terça-feira, 3 de abril de 2012

A Crise Estrutural do Sistema do Capital

Sebastião no blog ARQUIVOS CRITICOS
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O modo de produção capitalista tem como característica essencial a extração da mais-valia, ou seja, a exploração dos trabalhadores. Essa exploração ocorre devido ao fato de os trabalhadores encontrarem-se despossuídos dos meios de produção. Seu trabalho e sua produção encontram-se fora do seu domínio. O produtor direto está alienado das condições de produção e reprodução da sociedade, dominado pelas forças sociais que ele mesmo criou. O fetichismo da mercadoria ou a reificação das relações sociais dominam o ser e a consciência tanto dos trabalhadores como dos burgueses. É desse ocultamento das relações sociais por trás da produção de mercadorias e de valor, processo que aparece como eterno e natural, é dessas fantasmagorias que tira a sua força a ideologia burguesa que, domina as mentes dos indivíduos sob o capitalismo.[1]

 O capital, portanto, tira sua força da exploração do trabalho da classe trabalhadora. O trabalhador produz o valor necessário para pagar a sua reprodução, o seu salário, e além disso produz um valor não pago, que é a apropriado pelo capitalista, a mais-valia. E é com a apropriação da mais-valia, do trabalho não pago, que o capital se expande e se acumula de forma intensa e permanente até encontrar seu limite imposto por suas próprias contradições. E essas contradições, como veremos adiante, são as responsáveis pelas crises do capitalismo.

A acumulação do capital, sua razão de ser, encontra-se determinado pela teoria do valor-trabalho. É esta lei que explica as características essenciais do modo de produção capitalista. Tendo sido elaborado pela economia política clássica, por Smith e por Ricardo, foi somente com Marx que esta teoria alcançou sua plenitude teórica e prática. Foi a partir da teoria do valor-trabalho que Marx desvendou os mistérios da produção da riqueza do capitalismo. Ao descobrir que é o trabalho, ou mais precisamente, o tempo de trabalho socialmente necessário que produz o valor e a mais-valia, Marx ultrapassou os limites da economia clássica e descobriu o motor da riqueza capitalista, e os limites também do modo de produção capitalista.

Com a teoria do valor trabalho e seu corolário, a expropriação da mais-valia, Marx atingiu o coração do sistema do capital, o seu conteúdo, injusto e desumano.[2] E mais, ele vislumbrou seus limites históricos e sua superação dialética por um modo de produção superior, racional e verdadeiramente humano.

Por ser uma “contradição viva”, como afirmava Marx, o sistema do capital teve a sua história marcada por auges e depressões, fluxos e refluxos, expansões e crises, continuidades e rupturas. Nenhum modo de produção teve tantas contradições como o sistema do capital. Nenhum foi também tão revolucionário e conservador ao mesmo tempo, estável e instável no seu movimento de expansão mundial.

O movimento do capital é insaciável.[3] Sua acumulação, seu moto contínuo, é determinado pela taxa de lucro, que por sua vez é determinada pela taxa de mais-valia. E a taxa de mais-valia, assim como a taxa de lucro, dependem da composição orgânica do capital: c/v. Como o capital investe cada vez mais nos meios de produção, ou no capital constante, proporcionalmente do que em trabalhadores, ou o capital variável, a tendência é que a composição orgânica aumente, devido o crescimento da proporção do capital constante.

Como a mais-valia é criada pela parte variável do capital, com a sua queda, a tendência é de que caia também a taxa de mais-valia. Caindo a taxa de mais-valia ocorre também a tendência da queda da taxa de lucro. E como resultado destas tendências temos a diminuição ou a interrupção do processo de acumulação. Na verdade é um processo que se auto-alimenta, acumulação e queda da taxa de lucro são movimentos concomitantes, que influenciam e determinam um ao outro. Marx explica este processo:

“Queda da taxa de lucro e acumulação acelerada são apenas aspectos diferentes do mesmo processo, no sentido de que ambas expressam o desenvolvimento da produtividade. A acumulação acelera a queda da taxa de lucro, na medida em que acarreta a concentração dos trabalhos em grande escala e com isso composição mais alta do capital. A queda da taxa de lucro por sua vez acelera a concentração do capital e sua centralização, expropriando-se os capitalistas menores, tomando-se dos produtores diretos remanescentes o que ainda exista para expropriar. Assim, acelera-se a acumulação, em seu volume, embora sua taxa diminua com a queda da taxa de lucro”.[4]

Temos, portanto, no capitalismo, um desenvolvimento que desemboca sempre em crises, a interrupção da produção da mais-valia, ou seja, da acumulação. Isto quer dizer que a lógica da acumulação do capital o leva sempre a entrar em crises. E essas crises se tornam cíclicas e, com o tempo, cada vez mais profundas, ameaçando todo o modo de produção capitalista com a possibilidade de seu colapso e de sua superação. Marx explica melhor a razão dessas crises:

“No modo capitalista de produção, relativamente à população, desenvolve-se em demasia a produtividade, e, embora sem atingir a mesma proporção, aumentam os valores-capital (e não só o substrato material desses valores) de maneira mais rápida, que a população. Os dois fatos colidem com a base - que, em relação à riqueza crescente, é cada vez mais estreita, e para a qual opera essa produtividade imensa – e com as condições de valorização do capital que se expande. Daí as crises”.[5]

Podemos perceber que o desenvolvimento da produtividade do capital leva à queda da taxa de lucro, criando uma superprodução de capital que não consegue se realizar. Eis a contradição viva e seu desfecho final, o colapso, seja ele agudo ou crônico, como veremos adiante. O que vale salientar é que o capital tem limites para sua expansão e que esses limites indicam para o seu esgotamento e o seu fim.

Mas o capital cria contra-tendências para evitar a queda da taxa de lucro, a super produção e as crises. Essas contra-tendências são: 1) aumento do grau de exploração do trabalho; 2) redução dos salários; 3) baixa de preço dos elementos do capital; 4) superpopulação relativa; 5) comercio exterior e 6) aumento do capital em ações.

Ao utilizar esses mecanismos o capital conseguiu superar suas graves crises ao longo do século XIX. Isto foi possível até a grande crise do inicio do século XX, o crack de 1929. A partir desta crise o capital precisou criar mais um mecanismo para se salvar de seu colapso. Esse mecanismo foi a adoção das chamadas políticas keynesianas de intervenção do Estado na economia para garantir a continuidade do processo de acumulação do capital. Essa intervenção se deu principalmente através do gato públicos em obras de infra-estrutura, em gastos militares, no chamado complexo industrial-militar.

É a partir do final da Segunda Grande Guerra que o capital passa a adotar as políticas keynesianas com o objetivo de regular o capitalismo, evitando as crises e o colapso. A adoção dessas políticas keinesianas e o medo da ameaça do avanço da revolução socialista no mundo todo levam o capital a criar o que ficou conhecido como o Estado do Bem-Estar Social (Welfare State).

As origens do Welfare State remontam ao final do século XIX. O governo de Bismarck, na Alemanha foi um dos primeiros a utilizá-lo. Na sua origem o Welfare State surge como uma resposta dada pelo capital para frear o ímpeto revolucionário da classe trabalhadora européia.[6] Mas o Estado do Bem-Estar Social só se torna hegemônico no capitalismo depois da Segunda Guerra Mundial. Esse Estado tem como substancia a seguridade social, que garante uma serie de garantias políticas, sociais e econômicas para os trabalhadores. Entre elas estão as conquistas concernentes ao financiamento público consagradas ao ensino, aos serviços de saúde, às pensões e à indenização do emprego.

Vale ressaltar que essas conquistas são resultados da luta operária e do medo da ameaça da revolução socialista. Alem disso o Welfare State garante a estabilidade da acumulação capitalista, pelo menos entre 1945 e 1968, mais ou menos, período que fica conhecido como os “Anos Gloriosos” do capitalismo do século XX. Cabe ressalvar, no entanto, que esta experiência política-econômica, que permitiu uma significativa melhoria do nível de vida dos trabalhadores, ficou restrita aos países do chamado 1º mundo, excluindo, por isso, a maioria da humanidade.

Mas este período de prosperidade ininterrupta, principalmente para o capital, durou pouco e no final da década de sessenta entra em crise, demonstrando mais uma vez as limitações do sistema capitalista. Mas a crise do Welfare State reflete apenas a crise do capital, dessa vez numa dimensão estrutural. Os ideólogos neoliberais, entretanto, atribuem a crise do Estado do Bem-Estar ao fracasso das políticas econômicas de cariz keynesiana e à intervenção do Estado na economia. Como solução para esta crise, que é ao mesmo tempo de estagnação e de inflação, eles defendem as velhas receitas liberais, agora chamadas de neo, quer dizer, que somente o mercado regule a organização econômica da sociedade, como sua benevolente “mão invisível”. Os neoliberais, agora de volta a moda, atacam a intervenção estatal e recomendam a cartilha rezada pelos “Deus” mercado como solução para a crise econômica.

