sábado, 10 de março de 2012

‘Está claro, hoje, o caráter político-eleitoral das obras de Transposição do Rio São Francisco’

  Gabriel Brito e Valéria Nader,da Redação   do CORREIO DA CIDADANIA

Parte fundamental da agenda de grandes obras do país, a Transposição do Rio São Francisco sempre foi um polêmico assunto, que a exemplo de outros colocam na mesa interesses empresariais, eleitoreiros e, o que deveria ser o mais importante, das populações que habitam a bacia do Velho Chico. Atualmente paralisadas e em situação de certa penúria, as obras em questão voltam a ser alvo da atenção do público, uma vez que foram vendidas como salvação para os “sedentos” habitantes do semi-árido brasileiro.

A fim de aprofundar o debate em torno dessa drástica transformação que se pretende promover na região, o Correio da Cidadania entrevistou Ruben Siqueira, membro da Comissão Pastoral da Terra (CPT) na Bahia e há mais de três décadas envolvido nas questões sociais do Nordeste. Para ele, estamos diante da repetição de velhas histórias, nas quais a aliança entre o poder político e econômico joga com a “cultura da seca” mitificada nacionalmente, quando “a questão essencial do Nordeste não é a água, mas a terra”.

A afirmação se explica quando Siqueira se aprofunda no detalhamento de projetos elaborados por movimentos sociais e até por órgãos oficiais, como a Agência Nacional de Águas e seu respectivo Atlas do Nordeste, que apontam soluções diversificadas para as especificidades dessa vasta região. Ao invés da Transposição, tais movimentos e estudos oferecem diversas opções de aproveitamento da água, desde uma rede de açudes, já existente, até o famoso projeto de 1 milhão de cisternas.

A propósito de tal iniciativa, comandada pela ASA (Articulação do Semi-Árido) e também pela Articulação Popular São Francisco Vivo (que reúne cerca de 300 entidades), verificou-se novamente no final do ano passado como os interesses político-econômicos deturpam as soluções para a falta de abastecimento -  a oligarquia local tentou abortar o projeto original e substituí-lo por outro que contemplava empresas suspeitas, possivelmente ligadas aos Coelho, da família do ministro da Integração Nacional.

Siqueira declara que uma paralisação das obras poderia recolocar na mesa o debate sobre questões decididas ‘de cima’, com maior participação popular e alternativas, inclusive muito mais baratas, de promoção do abastecimento na região. No entanto, para que tal “utopia democrática”, como define, seja levada adiante, será preciso restabelecer as mobilizações de 2007 e contar com maior organicidade dos movimentos interessados, algo a seu ver pulverizado com a afirmação do lulismo em nossa política.

Correio da Cidadania: Ao lado da visibilidade que grandes e polêmicas obras, como a hidrelétrica de Belo Monte, tem recebido por parte de movimentos ambientalistas e de variados veículos de comunicação, os grandes e os alternativos, tem sido observado incômodo silêncio sobre as obras de Transposição do rio São Francisco. Como está, em primeiro lugar, o andamento deste projeto hoje?

Ruben Siqueira: Ultimamente conseguimos provocar a paralisação das obras de extensão dos canais. Tem havido destaque público, tanto na mídia eletrônica quanto nos jornais, como numa série de reportagens do Jornal do Commercio. A paralisação das obras é isso que tem aparecido na imprensa. São 14 lotes de obras, dois não começaram e, dos começados, há muito pouco avanço, quase todos parados. Os mais antigos, já dados por concluídos, começaram a ter problemas de infiltração, rachaduras, desbarrancamento, e terão de ser reconstruídos. O eixo-leste, em Custódia e Sertânia, Pernambuco, é exemplo.

E o posicionamento dos consórcios, das empreiteiras, é de que são necessários novos aportes, sendo que o governo já garantiu o valor de 36% de sobrepreço na obra, em relação ao custo inicial. Assim, configura-se aquilo que criticávamos em termos de pressa, açodamento, na decisão de fazer a Transposição, naquele período de 2007. O que eles alegam é que a realidade é diferente, ou se impôs sobre os projetos iniciais.

O governo fez os lotes, abriu concorrência e apressadamente concedeu Licenças Ambientais e de Instalação, exatamente na época das maiores mobilizações nossas, em 2007, com marchas a Brasília, caravana contra a Transposição com participação de várias entidades, a greve de fome de d. Luiz Cappio, ocupação de canteiros de obra. Depois, o Supremo decidiu a questão com pressa, parcialmente, em favor da obra. Porém, até hoje não julgou a Ação Civil Pública contra a obra, essa está lá até agora parada.

Portanto, esse açodamento todo é o que agora redunda na paralisação e nos defeitos que já se detectam na obra. Tudo fruto de pressão político-eleitoral, acordos políticos com empreiteiras como Odebrecht, OAS, Mendes Junior. Provavelmente relacionados a financiamentos de campanha, promessas futuras de mais aportes de recursos, como vemos agora, e vitórias eleitorais através de campanhas do tipo “vamos levar água a mais de 2 milhões de sedentos”. Não é à toa que Lula teve a maior vitória eleitoral em 2006 nessa região.

Está claro o caráter político-eleitoral da obra, o que volta a se confirmar agora, pois estamos em mais um ano eleitoral, nos municípios. Há um descontentamento nas regiões, pois se criou muita ilusão e expectativa sobre movimentação econômica, empregos... E as pessoas já perceberam que é algo falacioso, uma vez que as empreiteiras mal cumpriram seus mal feitos e já caíram fora.

Assim, as críticas que nós dos movimentos, da academia, fazíamos à Transposição se confirmam, até pelo tratamento do governo em relação à questão neste momento.

Correio da Cidadania: Tendo em vista esta correlação predominante de forças políticas e econômicas, que impactou na concepção, andamento e, agora, paralisação das obras, haveria algo mais na conjuntura atual a determinar uma desaceleração tão evidente das obras?

Ruben Siqueira: A paralisação, em primeiro lugar, se deve às Olimpíadas, Copa do Mundo e outras obras do PAC, já que as empreiteiras que compartilham o feudo da construção civil, e o próprio país, correram pra lá, pois afinal são projetos mais datados. Como a Transposição nunca se conclui e pode durar uma eternidade, bastava fingir um começo, sendo que muitos pensam que nunca se concluirá.

Assim, a paralisação se relaciona com os recursos já gastos e a priorização de outros negócios e obras no país, e de quebra facilita a criação de situações que emparedem o governo, obrigando-o a soltar mais dinheiro, como vemos no anúncio de mais 1,6 bilhão de reais para retomar as obras, acrescidos ao custo inicial de 5 bilhões, em clara relação também com o calendário eleitoral.

E já se instalou uma queda de braço a respeito dos erros de engenharia, do material de qualidade inferior que foi usado e das pequenas camadas de concreto que já descascaram, racharam facilmente, mostrando a economia que as empreiteiras fizeram. Fora o superfaturamento em obras de quase todos os lotes, não é de hoje que o Tribunal de Contas pega no pé.

Tanto as empreiteiras e os grupos econômicos como o próprio governo jogam com o calendário eleitoral, e este último sabe que precisa mostrar alguma eficiência, manter acesa na mente do povo a idéia das águas do São Francisco como solução da seca.

Correio da Cidadania: Pelo quadro descrito, estamos claramente começando a pagar o preço, ou o sobrepreço, da pressa e do desrespeito aos trâmites legais para aprovação da obra, dentro de parâmetros adequados de qualidade e avaliação. Trata-se do velho jogo das empreiteiras, que começa com as construções a toque de caixa para, em seguida, contar com o dinheiro fácil do governo?
Ruben Siqueira: Sim. E por tocarem as obras, elas são importantes. Já o governo, tem que cavar buraco, mostrar trabalho. Usam do poder que têm, um oligopólio que funciona na base da pressão e do lobby. É um jogo de compadre, e nesse aspecto o atual governo não é diferente do governo FHC, que também tocava a obra nesses moldes. Quem tem o poder econômico é quem tem o poder político. E isso não mudou. Assim, o setor popular fica encalacrado nesse jogo, pois, no tempo de FHC, o movimento popular tinha mais condição de agregar forças com outras pressões sociais que ocorriam.

Por exemplo, em 2001 fizemos uma marcha com cerca de 12 mil pessoas em Bom Jesus da Lapa. Os discursos dos deputados federais Jaques Wagner, Walter Pinheiro, de outros deputados estaduais de então do PT, eram virulentos contra a Transposição. E naquele ano o lago Sobradinho, maior lago artificial do mundo, para aproveitamento hidrelétrico, atingiu só 5% de capacidade por causa da seca. A situação já não é tão grave, mas tem se repetido muito, demonstrando a vulnerabilidade do rio.

De acordo com o centro de estudos climatológicos da Califórnia, em pesquisas meteorológicas, o São Francisco está entre os oito rios mais degradados do mundo nos últimos 50 anos, e o que mais perdeu vazão nesse período, 35%. Isso está sendo demonstrado pela realidade de cada ano do rio. Naquele ano, foi o próprio rio quem impediu o governo FHC de seguir com esse jogo da Transposição, pois não dava pra começar a obra num rio com os cactos à vista.

Portanto, hoje em dia, o jogo, o lobby, em torno da Transposição é igual ao daquela época, impondo-se novamente. Aliás, segundo o professor João Abner, que tem estudos e dados muito firmes a respeito da obra, o lobby da Transposição – que junta políticos, empreiteiras, grupos econômicos, grupos da agricultura irrigada – é como um vírus inoculado no Estado brasileiro. Quando o governo é fraco, o vírus se manifesta, por estar mais sujeito a tais pressões. E acho interessante tal analogia, pois se comprova novamente.

Correio da Cidadania: A que você atribui o silêncio geral anteriormente mencionado? Acredita que o movimento ambientalista mais autêntico seja realmente menos incisivo nas críticas à Transposição do que às grandes hidrelétricas, no sentido de dissecar a obra ao público, mostrando as irregularidades, lobbies e jogos de interesse? Por quê?

Ruben Siqueira: Creio que isso tenha a ver com o imaginário que se construiu historicamente no país acerca do que é o Nordeste e o semi-árido: tempo ruim, ingrato, que depende do investimento federal. Aliás, foi daí que se constituíram as maiores fortunas do país. Os grupos Jereissati, Queiroz Galvão, OAS, Odebrecht, entre outros, alguns dos maiores do país, de expressão internacional, são nordestinos. A origem de tanta riqueza e patrimônio tem a ver com a indústria da seca, desde a época dos desvios da Sudene, essas coisas. É algo que está na mente do empresário brasileiro, do político tradicional, colocando na cabeça da população a história de que é por aí mesmo que deve ser feito. Assim, tivemos muitas obras hídricas ineficientes, que se prestaram a tal jogo.

E existe uma contradição: em nome disso se constituiu o DNOCS (Departamento Nacional de Obras Contra a Seca), e simplesmente se construiu a maior rede de açudes públicos do mundo, com 70 mil açudes no semi-árido, com capacidade de acumular muito mais do que a Transposição anuncia. É claro que há a sazonalidade, a temporalidade dessa água, pois é a característica do semi-árido: não é a falta de chuva, e sim a irregularidade das águas. Pode chover muito numa semana, noutra não, ou pode ter quatro meses muito chuvosos. Ou ainda um ano de intensas chuvas, que chega a ser prejudicial. Estou aqui há 30 anos e já vi muita roça se perder por excesso de chuva. Portanto, é um quadro de incerteza, não de seca. Mas continuam jogando com essa idéia.

E isso ocorreu também nas migrações de mão-de-obra, na constituição do exército de reserva dos pólos industriais do centro-sul, na construção de Brasília, majoritariamente realizada por nordestinos, também no ciclo da borracha no Norte... São coisas que fazem parte do nosso histórico, dos nossos sensos comuns, talvez seja isso que diminua a atuação de algumas correntes ambientalistas etc. É difícil se contrapor, quem vai ser contra “levar água aos sedentos”?

Correio da Cidadania: Criou-se e se consolidou a “cultura da seca”?

Ruben Siqueira: Sim, em torno da política, da indústria da seca, construiu-se a cultura da seca. E pra isso contribuiu a música de Luiz Gonzaga, a literatura de Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, os quadros de Portinari... Produziu-se todo um ideário, até na cultura nacional. É muito recente o pensamento diferente sobre o semi-árido, coisa de 30 anos, no sentido de convivência e compreensão do local, já mais relacionado ao ambientalismo e com a idéia da ecologia ‘pegando’ mais na sociedade - a idéia de conhecer melhor como funcionam os biomas, que se constituem de vários ecossistemas. A Embrapa diz que são 72 sertões dentro do sertão semi-árido, micro-climas diferentes, com lugares onde chove mais que outros; a maior parte tem solo raso, mas existem regiões de solo mais profundo, mais sedimentado, favorecendo o acúmulo de água e evitando a evaporação. Pois o grande problema aqui é uma evaporação maior que a precipitação. Essa é a definição principal do semi-árido, mais científica, ambientalista.

