esperam do governo, da sociedade, do mundo, não é apenas o reconhecimento formal do direito à vida e das legislações, inclusive a constituição, mas ações efetivas de construção de projetos que respeitem a diversidade de vida, de produção, de sociabilidade. E, principalmente, quanto àqueles que tanto mal fizeram à mãe terra, que tanta destruição causaram, que o governo federal assuma com determinação e clareza seu papel. Que não fique só na demarcação de terras, mas possibilite de fato a recuperação de sua economia, subsistência, seus meios de vida, promovendo uma recuperação básica do meio ambiente, rios e matas, que de alguma forma terão de ser recompostos. Que ajude a se começar uma virada histórica nessa situação de violência e miséria a que os índios foram submetidos, com convivência, paz e respeito na diversidade. É isso que esperamos. Os guarani e todo mundo. É um momento crucial, de encruzilhada, de busca de caminhos e alternativas.

Gabriel Brito é jornalista; Valéria Nader, economista e jornalista, é editora do Correio da Cidadania.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Silas Malafaia e a maldade humana

Marcelo Carneiro da Cunha no SUL21

É duro ter que viver no mesmo planeta de um Silas Malafaia, caros leitores. Quero dizer, é duro viver nesse planeta, ponto. A Terra inclui palmeiras e sabiás, que gorjeiam como lá, mas também inclui música nativista, reggae, Los Hermanos e brócolis. Ah, e o teatro do Zé Celso Martinez.
Ela inclui malária, febre amarela, beri beri, mosquito borrachudo e alarme de automóvel, sempre no meio da noite. Ela inclui paixões não correspondidas, táxis Corsa Sedan, Sala de Redação e a República Islâmica do Irã. Ela também inclui auroras boreais, banhos nas termas ao ar livre e cheio de estrelas no Chile, sagu da minha avó, a Jessica Alba e os Beatles.
Tudo isso no âmbito da normalidade dos gostos e desgostos, caros sulvinteumenses. Tudo isso nas nossas preferências genéticas ou adquiridas. Tudo isso a partir do que é termos um planeta e seres humanos o habitando, seres que se constroem e são construídos e com os quais lidamos, amando, gostando, não achando lá grande coisa, ou não suportando, mas suportando.
E aí vem o Silas Malafaia, quebrar esse delicado equilíbrio. Os Silas Malafaia desse mundo são, e não são desse mundo. Como a Paquetá de Macedo, eles começam nesse mundo e não sabem onde acabar. Eles podem ser muitas coisas, e quase nenhuma delas muito saudáveis para quem pretende que o mundo seja mediado pelo que existe de humano na humanidade. E, pior, eles têm O Livro.
Um livro é a diferença entre mais um maluco ignorante, intolerante e intolerável, e um sujeito capaz de produzir grandes e enormes problemas. E, caros leitores, esse aí tem um livro.
Um livro é o que justifica e legitima. Preferencialmente, o livro deve vir diretamente de Deus em uma de suas múltiplas e convenientes formas. Isso não é assim tão necessário. O livro de Mao fez essa função, assim como o do Kadafi, e todos eles têm em comum serem um grande ponto de encontro de todas as respostas para todas as perguntas jamais feitas, ou não. E, melhor, eles são interpretáveis.
Já que os Malafaia jamais conseguiriam escrever coisa com coisa, eles se tornam intérpretes e daí vê o seu poder. Eles explicam o inexplicável. Quer coisa mais importante, ou melhor?
Livros tem enormes vantagens. A Xuxa por exemplo, explicou: “Os duendes existem. Tem até livro a respeito”. Se tem livro, então existe. Os Malafaias em geral, e esse em particular, existem por isso.
E nesse mundo de muitas carências e com televisão, a união de um Malafaia, um livro e um monte de desesperados produz um fenômeno assustador, que é o poder político. No segundo turno da eleição presidencial, Dilma foi chantageada por esses sujeitos, e o Serra se aliou a eles. A consequência é o retrocesso da sociedade, que vê dificultado o caminho da melhoria pelo obstáculo de um fanático, cercado de fanáticos, munidos de um livro e uma televisão. Cada vez que um político de verdade cede diante dessas chantagens, morre bem mais do que um filhotinho de foca na Antártica.
E é esse o mundo em que estamos.
Uma matéria recente do NY Times analisa o fenômeno Malafaia. Sendo um jornal americano, eles conhecem de perto essa realidade, que faz parte da formação da sociedade norte-americana, que a exportou ao Brasil. Lá, esse pentecostalismo associado a uma sociedade puritana, com uma fortíssima extrema-direita, já ameaça transformar um país über bem-sucedido em várias frentes, em um sistema disfuncional.
Aqui?
Malafaia não passa de um terno de gosto duvidoso, munido de um livro, um avião, uma tevê, cercado de desesperados por todos os lados. Ou nem tão desesperados. Ele é da Assembléia de Deus, à qual pertence Marina Silva, lembrem.
Mas ele parece adorar o poder auto-atribuído, e aparentemente real que construiu. E aí está o problema. Nossos governantes eleitos serão chantageados, se aliarão por afinidade ou conveniência, ou resistirão, enfrentando esse pessoal para finalmente descobrirmos com quantos paus se faz uma canoa televangelista, e o que é preciso para ela afundar?
Me choca e entristece ver essa mensagem de ódio e intolerância tomar forma e ocupar espaços, sempre com a embalagem de amor divino por todos os lados. Me preocupa pelo futuro, gostaria de saber se vamos neutralizar essa maluquice ou seremos ainda vítimas dela. Hoje, ele ataca as minorias, as historicamente mais frágeis. É inaceitável para pessoas que acreditem em justiça e igualdade. Cabe a nós defendermos vigorosamente a quem quer que ele ataque, dando um sinal claro de que ele pode vender, pode enriquecer, pode se achar o que quiser. Mas nunca deixará de ser o que é, um tolo com uma fatiota e um microfone. E do lado de cá estamos nós, sem livro na mão, mas com o sentido da justiça e da humanidade, dispostos ao que for preciso para que o lado de cá, o do bem, vença.