Esses economistas neoliberais, entretanto, só ficam na superfície do problema, aliás, como manda a tradição apologética. Acontece que a crise econômica e a crise do Welfare State são apenas a aparência do fenômeno, a sua manifestação mais visível. A essência desse fenômeno, ou seja, a causa da crise do Welfare State e de toda a economia capitalista desenvolvida, deve ser encontrada na própria crise da acumulação capitalista. E a crise de acumulação se deve, como já vimos, a lei da queda tendencial da taxa de lucro.

Desenvolvendo mais um pouco, é uma crise da acumulação da mais-valia mundial. Não passa da confirmação da lógica contraditória da produção e da reprodução capitalista. E o Estado neste novo contexto deixa de impedir a crise do capital. Deste modo o capital vai retomar as velhas formas para superar a queda tendencial da taxa de lucro desfazendo neste processo as conquistas trabalhistas do período dos “Anos Gloriosos”. Isto não acontece sem a resistência dos trabalhadores e neste mesmo período, final dos anos 1960, o mundo se encontra abalado por greves e revoltas de trabalhadores e estudantes que questionam a lógica exploradora do capital e sua ideologia individualista e consumista propagada pela forma keynesiana de organização política e socioeconômica. Podemos dizer que o capital é questionado em sua base sociometabólica. Infelizmente os trabalhadores perdem mais essa batalha para o capital e são obrigados a aceitar a imposição das políticas econômicas neoliberais.

A partir do inicio da década de 1970, o sistema do capital entra numa crise estrutural. Diferentemente das outras crises, onde o capital conseguia superar as crises expandindo sua acumulação para regiões inexploradas do planeta, agora ela o afeta em sua totalidade. É uma crise que atinge o capital já plenamente amadurecido, quer dizer, plenamente mundializado. Outra particularidade desta crise é que devido ao intenso desenvolvimento da técnica e da ciência aplicadas à produção, o capital variável passa a diminuir sua parte na composição orgânica do capital. O aumento descomunal da produtividade tende a solapar a base de acumulação do capital. A criação do valor e da mais-valia ficam seriamente comprometida. Neste sentido a razão de ser do capitalismo passa a enfrentar um obstáculo intransponível para continuar sua expansão.

Com este agravante, a diminuição da produção do valor e da mais-valia, o capital busca se valorizar como capital fictício na esfera financeira do capitalismo mundializado. É neste período que os paises desenvolvidos rompem com os acordo de Bretton Woods, que regulavam o movimento dos capitais a nível mundial. Ao romper com essa regulação, entre elas a câmbio fixo e a conversibilidade do dólar em ouro, os paises ricos, liderados pelos Estados Unidos deixam o caminho livre para livre mobilidade dos capitais, criando aquilo que Keynes chamou de capitalismo-cassino.

Com essa desregulamentação o capital retira seu dinheiro da esfera produtiva e passa a aplicá-lo na esfera financeira atrás de uma valorização maior e mais fácil do que a que ele encontrava na produção. A partir desse momento a especulação do capital mundializado passa a comandar hegemonicamente sua razão de ser e sua lógica de acumulação. O capital produtivo se torna refém do capital fictício e o capital ingressa numa crise estrutural crônica e permanente que se estende até os dias atuais.

O conhecido processo de globalização ou para sermos mais preciso, o processo de mundialização do capital, significa a expansão do modo de produção capitalista para todo mundo segundo sua própria lógica de acumulação, comandado, desta vez, pelos interesses do capital fictício, que agora subordina a produção à especulação.


Outra alternativa que o sistema do capital encontrou para tentar superar sua crise foi a utilização da taxa de utilização decrescente das mercadorias.[7] Esta taxa está relacionada aos avanços da produtividade e significa tornar descartáveis o mais rápido possível mercadorias que antes eram consideradas bens duráveis. Segundo Mészáros a taxa de utilização decrescente afeta de forma negativa todas as três dimensões fundamentais da produção e do consumo capitalistas, que são: 1) bens e serviços; 2) instalações e maquinaria; 3) força de trabalho.

Com relação ao primeiro, a tendência é aumentar a velocidade da circulação do capital para compensar as tendências mais destrutivas do capital. No segundo caso ela significa a sub-utilização crônica, ligado a uma pressão crescente, reagindo à própria tendência, encurtando o ciclo de amortização dos mesmos. Acompanha tudo isto a ideologia da “inovação tecnológica”, que sucateia maquinário totalmente novo após utilizá-lo muito pouco. E a ultima, a taxa de utilização decrescente da força de trabalho se manifesta na forma de desemprego crescente. Das três esta é a saída mais explosiva para o capital, pois a força de trabalho não é só um mero fator de produção, mas também massa consumidora vital para o ciclo da reprodução capitalista e da realização da mais-valia.

As duas primeiras formas da taxa de utilização decrescente podem produzir canais para a expansão do capital, mas a terceira forma permanece latente, com todos os seus riscos para o capital e o seu prejuízo para os trabalhadores. Mészáros relata este perigo para os trabalhadores:

“Só quando o potencial das duas primeiras dimensões – tal como manifestas em relação a (1) bens e serviços; e (2) instalações e maquinários – para afastar as contradições inerentes à taxa de utilização decrescente não conseguir um efeito suficientemente abrangente, somente então será ativado o selvagem mecanismo de expulsão em quantidades maciças de trabalho vivo do processo produção”.[8]

Como conseqüência do mecanismo da taxa de utilização decrescente, temos o que ficou conhecido como “desemprego estrutural”. Contraditoriamente, num primeiro momento o capital consegue superar sua crise aumentando sua rotação e lucratividade, mas num segundo momento temos o retorno da crise, causada pelo desemprego em massa, pela queda do consumo e, por conseguinte a superprodução e a queda da taxa de lucro.

Alem disso o capital criou mais uma alternativa para sua crise de acumulação: o complexo militar-industrial. Este complexo apresentou-se ao capital como o modo de combinar o máximo de expansão com a taxa de utilização decrescente mínima. Esse meio de solucionar a crise de superprodução já havia sido adotado antes da Primeira Guerra Mundial, mas sua adoção geral ocorreu somente após a Segunda Guerra Mundial. A grande inovação do complexo militar-industrial para o capitalismo é obliterar a diferença vital entre consumo e destruição. Mészáros analisa este complexo e sua principal função:

“O complexo militar-industrial não só aperfeiçoa os meios pelos quais o capital pode agora lidar com todas essas flutuações e contradições estruturais, mas também dá um salto quantitativo no sentido de que o alcance e o tamanho absoluto de suas operações rentáveis se tornam incomparavelmente maiores do que poderia ser concebido nos estágios anteriores dos desdobramentos capitalistas”.[9]

As conseqüências para a humanidade desta nova tentativa do capital de superar suas crises são catastróficas e ameaçam concretamente o futuro da humanidade. Os investimentos no complexo militar-industrial colocam no horizonte da sociedade a auto-reprodução destrutiva ampliada, que acontece tanto na produção de mercadorias no campo civil como também no campo militar. Esta solução que o capital encontrou coloca em risco a sobrevivência de todos os seres humanos, ou melhor, de todos os seres vivos do planeta.

Podemos concluir reforçando que a crise e o capital andam sempre juntos. Que a partir da década de 1970 o capital passa a viver uma crise estrutural que se estende até os nossos dias. As três dimensões fundamentais do capital-produção, consumo e circulação – exibem perturbações cada vez maiores. Essas perturbações atingem a função vital do capital e impedem o deslocamento das suas contradições.

O capital tem tentado administrar a crise estrutural, mas uma série de problemas tem impedido que ele consiga sucesso nessas tentativas. A novidade desta crise se resume nestes fatores: a) seu caráter é universal; b) seu alcance é global; c) sua escala de tempo é contínua e d) seu modo de se desdobrar é rastejante.[10] E os problemas que o capital tem encontrado são: 1) contradições internas do capital sob o controle do complexo industrial-militar e das transnacionais; 2) contradições sociais econômicas e políticas dos países pós-capitalistas, intensificando a crise do sistema do capital; 3) aumento das rivalidades entre os países capitalistas mais desenvolvidos; 4) dificuldade de manter o sistema neocolonial de dominação.[11]

Essas quatro categorias, como podemos ver nos dias que correm, tendem para intensificar e agravar os antagonismos existentes. E o capital e os Estados que o representam só conseguem atacar seus efeitos e não suas causas, pois isso colocaria em xeque a própria viabilidade do modo de produção capitalista. Podemos fechar concordando com a conclusão de Mészáros:

“O mais provável é ao contrário, continuarmos afundando cada vez mais na crise estrutural, mesmo que ocorram alguns sucessos conjunturais, como aqueles resultantes de uma relativa reversão positiva, no devido tempo, de determinantes meramente cíclicos da crise atual do capital”.[12]

A crise estrutural do capital nos ensina uma importante lição: dentro dos marcos do sistema do capital ela é insolúvel e, por isso, é preciso construir um caminho para além do capital, para garantir a continuidade da raça humana e de toda a vida.