O movimento social, como a ASA (com mais de 70 entidades sindicais, sociais, pastorais), se juntou, mesmo sem força política, em cenários mais dominados pelas ONGs, ficando com uma certa característica de executor de política pública. Bem ou mal a ASA já construiu 350 mil cisternas, de captação de água de chuva, algumas por 1300 reais, armazenando seguramente 16 mil litros de água, para uso de uma família por seis, oito meses. É solução? Ainda não, mas é parte dela, significa que na região é possível viver com água de qualidade para todas as necessidades. Livre dos discursos que sempre permearam a indústria da seca. Esse é o verdadeiro embate na questão, pois dizem que “somos contra levar água pra sedentos”... É bem o contrário.

Como diz o d. Cappio, se isso fosse mesmo a real solução da sede eu faria greve de fome a favor, não contra. Acontece que sabemos muito bem quais são os interesses em jogo, porque difundem essas idéias. Mas são interesses difusos aos da população, levando a Transposição para regiões populosas do semi-árido. A transposição passa pelos vales úmidos, não vai aos lugares secos, vai na direção dos rios Jaguaribe, Piranhas, Açu e Paraíba, quatro rios que terão suas águas potencializadas pela Transposição – se um dia for concluída, se um dia terminar esse jogo político-econômico-eleitoral, quem sabe um dia ela se conclui dentro de outra perspectiva...

Pois um gasto maior que a Transposição será para levar a água para onde ela é de fato necessária. A rede de 70 mil açudes, de mais de 100 anos, sofre do mesmo problema. As águas estão evaporando, não vêm sendo usadas porque estão dentro de latifúndios - ao poder local não interessa distribuir essa água, e sim manter o povo refém da política eleitoreira.

O jogo continua, não mudamos, mesmo no século 21. Optamos, ou melhor, eles optaram pela Transposição, que é a continuidade das grandes obras que não são solução. É apenas mais empoderamento para os poderosos de sempre. E até hoje as matérias que se fazem a respeito padecem dessas ambigüidades. O problema que se coloca hoje não é de questionamento da Transposição em si, e sim do paradeiro das obras, degradação dos canais, atrasos, falhas da obra.

Ainda mais em ano eleitoral, vão todos prometer que são amigos do rei, ou da rainha, e vão conseguir dar seqüência à Transposição. Agora, vão dar um gás na obra, vão retomá-la, porque senão a coisa complica para eles, tanto em relação aos grupos econômicos quanto em relação à população... Mas se é pra valer não dá pra saber... Já vamos para três anos e meio de obras e a coisa está neste estado. Talvez na próxima eleição, daqui a dois anos, revivamos a mesma situação. A coisa avança, pára, avança...

O professor Apolo Lisboa, da UFMG, declarou a convicção de que a Transposição não começaria. Se começasse, não terminaria. Se terminasse, não funcionaria. Se funcionar, não levará água a quem precisa. Parece meio sacana dar tantas hipóteses, fica mais fácil acertar uma, mas, pelo andar da carruagem, parece que o prognóstico dele pode se confirmar.

Correio da Cidadania: Diante das paralisações e atrasos no andamento da obra, você acha que seria positiva uma interrupção, tendo-se em mente que, afinal, estamos diante de uma obra extremamente controversa?

Ruben Siqueira: Eu acho que, do ponto de vista do debate e do confronto de idéias, a paralisação seria boa – é certo que não queríamos sequer o início das obras. Seria possível repensar as coisas, ver a fundo o que o semi-árido precisa.

O Atlas do Nordeste, feito pela ANA (Agência Nacional de Águas), propõe obras múltiplas, descentralizadas, de baixo, médio e alto custo, para resolver a necessidade de abastecimento humano, em todo o semi-árido. Primeiro fizeram o Atlas para cidades com mais de 5000 habitantes. Depois, para as cidades com populações abaixo disso. E quais são essas obras? Muitas delas são as tais adutoras para distribuir as águas acumuladas. É a parte que falta da política hídrica, que queira ou não existe através da rede de açudes.

Por exemplo, Pernambuco, Distrito Federal e Paraíba são os três estados de pior equação hídrica, isto é, mais população que capacidade hídrica. Boa parte das obras previstas no Atlas para Pernambuco tem o São Francisco como fonte, inclusive está sendo feito o canal do sertão. A Paraíba também está fazendo. Sergipe já leva água do São Francisco para Aracaju, que está fora da bacia, através de adutoras, que inclusive tiveram sua capacidade duplicada para atender a demanda de desenvolvimento de Aracaju. É o que defendíamos, que não se fizesse a Transposição, e sim a adução das águas necessárias ao abastecimento do eixo leste. No eixo norte não faz sentido.

O canal que sai do Castanhão, no rio Jaguaribe (Ceará), o maior açude do país, tem capacidade de 6 bilhões de metros cúbicos e, segundo o professor João Abner, toda a água da Transposição é a exata transpiração do Castanhão. A água acumulada, que não se usa, é igual à água que vai ser transposta, 128 metros cúbicos por segundo, no máximo. Portanto, fizeram um canal que não funciona – o Canal da Redenção, Canal do Trabalhador –, que leva água do Castanhão pra Fortaleza. Aquilo é um exemplo do que pode ser a Transposição. O governo Ciro Gomes fez em seis meses o Canal do Trabalhador, quando do colapso hídrico de Fortaleza, mas não funcionou, uma mega-obra que não ajudou até hoje.

Recentemente, o movimento social levantou a lebre de que o povo era proibido de pegar água desse canal, havia vigilância, câmera, segurança armada. Fizemos tanto barulho que hoje podem pegar. Foi uma conquista, porque era um escândalo, tratava-se de água que as pessoas precisavam captar pra uso doméstico, para os animais. E a idéia da Transposição é mais ou menos a mesma que denunciamos nesse caso.

Correio da Cidadania: Uma eventual interrupção da obra abriria caminho para estas propostas alternativas, além de mais efetivas, tendo em vista a real conformação hídrica e climática do nordeste?

Ruben Siqueira: Essa é a nossa esperança, a nossa proposta. A coisa é complicada, tem muita corrupção, projetos mal feitos, portanto, mais argumentos para colocarmos em discussão. Vamos fazer como o d. Luiz Cappio propôs: vamos chamar a academia, os movimentos, a sociedade, também os empresários, todos os interessados, e discutir isso abertamente, com transparência, democracia, pra encontrar a melhor solução. Mas é utopia democrática, porque na prática não será assim. De toda forma, fica a chance de fazer a educação política do povo, que só sofre deseducação hoje em dia.

Todo esse trabalho maravilhoso, de formiguinha, dos movimentos sociais do Nordeste, de pensar essas idéias, entender e saber lidar com a natureza como ela é, e conseguir tirar proveito, corre risco, pois vem gente que fala “pra que vou querer cisterna, barragem subterrânea? O São Francisco vem aí”. Eu ouvi isso!

Esse é o problema. Pelo menos enquanto CPT, somos agentes educadores do povo, do crescimento, da politização e consciência popular. Essa briga toda, no final das contas, tem isso por trás, fazer o povo tomar conhecimento da realidade do semi-árido e dizer claramente o que quer, compreendendo o interesse do capital. Agora, na base da imposição de cima, fica difícil.

Se a paralisação das obras permitisse fazer esse debate, retomaríamos o lugar em que ficamos parados lá atrás, na época das maiores mobilizações. Quando as obras começaram, o movimento social, a articulação popular São Francisco Vivo, com mais de 300 entidades, nos juntamos com um Fórum no Ceará, chamado “Por uma nova cultura de água e contra a Transposição”. Também se fez algo semelhante na Paraíba e no Rio Grande do Norte, principalmente na região dos rios Piranhas-Açu e Apodi, um movimento social forte, sindical, com apoio da Cáritas, CPT, algumas ONGs, assim como na chapada do Apodi, Ceará, onde já foram mortos agricultores que fizeram denúncias sobre a contaminação do rio por agrotóxicos. E eles resistem lá, não querem a água da Transposição, os pequenos agricultores, criadores, apicultores, multicultores têm essa posição firme.

A maior miséria do Nordeste está na beira do São Francisco. E isso continua. Ter água perto não tem significado progresso, saúde, educação. Mas não é essa a discussão que está posta, o governo quer que o grande eixo do desenvolvimento do Nordeste seja o São Francisco. Só que é o contrário!

Assim, quando começaram as obras, deslocamos o foco mais para os atingidos, no vale do Jaguaribe, região de Muricy, Brejo Grande, por onde entra o canal do eixo norte. O rio Salgado é de pequenos imigrantes. Quando começou a obra, perderam a safra. Quem perdeu a casa, não ganhou nova, não foi devidamente indenizado, ou ganhou indenização, mas já com problemas. Depois, fizemos um grande encontro de atingidos pela Transposição em Campina Grande, 2010, mas não deslanchou. Por duas razões: a dificuldade de disputar a opinião pública, trabalhando em cima das contradições, e a falta de parceria, já que o próprio movimento social não encampou muito essa luta.

Correio da Cidadania: Estamos, portanto, a seu ver, em um momento de baixa organicidade, no campo à esquerda e entre os movimentos sociais? Quanto à esquerda, você a sente desconectada da vida real das pessoas, de seus conhecimentos locais e herdados através das gerações, de modo a ouvir e se organizar sob novas dinâmicas, mais afeitas à participação de tais grupos?

Ruben Siqueira: O MST, por exemplo, nunca entrou muito nessa luta. É que, na beira do São Francisco, em PE, em uma das áreas há a maior quantidade de assentamentos, em fazendas de gente que obteve financiamento do Banco do Brasil no passado para plantar mandioca; e plantou maconha. Depois disso, essas terras viraram assentamentos.

Fizemos dois grandes mutirões, com ajuda do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), nos juntamos e fomos às regiões por onde passariam os canais, a fim de conversar com o povo e levar informações, debates, de modo a criar consciência e educação política.

Mas, depois disso, vieram as eleições e, para se ter uma idéia, no Fórum que citei do Ceará, todo mundo era envolvido com o PSOL. Depois das eleições, acabou a luta contra a Transposição. Não houve seqüência, ou seja, tivemos muitas dificuldades no nosso próprio campo, o que persiste até hoje. Descobrimos que o desenvolvimentismo de esquerda tem uma face pior que o de direita, porque tenta disciplinar o movimento social e controlar o papel a ser executado por eles, seus questionamentos.

O que fazemos na beira do São Francisco? Trabalhamos com contradições. Por exemplo, energia eólica. Trabalhamos com os atingidos por ela. É uma maravilha? Não é bem assim, está desgraçando áreas inteiras, pastagens, comprometendo nascentes dos poucos rios perenes da Chapada Diamantina. A mineração lasca com tudo por aí, em vários territórios de populações tradicionais, indígenas, quilombolas. Ou seja, nos últimos tempos, quem lutou na bacia do São Francisco foram os habitantes originários, indígenas, quilombolas. E, mesmo assim, só se conseguiu um decreto de terra quilombola, não saiu nada para reforma agrária. É difícil, no nosso próprio campo, ter uma unidade e pensamento crítico em relação ao governo.

Quando pisam no calo dessas pessoas, moradores locais, elas levantam. Quando aparece uma mineradora pra tomar territórios, o pessoal se levanta, se mobiliza. Mas falta quem organize, qualifique e leve a resistência espontânea a outro patamar.

Correio da Cidadania: Você diferenciaria, de algum modo, os últimos governos diante dessa obra, começando por FHC, passando por Lula e culminando com Dilma?

Ruben Siqueira: Como falamos no início, existe uma linha comportamental estratégica em relação à Transposição, que não mudou até hoje. Eu diria que a grande diferença dos governos Lula e Dilma para o de FHC é exatamente essa que mencionei, de ter menos unidade e contundência do nosso lado, da resistência popular, de proposição de alternativas.

O Programa 1 Milhão de Cisternas começou no governo FHC, e avançou bastante nas cisternas. Depois, no governo Lula, era pífio, mas depois houve uma retomada, porque perceberam que ficariam abaixo do governo tucano.

Há uma estratégia política fundamental nisso, subterrânea, nada transparente: o jogo entre poder econômico e político. A indústria da construção civil, cimento, ferro. Estamos falando de Votorantim, Gerdau, das grandes empreiteiras. É absurdo o que as empreiteiras cresceram. Isso não mudou. Não vemos diferença. Pelo contrário.

Correio da Cidadania: Portanto, seria a velha questão, quando se divide a resistência e a crítica, é muito mais fácil passar o trator por cima.

Ruben Siqueira: Exato. Não existe resistência, não há um acúmulo de luta contra o PT. Somos muito críticos, portanto, do papel desempenhado pelo governo.