[1] LUKÁCS, Georg. História e Consciência de Classe. Porto, Ed. Escorpião, 1974, p. 101..
[2] FAUSTO, Ruy. Marx: Lógica e Política I.São Paulo,Brasiliense,1983,p.28
[3] MARX, Karl. O Capital. Rio de Janeiro, Bertand Brasil, 1996. L.1, V. I, p. 171.
[4] MARX, Karl. O Capital. São Paulo, Difel, 1985. L.3, V. IV, p. 278.
[5] Idem, p. 305.
[6] BRUNHOFF, Suzanne. A Hora do Mercado. São Paulo, Ed. UNESP, 1991, p. 56.
[7] MÉSZÁROS, István. Para Além do Capital. São Paulo e Campinas, Ed. Boitempo e Unicamp, 2002, p. 634.
[8] Idem, p. 674.
[9] Idem, p. 690.
[10] Idem, p. 796.
[11] Idem, p. 808.
[12] Idem, p. 810.

segunda-feira, 2 de abril de 2012

Retorno àqueles dias “mal-ditos”

Jean Wyllys

Jornalista e linguista, é deputado federal pelo PSOL-RJ e integrante da frente parlamentar em defesa dos direitos LGBT. CARTA CAPITAL
A verdade sobre os porões de tortura, vôos da morte, assassinatos e sequestros para conter a resistência é certamente terrível, mas necessária. Temos direito a ela! Foto: Ag. O Globo

Eu nasci em 1974, quando o Brasil estava sob a ditadura do general Ernesto Geisel. Nasci na periferia miserável de Alagoinhas, cidade do interior da Bahia.
Quando me entendi por gente, lá pelos anos 1980, a ditadura ainda vigorava, mas lá, por aquelas bandas, não se fala em ditadura. Meus pais, meus tios e meus vizinhos – aquelas pessoas pobres em luta apenas pelo pão de cada dia – não falavam em ditadura.
E aquele comunicado da censura oficial que antecipava cada programa de tevê que eu via pela janela do único vizinho com aparelho em casa, aquele comunicado nada significava além de um alerta inócuo para mim e para os demais.
Só anos depois, já no final do ensino fundamental, pude perceber, pelos livros da biblioteca da casa paroquial (“Brasil: nunca mais”, o principal deles) que nós fazíamos parte da pátria mãe que dormia distraída enquanto era subtraída em “tenebrosas transações”, para citar Chico Buarque.
Aliás, por falar em Chico Buarque, a trilha sonora oficial daqueles “anos de chumbo” – que inclui, além de Buarque, Geraldo Vandré, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Gal Costa, Torquato Neto, Elis Regina e etc. – não era ouvida naquelas bandas.
O que se tocava nas poucas radiolas, autofalantes da “feira do pau” e na Rádio Emissora de Alagoinhas, eram artistas como Nelson Ned, Odair José, Agnaldo Timóteo, Paulo Sérgio, Cláudia Barroso, Waldick Soriano e Fernando Mendes, além, claro, de Roberto Carlos.
As verdades da ditadura – a censura, os conflitos, as torturas, os assassinatos, os exílios – não chegavam até nós, da mesma maneira que nossa verdade naqueles anos era – e é – ignorada pelos envolvidos na resistência à ditadura e responsável em parte pela construção da memória daquele período.
A memória é uma construção social e, sendo assim, pode cristalizar determinados aspectos de um tempo, em detrimento de outros que poderiam e podem ser muito importantes para se pensar o quadro político-social vigente naqueles anos (afinal, a visão de mundo das camadas populares, colocadas à margem do centro de decisão política, deve ter algo a nos dizer sobre a ditadura: elas não sabiam ou não queriam saber, ou tinham medo de saber ou eram simplesmente ignoradas em sua invisibilidade e subalternidade? Sabemos hoje que, durante a ditadura, o perigo rondava o conhecimento, e que, por isso, muitos oscilavam entre saber e esquecer).
Ora, o historiador francês Jacques Le Goff, afirma que é preciso interrogar-se sobre os esquecimentos.  “Devemos fazer o inventário dos arquivos do silêncio, e fazer a história a partir dos documentos e das ausências de documentos”.
Até onde se sabe, não existem documentos que recupere a memória do tratamento que os líderes dos movimentos revolucionários davam aos homossexuais (em especial às mulheres lésbicas) seja em seus “aparelhos”, seja nas prisões. Sendo assim, devemos trabalhar a partir dessa ausência e do silêncio sobre em torno desse assunto. Há muito para se dizer sobre aqueles dias “mal-ditos”.
A eleição da presidenta Dilma Rousseff – ela mesma uma vítima direta dos crimes da ditadura militar e agente da resistência ao terrorismo de estado praticado naqueles anos – abre um capítulo para a memória, que não consiste apenas em estabelecer uma verdade historiográfica daqueles crimes.
Tanto a verdade historiográfica quanto a temporada de julgamos que esperamos que se suceda à historiografia pressupõem uma construção de significados em um prazo longo (e não podemos ser ingênuos em acreditar que essa construção não resultará em conflito ideológico e de valor – vejam, por exemplos, a tagarelice do deputado e ex-militar Jair Bolsonaro, defendendo que se gozava de liberdade no período da ditadura; a ação de militares contra uma recente novela do SBT que tratou superficialmente daqueles dias “mal-ditos”; e o manifesto contrário à Comissão Nacional da Verdade assinado por mais de cem militares da reserva e seguido pela arrogante declaração do secretário-geral do Exército questionando a veracidade das torturas de que foi vítima a presidenta Dilma).
A verdade – ou verdades – sobre os porões de tortura, vôos da morte, assassinatos, sequestros, a desumanidade dos métodos dos repressores para conter a resistência é certamente terrível, sobretudo para quem sobreviveu aos fatos. Mas é necessária. Eu tenho direito a ela! Minha geração e as que vieram depois têm direito a ela!
A Comissão da Verdade, liberada do imediatismo dos fatos, poderá nos oferecer uma narrativa não unificadora, porque esta não seria desejável. Esperamos que todos os que escreveram aquelas páginas infelizes e sobreviveram a esse ponto de resgatá-las sejam ouvidos pela Comissão da Verdade.
Por isso, para garantir a lisura dos trabalhos da mesma e auxiliá-la ao mesmo tempo, um grupo de deputados da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara – do qual faço parte – decidiu instituir uma Subcomissão Parlamentar da Memória, Verdade e Justiça  que conta com  o coordenação da deputada Luiza Erundina. Assim que se noticiou a existência dessa subcomissão, chegou, ao meu gabinete, um exemplar do calhamaço “A verdade sufocada – a história que a esquerda não quer que o Brasil conheça”, escrito pelo coronel reformado Carlos Alberto Brilhante Ustra.
E eu já o li (criticamente, claro). Sabemos que tanto a Comissão Nacional da Verdade quanto a nossa subcomissão parlamentar não poderão reconstruir tudo, mas a utopia de tudo saber a respeito daquelas páginas infelizes de nossa história deve servir como um programa, um horizonte e uma advertência para o futuro.

Golpe de 64: 31 de março ou 1º de abril?

Deflagrado há 48 anos e encerrado há 27, o Golpe Civil-Militar de 1964 continua suscitando divergências no Brasil. Como todos os golpes e todas as ditaduras no mundo, teve seguidores e adversários e, ainda hoje, continua tendo defensores e detratores acerbos. Nesta semana, quando transcorre mais um de seus aniversários, têm ocorrido manifestações em diferentes lugares do país, umas comemorando seus feitos, outras os deplorando. Este jornal se coloca entre os que os deploram e registra aqui sua posição de modo claro.

Os anos de 1960 e 1970 foram um período de acirramentos das tensões políticas internacionais, com a guerra-fria chegando ao seu auge. A partir do muro de Berlim, EUA e URSS dividiam o mundo e o disputavam, perfilando nações e populações sob os rótulos da democracia liberal e do comunismo marxista. Dois grandes sistemas de organização social, econômica e política estavam em confronto aberto, ainda que não se estabelecesse um litígio armado direto entre as nações que se colocavam como líderes de suas expansões e campeãs de suas defesas.

Na impossibilidade do confronto direto das duas novas grandes potências, pois o equilíbrio de forças então existente fazia com que elas se temessem mutuamente e se armassem desesperadamente, os embates foram transferidos para a periferia do sistema mundial, no então chamado Terceiro Mundo: América Latina, Sul da Europa, Oriente Médio, Ásia e África. Ditaduras se estabeleceram em todos os continentes, principalmente nos países mais pobres e/ou nos social e economicamente mais desiguais.