Se pegarmos para análise o programa Avança Brasil do FHC e o compararmos com o PAC, vamos ver que é a mesma coisa. É tudo pra fora. Ferrovia Transnordestina, aeroportos, portos, rodovias para chegar a uma saída para o Oceano Pacífico... Eu me lembro de uma crítica da professora Tânia Bacellar, na época de FHC, numa reunião em Recife, na qual ela foi a principal palestrante. Ela mostrava esta conexão: um desenvolvimento voltado para fora. Não é pra dentro, potencializando o país, criando mais mercado interno, progresso para o povo. É para a globalização, os mercados externos.

E hoje o Brasil continua desempenhando papel subalterno, com a diferença que se aproveita do momento econômico mais favorável. Não é nada social, ambiental, não estão nem aí pra isso. Basta ver como tudo piora nesse sentido, o Código Florestal que se tenta aprovar. Aqui na Bahia, mas em outros estados ocorre o mesmo, acabaram com as prerrogativas do Conselho Estadual de Meio Ambiente, passando-se muitas delas para os municípios. E passar estes atributos para o poder local dá no mesmo que extinguir tais prerrogativas... Veja o Código Florestal, o que é aquilo? É acabar com a lei que nunca cumpriram, legalizar a ilegalidade do passado e torná-la legal no futuro, de modo a manter as mesmas depredações que vemos.

A não ser pela queda da unidade do movimento social, não há muita diferença entre os governos citados. Aí vem a conversa de que é difícil se opor a esse governo porque o adversário principal é pior... Eis o quadro.

Claro que ajuda o fato de lutar com os de baixo, da base, e não nas intermediações políticas, o que de alguma forma mantém uma firmeza do movimento. Mas falta articulação. Por isso fazemos um esforço danado, pelo menos na bacia, de juntar atingidos pela mineração, projetos de energia, hidrelétrica, nuclear, do parque eólico, do agrocombustível, e tratar de descortinar o que acontece conosco, que necessidade de produzir energia é essa? Pra quem? Isso ainda temos bastante chance de fazer, apesar das dificuldades.

Correio da Cidadania: A respeito do atual governo, o que teria, finalmente, a dizer sobre a polêmica, para não dizer escandalosa, suspensão da entrega das cisternas do projeto que visava instalar 1 milhão delas no semi-árido?

Ruben Siqueira: Foi escandaloso. Temos um ministro da Integração Nacional, Fernando Bezerra Coelho, que é de Petrolina, e um projeto político ligado ao Eduardo Campos, governador nordestino de maior sucesso, do bloco da base aliada, do poder. E pra viabilizar tal projeto sacrificam algo que é a face mais avançada do ponto de vista político e ambiental no Nordeste, no caso, o programa 1 Milhão de Cisternas, além do Projeto 1 Terra + 2 Águas (P1+2), como propusemos, e eles descaracterizaram completamente. Era um projeto de reforma agrária no semi-árido, terra pra todos e duas águas, para casa e para produção. Só quiseram dar a segunda água, da produção, mas nunca quiseram dar a terra.

Aí entra a luta da ASA, e a questão essencial do Nordeste, que nunca foi a água. A questão essencial do Nordeste é a terra. Pra se ter idéia, o semi-árido baiano é o maior do Brasil, mais ou menos metade do semi-árido está na Bahia. Cerca de 90% dos agricultores baianos do semi-árido têm menos de 100 hectares. A própria Embrapa diz que uma família da região precisa, para viver em condições ideais, de 300. Portanto, o problema aqui é terra, não é água. Até porque quem tem terra tem “mais chuva”, mais subsolo, mais possibilidades de captar água, de ter rios temporários, veredas... Mas isso não se quer discutir e encarar.

Portanto, a dificuldade do P1+2 foi essa: mexer na terra. Porém, aí vamos mexer no núcleo do poder da República. Coisa que nesse país não pode.

Fato é que, quando o governo federal viu a besteira que ia fazer, recuou. Percebeu que a manobra das cisternas tinha muito a ver com o projeto regional, do ministro, que visava ficar mais conhecido para depois ser candidato ao governo de Pernambuco. Dizem que a empresa que faria as cisternas de plástico, muito mais onerosas e que viriam de fora, era de gente ligada a ele. Porque os Coelho são uma família envolvida em vários setores da política e da economia. Denunciou-se que as empresas que fariam as cisternas de plástico no lugar das cisternas da ASA são ligadas ao grupo dos Coelho. Não duvido, mesmo que não haja comprovação.

É o exemplo claro do que foi citado no início. A indústria da seca ainda faz e realimenta o poder no Nordeste. Em função de uma candidatura, um projeto político, manipula-se a água e suas respectivas políticas públicas.

Valéria Nader, economista e jornalista, é editora do Correio da Cidadania; Gabriel Brito é jornalista.

sexta-feira, 9 de março de 2012

Kelli Mafort: É preciso unificar a luta da mulher do campo e a urbana

 Vanessa Ramos página do MST

Há tempos que as mulheres brasileiras não seguem o exemplo das “Mulheres de Atenas”, de Chico Buarque. “… Quando fustigadas não choram, se ajoelham, pedem imploram mais duras penas; cadenas…”. Em vez disso, hoje as mulheres lutam, juntam forças, fazem exigências e protestos.
Mesmo com todos os problemas que ainda persistem em relação às questões de gênero em nossa sociedade, as mulheres têm se mostrado fortes e desafiadoras ao se colocarem na linha de frente de muitas lutas e, assim, dão passos largos para transformações históricas na sociedade.
O dia 8 de março, Dia Internacional das Mulheres, simboliza também o dia internacional de lutas das mulheres do campo e da cidade. “Toda vez que as mulheres se põem em movimento dentro das organizações, ajudam-nas a trilhar por um caminho de ofensiva, que é o caminho dos trabalhadores”, avalia Kelli Mafort, do Setor de Gênero do MST, que atua no estado de São Paulo.
Em entrevista à Pagina do MST, Kelli conta como as mulheres se posicionam em relação a algumas questões políticas, sobre a violência contra a mulher e sobre as distintas lutas que participam.
Leia abaixo a entrevista.

Qual é o objetivo da Jornada de Lutas das Mulheres neste ano?

A jornada tem como temas principais a questão do veto da presidenta Dilma às alterações do Código Florestal. Essas alterações apenas favorecem os ruralistas e o agronegócio. Então, já estamos nos mobilizando para exigir o veto da Dilma.
Outro tema também presente é a questão dos agrotóxicos. Esse já foi um tema discutido no ano passado e que persiste, dada à posição que o Brasil ocupa no cenário mundial, como um dos maiores consumidores de agrotóxicos do mundo, favorecendo principalmente as empresas ligadas à produção de venenos.
Além disso, a jornada também pauta a paralisia da Reforma Agrária. O ano de 2011 foi um dos piores anos da Reforma Agrária. Queremos reverter esse quadro, pois o Estado brasileiro tem se organizado para dar suporte ao agronegócio. As mulheres vão às ruas no dia 8 de março para denunciar essa situação de privilégio e exigir que a Reforma Agrária saia do papel.

Como vocês se posicionam e discutem no campo a questão da violência contra a mulher?

A questão da exploração, no caso das mulheres, está inserida, em geral, na classe trabalhadora. Por isso, quando falamos em gênero no MST, também está ligado a questão da classe. São as mulheres inseridas na classe trabalhadora. Ainda vivemos numa sociedade patriarcal. A nossa luta é contra a sociedade patriarcal e contra a sociedade capitalista. O capital opera em diferentes dimensões e também na questão do patriarcado. A violência a qual as mulheres são submetidas são expressadas de diferentes formas. A violência física, a violência doméstica é uma dessas formas, mas, na realidade, a nossa luta é contra todos os tipos de violência contra as mulheres.

Por que o sistema capitalista afeta principalmente as mulheres?

O sistema capitalista afeta principalmente as mulheres porque a luta por uma igualdade de direito, na caso das mulheres, é uma luta que não pode ser efetivada dentro desse sistema. A luta histórica do feminismo tem a bandeira da emancipação. No entanto, uma igualdade substantiva, que não é uma igualdade superficial, só na aparência, só é possível com alteração do modelo de sociedade.
Essa luta fica mais forte, mais intensa, no dia 8 de março. Apesar disso, muito ainda se faz o uso inadequado desse dia, como um dia de embonecar a mulher, além de uma série de deturpações do que é o dia 8 de março. Pra gente, o dia 8 de março é um dia internacional de lutas, uma vez que os nossos direitos de igualdade não foram alcançados e não serão alcançados nessa sociedade.
A história tem mostrado que quando os trabalhadores e as trabalhadoras se colocam em movimento, eles obtém conquistas. Não podemos esquecer que somos a maioria da população. Acho que a gente precisa ter essa concepção e acreditar que podemos ser muito mais feliz do que somos na sociedade atual e pra isso, temos que nos organizar, nos colocar em movimento.
A luta não pode ser só pela Reforma Agrária. A luta tem que ser por uma transformação social não só do MST, mas também de outras organizações e de outras mulheres que não estão ainda engajadas em nenhuma organização. A gente precisa se dispor a fazer trabalho de base, a se movimentar para garantir essas conquistas.

A luta da mulher do campo está separada da luta da mulher urbana?

Sem dúvida, é preciso uma unificação. As ações do dia 8 de março desse ano já revelam essa indicação. Em vários estados, as ações das camponesas vão acontecer junto às trabalhadoras urbanas. Por exemplo, a indignação com o despejo das famílias do Pinheirinho, uma ação que aconteceu no estado de São Paulo, no município de São José dos Campos, é um tema que está bastante presente na nossa jornada, que representa também a luta dos movimentos sociais de uma maneira geral.
Nossa luta é contra a repressão do Estado, contra a repressão aos trabalhadores. Isso mostra que não é uma luta somente do campo ou que há diferenças na luta do campo e da cidade. A própria ação que aconteceu nesta terça-feira (6), no Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, da ocupação do Ministério da Fazenda, foi uma ação do MST, da Via Campesina e das trabalhadoras urbanas. Várias outras ações 
também estão nessa direção.

De que forma as camponesas pretendem contribuir para a construção da soberania alimentar no país?

A partir de 2006, a ação que nós realizamos na empresa Aracruz, no Rio Grande do Sul, foi um marco tanto da mudança na forma da luta do dia 8 de março como também uma luta que revelou as alterações no meio rural. Hoje, nós temos um campo organizado para o capital, que não garante a soberania alimentar.
A ação de 2006 revelou um campo com pouca gente, de reprodução do capital e para empresas do agronegócio. As mulheres se organizam para dizer que não é esse o campo que nós acreditamos. Defendemos um campo que garanta a soberania alimentar, que seja um espaço da reprodução da vida e não da reprodução do capital.

Qual o papel da mulher na luta pela Reforma Agrária?

Tem uma canção que diz “ser mulher, a luta vai pela metade”. Nós acreditamos nisso. Além disso, tem uma questão na base material da luta das mulheres que ajuda a puxar o Movimento para uma ofensiva ousada, uma vez que a exploração das mulheres trabalhadoras é dupla. Ela é dupla no sentido de que é uma exploração da classe, mas também há uma violência contra a mulher. A nossa manifestação da luta também é dupla.
Essa dupla exploração puxa as mulheres para ações mais ousadas e com isso ajuda a puxar o interior das organizações, sejam elas do campo ou da cidade. Toda vez que as mulheres se põem em movimento dentro das organizações, ajudam-nas a trilhar por um caminho de ofensiva, que é o caminho dos trabalhadores.

quinta-feira, 8 de março de 2012

SE OS HOMENS MENSTRUASSEM .


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Por Gloria Steinem no CLOACANEWS
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Morar na Índia me fez compreender que a minoria branca do mundo passou séculos nos enganando para que acreditássemos que a pele branca faz uma pessoa superior a outra. Mas na verdade a pele branca só é mais suscetível aos raios ultravioleta e propensa a rugas.
Ler Freud me deixou igualmente cética quanto à inveja do pênis. O poder de dar à luz faz a “inveja do útero” mais lógica e um órgão tão externo e desprotegido como o pênis deixa os homens extremamente vulneráveis. Mas ao ouvir recentemente uma mulher descrever a chegada inesperada de sua menstruação (uma mancha vermelha se espalhara em seu vestido enquanto ela discutia, inflamada, num palco) eu ainda ranjo os dentes de constrangimento. Isto é, até ela explicar que quando foi informada aos sussurros deste acontecimento óbvio, ela dissera a uma platéia 100% masculina: “Vocês deveriam estar orgulhosos de ter uma mulher menstruada em seu palco. É provavelmente a primeira coisa real que acontece com vocês em muitos anos!”
Risos. Alívio. Ela transformara o negativo em positivo. E de alguma forma sua história se misturou à Índia e a Freud para me fazer compreender finalmente o poder do pensamento positivo. Tudo o que for característico de um grupo “superior” será sempre usado como justificativa para sua superioridade e tudo o que for característico de um grupo “inferior” será usado para justificar suas provações. Homens negros eram recrutados para empregos mal pagos por serem, segundo diziam, mais fortes do que os brancos, enquanto as mulheres eram relegadas a empregos mal pagos por serem mais “fracas’. Como disse o garotinho quando lhe perguntaram se ele gostaria de ser advogado quando crescesse, como a mãe, “Que nada, isso é trabalho de mulher.” A lógica nada tem a ver com a opressão.
Então, o que aconteceria se, de repente, como num passe de mágica, os homens menstruassem e as mulheres não? Claramente, a menstruação se tornaria motivo de inveja, de gabações, um evento tipicamente masculino.
Os homens se gabariam da duração e do volume. Os rapazes se refeririam a ela como o invejadíssimo marco do início da masculinidade. Presentes, cerimônias religiosas, jantares familiares e festinhas de rapazes marcariam o dia. Para evitar uma perda mensal de produtividade entre os poderosos, o Congresso fundaria o Instituto Nacional da Dismenorréia. Os médicos pesquisariam muito pouco a respeito dos males do coração, contra os quais os homens estariam, hormonalmente, protegidos e muito a respeito das cólicas menstruais. Absorventes íntimos seriam subsidiados pelo governo federal e teriam sua distribuição gratuita. E, é claro, muitos homens pagariam mais caro pelo prestígio de marcas como Tampões Paul Newman, Absorventes Mohammad Ali, John Wayne Absorventes Super e Miniabsorventes e Suportes Atléticos Joe Namath — “Para aqueles dias de fluxo leve”.
As estatísticas mostrariam que o desempenho masculino nos esportes melhora durante a menstruação, período no qual conquistam um maior numero de medalhas olímpicas. Generais, direitistas, políticos e fundamentalistas religiosos citariam a menstruação (”men-struação”, de homem em inglês) como prova de que só mesmo os homens poderiam servir a Deus e à nação nos campos de batalha (”Você precisa dar seu sangue para tirar sangue”), ocupariam os mais altos cargos (”Como é que as mulheres podem ser ferozes o bastante sem um ciclo mensal regido pelo planeta Marte?”), ser padres, pastores, o Próprio Deus (”Ele nos deu este sangue pelos nossos pecados”), ou rabinos (”Como não possuem uma purgação mensal para as suas impurezas, as mulheres não são limpas”).
Liberais do sexo masculino insistiriam em que as mulheres são seres iguais, apenas diferentes. Diriam também que qualquer mulher poderia se juntar à sua luta, contanto que reconhecesse a supremacia dos direitos menstruais (”O resto não passa de uma questão”) ou então teria de ferir-se seriamente uma vez por mês (”Você precisa dar seu sangue pela revolução”). O povo da malandragem inventaria novas gírias (”Aquele ali é de usar três absorventes de cada vez”) e se cumprimentariam, com toda a malandragem, pelas esquinas dizendo coisas tais como:
— Cara, tu tá bonito pacas!
— É, cara, tô de chico!
Programas de televisão discutiriam abertamente o assunto. (No seriado Happy Days: Richie e Potsie tentam convencer Fonzie de que ele ainda é “The Fonz”, embora tenha pulado duas menstruações seguidas. Hill Street Blues: o distrito policial inteiro entra no mesmo ciclo.) Assim como os jornais, (TERROR DO VERÃO: TUBARÕES AMEAÇAM HOMENS MENSTRUADOS. JUIZ CITA MENSTRUAÇÃO EM PERDÃO A ESTUPRADOR.) E os filmes fariam o mesmo (Newman e Redford em Irmãos de Sangue).
Os homens convenceriam as mulheres de que o sexo é mais prazeroso “naqueles dias”. Diriam que as lésbicas têm medo de sangue e, portanto, da própria vida, embora elas precisassem mesmo era de um bom homem menstruado. As faculdades de medicina limitariam o ingresso de mulheres (”elas podem desmaiar ao verem sangue”). É claro que os intelectuais criariam os argumentos mais morais e mais lógicos. Sem aquele dom biológico para medir os ciclos da lua e dos planetas, como pode uma mulher dominar qualquer disciplina que exigisse uma maior noção de tempo, de espaço e da matemática, ou mesmo a habilidade de medir o que quer que fosse? Na filosofia e na religião, como pode uma mulher compensar o fato de estar desconectada do ritmo do universo? Ou mesmo, como pode compensar a falta de uma morte simbólica e da ressurreição todo mês?
A menopausa seria celebrada como um acontecimento positivo, o símbolo de que os homens já haviam acumulado uma quantidade suficiente de sabedoria cíclica para não precisar mais da menstruação. Os liberais do sexo masculino de todas as áreas seriam gentis com as mulheres. O fato “desses seres” não possuírem o dom de medir a vida, os liberais explicariam, já é em si castigo bastante.
E como será que as mulheres seriam treinadas para reagir? Podemos imaginar uma mulher da direita concordando com todos os argumentos com um masoquismo valente e sorridente. (’A Emenda de Igualdade de Direitos forçaria as donas de casa a se ferirem todos os meses : Phyllis Schlafy. “O sangue de seu marido é tão sagrado quanto o de Jesus e, portanto, sexy também!”: Marabel Morgan.) Reformistas e Abelhas Rainhas ajustariam suas vidas em torno dos homens que as rodeariam. As feministas explicariam incansavelmente que os homens também precisam ser libertados da falsa impressão da agressividade marciana, assim como as mulheres teriam de escapar às amarras da “inveja menstrual”. As feministas radicais diriam ainda que a opressão das que não menstruam é o padrão para todas as outras opressões. (”Os vampiros foram os primeiros a lutar pela nossa liberdade!”) As feministas culturais exaltariam as imagens femininas, sem sangue, na arte e na literatura. As feministas socialistas insistiriam em que, uma vez que o capitalismo e o imperialismo fossem derrubados, as mulheres também mens-truariam. (”Se as mulheres não menstruam hoje, na Rússia”, explicariam, “é apenas porque o verdadeiro socialismo não pode existir rodeado pelo capitalismo.”)
Em suma, nós descobriríamos, como já deveríamos ter adivinhado, que a lógica está nos olhos do lógico. (Por exemplo, aqui está uma idéia para os teóricos e lógicos: se é verdade que as mulheres se tornam menos racionais e mais emocionais no início do ciclo menstrual, quando o nível de hormônios femininos está mais baixo do que nunca, então por que não seria lógico afirmar que em tais dias as mulheres comportam-se mais como os homens se portam o mês inteiro? Eu deixo outros improvisos a seu cargo.*
A verdade é que, se os homens menstruassem, as justificativas do poder simplesmente se estenderiam, sem parar.
Se permitíssemos.

Os machistas no Dia Internacional da Mulher


Uma chance para os homens entenderem que as palavras que acham lindas podem ser muito ofensivas. Quem sabe esses discursos entram em extinção?

Por Cynthia Semíramis 
Publicado originalmente no Blog da Cynthia Semíramis, em 2008. Foto por Cintia Barenho.

Como estou cansada de todo ano ouvir discursos machistas no Dia Internacional da Mulher, este ano preferi fazer a listinha das besteiras que eu já ouvi. Tenho certeza que vocês conhecem pelo menos alguma delas. Aproveitei também para explicar o quê está de errado nessas frases ridículas, pra ajudar os moços a entenderem que as palavras que eles acham lindas podem ser muito ofensivas. Quem sabe esses discursos entram em extinção?
mulheres, vocês embelezam o mundo
esse vocês já conhecem de outros posts. É aquela pessoa “simpática” que pensa que mulheres são enfeites. Entram na mesma categoria os piegas do “uma flor para outra flor”. Pra essa pessoa, uma mulher é, na verdade, um vaso de flores gigante: enfeita a sala, não se move sozinho, precisa de alguém pra mantê-lo vivo, e é mudo.
parabéns por ser mulher
eu, hein? Esse aí pegou o bonde andando e não entendeu nada. Que tal parabenizar as mulheres por, em pouco mais de um século, terem mudado a sociedade completamente, e pra melhor? Que tal parabenizá-las por terem largado uma vida como objetos, e se tornarem sujeitos de direito? Que tal parabenizá-las por abdicarem de uma vida de inatividade política, e exigirem o direito de votar e serem votadas? Mas não… quem parabeniza a mulher por ser mulher não percebe nada disso. Pra ele, o que importa é que a mulher é a coisa mais importante do mundo. Desde que caladinha, obediente, delicada, amorosa. Ou, em outras palavras, enfeitando o ambiente, igualzinho à opinião do machista do tópico anterior.
eu adoro as mulheres, afinal, nasci de uma
quem fala essa pérola é aquela pessoa que pensa que ser mulher é igual a ser mãe. Um reducionismo impressionante! Homem pode ter profissão, pode ser solteiro, casado, ter filhos, e continua sendo homem… já mulher só é mulher se for mãe. Essa teoria só não explica como classificar alguém que não pertence ao sexo masculino, nem tem filhos.
O curioso é que, nessas horas, não existe pai: eu adoro os homens, afinal, nasci de um… O filho é só da mãe (mas quando se trata de controlar o corpo e a vida da mãe, aí o pai/”dono” aparece rapidinho…)
falta um dia do homem
tadinho, está se sentindo abandonadinho porque não tem um dia com o nome “homem”. Se ele parar de olhar pro próprio umbigo, vai perceber que todos os dias são dos homens, nem precisa de uma data oficial pra isso. São eles que ainda têm todos os privilégios na sociedade. Afinal, o homem não se torna homem só porque é pai, ele não recebe menos por ser homem, não tem menos chances no mercado de trabalho porque é homem, não é descartado porque ficou gordo, velho ou grávido, não é tratado como invasor da profissão alheia só porque é homem… Quem reclama que não tem um dia do homem é um egoísta que está chorando de barriga cheia.
Pergunte se ele quer trocar de lugar com uma mulher, assim ele vai ter um dia pra ele; você vai ouvir a resposta negativa mais escandalosa do mundo. Na verdade, ele odeia tanto as mulheres que acha que elas só servem pra ficar caladas, fazendo serviços domésticos e sexuais, e enfeitando o ambiente. Mudas, é claro, pois se reivindicarem qualquer coisa (inclusive uma data de luta), estão exagerando os problemas pra chamar a atenção. E, caso não tenham entendido ainda, só ele pode chamar a atenção…
os outros 364 dias são do homem, huahuahua
esse aí parou o cérebro na época da ditadura militar. Naquela época, todas as datas eram pra elogiar o status quo, e esconder o tanto de coisas que eram mantidas erradas à força. Com a democracia, voltamos a colocar o dedo na ferida e as datas ditas comemorativas se tornaram datas problematizadoras, pois elas dão visibilidade a questões que muitos homens querem esconder, especialmente se o assunto for sexismo. Se o homem tem orgulho de usar a força (das mãos, da lei, das armas, da religião, da mídia) para manter seu status de dominador, e ainda ri disso, é sinal que está completamente em descompasso com o mundo atual e que não respeita mulher nenhuma. É um insensível e, no mínimo, omisso em relação à violência contra as mulheres. E é triste ver alguém tão estúpido ter orgulho dessa estupidez.
pra quê um dia desses? Vocês já são iguais a nós!
esse aí não leu meu post do ano passado. Provavelmente, a última coisa que ele leu foi que a Constituição da República declarou que homens e mulheres têm direitos iguais. De lá pra cá, não leu mais jornais nem revistas, não assistiu televisão nem conversou com ninguém, pois não sabe que a igualdade de fato está longe de ser alcançada. Tivemos de fazer uma lei pra combater violência doméstica, ainda precisamos de pressão política para melhorar as condições de trabalho, saúde e educação das mulheres, e falta acabar com o sexismo em todas as suas formas. Que igualdade é essa que tem tantas distorções e necessidade de correções? Conversar com gente desatualizada é terrível… pior ainda é quando têm orgulho de estar, pelo menos, 20 anos atrasados…
o dia é de comemoração, e você vai reclamar?
outro que parou na época dos militares e acha que tudo é pra comemorar. A vida dele é uma festa, e ele não percebe que a vida das mulheres raramente é assim. A vantagem é que, querendo ou não, ele vai ter de ouvir as reclamações. Quem sabe alguma delas entra na sua cabecinha retrógrada e muda alguma coisa – pra melhor – na vida das mulheres que convivem com ele?
continue a ser essa mulher linda, doce, gentil e afetuosa que você é
aviso para as mulheres: se vocês não são lindas, doces, gentis, afetuosas nem sensíveis o tempo todo, vocês não são mulheres. Favor passarem para a categoria “inadequada”, pois não sabemos o que vocês são. Homens são homens, não importa suas características. Até os trogloditas consideram que dizer que um homem é gentil pode ser um elogio. Mas, seguindo a lógica do machista, uma mulher, quando não é gentil, deixa de ser mulher. Aí a gente volta pra aquele modelo do primeiro exemplo: mulher só é mulher quando se torna um vaso de flores gigante e mudo.
E ainda acham que estão nos parabenizando…

quarta-feira, 7 de março de 2012

A história do Dia Mundial da Mulher

Por Vito Giannotti no BLOG DO MIRO

Quando começou a ser comemorado o Dia Internacional da Mulher? Quando começou a luta das mulheres por sua libertação? Qual é a influência do movimento socialista na luta das mulheres? E o 8 de Março, como nasceu? A data teve origem a partir do quê? Onde? Estas e outras questões mereceram uma atenção especial em 2003, quando nos jornais e na Internet apareceram repetidamente versões diferentes. Todas, no entanto, esqueceram a palavra-chave, que está na luta da mulher por sua libertação: mulher “socialista”.