Eram tempos também de efervescência, com os avanços social-democráticos e dos direitos civis dos negros, a explosão da juventude e do rock ‘n roll, a disseminação da pílula anticoncepcional e o início da afirmação do poder feminino. Nas Américas, ocorria a Revolução Cubana e a possibilidade de sua expansão por todo o continente, com a emergência de governos nacionalistas e progressistas. Em contrapartida, as ditaduras começaram a eclodir na região, iniciando-se pelo Brasil e expandindo-se, posteriormente, por toda a América do Sul e Central, quase sem exceção de países.

Em 31 de março/1º de abril de 1964, o general Olímpio Mourão Filho parte com suas tropas de Minas Gerais em direção ao Rio de Janeiro e dá início ao Golpe que iria manter os militares no poder durante 21 anos. O governo João Goulart, progressista e que pretendia promover as então chamadas “reformas estruturais”, como a reforma agrária, a reforma fundiária urbana, a industrialização independente e a distribuição de renda no país, foi deposto sob a acusação de se alinhar com as forças e a ideologia comunista.

Convocados pelas “marchas com Deus e pela família”, realizadas nas principais cidades brasileiras e lideradas por representantes da UDN (União Democrática Nacional), por bispos e padres católicos e lideranças conservadoras, os militares depuseram o presidente da República constitucionalmente eleito prometendo “restabelecer a ordem” e rapidamente devolver o comando do país aos civis, mas se encastelaram no poder. Promoveram desenvolvimento econômico acelerado, durante os anos do chamado “milagre econômico brasileiro” (1968/1973), com crescimento do PIB na casa dos 10% ao ano, mas prenderam, torturaram e mataram quem se atrevesse a oferecer qualquer tipo de resistência às suas atividades e aos seus comandos.

A violência começou, na verdade, antes do desenvolvimento econômico e se estendeu por muito tempo depois de o país ter caído em estagnação. Desde as primeiras semanas do governo golpista, políticos legalmente eleitos, bem como lideranças sindicais, estudantis e sociais foram presas e submetidas a inquéritos policiais-militares, tiveram seus direitos políticos cassados e foram proibidas de atuar politicamente pelo prazo de 10 anos. Foi inicialmente desmantelada a estrutura sindical de trabalhadores no país, que começara, nos anos de 1960, a sair da tutela do Estado e tornar-se independente. Desmantelou-se, a seguir, o movimento estudantil, com a invasão do Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE), a prisão de todas as suas principais lideranças e a proibição de ações políticas nas escolas e faculdades, com a extinção dos Centros Acadêmicos e a promulgação do Decreto 477, que punia com a expulsão e o impedimento de se matricular em escolas públicas no país durante três anos para os que se envolvessem em atividades políticas.

Sem alternativas de ação legal, a juventude, principalmente, começou a agir na clandestinidade. Muitos partidos políticos e organizações paramilitares de esquerda foram criadas, quase todas dissidentes do antigo Partido Comunista, já dividido, naquele momento em PCB e PCdoB. Multiplicaram-se grupos armados, de guerrilha urbana e rural. A repressão se sofisticou. No âmbito militar foram criados os órgãos de investigação e tortura policial-militar, com a Operação Bandeirantes (OBAN), em São Paulo, e as agências no interior de cada uma das forças armadas: o DOI-CODI, do Exército, o PARASAR, da Aeronáutica, e o CENIMAR, da Marinha, todos eles órgãos especializados na repressão à “subversão e ao terrorismo”. A Escola Superior de Guerra, sob inspiração norte-americana, elaborou a “ideologia de segurança nacional”. Criou-se a Operação Condor, para ação conjunta dos aparelhos repressivos de todas as ditaduras do Cone Sul.

Os que detinham o poder político e das armas prenderam e arrebentaram. Os que se encontravam na oposição defenderam-se como puderam. Uns, no exercício de um poder ditatorial, afirmavam que estavam salvando o país do perigo comunista e que produziam o desenvolvimento. Outros, na resistência à ditadura, se esforçavam para construir uma alternativa econômica, social e política ao capitalismo e sonhavam como o socialismo. Os primeiros reinaram soberanos durante 21 anos, sem prestar contas dos seus atos, fossem eles políticos, econômicos ou sociais. Nunca se apurou a corrupção no período, pois a imprensa estava sob censura e os partidos políticos e as organizações da sociedade civil foram impedidos de se manifestar livremente. Os segundos foram presos, se esconderam, se exilaram ou foram mortos.

Com a crise econômica do final dos anos de 1970 e do início dos anos de 1980, ocorre o desgaste do governo militar e de suas políticas, permitindo que a sociedade civil se reorganize. Conquista-se, primeiro, a partir de uma ampla mobilização nacional, a anistia para os presos e exilados políticos (1979) e, depois, com a Campanha das Diretas-Já e a votação no Colégio Eleitoral, elege-se Tancredo Neves e inicia-se (1985) a Nova República. Em 1988, com a nova Constituição Federal, instaura-se, efetivamente, um novo período democrático que ainda perdura.

Mesmo sob a democracia, nunca foram abertos os arquivos da ditadura e dos seus órgãos de repressão. Os que abusaram do poder ditatorial, que prenderam ilegalmente, que bateram, torturaram, mataram e desapareceram com corpos nunca foram julgados nem punidos. A anistia de 1979, na verdade, além de conquista dos movimentos de resistência à ditadura, foi também um ardil dos ditadores para se autoproteger, pois que anistiou também os que, protegidos pela força do arbítrio, se excederam na repressão dos que lhes faziam oposição.

Em todos os países do Cone Sul nos quais houve ditaduras igualmente repressoras durante os anos da guerra-fria já foram instaurados inquéritos para apuração de responsabilidades e recuperação da memória histórica. Apenas no Brasil as resistências perduram. Os militares da reserva e da ativa ainda barram a instalação da Comissão da Verdade. É este o motivo pelo qual se valeram do Clube Militar para divulgar um documento de críticas ao governo Dilma Rousseff e a duas de suas ministras (Maria do Rosário, dos Direitos Humanos e Eleonora Menunicci, da Secretaria de Políticas para as Mulheres). Mesmo repreendidos, os agentes da antiga repressão contra-atacaram. Divulgaram um segundo documento, que já detêm mais de duas mil assinaturas e que conta, inclusive, com o apoio explícito de generais da ativa.

Os militares que atuaram na repressão e aqueles que lhes são solidários por ideologia e/ou por espírito de corpo (corporativismo) não se conformam com a possibilidade de terem suas ações vasculhadas. Temem serem colocados no ridículo de terem que explicar as violências que cometeram. Argumentam que se vivia em um “estado de guerra” e que “houve baixas de ambos os lados”. Esquecem-se, no entanto, que eles detinham a força e o poder de Estado e que a maioria de seus opositores só detinha o poder da persuasão, sendo ínfima a minoria que possuía armas, quase todas obtidas por meio das ações clandestinas que deflagravam. Estes já foram punidos, além disso, pelas prisões, pelas torturas, pelos abusos a que foram submetidos e até pela morte. O desequilíbrio de forças era enorme, quase incomensurável. Os agentes repressores contavam com a impunidade e a cobertura “legal” e do sistema, o que os torna terroristas de Estado e, por este motivo, ainda mais imperiosa a necessidade de que seus atos sejam revelados. Um país que não purga os seus erros vive sob o risco permanente de repeti-los.

Não há porque comemorar o 31 de março/1º de abril. O ato realizado no Rio de Janeiro na quinta-feira (29), na porta do Clube Militar e a repressão policial que desencadeou, com antigos militares, de um lado, querendo exaltar o Golpe Militar de 1964, e estudantes e ativistas de partidos de esquerda, de outro, vilipendiando a ditadura, é exemplar da exacerbação de ânimos no Brasil hoje. Os militares precisam ser contidos, pois estão se insubordinando à presidenta Dilma Rousseff, sua comandante suprema e a quem devem obediência. Se não o forem, os atos de provocação aumentarão e, muito provavelmente, os confrontos se intensificarão, gerando um clima de insegurança que em nada contribui para a estabilidade democrática. Cabe, inclusive, aqui, uma pergunta: a desestabilização da democracia não será a intenção dos antigos agentes da força e do arbítrio?
 

domingo, 1 de abril de 2012

Promotor militar explica tese jurídica que abre brecha na Lei da Anistia

Após uma semana em que os apoiadores do golpe civil de 1964 serem alvos de protestos, o Sul21 publica uma entrevista com o promotor militar Otávio Bravo que obteve reabrir, em fevereiro de 2010, 29 casos de desaparecimentos forçados praticados no Rio de Janeiro e Espírito Santo durante a ditadura.