Em 2003, nas vésperas do 8 de Março, o jornal cearense O Povo publicou um longo artigo de uma professora da Universidade Federal do Ceará (UFCE) que deixou muita gente assustada. O mesmo aconteceu com vários artigos que circularam pela Internet.

Para encarecer a dose, logo após a comemoração do Dia Internacional da Mulher, em 2003, o novo jornal que acabara de sair, Brasil de Fato, no seu número 1, também trazia um artigo da mesma professora da UFCE, Dolores Farias, que reafirmava o que ela havia escrito no jornal O Povo, dias antes.

Houve pessoas que ficaram furiosas com a contestação da origem da data do Dia Internacional da Mulher. Procurando entender o porquê desta confusão.

Na verdade, a questão da origem do 8 de Março já é discutida há uns 40 anos. Em 1996, o Jornal do Brasil trazia um artigo da professora da UFRJ, Naumi Vasconcelos, no qual ela dizia que a tal greve de Nova Iorque, em 1857, quando teriam morrido 129 operárias queimadas vivas, nunca existiu. E ela afirma que a origem desta data é bem outra.

No mesmo ano, em março, Conselho de Classe jornal do SEPE, Sindicato dos Profissionais de Educação da rede pública do Estado do Rio de Janeiro, trazia um artigo da mesma professora Naumi, com o título sugestivo de: Quem tem medo do 8 de Março? Este mesmo texto da Naumi já tinha sido publicado no mensário Em Tempo, pouco antes.

Uma pesquisa de 12 anos

Neste artigo, a autora citava, como fonte fundamental para a discussão, um livro de uma pesquisadora canadense intitulado: O Dia Internacional da Mulher – Os verdadeiros fatos e datas das misteriosas origens do 8 de março, até hoje confusas, maquiadas e esquecidas.

Este livro, da autora canadense Renée Côté, saiu em 1984, mas estranhamente ficou esquecido por várias razões. O livro da Renée é totalmente antiacadêmico, anticonvencional. Mas, mais do que a forma, o que fez o livro cair em esquecimento é o que ela afirma, que incomoda muita gente. Ela prova por a+b, ao longo de 240 páginas, que as certezas criadas nos anos de 1960, 70 e 80 pelos movimentos feministas, a respeito do surgimento do 8 de Março, são pura ficção.

Ela derruba um mito caro às mulheres feministas, que tanto penaram para afirmar esta data. Além disso, o livro acabou caindo no esquecimento porque é mais fácil aceitar versões já consolidadas de histórias, caras às nossas vidas, do que questionar mitos estabelecidos. Assim como, para muitos, é mais fácil aceitar a historinha de Adão e Eva, criados do barro, uns seis mil anos atrás, do que questionar as origens do homem, bem mais complexas, centenas de milhares de anos atrás.

Há um outro fator determinante que fez o livro da autora canadense cair no limbo: ela deixa transparecer, o tempo todo, sua visão favorável à autonomia dos movimentos sociais frente aos partidos e mostra uma prevenção à própria idéia de partido político.

O livro se insere no grande leito de luta autonomista, típica dos movimentos de esquerda dos anos 70. Isto cria uma animosidade com muitos setores da esquerda mais influente, que poderiam divulgar sua obra. Mas, deixando de lado simpatias, ou alergias, vamos entrar no cipoal deste mito.

A explicação da origem do mito da greve de Nova Iorque de 1857, nos EUA, e do esquecimento de outra greve real, concreta e julgada inoportuna pelo Partido e pelo Sindicato, de 1917 na Rússia, vamos ver só no final do artigo. A questão-chave é ver por quê, no mundo bipolar da Guerra Fria dos anos 60 do século passado, os dois blocos em disputa aceitaram a versão de uma greve de mulheres, em 1857, nos EUA, e esqueceram uma outra greve de mulheres, em 1917, na Rússia. Os motivos são mais políticos que psicológicos.

Há vários estudos, cada um acompanhado de uma vasta bibliografia, que vão no mesmo sentido das pesquisas da Renée Côté. Entre eles destacamos os artigos “8 de Março: Conquistas e Controvérsias” de Eva A. Blay, de 1999. Outro estudo é de Liliane Kandel, de 1982, “O Mito das Origens: sobre o Dia Internacional da Mulher”. Outro texto muito rico é da Sempreviva Organização Feminista (SOF), de 2000, “8 de Março, Dia Internacional da Mulher: em busca da memória perdida”. Vamos apresentar a síntese destas recuperações históricas.

O clima mundial quando nasceu o mito de 1857

Na década de 60 o mundo vivia uma grande convulsão político-ideológica. Somente no começo dos anos 70, o jogo se define e o bloco ocidental americano, isto é, capitalista, leva a melhor sobre o bloco soviético, socialista. A chegada do homem à lua, por parte dos americanos, em 69, definiu o destino da humanidade por várias décadas e, quem sabe, séculos. A URSS, a partir dessa data, entra em rápida decadência e o bloco americano caminha rumo ao império neoliberal mundial.

Esta década foi um vendaval nos costumes e ideologias do mundo. Mexeu com todo o equilíbrio político-cultural do planeta. Os anos 60 começam com a vitória do povo da Argélia contra o colonizador francês que foi o estopim das guerras de libertação no Congo, Senegal, Nigéria, Ghana e em toda a África.

A China vivia sua Revolução Cultural, com o famoso Livro Vermelho de Mao Tse Tung, que influenciava milhões de jovens no mundo inteiro. O Vietnã, após ter derrotado a França em 54, enfrentava e preparava a derrota do maior exército do mundo. Os países ex-coloniais tinham criado o movimento dos Não-alinhados. O mundo árabe, sob a liderança de Nasser, começava a se mexer.

Enquanto isso, a Revolução Cubana, com os barbudos Fidel e Che, era um modelo para os revolucionários da América Latina e do mundo.

No bloco soviético, aumentava a contestação interna com a Primavera de Praga, em 68, na República Tcheca. Enquanto isso, a Igreja Católica vivia as dores do parto do nascimento da Teologia da Libertação, pós-Concílio Vaticano II, que negava o apoio a exploradores, opressores, colonizadores e senhores da guerra, com suas cruzadas, e começava a falar em libertação dos oprimidos.

No mundo ocidental, os costumes tradicionais eram contestados pela entrada em cena do mundo jovem: Beatles, Woodstock, Black Power, movimento hippie e Panteras Negras. Na América Latina, faziam-se guerrilhas contra ditadores representantes do capital local e capachos do imperialismo americano.

As mulheres americanas e européias haviam descoberto a pílula e as dos países do Terceiro Mundo, a metralhadora, nas guerrilhas lado a lado com os homens.

No Ocidente, os estudantes passaram dos livros de Marcuse a Alexandra Kollontai e Wilhem Reich com sua Revolução Sexual e A Função do Orgasmo. As mulheres americanas se manifestavam contra a Guerra do Vietnã e falavam em Women's Lib, libertação das mulheres.

Os estudantes erguiam barricadas em Paris, tomavam as ruas em Praga, Berkley e Rio de Janeiro e falavam de revolução e de amor: revolução social e sexual. E as feministas nas suas manifestações falavam de “mística feminina” e queimavam sutiãs nas praças públicas.

Nesse caldeirão cultural mundial, em Chicago, em 1968 e em Berkley, em 69, se retoma, através de boletins e jornais feministas, a idéia do Dia Internacional da Mulher. Só que se esquece de que no começo do século, quando nasceu o Dia da Mulher, se acrescentava a qualificação de socialista. Este dia tinha caído no esquecimento, enterrado por sucessivas avalanches históricas.

As duas guerras mundiais, a burocratização stalinista da União Soviética e o avanço do capitalismo ocidental na sua versão clássica americana, ou na sua versão socialdemocrata européia, cada vez menos socialista, não tinham interesse em comemorar o 8 de Março.

Nos países comunistas, após a 2ª Guerra Mundial, voltaram as comemorações do 8 de Março. Mas estas eram mais para louvar a política dos seus respectivos governos do que para encaminhar a luta pela total libertação da mulher.

É nesse clima político-ideológico que será retomada a idéia de se comemorar uma data internacional para a luta de libertação das mulheres.

A origem do mito da greve de 1857

O que estamos acostumados a ler nos boletins de convocação do Dia da Mulher é a história de uma greve, que aconteceu em Nova Iorque, em 1857, na qual 129 operárias morreram depois de os patrões terem incendiado a fábrica ocupada.

A primeira menção a essa greve, sem nenhum dos detalhes que serão acrescentados posteriormente, aparece no jornal do Partido Comunista Francês, na véspera do 8 de Março de 1955. Mas onde se dá a fixação da data do 8 de março, devido a esta greve, é numa publicação, que apareceu em Berlim, na então República Democrática Alemã, da Federação Internacional Democrática das Mulheres. O boletim é de 1966.

O artigo fala rapidamente, em três linhas, do incêndio que teria ocorrido em 8 de março de 1857 e depois diz que em 1910, durante a 2ª Conferência da Mulher Socialista, a dirigente do Partido Socialdemocrata Alemão, Clara Zetkin, em lembrança à data da greve das tecelãs americanas, 53 anos antes, teria proposto o 8 de Março como data do Dia Internacional da Mulher.

A confusão feita pelo jornal L ´Humanité não fala das 129 mulheres queimadas. Aonde se começa a falar desta mulheres queimadas é na publicação da Federação das Mulheres Alemã, alguns anos depois. Esta historinha fictícia teve origem, provavelmente, em duas outras greves ocorridas na mesma cidade de Nova Iorque, mas em outra época. A primeira foi uma longa greve real, de costureiras, que durou de 22 de novembro de 1909 a 15 de fevereiro de 1910.

A segunda foi uma outra greve, uma das tantas lutas da classe operária, no começo do século XX, nos EUA. Esta aconteceu na mesma cidade em 1911. Nessa greve, em 29 de março, foi registrada a morte, durante um incêndio, causado pela falta de segurança nas péssimas instalações de uma fábrica têxtil, de 146 pessoas, na maioria mulheres imigrantes judias e italianas.
Esse incêndio foi, evidentemente, descrito pelos jornais socialistas, numerosos nos EUA naqueles anos, como um crime cometido pelos patrões, pelo capitalismo.

Essa fábrica pegando fogo, com dezenas de operárias se jogando do oitavo andar, em chamas, nos dá a pista do nascimento do mito daquela greve de 1857, na qual teriam morrido 129 operárias num incêndio provocado propositadamente pelos patrões.

E como se chegou a criar toda a história de 1857? Por que aquele ano? Por que nos EUA? A explicação, provavelmente, é a combinação de casualidades, sem plano diabólico pré-estabelecido. Assim como nascem todos os mitos.

A canadense Renée Côté pesquisou, durante dez anos, em todos os arquivos da Europa, EUA e Canadá e não encontrou nenhuma traça da greve de 1857. Nem nos jornais da grande imprensa da época, nem em qualquer outra fonte de memórias das lutas operárias.

Ela afirma e reafirma que essa greve nunca existiu. É um mito criado por causa da confusão com as greves de 1910; de 1911, nos EUA; e 1917, na Rússia.

Essa confusão se deu por motivos históricos políticos, ideológicos e psicológicos que ficarão claros no fim do artigo.

Pouco a pouco, o mito dessa greve das 129 operárias queimadas vivas se firmou e apagou da memória histórica das mulheres e dos homens outras datas reais de greves e congressos socialistas que determinaram o Dia das Mulheres, sua data de comemoração e seu caráter político.

Já em 1970, o mito das mulheres queimadas vivas estava firmado. Rapidamente foi feita a síntese de uma greve que nunca existiu, a de 1857, com as outras duas, de costureiras, que ocorreram em 1910 e 1911, em Nova Iorque.

Nesse ano de 1970, com centenas de milhares de mulheres americanas participando de enormes manifestações contra a guerra do Vietnã e com um forte movimento feminista, em Baltimore, EUA, é publicado o boletim Mulheres-Jornal da Libertação. Neste já se reafirmava e se consolidava a versão do mito de 1857.

Mas, na França, essa confusão não foi aceita tranqüilamente por todas e todos. O jornal nº 0, de 8 de março de 1977, História d´Elas, publicado em Paris, alerta para esta mistura de datas e diz que, em longas pesquisas, nada se encontrou sobre a famosa greve de Nova Iorque, em 1857. Mas o alerta não teve eco.

Dolores Farias, no seu artigo no Brasil de Fato, nº 2, nos lembra que, em 1975, a ONU declarou a década de 75 a 85 como a década da mulher e reconheceu o 8 de março como o seu dia. Logo após, em 1977, a Unesco reconhece oficialmente este dia como o Dia da Mulher, em homenagem às 129 operárias queimadas vivas.

No ano de 1978, o prefeito de Nova Iorque, na resolução nº 14, de 24/1, reafirma o 8 de março como Dia Internacional da Mulher, a ser comemorado oficialmente na cidade de Nova Iorque.

Na resolução, cita expressamente a greve das operárias de 1857, por aumento de salário e por 12 horas de trabalho diário, e mistura esta greve fictícia com uma greve real que começou em 20 de novembro de 1909. O mito estava fixado, firmado e consolidado. Agora era só repeti-lo.

Por que a cor lilás?

A partir de 1980, o mundo todo contará esta história acreditando ser verdadeira. Aparecerá até um pano de cor lilás, que as mulheres estariam tecendo antes da greve. Daquela greve que não existiu. A mitologia nasce assim. Cada contador acrescenta um pouquinho. “Quem conta um conto aumenta um ponto”, diz nosso ditado.

Por que não vermelho? Porque vermelhas eram as bandeiras das mulheres da Internacional. Vermelhas eram as bandeiras de Clara Zetkin, Rosa Luxemburgo e Alexandra Kollontai, delegadas dos seus partidos, à 1ª Conferência das Mulheres Socialistas, em 1907; e da 2ª, na Dinamarca, em 1910. Nesta última foi decidido que as delegadas, nos seus países, deveriam comemorar o Dia da Mulher Socialista.

A cor lilás na luta das mulheres tem uma origem engraçada. A feminista Sylvia Pankrust nos conta que esta foi adotada pelas sufragistas inglesas, em 1908, junto com outras duas cores, como símbolo de sua luta. Estas lutadoras pelo direito de voto escolheram o lilás, o verde e o branco. O lilás se inspirava na cor da nobreza inglesa, o branco simbolizava a pureza da luta feminina e o verde a esperança da vitória.

Historicamente, vamos reencontrar a cor lilás na retomada do feminismo, nos anos 60. O vermelho estava muito ligado aos Partidos Comunistas do Bloco Soviético que, na verdade, já tinham muito pouco de socialismo, ou de comunismo. Além disso, historicamente, vários destes partidos pouco apoio haviam dado às lutas específicas das mulheres.

A expressão "Libertação da Mulher" não era própria destes partidos. Neles, a luta da mulher era vista quase só com o objetivo de integrá-la à luta de classe. A luta feminista, para muitos comunistas, só atrapalhava a luta geral do proletariado. Tirava forças da luta principal.

Foi nesse clima que, nas décadas de 60 e 70 do século passado, a luta feminista foi retomada, num processo de auto-organização das mulheres. No movimento feminista havia uma forte crítica à prática da maioria dos partidos e sindicatos. Muitos movimentos se organizaram de forma autônoma, lutando para garantir sua independência.

Assim, várias feministas adotadaram a cor lilás, como uma nova síntese entre as cores azul e rosa. O vermelho das bandeiras das mulheres da Internacional foi esquecido. Na década de 70, as mulheres socialistas reafirmavam a origem socialista do 8 de Março, ao mesmo tempo em que várias delas assumiam a cor lilás como cor específica da luta feminista.

A libertação da mulher tem origem na luta socialista

A idéia da libertação da mulher nasceu na terra fértil do movimento socialista mundial, no final do século XIX e começo do século XX.

As raízes desta batalha podem ser encontradas nos escritos de Marx e Engels. A visão da família, da mulher proletária e da burguesa que permeiam A Origem da Família, da Propriedade e do Estado, de Engels, é a base da visão dos socialistas sobre a necessidade da libertação da mulher proletária. A frase de Marx, “A opressão do homem pelo homem iniciou-se com a opressão da mulher pelo homem”, demorou para dar seus frutos, mas deu.

Contemporâneos de Marx, Paul Lafargue e Laura Marx foram batalhadores da igualdade e da libertação feminina, em seus vários escritos, sobretudo em seu livro mais conhecido, Direito à Preguiça.

Clara Zetkin, desde 1890, logo após a fundação da Internacional Socialista, começou a falar, escrever e organizar a luta das mulheres visando a integrá-las à luta socialista. Visando a que elas tomassem seu lugar na luta de classes, na revolução socialista que estava próxima.

Fora da 2ª Internacional, a tradição anarquista de uma parte do movimento operário também exigia a igualdade de homens e mulheres. A realidade, naquele começo do movimento da classe trabalhadora ainda era dura: partido e sindicato eram coisas de homem. Mas, mesmo nesse ambiente desfavorável, grandes mulheres passaram a discutir com as maiores lideranças da época e deixaram suas marcas em livros e artigos e na organização das forças revolucionárias.

Foi neste embate de idéias que um dos teóricos da Internacional, August Bebel, em 1885, escreveu seu livro A Mulher e o Socialismo. E é nesse grande rio que deságua o célebre A Nova Mulher e a Moral Sexual, de Alexandra Kollontai, mais de 20 anos depois.

Nesse ambiente de lutas operárias e de discussões teóricas, no campo socialista, é que nasceu a luta pela participação política e, pouco a pouco, pela libertação da mulher.

A partir do começo do século XX, essa batalha das socialistas se cruzou com a do movimento das mulheres independentes, em sua maioria pertencentes às classes média e alta, que estavam em campanha pelo direito de voto. Essas mulheres, nos Estados Unidos e na Inglaterra, ao reivindicar o sufrágio para as mulheres, ficaram conhecidas como as sufragistas e suas relações com as socialistas eram de conflito, devido às visões e a posição de classe diferentes.

As mulheres socialistas criam o Dia da Mulher

Desde 1901, nos EUA, logo após a criação do Partido Socialista, surge a União Socialista das Mulheres, com a finalidade de reivindicar o direito de voto feminino. Entre os anos 1900 e 1908, sempre nos Estados Unidos, nascem vários clubes de mulheres, uns intimamente ligados ao Partido Socialista, outros mais autônomos, anarquistas ou não. Todos exigiam o direito de voto para as mulheres.

Em 1908, a Federação dos Clubes de Mulheres Socialistas de Chicago toma a iniciativa, autônoma, não ligada oficialmente ao Partido Socialista, de chamar para um Dia da Mulher, num teatro da cidade. Era o domingo, 3 de maio. Os debates do dia tinham dois temas de pauta: 1. A educação da classe trabalhadora. 2. A mulher e o Partido Socialista.

Nessa conferência, o palestrante Ben Hanford repetiu uma das idéias-chaves de Engels no seu A Origem da Família da Propriedade e do Estado. Nas palavras do orador, de acordo com Engels, “as mais exploradas são as mães do nosso povo. Elas estão de mãos e pés amarrados pela dependência econômica. São forçadas a vender-se no mercado do casamento, como suas irmãs prostitutas no mercado público.”

Mas não foi esse encontro independente, no teatro The Garrick, de Chicago, que foi reconhecido pelo Partido Socialista como começo da comemoração do Dia da Mulher. A iniciativa desse dia tinha nascido fora da estrutura oficial do Partido.

O primeiro dia da Mulher, nacional, assumido pelo Partido, foi no ano seguinte, em Nova Iorque, em 28 de fevereiro de 1909. Em outras cidades do País, como Chicago, o dia foi celebrado em outras datas.

O objetivo desse dia, convocado pelo Comitê Nacional da Mulher do Partido Socialista americano, “era obter o direito de voto e abolir a escravidão sexual.” O panfleto de convocação dizia: “A realização da revolução das mulheres é um dos meios mais eficazes para a revolução de toda a sociedade.”

Desde o começo do século, nos EUA havia um importante movimento pelo voto feminino, fora da órbita dos socialistas. A maioria das mulheres do Partido consideravam esse movimento como um movimento de mulheres brancas e de classe média.

Dentro do Partido Socialista havia um constante vai-e-vem sobre esse tema. Por seu lado, as mulheres anarquistas não viam nenhum sentido na luta pelo voto, nem das mulheres e nem dos homens. O meio para construir uma nova sociedade, e a igualdade entre homens e mulheres, na visão anarquista, não seria certamente o voto, e sim a ação direta revolucionária. A principal porta-voz desta visão era a revolucionária anarquista Emma Goldman.

O ambiente americano favorecia esta reivindicação do direito de voto. Até o ano de 1909, somente em quatro estados era reconhecido o direito ao voto feminino. A extensão do voto para toda mulher americana só viria em 1920.

Na Europa, o movimento das mulheres socialistas, liderado por Clara Zetkin, também era cheio de zige-zagues.

No começo, dentro da Internacional, se levava uma guerra sistemática contra a luta pelo direito de voto feminino, visto como uma forma de desviar as forças revolucionárias das mulheres e considerado como uma reivindicação burguesa. Era assim que eram tachadas as sufragistas, seja da Europa que da América, pelos socialistas.

Essa visão européia será adotada pelo Partido Socialista americano, em meio a grandes debates e com vozes discordantes. No meio do calor e das contradições desse debate, na 1ª Conferência Internacional das Mulheres Socialistas, em 1907, em Stuttgart, 58 delegadas de 14 países elaboraram uma proposição que comprometia os vários Partidos Socialistas a entrar na luta pelo voto feminino. A resolução foi elaborada, na véspera, na casa de Clara Zetkin, por ela e duas camaradas, suas hóspedes: Rosa Luxemburgo e a única russa da Conferência, Alexandra Kollontai.

É nesse clima de embates que, em 1910, o Partido Socialista americano organiza, pela segunda vez, o Dia da Mulher no último domingo de fevereiro, em Nova Iorque. O objetivo do dia é declarado sem rodeios no convite: “Arrolar as mulheres no exército dos camaradas da revolução social.”

Esta comemoração, de 1910 foi marcada por uma grande participação de operárias. Eram as costureiras da cidade que haviam terminado uma longa greve pelo direito de ter o seu sindicato reconhecido. A greve durou de 22 de novembro de 1909 até 15 de fevereiro de 1910, quase na véspera do Dia da Mulher. Foi uma greve longa, dura, com fortes piquetes reprimidos com violência pela polícia, que prendeu mais de 600 pessoas. Encerrada a greve, as costureiras participaram ativamente da preparação e da realização do Dia da Mulher chamado pelo Partido Socialista.

Dois meses depois, em maio, no congresso do partido, realizado em Chicago, foi deliberado que o partido americano enviaria delegados ao Congresso da Internacional, a ser realizado em agosto, com a tarefa, entre outras, de propor ao plenário que o Dia da Mulher fosse assumido pela Internacional. Esse dia deveria tornar-se o Dia Internacional da Mulher, a ser celebrado pelos socialistas, no último domingo de fevereiro de cada ano.

Em agosto desse ano, antes do Congresso da Internacional, se realizou em Copenhague, na Dinamarca, a 2ª Conferência Internacional das Mulheres Socialistas. Foi então que as delegadas americanas levaram a proposta aprovada no Congresso do seu partido. Assim, aceitando a proposta das delegadas dos Estados Unidos, Clara Zetkin e outras camaradas propõem a realização anual do Dia Internacional da Mulher.

O dia ficou indefinido. Ficou a cargo de cada país escolher a data melhor para comemorar este dia. A resolução aprovada será publicada logo em seguida, no jornal dirigido por Clara, A Igualdade, em 29 de agosto.

“As mulheres socialistas de todas as nações organizarão um Dia das Mulheres específico, cujo primeiro objetivo será promover o direito de voto das mulheres. É preciso discutir esta proposta, ligando-a à questão mais ampla das mulheres, numa perspectiva socialista.” A outra proposta, de comemorar o Dia da Mulher junto com a data já clássica da luta operária, o 1º de Maio, defendida por Clara e várias outras delegadas, foi derrotada. O dia da Mulher deveria ser comemorado num dia próprio, específico.