Vivian Virissimo no SUL21


Tese jurídica abre novo caminho para investigar desaparecimento forçados e reanima debate sobre a validade da Lei da Anistia | Foto: STF


“Eu tenho curiosidade de saber como o STF vai julgar a tese que define desaparecimentos políticos na ditadura brasileira como sequestros. Essa tese o Supremo não avaliou ainda”. A declaração é do promotor militar Otávio Bravo. Equiparando o crime de desaparecimento forçado ao crime de sequestro, o promotor encontrou um novo caminho para investigar estes crimes cometidos durante a ditadura e reanimou o debate sobre a validade da Lei da Anistia.
Nesta entrevista exclusiva concedida ao Sul21, ele explica em detalhes a tese jurídica utilizada para retomada das investigação e faz interessantes avaliações sobre os desafios que a Comissão da Verdade terá para trazer à tona informações relevantes sobre o período de exceção. Sobre a instalação da comissão, Bravo destacou um dos principais entraves para investigar os anos de chumbo: a dificuldade de ter acesso a documentos dentro e fora das Forças Armadas.
O promotor conhece bem as barreiras impostas não só pelos militares para ter acesso a arquivos que demonstrem o que ocorreu nos porões da ditadura. Ele revelou que a seccional da OAB do Rio de Janeiro também está criando empecilhos para encaminhar documentos solicitados.
Mesmo sabendo das inúmeras dificuldades e ainda com sérias dúvidas do potencial da Comissão da Verdade, Bravo disse que apoia a iniciativa. “Qualquer investigação sobre ditadura militar é válida”, lembrou.

Promotor militar Otávio Bravo | Foto: Reprodução(FOTO REMOVIDA A PEDIDO DO PROMOTOR OTAVIO BRAVO, EM 12/08/2015)

Sul21 – Vinte e nove casos de desaparecimentos forçados foram reabertos pela Procuradoria da Justiça Militar. Quero que o senhor comece explicando a tese utilizada para reabrir esses casos.

Otávio Bravo - Foram três fatos determinantes. O primeiro foi a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) sobre o caso Araguaia, a qual determinou que o Brasil tem obrigação genérica de investigar os casos de desaparecimentos forçados, não só os que ocorreram no Araguaia, mas em geral. O segundo foi o fato do Brasil ter ratificado no final de 2010 a “Convenção Internacional contra o Desaparecimento Forçado” da Organização das Nações Unidas (ONU). E a tese jurídica que permitiu a abertura dos processos veio do próprio Supremo Tribunal Federal (STF), de dois casos de extradição julgados em 2009 e 2011 de pessoas que teriam participado de crimes durante o estado de exceção na Argentina. Existe uma figura jurídica que só permite ao Estado a extradição de uma pessoa  quando o crime não está prescrito no país da extradição, ou seja, o Brasil só pode extraditar pessoas se o crime não está prescrito na lei brasileira. Ao tratar das várias acusações contra essa duas pessoas, o STF até negou a extradição para uma série de atos que eram imputados a estes militares, mas entendeu que os desaparecimentos forçados equivaliam ao crime de sequestro que é considerado no Brasil um crime permanente.

Sul21 – O que é exatamente um crime permanente? Que mudança esse entendimento trouxe para a investigação de desaparecimentos forçados?

Otávio Bravo - É crime permanente aquele crime cujo final não se comprova. Portanto, presume-se que ele ainda está acontecendo até que se tenha certeza que acabou. De modo que o prazo de prescrição destes crimes permanentes é quando o sequestro chega ao final. A minha iniciativa foi apenas transportar essa tese utilizada nas extradições para os casos de desaparecimentos forçados no Brasil que também equivaleriam a sequestro pois não se sabe quando terminaram, não estão prescritos e logo não são cobertos pela Lei da Anistia que vai até 1979. Isso tudo deu embasamento jurídico para iniciar as investigações. Não significa dizer que todos os casos levarão militares ao banco dos réus já que as investigações podem levar a conclusão de que desaparecidos podem ter morrido antes de 1979 e os casos estarão prescritos e anistiados. A ocultação de cadáver também é permanente é só é consideração prescrito quando o cadáver aparece. Aí eu teria uma opinião para remeter para o Ministério Público Federal (MPF), a Procuradoria da República, porque o crime de ocultação de cadáver não é de competência da Justiça Militar, é da Justiça Federal. A base jurídica, em resumo, é essa.

Corte Interamericana de Direitos Humanos recomenda que casos de desaparecimentos forçados não sejam julgados pela Justiça Militar| Foto: Reprodução
Sul21 – Por que estes crimes permanentes são de competência da Justiça Militar?
Otávio Bravo - Esses casos particulares são de competência da Justiça Militar porque envolvem sequestros ocorridos dentro de unidades militares, pessoas desapareceram dentro de unidades militares com militares exercendo função. Isso faz, pela legislação brasileira, que seja competência da Justiça Militar. É verdade que em determinado momento eu pretendo abrir mão dessa investigação com base na recomendação expressa da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) de que casos de desaparecimentos forçados não devem ser julgados pela Justiça Militar.

Sul21 – Qual é a alegação da Corte?

Otávio Bravo - Seria um contra-senso usar o argumento de uma decisão da corte e no final levar um caso desses para a Justiça militar. Embora eu seja da Justiça militar, eu sou um promotor civil. Eu entendo a posição da corte, eu milito na área dos direitos humanos, eu entendo, mas eu acho até um pouco injusta essa recomendação da corte porque a Justiça militar que nós temos no Brasil faz parte do Judiciário e ela não tem uma série de vícios que a Justiça militar de outros países tem. O fato é que a corte determinou isso: que casos de desaparecimentos forçados praticado por agentes militares não sejam julgados pela justiça militar. Então eu devo encaminhar para o MPF.

Sul21 – Essa tese de desaparecimento forçado por agentes públicos foi utilizada em outros países que tiveram ditaduras militares como a Argentina, Uruguai e Chile?

Otávio Bravo - Na verdade, nesses países as teses foram mais amplas, decretaram na Argentina, por exemplo, uma abrangência muito maior, são os chamados crimes contra humanidade, crimes de genocídios que são crimes imprescritíveis por causa de convenções internacionais. No Brasil, o STF não aceitou essa tese e declarou válida a Lei da Anistia. O que se fez na Argentina, Uruguai e Chile foi muito mais amplo do que se fez no Brasil. No Brasil, se está discutindo ainda, na primeira manifestação o Supremo declarou que a Lei da Anistia continua de pé. Isso que está se falando de sequestro é uma tese única para investigar o crime de sequestro. Mas, por exemplo, se chegar a conclusão que houve um homicídio ou o crime de tortura não se pode fazer nada enquanto a decisão do Supremo não mudar. O Supremo já julgou, mas agora vai reavaliar um embargo de declaração. Eu sinceramente não acredito que o Supremo mude de posição, para mim vai continuar deixando a Lei da Anistia válida. Mas eu tenho curiosidade de saber como o supremo vai lidar com essa tese de sequestro, já que essa tese o Supremo não avaliou ainda.

Sul21 – Quem foram os relatores do STF que abriram essa brecha para que pelo menos os crimes de sequestro fossem investigados? E que dia foram reabertos os casos?

Otávio Bravo - Foram reabertos em fevereiro de 2010. A extradição de 2009 foi relatada pelo ministro Ricardo Lewandowki e a outra foi relatada pela ministra Carmem Lúcia. As duas extradições foram pedidas pela Argentina. Eu tenho curiosidades de como o STF vai dizer que isso não se aplica a desaparecimentos forçados no Brasil.

Rubens Paiva teve o mandato de deputado federal cassado pelos ditadores | Foto: Reprodução

Sul21 – O senhor está investigando o caso do ex-deputado Rubens Paiva que desapareceu em 1971 nas dependências do Doi-Codi no Rio. Como está sendo essa apuração?

Otávio Bravo - Na apuração do caso do ex-deputado Rubens Paiva já cheguei a algumas coisas interessantes: a filha dele — que nunca tinha sido ouvida e que tinha quinze anos na época do desaparecimento — prestou depoimento. A verdade é que não havia investigação até agora do caso, houve um inquérito que acabou arquivado. A copia deste inquérito está desaparecida, uma coisa meio estranha. Está em algum lugar incerto.

Sul21 – Outro caso emblemático dos anos de exceção é o caso do Stuart Angel, filho de Zuzu Angel, que teria sido espancado e arrastado por um carro com a boca no cano de escape. O senhor poderia contar como está sendo a investigação?

Otávio Bravo - Ainda não iniciei esta investigação. 29 casos foram abertos mas apenas 3 investigações estão em curso.