O Dia da Mulher se fixa em 8 de Março

Na Europa, a primeira celebração do Dia Socialista das Mulheres aconteceu em 19 de março de 1911, por decisão da Secretaria da Mulher Socialista, órgão da Internacional. Alexandra Kollontai, que propôs a data, diz que foi para lembrar um levante de mulheres proletárias, na Prússia, em 19 de março de 1848. Nesse dia, escreveu Kollontai, as mulheres conseguiram do rei da Prússia a promessa, depois não cumprida, de obter direito de voto.

Nos EUA, a tradição de realizar o Dia da Mulher no último domingo de fevereiro se repetiu em 1911, 1912 e 1913. Em 1914, será comemorado em 19 de março, seguindo a indicação da Kollontai.

Nos vários países da Europa, após a decisão da 2ª Conferência, onde havia um partido socialista, se começou a comemorar o Dia da Mulher.

Na Suécia, a primeira comemoração foi em 1º de março de 1911. O mesmo aconteceu na Itália.

Na França, o começo do Dia da Mulher foi em 1914, comemorado dia 9 de março, próximo ao Dia da Mulher na Alemanha.

Em 1914, pela primeira vez, na Alemanha, Clara Zetkin e as mulheres socialistas marcam data do Dia da Mulher para 8 de março. Não se explicou o porquê dessa data, pois não precisava. Era um detalhe sem interesse. A data era totalmente indiferente. Tinha que ser qualquer dia. Importante era a realização do dia.

Na Rússia, sob da opressão do czar, o primeiro Dia da Mulher só foi comemorado em 3 de março de 1913.

Em 1914 todas as organizadoras do Dia da Mulher foram presas e com isso não houve comemoração.

Em plena Guerra Mundial, em 1917, na Rússia, as mulheres socialistas realizaram seu Dia da Mulher no dia 23 de fevereiro, pelo calendário russo. No calendário ocidental, a data correspondia ao dia 8 de Março. Era o mesmo dia que, na Alemanha, tinha sido escolhido em 1914. Foi nesse dia que explodiu a greve espontânea das tecelãs e costureiras de Petrogrado.

Nesse dia, um grande número de mulheres operárias, na maioria tecelãs e costureiras, contrariando a decisão do Partido, que achava que aquele não era o momento para qualquer greve, saíram às ruas em manifestação por pão e paz. Declararam-se em greve. Essa manifestação foi o estopim do começo da primeira fase da Revolução Russa, conhecida depois como a Revolução de Fevereiro.

Em outubro o Partido Bolchevique lidera a grande Revolução Russa, nos “dez dias que abalaram o mundo”.

Essa greve foi documentada nos escritos de Trotsky e de Alexandra Kollontai, ambos membros do Comitê Central do Partido Operário Socialdemocrata Russo e ambos, depois, proscritos pelo stalinismo vencedor. Kollontai escreve: "O dia das operárias, 8 de Março, foi uma data memorável na história. Nesse dia as mulheres russas levantaram a tocha da revolução."

Mas o texto que melhor nos conta os fatos da greve das operárias da Petrogrado é um longo trecho de Leon Trotsky, no primeiro volume de seu livro História da Revolução Russa. Vale a pena acompanhá-lo:

“O 23 de fevereiro era o Dia Nacional das Mulheres. Programava-se, nos círculos da socialdemocracia, de mostrar o seu significado com os meios tradicionais: reuniões, discursos, boletins. Na véspera, ninguém teria imaginado que este Dia das Mulheres pudesse ter inaugurado a revolução.


Nenhuma organização planejava alguma greve para aquele dia. Ainda por cima, uma das combativas organizações bolcheviques, o Comitê dos Tecelões de Rayon, formado essencialmente por operários, desaconselhava qualquer greve. O estado de espírito da massa, segundo Kaiurov, um dos chefes operários deste setor, era muito tenso e cada greve ameaçava tornar-se um confronto aberto.


O Comitê julgava que o momento de começar hostilidades ainda não tinha chegado e que o Partido ainda não tinha forças suficientes e, ao mesmo tempo, a união entre soldados e operários ainda era insuficiente. Por isso tinha decidido não chamar para greve, mas para se preparar para a ação revolucionária, num futuro ainda não definido.


Esta era a linha de conduta preconizada pelo Comitê, na véspera do dia 23, e parecia que todos a tivessem aceitado. Mas, na manhã seguinte, contra todas as orientações, as operárias têxteis abandonaram o trabalho em várias fábricas e enviaram delegadas aos metalúrgicos para pedir-lhes que apoiassem a greve.


Foi a contra-gosto, escreve Kaiurov, que os bolcheviques, seguidos pelos operários mencheviques e pelossocialistas de esquerda se juntaram à marcha.


Como se tratava de uma greve de massa, era necessário comprometer todo mundo para sair às ruas e estar à frente do movimento. Esta foi a resolução proposta por Kaiurov e o Comitê de Vyborov se sentiu forçado a aprová-la.


Pelos fatos, é então certo que a Revolução de Fevereiro foi iniciada por elementos da base que passaram por cima da oposição das suas organizações revolucionárias, e que a iniciativa foi tomada espontaneamente por um contingente do proletariado explorado e oprimido mais que todos os outros, as operárias têxteis. (...) O empurrão final veio das enormes filas de espera em frente às padarias.”

Em 1921, realizou-se, em Moscou, na URSS, a Conferência das Mulheres Comunistas que adota o dia 8 de Março como data unificada do Dia Internacional das Operárias. A partir dessa Conferência, a 3ª Internacional, recém-criada, espalhará a data 8 de Março como data das comemorações da luta das mulheres.

Um dia esquecido e depois reinventado

Na Rússia comunista, após a vitória da Revolução de Outubro, nos primeiros anos do novo regime, o dia 8 de Março era comemorado todo ano, como o Dia Internacional da Mulher Comunista.

O dia, pouco a pouco, perdeu seu interesse e o adjetivo comunista foi caindo à medida que o ímpeto revolucionário da União Soviética começou a se arrefecer.

Nos últimos anos da década de 20 e, sobretudo, nos anos 30, o Dia Internacional da Mulher, seja comunista ou socialista, se perderá na tormenta que se abateu sobre o mundo. A ascensão do nazismo na Alemanha, o triunfo do stalinismo na URSS e o declínio da socialdemocracia na Europa e o vendaval da 2ª Guerra Mundial enterram as manifestações do Dia das Mulheres.

Fora dos países comunistas, no Ocidente, a humanidade só voltará a falar do Dia da Mulher, no final dos anos 60. Nesse lapso de tempo, o marco do 8 de Março, data da greve das operárias de Petrogrado, de 1917, foi esquecido.

A data da vitória das revolucionárias rebeldes russas, que impôs a derrota do absolutismo do Czar e deslanchou a Revolução Russa, não interessava aos comunistas do mundo todo. Estes, quase todos, viviam anestesiados pelos encantos ou pelo terror stalinista.

Retornar a lembrança daquele 8 de Março das operárias revolucionárias de Petrogrado também não interessava à Socialdemocracia, rejuvenescida após a destruição da Segunda Guerra Mundial e em conflito aberto com o comunismo dos países do bloco soviético.

8 de Março: uma data a celebrar

Menos que menos, a data do 8 de Março de 1917, na nascente URSS, interessava o bloco capitalista ocidental, inimigo mortal da Rússia comunista. É neste clima, propício ao esquecimento da verdadeira história do Dia da Mulher, já na década de 1950, nas publicações do Partido Comunista, na França, se começou a falar de uma forte luta das operárias americanas, em 8 de março de 1857.

Talvez, a famosíssima greve do 1º de Maio, na Chicago de 1886 e as numerosas greves nas tecelagens americanas estimularam as fantasias e levaram a enfatizar a participação dos Estados Unidos na luta da mulher, o que favoreceu esta confusão de datas. Pouco a pouco se deslocou a data para 1857, em Nova Iorque. E aí, em ondas sucessivas de contadores, se chegou a historinha completa.

No dia 1º de Março de 1964, o jornal da CGT francesa, Antoinette, fala que “foram as americanas que começaram. Era 8 de março de 1857. Para exigir as 10 horas elas ocuparam as ruas de Nova Iorque”. É a continuação do que já tinha aparecido no jornal do PCF, nos anos anteriores.

E finalmente, foi assim, sem precisar de uma conspiração organizada por um suposto império do mal, que na Alemanha Oriental, em 1966, a Federação das Mulheres Comunistas noticiou a história do Dia da Mulher, enriquecida com o martírio das 129 queimadas vivas.

Tudo isto foi feito de forma confusa, misturando fatos com fantasias, com cada contador, escrevendo e inventando datas e detalhes.

E foi assim, sem nenhuma deliberação conspiratória, que o mito que acabava de ser criado, em 1966, no Leste Europeu, começou a ser divulgado e foi depois enriquecido fartamente, nos EUA do final dos anos 60 e em todo o mundo ocidental.

Depois disso, era só enriquecer o mito. O que foi feito, até sua cristalização em 1975, com a ONU e logo depois com a Unesco, em 1977.

Uma data muito rica que não precisa de mitos

Derrubar o mito de origem da data 8 de Março não implica desvalorizar o significado histórico que este adquiriu.

Muito ao contrário. Significa retomar a verdade dos fatos que são suficientemente ricos de significado e que carregam toda a luta da mulher no caminho da sua libertação. Significa enriquecer a comemoração desse dia com a retomada de seu sentido original.

Significa voltar às origens do ideal socialista da maioria das mulheres que lutavam por um mundo novo sem exploração e opressão do homem pelo homem e especificamente da mulher pelo homem.

Um dia que quer retomar a comemoração e a luta de um 8 de Março sem medos. Avançar sem medos e sem vergonha pelas derrotas sofridas pelas revoluções perdidas no século XX, rumo à conquista da libertação total das mulheres.

Significa integrar todos os novos e importantíssimos aspectos da luta da libertação da mulher, descobertos com a evolução histórica da humanidade no século XX, com a retomada de suas raízes socialistas.

Integrar à clássica luta libertária, socialista e comunista do começo do século XX, as contribuições de diferentes linhas de pensamento e países, que vão de Wilhem Reich a Simone de Beauvoir, de Herbert Marcuse a Samora Machel, de Betty Friedann a Rose Marie Muraro. Integrar toda a luta do feminismo para construir uma sociedade onde a mulher seja reconhecida como gente.

Integrar estas elaborações teóricas com as lutas e as experiências de vida de milhares de ativistas, militantes e organizadoras da luta das mulheres, no mundo inteiro: das guerrilheiras latino-americanas, às mulheres vietnamitas, das trabalhadoras das fábricas às plantadoras de arroz da Índia, das Mães dos desaparecidos argentinos às lutadoras pela reforma agrária do MST.

Uma longa luta sem medo da felicidade, sem medo do prazer. Sem medo de lutar por uma revolução, que deverá ser social, sexual, e profundamente cultural. Sem medo de levantar as bandeiras vermelhas da luta pela libertação da humanidade. A libertação de homens e mulheres.

*****

Datas básicas sobre a origem do 8 de Março

1900-1907

- Movimento das Sufragistas pelo voto feminino nos EUA e Inglaterra.

1907

- Em Stuttgart, é realizada a 1ª Conferência da Internacional Socialista com a presença de Clara Zetkin, Rosa Luxemburgo e Alexandra Kollontai. Uma das principais resoluções: "Todos os partidos socialistas do mundo devem lutar pelo sufrágio feminino."

1908

- Em Chicago (EUA), no dia 3 de maio, é celebrado, pela primeira vez, o Woman´s Day. A convocação é feita pela Federação Autônoma de Mulheres.

1909

- Novamente em Chicago, mas com nova data, último domingo de fevereiro, é realizado o Woman's Day. O Partido Socialista Americano toma a frente.

1910

- A terceira edição do Woman's Day é realizada em Chicago e Nova Iorque, chamada pelo Partido Socialista, no último domingo de fevereiro.

- Em Nova Iorque, é grande a participação de operárias devido a uma greve que paralisava as fábricas de tecido da cidade. Dos trinta mil grevistas, 80% eram mulheres. Essa greve durou três meses e acabou no dia 15/02, véspera do Woman's Day.

- Em maio, o Congresso do Partido Socialista Americano delibera que as delegadas ao Congresso da Internacional, que seria realizado em Copenhague, na Dinamarca, em agosto, defendam que a Internacional assuma o Dia Internacional da Mulher.

"Este deve ser comemorado no mundo inteiro, no último domingo de fevereiro, a exemplo do que já acontecia nos EUA".

- Em agosto, a 2ª Conferência Internacional da Mulher Socialista, realizada dois dias antes do Congresso, delibera que: "As mulheres socialistas de todas as nacionalidades organizarão (...) um dia das mulheres específico, cujo principal objetivo será a promoção do direito a voto para as mulheres". Não é definida uma data específica.

1911

- Durante uma nova greve de tecelãs e tecelões, em Nova Iorque, morrem 134 grevistas, a causa de um incêndio devido a péssimas condições de segurança.