Sul21 – Qual sua opinião sobre as investigações que serão realizadas pela Comissão da Verdade? Que impacto os relatórios produzidos pela comissão poderão ter?

Otávio Bravo - Eu não sei. Depende muito da extensão que a Comissão da Verdade possa ter. Eu ainda não tenho nada que possa me assegurar qual será o impacto político da comissão. Necessariamente acho que uma comissao que tenha amplos poderes para investigar o que passou, acesso a documentos poderá ser ótima. Mas não sei se será mais de um palco político do que propriamente um espaço de investigação. Mas qualquer iniciativa para apurar o que aconteceu naquele período eu acho importante. Agora não tenho realmente como fazer juízo de valor porque ainda não está funcionando.

Sul21 – Mas o senhor conhece bem a dificuldade de acesso a dados sobre este período da história brasileira.

Otávio Bravo - Eu tentei várias vezes ter acesso a dados nas Forças Armadas mas foram negados, dizem que todos foram destruídos. Criam situações até meio ridículas, situações burocráticas que não têm sentido. Por exemplo, uma vez encaminhei uma requisição e eles alegaram que teria que ser encaminhada pelo procurador geral. Criam dificuldades, falta vontade de contribuir. Ao mesmo tempo há umas surpresas desagradáveis, a seccional da OAB no Rio de Janeiro, por exemplo, é uma vergonha. Diversas vezes mandei ofício pedindo informações e nunca me responderam. Eles tem uma campanha contra tortura e pelos desaparecidos políticos que, para mim, não tem valor nenhum. Se existe um órgão que está investigando o assunto e eles não encaminham informações é bastante estranho. Mas também tenho que ressaltar o apoio que tive da Secretaria de Direitos Humanos que não tenho do que me queixar.

quarta-feira, 28 de março de 2012

Como foi e é construída a privatização do ensino superior no Brasil

  Otaviano Helene  no CORREIO DA CIDADANIA

Uma das características do ensino superior brasileiro nas últimas várias décadas é a constante redução da participação das instituições públicas na sua oferta: em 1960, cerca de 60% das matrículas eram em instituições públicas; atualmente, elas são da ordem de 25% e com uma tendência a continuar aumentando (veja gráfico).

Nas décadas de 1960 e 1970, período marcado pelo regime militar, a participação do setor privado cresceu de 40% até pouco mais do que 60% das matrículas. Após uma década sem aumento dessa participação, a privatização voltou a crescer após 1990, período marcado pela expansão do neoliberalismo, continuando a aumentar ao longo da década seguinte.

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O que aconteceu na década de 1980, quando a taxa de privatização permaneceu praticamente estável, ao contrário de ter sido um sinal de que o setor público passou a ter uma postura mais positiva, ilustra um dos muitos problemas que a privatização apresenta. A década de 1980 foi marcada por uma profunda recessão econômica e, consequentemente, redução de renda e aumento do desemprego. Como consequência, aquela crise econômica afetou fortemente as possibilidades que as pessoas tinham de arcar com as mensalidades escolares, afastando os estudantes, como, obviamente, seria esperado. Esse fato ilustra bem um dos graves problemas da privatização da educação: a educação, quando privatizada, ao invés de ser um instrumento que possa ajudar a suportar uma crise econômica (fixando os jovens por mais tempo no setor educacional e reduzindo, assim, a pressão sobre os empregos) e a criar as condições necessárias para superá-la (preparando a força de trabalho do país), passa a ser um fator a intensificação da própria crise.

Subsídios

Se “conseguimos” atingir a taxa de privatização de 75%, é porque, ao longo do tempo, todos os níveis governamentais contribuíram para isso, por meio de incentivos financeiros diretos e indiretos, por meio de legislações e por deixarem espaço livre para a atuação do setor privado.

No campo financeiro, tanto a União como os estados e municípios têm contribuído, ao longo dos últimos 50 anos, cada um de sua forma, para o aumento da privatização. Essas subvenções ocorrem na forma de isenções de taxas, contribuições e impostos (nacionais, estaduais e municipais), abatimento de despesas com educação privada no imposto de renda de pessoa física, repasses diretos de recursos públicos para entidades privadas, pagamento das mensalidades dos alunos ou financiamento delas pelo setor público, convênios com ONGs ligadas a instituições privadas, entre diversas outras.

Como já estamos acostumados com todas essas práticas, o que faz com que muitas pessoas as achem positivas, vale a pena esmiuçar uma delas, talvez até a mais aceita como sendo adequada, justa e necessária: o abatimento no imposto de renda de pessoas físicas das despesas educacionais. Esse abatimento, que encontra enorme apoio nas classes mais privilegiadas e mesmo reclamações por considerarem-na pequena, é, na prática, uma distorção do que se esperaria de um sistema tributário ou de um subsídio a uma atividade essencial.

Como o abatimento das despesas educacionais ocorre antes do cálculo do imposto devido, quanto maior for a renda de uma pessoa, maior será o abatimento do imposto. Vejamos. No caso de pessoas com altas rendas, os governos subsidiam em 27,5% das despesas com educação privada passíveis de serem abatidas. Já no caso de uma pessoa com renda modesta, eventuais despesas educacionais podem ser subsidiadas em proporções bem menores do que aqueles 27,5 % ou mesmo não terem subsídio algum.

Uma espécie de Robin Hood às avessas. Embora possa parecer que é o contribuinte que está sendo beneficiado, quem de fato recebe aquela subvenção é a instituição de ensino. Por exemplo, alguém de alta renda que tenha pago R$ 1.000 para uma instituição de ensino, receberá do governo, na forma de abatimento de imposto, R$ 275,00; ou seja, gastou, de fato, R$ 725,00, enquanto a instituição recebeu, também de fato, os R$ 1000 pagos. Alguém de baixa renda que tenha gasto os mesmos R$ 1.000 não terá redução alguma do imposto devido.

Em última instância, o abatimento no imposto de renda é um subsídio indireto às instituições privadas de educação. Embora este seja apenas um exemplo, mostra como as políticas de transferência de recursos ao setor privado podem ser distorcidas. Uma redução dos impostos por causa de despesas educacionais só seria justificável (embora inadequado) se a redução fosse inversamente proporcional à renda, subsidiando mais quem ganha menos, não da forma que é hoje. Evidentemente, não há nenhuma dificuldade técnica para se fazer isso: se subsidiamos mais quem menos precisa e menos quem mais precisa, é porque é para ser assim mesmo.

Legislação

Além das ações financeiras e econômicas em favor da privatização da educação, há muitas ações no campo legal que vão no mesmo sentido. Novamente, ao invés de detalhar as muitas formas com que isso ocorre, vamos ilustrar algumas delas. Uma universidade é um tipo de instituição cujas atribuições incluem, segundo a LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), desenvolver a pesquisa científica e tecnológica, conferir diplomas com validade nacional, criar e extinguir cursos e definir seus currículos, desenvolver atividades de extensão universitária, entre outras. Para isso, seria esperado que tal tipo de instituição tivesse, em seu quadro, pessoas altamente qualificadas para aquelas atividades, o que no mundo acadêmico significa doutores.

Entretanto, ainda que possa parecer absurdo, a LDB não exige doutores no corpo docente de uma universidade: a sutil redação daquela lei exige que pelo menos um terço do seu corpo docente tenha “titulação acadêmica de mestrado ou doutorado”. A partícula “ou” revela a real intenção do legislador: uma universidade, no Brasil, não precisa de doutores! Essa redação é desrespeitosa e mesmo um escárnio, na medida em que a palavra doutorado está apenas enfeitando o texto, sem nenhuma consequência prática; se a frase acabasse em “mestrado”, estaria dizendo exatamente a mesma coisa.

Além disso, exigir uma terça parte dos docentes com determinada titulação não significa que eles venham a exercer a terça parte das atividades desenvolvidas pelas instituições, pois pode se atribuir a essa terça parte uma carga horária pequena, com apenas algumas poucas horas semanais de trabalho.

E tem mais: para desenvolver aquelas atividades, os docentes universitários deveriam contar com as necessárias condições de trabalho, o que significaria, na prática acadêmica, contratos em tempo integral e, preferencialmente, com dedicação exclusiva à instituição. Mas a mesma LDB exige que uma universidade tenha pelo menos “um terço do corpo docente em regime de tempo integral”. Ora, se a essa terça parte do corpo docente for atribuída uma carga didática alta e/ou muitas tarefas administrativas, a lei estará sendo cumprida, sem, de fato, garantir as condições necessárias para a pesquisa e as atividades de extensão universitária previstas pela LDB.

Evidentemente, essa legislação, que não está respondendo a nenhuma necessidade real das instituições universitárias públicas, favorece, e muito, as instituições privadas.

A ausência do setor público abre espaço ao setor privado

Uma terceira forma de favorecimento do setor privado ocorre por meio da restrição de vagas oferecidas pelo setor público, o que abre o necessário espaço para o crescimento das instituições privadas. Uma evidência dessa prática é que a falta de vagas públicas nada tem a ver com as dificuldades financeiras do setor público, diferentemente do que é dito com frequência. Tanto é assim que a privatização é maior exatamente nos estados com maiores possibilidades econômicas e orçamentárias e que maiores contribuições dão ao governo federal.

São Paulo é o caso exemplar: exatamente nesse estado em que a ausência do setor público é mais marcante, como mostra a tabela. A porcentagem de matrículas em instituições privadas em São Paulo, 87%, é bem maior do que nos demais estados (69%). Mesmo quando comparada com a população total ou com o número de concluintes do ensino médio, a privatização paulista é maior do que nos outros estados por um fator dois, como mostram os dados da tabela.

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Essa maior privatização em São Paulo é totalmente compatível com a hipótese de que a ausência do setor público é estratégica, não fruto de uma impossibilidade econômica ou financeira.

Conseqüências

As políticas de privatização, quando associadas com a distribuição dos cursos oferecidos pelas instituições privadas pelas diferentes áreas do conhecimento, fazem com que alguns indicadores da educação superior no Brasil estejam em completo desacordo com o que se observa em outros países com possibilidades econômicas equivalentes ou mais modestas que as nossas. Essa característica nos coloca em uma situação bastante frágil.

Evidentemente, não se está defendendo que haja uma competição entre os países, coisa que, ao contrário, devemos combater. Entretanto, uma força de trabalho mal preparada, distribuída de forma inadequada pelas diferentes áreas profissionais, e quantitativamente insuficiente, fragiliza o país nos embates internacionais e compromete nossa soberania. Consequentemente, não conseguimos sequer criar um ambiente que permita lutar por uma relação mais saudável entre as nações e que priorize as cooperações em lugar das competições.



Otaviano Helene, professor no Instituto de Física da USP, foi presidente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).

terça-feira, 27 de março de 2012

Celso Furtado: Economia para a liberdade


No momento em que Brasil debate sua (des)industrialização, vale assistir à cinebiografia do grande pensador que sonhou além dos números



Por Arlindenor Pedro no OUTRAS PALAVRAS|Imagem: Diego Rivera,Pintura de um afresco 

Gosto muito do gênero cinebiografia, a que muitos cineastas brasileiros e estrangeiros vêm-se dedicando nos últimos tempos. Registram a vida e produção de escritores, políticos, militares, artistas – gente que de alguma forma desenvolveu atividades que despertam interesse de muitos.
São produções mais apropriadas para DVDs: devem ser assistidas devagar, com atenção, em ambiente próprio para rever trechos e refletir sobre eles. Neste aspecto, diferem dos filmes do cinema de ficção – que requerem o calor emotivo das grandes casas de exibição.
Assisti recentemente a obra cinebiográfica que o diretor José Mariano fez sobre o economista Celso Furtado. Teve o nome de O Longo Amanhecer, título de uma de suas obras – um livro de ensaios sobre a formação do Brasil, publicado em 1999.
Relata vida e pensamento desse grande brasileiro, paraibano de Pombal e um dos grandes intelectuais do século XX, como diria o professor Francisco de Oliveira, seu amigo e colaborador de longa data. “Celso Furtado está no panteão dos demiurgos do pensamento nacional, dos inventores do que a gente pensa hoje sobre o Brasil”, escreveu ele. Já a professora Maria da Conceição Tavares, consideram Furtado “o único grande pensador brasileiro do século XX”.
Uma entrevista com Celso, realizada quatro meses antes de sua morte (em 2004), serve como roteiro e fio condutor do documentário. Também comparecem, em depoimento, pensadores que conviveram com ele. Levantam problemas que subsistem depois de longas décadas e exigem reflexão mais acurada.
Sugiro, ao leitor que ainda não viu o filme, começar pelos extras, onde essas questões são apresentadas de forma a compor um pano de fundo, um cenário onde as ideias e ações de Celso Furtado se desenvolveram. Está organizado na seguinte ordem: 1.Sobre Celso Furtado; 2. A Revolução de 1930; 3. O pós-guerra; 4. Segundo governo Getulio Vargas; 5. O governo JK; 6. A Sudene; 7. O governo João Goulart; 8. A revolução de 1964 e 9. Sobre a Ciência Econômica. Intelectuais e políticos como Francisco de Oliveira, Helio Jaguaribe, Maria Ieda Linhares, Alzira Abreu, Bresser Pereira, José Serra, Leite Lopes, Pedro Malan, Otavio Rodrigues e Ricardo Bielschowsky opinam sobre tais temas, abordando-os de forma crítica e contextualizando-os em seu quadro histórico e político.
Além das intervenções desse conjunto de pensadores sobre momentos decisivos da vida nacional, destaco um debate sobre o caráter da Economia – se é ciência, ou não; e sobre a posição de Celso Furtado a esse respeito.
Embora possa parecer bizantina, a discussão reveste-se de extrema importância, devido à influência cada vez mais vasta da Economia sobre nossas vidas. Ao contrário de muitos pensadores da atualidade, Celso Furtado a encarava como uma ciência – social e histórica. Ele a via, portanto, com olhar ideológico muito definido, dentro de um determinado contexto histórico. Servia-se dela para intervir na realidade social. Sua maior obra, Formação Econômica do Brasil, é considerada um clássico nas ciências econômicas. Publicada em janeiro de 1959, analisa a economia brasileira num contexto histórico em movimento, onde não se chega nunca a um final. E é ele mesmo quem o diz, em sua entrevista: “nunca procurei chegar a um final no meu livro. Trata-se de uma obra inacabada, própria da economia, própria da história”.
Nas ultimas décadas, em um mundo totalmente globalizado e interdependente, a Economia desenvolveu estruturas tão poderosas de intervenção na vida social que teria subjugado as demais ciências, moldando o mundo às suas concepções. Perdeu, então, seu caráter histórico transformador, realizando-se como instrumento perpetuador e maximizador do mundo articulado pela burguesia liberal contemporânea.
Nesse quadro, o homem contemporâneo está totalmente dominado pelos preceitos econômicos. Não pode viver sem levar em conta os caminhos traçados pelos economistas. Uma oscilação em bolsa de valores, do outro lado do mundo, pode alterar completamente a sua vida. O mercado rege sua postura. Desde o momento em que acorda até a hora de se deitar, está submetido aos seus desígnios, abrindo mão de uma existência criativa em troca de um vida-não-vivida, de um mundo artificial.
Mais do que isso: mesmo os seus sonhos serão moldados pelas estruturas econômicas. Todo o processo de vida social e individual é submetido à banalidade terrível do dinheiro e do seu desenvolvimento tautológico. Em sua superfície, está a famosa economia de mercado. Exige profissionais altamente qualificados para decifrar e operar suas estruturas, num processo técnico anti-histórico, repetitivo que não busca chegar a lugar algum. Tais profissionais, súditos de uma máquina infernal, não teriam, pois, qualquer sentimento ou paixão, operando apenas para a reprodução do capital na sua escala mais transcendental: de forma mecânica e definida globalmente.
A respeito de tal fenômeno, Francisco de Oliveira, em seu depoimento, diz: “Os modernos cientistas sociais, entre os quais se incluem os economistas, não têm paixão por causa nenhuma. Eles são inteiramente de-solidários com os destinos nacionais”. (…) Os teóricos dos anos do início da modernidade eram todos pensadores apaixonados. Estavam de um certo lado da história. Celso, a esse respeito, é um dos mais emblemáticos. Ele está decididamente no lado de alguma causa e não olha a história com a indiferença de um cientista normal. (…) Tensão entre teoria e história, é o que sua obra tem. Está presente em todos os outros clássicos, mas nele é permanente: a história é teoria e a teoria é a história. É diferente de um economista de hoje, que pega as variantes, modela e acha que dali sai algum resultado. Não tem história. Não tem especificidade. (…) Se você pegar a formulação de qualquer economista que está ai formulando política para o governo brasileiro hoje é igual a que se encontrará em qualquer país. Sumiu a história”.
No desenrolar do documentário, além da preciosa entrevista de um Celso Furtado já combalido pela doença que o irá vitimar mais adiante (mas que, a despeito disso, ainda mostra-se lúcido e capaz de desenvolver com maestria os fundamentos de sua teoria), destaca-se também a economista Maria da Conceição Tavares. Com a emoção que lhe é peculiar – ainda mais, tratando-se de um mestre por quem ela nutria profundo respeito – contagia e nos convida a mergulhar nos fundamentos teóricos de sua vastíssima obra. Além dela e de Chico de Oliveira, cientistas como João Manuel Cardoso de Mello, Antonio Barros de Castro e Oswaldo Sunkel opinam, num roteiro desenvolvido por Ricardo Bielschowsky, que nos leva a conhecer a profundidade teórica de um Celso Furtado entusiasta do desenvolvimento brasileiro.
João Manuel Cardoso de Melo sustenta que Celso Furtado sempre foi um reformista – isto é, acreditava que, por meio de reformas profundas nas estruturas brasileiras, seria possível vencer as condições que impediam o país de superar o subdesenvolvimento. Celso definia-se como um cientista. Pensava que seu forte era conseguir captar o essencial da realidade através da análise, teorizando-a para que fosse transformada, reformada.
Celso Furtado foi influenciado pela herança keynesiana, segundo a qual o estado era um ator decisivo na garantia do bem estar social. Após passar a guerra na Europa e presenciar a reconstrução do continente ao fim do conflito, ele retorna ao Brasil com grandes ideias de mudança da sociedade, tendo o estado como força motriz, e o planejamento como meio de ação. Agrega-se, então, à equipe da Cepal, dirigida por Raúl Prebisch. Este economista argentino, conhecido articulador do pensamento das economias periféricas, havia contextualizado a teoria da relação entre centro e periferia. Prebisch dizia: “o mundo está composto por países centrais, que (…) produzem manufaturas e controlam as inovações tecnológicas, que está consubstanciada com a manufatura; e os países periféricos, que exportam matérias-primas e consomem os bens manufaturados desses países”. Propunha superar essa dicotomia centro-periferia. Orientado por tal objetivo, criou o pensamento cepalino, que teve em Celso um dos mais brilhantes formuladores.
Furtado defendia a industrialização do Brasil, como forma de conter o fluxo de riquezas que se esvaíam para o exterior, mantendo-nos sempre na posição de subalternos. Conseguiu influenciar o segundo governo de Vargas e, mais adiante, os governos JK e João Goulart. Seu entusiasmo, e a clareza com que defendia suas ideias, contagiaram esses presidentes, que se esforçavam por tê-lo como elemento auxiliar em seus governos.
A ideias de Celso e de muitos de seus companheiros e seguidores foram esmagadas pela grande tragédia do golpe militar de 1964. O documentário dedica um capítulo à parte para esse episódio da vida nacional. É, ao lado da Revolução de 1930, um dos mais importantes da nossa história recente. Em 1930, libertaram-se as forças internas contidas pelo sistema agrário anacrônico, lançando-se o país na modernidade; em 1964, estas mesmas forças antes libertadas foram contidas e esmagadas, por acalentarem a utopia de conduzir o país a um processo desenvolvimentista independente, permitindo-lhe emergir, na terceira revolução industrial, em pé de igualdade com o chamado “primeiro mundo”.
Acredito que a tragédia de um assassinato não se dá em eliminar uma vida e o que ela foi, mas o que ela poderia ser. A morte prematura do governo João Goulart foi a ruptura com um futuro que poderia ser, mas não foi. Restou um vazio que até hoje não pode ser preenchido, a despeito das afirmações megalomaníacas dos últimos governos, que se apresentam como se a história brasileira estivesse começando agora. O prejuízo causado pelo golpe de 1964, não foi, até hoje, devidamente dimensionado. Não só pelas vidas ceifadas, mas por ter eliminado no nascedouro as utopias de um Brasil independente, solidário e criativo.
As ideias de Celso Furtado se perderam. Mesmo no processo de redemocratização, nos governos subsequentes, sua voz não foi mais levada em consideração. Por isso, o documentário pareceu-me denso mas, ao mesmo tempo, triste. Tanto os depoimentos apaixonados, a firmeza emotiva de Maria da Conceição Tavares, quanto as intervenções precisas de Francisco de Oliveira, lembram essa oportunidade perdida. O olhar do professor, circundado pela atmosfera da fotografia de Guy Gonçalves e música incidental de Aluisio Didier, ao abrir o filme, diz tudo. Uma bela obra para assistir e refletir!