- Na Alemanha, Clara Zetkin lidera as comemorações do Dia da Mulher, em 19 de março. (Alexandra Kollontai diz que foi para comemorar um levante, na Prússia, em 1848, quando o rei prometeu às mulheres o direito de voto).

- Nos Estados Unidos, o Dia da Mulher é comemorado em 26/02 e na Suécia, em 1º de Maio.

1912

- Nos Estados Unidos, o Dia da Mulher é comemorado em 25/02.

1912 e 1913

- Na Alemanha, o Dia da Mulher é comemorado em 19/3.

1913

- Na Rússia é comemorado, pela primeira vez, o Dia da Mulher, em 3/3.

1914

- Pela primeira vez, a Secretaria Internacional da Mulher Socialista, dirigida por Clara Zetkin, indica uma data única para a comemoração do Dia da Mulher: 8 de Março. Não há explicação sobre o porquê da data.

- A orientação foi seguida na Alemanha, Suécia e Dinamarca.

- Nos Estados Unidos, o Dia da Mulher foi comemorado em 19/03

1917

- No dia 8 de Março de 1917 (27 de fevereiro no calendário russo) estoura uma greve das tecelãs de São Petersburgo. Esta greve gera uma grande manifestação e dá início à Revolução Russa.

1918

- Alexandra Kollontai lidera, em 8/3, as comemorações pelo Dia Internacional da Mulher, em Moscou, e consagra o 8/3 em lembrança à greve do ano anterior, em São Petersburgo.

1921

- A Conferência das Mulheres Comunistas aprova, na 3ª Internacional, a comemoração do Dia Internacional Comunista das Mulheres e decreta que, a partir de 1922, será celebrado oficialmente em 8 de Março.

1955

- Dia 5/3, L´Humanité, jornal do PCF, fala pela primeira vez da greve de 1857, em Nova Iorque. Não fala da morte das 129 queimadas vivas.

1966

- A Federação das Mulheres Comunistas da Alemanha Oriental retoma o Dia Internacional das Mulheres e, pela primeira vez, conta a versão das 129 mulheres queimadas vivas.

1969

- Nos Estados Unidos, o movimento feminista ganha força. Em Berkley, é retomada a comemoração do Dia Internacional da Mulher.

1970

- O jornal feminista Jornal da Libertação, em Baltimore, nos EUA consolida a versão do mito de 1857.

1975

- A ONU decreta, 75-85, a Década da Mulher.

1977

- A Unesco encampa a data 8/3 como Dia da Mulher e repete a versão das 129 mulheres queimadas vivas.

1978

- O prefeito de Nova Iorque decreta dia de festa, no município, o dia 8 de Março, em homenagem às 129 mulheres queimadas vivas.

O Ministro da Educação tem razão, Sr. Governador

Do sitio 14nucleo-cpers


 A maior prova de que o Ministro Aloizio Mercadante agiu corretamente ao anunciar o reajuste do piso salarial do magistério - seguindo a tradição do MEC, dos dois últimos anos, de induzir estados e municípios a cumprirem a norma federal –, foi verificada hoje (6 de março) pela decisão da Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, que ordenou o Governador Tarso Genro a cumprir a Lei 11.738, inclusive com o pagamento dos débitos retroativos a que a categoria tem direito.

Ao atacar o ministro da Educação, o Governador Tarso Genro inovou uma concepção de piso salarial que destoa do princípio da valorização profissional, em especial de uma categoria historicamente massacrada pelo descaso de inúmeros gestores públicos. Ou alguém, em sã consciência, considera que o piso do magistério (equivalente a pouco mais de dois salários mínimos) já tenha atingido um nível de valorização que possibilite, a partir de agora, manter-se atualizado apenas pela inflação? Tenha dó, senhor Governador!

Ainda que haja dificuldades herdadas de governos anteriores, é fato que o Governador Tarso Genro tem errado na condução dos problemas que o afligem. Não é prudente atacar uma lei moralizadora e garantidora de direitos sociais, em todo território nacional, em razão das contingências locais. Outras formas para se resolver o problema da desvalorização do magistério gaúcho precisam ser implantadas, incluindo a perspectiva de aumento do percentual do PIB local e nacional para a educação, a fim de que o Estado honre com seu compromisso de pagar o Piso vinculado à Carreira profissional da categoria.

Quanto à questão do reajuste, tão criticada por Tarso Genro, a Lei assegurou a possibilidade de ganho real aos professores e professoras, dentro de uma base consistente, que é a própria fonte de financiamento da educação básica (no mínimo 60% do Fundeb, somadas as demais receitas vinculadas constitucionalmente à educação). Ocorre que, há algum tempo, as receitas tributárias têm aumentado e as matrículas diminuído – o que, diga-se de passagem, não é bom para um país que possui déficits altíssimos de acesso da população à escola e vergonhosos índices de analfabetismo literal e funcional –, e essa realidade fez com que a receita destinada aos salários do magistério e dos demais profissionais da educação aumentasse.
Para que possa entender melhor essa situação, convidamos o Governador Tarso Genro a participar, sob uma ótica republicana e não apenas bairrista, do debate que a Câmara dos Deputados promoverá em torno do projeto de lei que visa alterar a atualização monetária do piso. Isso, talvez, possa demovê-lo das tratativas para mais uma litigância de má-fé contra a Lei do Piso (referente ao artigo que trata do reajuste), a qual visa criar insegurança jurídica em estados e municípios que têm cumprido ou estão em vias de cumprir a Lei. Na qualidade de jurista que é, o Sr. Tarso Genro sabe muito bem o que isso representa, e a CNTE já emitiu moção de repúdio recentemente a ele, Governador, em razão dessa atitude.
Sobre a consulta que o MP/RS fez à Procuradoria Geral da República, questionando o reajuste do piso, clara está a intenção do Governador de colocar a norma, mais uma vez, sub judice, e, assim, postergar sua aplicação imediata e integral, conforme ordenou o STF e a justiça gaúcha. Todavia, a CNTE já se adiantou a esta manobra e solicitou audiência com o PGR, Roberto Gurgel, a fim não só de esclarecê-lo sobre os critérios de correção da Lei 11.738, mas também para cobrá-lo a adoção de medidas que garantam a correta e imediata atualização do piso, estimado pela CNTE, para 2012, em R$ 1.937,26. (CNTE, 06/03/12)

Educação: dois grandes passos para trás

  Otaviano Helene no CORREIO DA CIDADANIA   



No início do século XX, o sistema escolar brasileiro fornecia à população uma escolaridade média (1) de cerca de 2 anos. Essa média, evidentemente, inclui tanto a enorme massa daqueles que não freqüentavam escola alguma como as cerca de 2.500 pessoas que a cada ano registravam seus diplomas de curso superior. Após quase um século, essa média é ainda de apenas cerca de 10 anos.
A evolução da escolarização fornecida pelo sistema educacional no período de pouco mais de 80 anos (veja gráfico (2)) não foi regular. Além de algumas pequenas variações não muito intensas na taxa de crescimento, há dois recentes períodos de estagnação, ou mesmo de retrocesso, bastante longos, um deles que se iniciou pouco antes de 1980 e outro, por volta do ano 2000. Foram dois enormes passos para trás em uma caminhada já problemática.
Antes de analisarmos esses dois períodos e procurar possíveis explicações tanto para suas origens como para suas superações, é necessário observar que há alguma incerteza nos valores mostrados no gráfico (da ordem da espessura da curva), cuja origem está nas incertezas das próprias informações usadas para avaliar a escolaridade média, tais como a população em diferentes faixas etárias, a defasagem idade-série, o número de concluintes nos diferentes níveis educacionais etc. Apesar dessa incerteza, é evidente a ausência de qualquer evolução positiva da escolaridade nas décadas de 1980 e de 2000.
A crise da década de 1980 pode ser entendida pelo que ocorreu imediatamente antes dela. Grande parte do crescimento da escolaridade média oferecida pelo sistema educacional durante o período militar foi devida ao fim do exame de admissão para o antigo ginásio, coisa que os leitores mais antigos devem se lembrar; com isso, os estudantes que estavam represados ao final do ensino primário passaram a fluir pelo sistema. Entretanto, como não havia um programa consistente que fosse capaz de incluir novas pessoas, quando esse efeito de desrepresamento se esgotou, começou um longo período de estagnação e retrocesso, o qual coincide com a crise econômica que, como a educacional, marcou a falência do projeto imposto pela ditadura militar.
Esse período de estagnação só foi superado a partir de 1990 e isso pode estar relacionado a vários fatores. Um deles pode ter origem na Constituição de 1988 e nas movimentações políticas que a antecederam, quando os direitos sociais passaram a fazer parte das discussões políticas, levando à eleição de candidatos comprometidos com esses direitos ou menos avessos a eles. Outro efeito é o surgimento de políticas de progressão continuada, infelizmente transformadas, na prática, em aprovação automática, que tiraram do caminho dos estudantes, pelo menos parcialmente, a reprovação, desestimulando a evasão escolar.
Outro fator que pode ter contribuído para o aumento das matrículas e conclusões de curso na década de 1990 e, portanto, para a escolaridade média da população fornecida pelo sistema educacional foi o processo de municipalização do ensino fundamental. Essa expansão das matrículas pode ser fruto da seguinte lógica: com a municipalização, recursos antes gastos pelos Estados podiam ser transferidos aos municípios, juntamente com os estudantes e na proporção destes; essa transferência de recursos certamente interessava aos poderes instituídos nos vários municípios, não necessariamente porque isso permitiria que as prefeituras dessem melhores respostas às necessidades dos munícipes, mas, sim, porque isso daria mais poder (recursos, funcionários, prédios escolares etc.) aos prefeitos. Assim, atrair alunos passou a ser interessante aos prefeitos (3).
Todos esses efeitos, entretanto, parecem ter se esgotado por volta do ano 2000, quando as matrículas e as conclusões de curso nos ensinos fundamental e médio pararam de crescer ou foram reduzidas. É possível supor que os mecanismos que contribuíram para o aumento das matrículas na educação básica ao longo da década de 1990 foram insuficientes para atingir os segmentos mais desfavorecidos da população e seus efeitos se esgotaram por volta do ano 2000. Como não surgiram novos instrumentos para atrair novos estudantes e fixá-los nas escolas, entramos em um novo período de crise.
A retração que afetou o ensino básico foi tão forte que mesmo o aumento das matrículas no ensino superior ao longo da última década foi insuficiente para “puxar para cima” a escolaridade média da população.
Caso não houvesse as crises da década de 1980 e de 2000, poderíamos ter universalizado a conclusão do ensino fundamental e ter um ensino médio que atingisse, pelo menos, a grande maioria da população urbana do país. Entretanto, não foi essa a opção dos governos, em especial dos municipais e estaduais, em cujas escolas está a grande maioria dos estudantes da educação básica.
Estudar apenas os indicadores quantitativos, como feito aqui, fornece uma visão bastante restrita da realidade educacional. Entretanto, eles ajudam a entender um pouco da nossa história, dão alguma idéia das tarefas que temos pela frente e mostram o que deveria e o que não deveria ter sido feito. Em particular, a crise que se iniciou por volta do ano 2000 e marcou toda a década, perdurando, pelos dados disponíveis, até hoje, coincide com o período de vigência do Plano Nacional de Educação recentemente encerrado e cujas metas mais importantes não foram atingidas (ao contrário, nos afastamos ainda mais de muitas delas), mostrando que, se queremos mudar a realidade, é necessário mais do que as leis.
É possível que nós venhamos a superar a atual crise educacional apenas quando novas ações efetivas forem adotadas. Uma delas deve ser a criação de mecanismos de gratuidade ativa, uma vez que a escola, mesmo que gratuita, induz despesas intoleráveis pelos segmentos mais pobres (a não conclusão do ensino fundamental entre a metade mais pobre da população é a regra, não a exceção) e que precisam ser compensadas para que os jovens e as crianças continuem estudando. Outra ação, importante para melhorar tanto os indicadores quantitativos como os qualitativos, é melhorar as condições das escolas públicas de ensino básico de tal forma que estudar, aprender e ensinar sejam atividades prazerosas. E essas coisas passam, necessariamente, por aumento de recursos públicos.
Notas
(1) A escolaridade média fornecida à população pelo sistema educacional corresponde ao número médio de anos de estudo daquelas pessoas que deixam o sistema escolar em um determinado ano do calendário.
(2) O gráfico apresentado foi construído com base no artigo “Evolução da escolaridade esperada no Brasil ao longo do século XX”, publicado na revista Educação e Pesquisa, acessível por meio eletrônico.
(3) É importante observar que o aumento do número de estudantes sem o aumento, nas mesmas proporções, dos recursos implicou em uma piora do desempenho estudantil na mesma época.



Otaviano Helene, professor no Instituto de Física da USP, foi presidente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).