Arlindenor Pedro é professor de história e especialista em projetos educacionais. Anistiado por sua oposição ao regime militar, dedica-se na atualidade à produção de flores tropicais na região das Agulhas Negras.
Contato: arlindenor@newageconsultores.com.br

Stratfor dentro do Palácio: que é isso, Dilma?


 
Por Natalia Viana, Willian Vieira, Luiza Bodenmüller e Jessica Mota, da Pública

Atual diretora de análise da Stratfor, a americana Reva Bhalla não precisou gastar um tostão, grampear telefones ou pagar propinas para conseguir fácil acesso ao alto escalão da inteligência brasileira.
Em 6 de janeiro de 2011, segundo documentos internos da empresa analisados pela Agência Pública e pela Carta Capital, Bhalla foi recebida com entusiasmo pelo gabinete do ministro-chefe do GSI, o general José Elito Siqueira, menos de um mês depois de chegar ao País para sua missão em nome da Stratfor.
Mais do que ser bem recebida, Bhalla obteve informações confidenciais de funcionários do GSI que são negadas até mesmo aos brasileiros.
No seu relato, ela diz ter sido levada à chamada “sala de situação”, local onde militares e agentes de inteligência se reunem com a presidência em caso de crises de segurança nacional. “Eu tive a impressão de que o Brasil não tem que lidar com esse tipo de questão com muita freqüência. Eles disseram que durante o governo Lula eles se reuniram 64 vezes. Havia mapas muito legais por todo o lugar. Eles me deram de presente um lindo mapa do mundo com Brasilia ao centro (muito ambicioso? Ahaha)”, escreve.
O contato, segundo ela, teria sido armado por um “amigo diplomata” que estaria trabalhando no escritório da própria presidenta, diz ela, sem identificar o nome. “Todos, inclusive o General Elito Sequeiro (sic) -  o chefe do GSI, o qual eu encontrei mais tarde no seu escritório, conhecem e lêem os relatórios da Stratfor regularmente. Eles estavam, literalmente, me dizendo sobre as notícias da Stratfor que haviam lido nesta manhã, e que quase todos ali eram membros”.
Animada com o “tour completo” que recebeu do palácio presidencial, Bhalla chegou à sala da presidenta Dilma Rousseff – mas ela estava numa reunião. “Eu queria dizer ‘olá’ em nome da Stratfor”.
A analista relata ter conversado longamente com o secretario-adjunto José Antônio Macedo Soares, cujo nome chegou a ser cotado pelo Palácio do Planalto para assumir a direção da Abin. Segundo seu relato, ele lhe explicou tranquilamente que o Brasil se esforça para não atrair atenção para si mesmo como palco de ações ligadas ao terrorismo. “Como Macedo Soares me disse, nós capturamos vários ‘terroristas’ em São Paulo – pessoas da Al Qaeda, Hezbollah, e até pessoas ligadas aos ataques de 11 de setembro. Mas nós não queremos nos vangloriar por isso e  não queremos atenção. Isso não serve aos nossos interesses e não queremos que os EUA nos empurre para esse assunto’”, escreve.
A informação, prontamente repassada para a rede de analistas da Stratfor, confirma uma revelação feita pelo WikiLeaks em 2010, nos primeiros documentos diplomáticos sobre o Brasil publicados pela organização. Os despachos traziam o então embaixador dos Estados Unidos em Brasília, Clifford Sobel, a dizer, ainda em 2008, que a Polícia Federal “frequentemente prende pessoas ligadas ao terrorismo, mas os acusa de uma variedade de crimes não relacionados a terrorismo para evitar chamar a atenção da imprensa e dos altos escalões do governo”. O mesmo telegrama de Sobel cita dois exemplos. Em 2007, a PF teria capturado um potencial facilitador terrorista sunita que operava primordialmente em Santa Catarina sob acusação de entrar no País sem declarar fundos – e estaria trabalhando pela sua deportação. A operação Byblos, que desmantelou uma quadrilha de falsiftcação de documentos brasileiros no Rio de Janeiro para os libaneses também é citada como exemplo de operação de contra-terrorismo.
Histórias sobre prisões de suspeitos de terrorismo no Brasil haviam pipocado antes do vazamento dos documentos diplomáticos. Em maio de 2009, a PF prendeu um libanês acusado de propagar pela internet material racista. À época, o colunista da Folha Jânio de Freitas escreveu que, para preservar o sigilo, a PF atribuiu a prisão, inclusive internamente, a uma investigação sobre células de neonazistas, enquanto o libanês seria na verdade suspeito de ligação com a Al Qaeda. Quase um mês depois, o Gabinete da Segurança Institucional da Presidência criou um grupo de prevenção e combate ao terrorismo, com a finalidade oficial de exercer o “acompanhamento de assuntos pertinentes ao terrorismo internacional e de ações” para “a sua prevenção e neutralização”.
Foi exatamente no GSI e com funcionários do órgão que Bhalla teve reuniões pessoais que renderam relatórios de inteligência privada, para alimentar os boletins a clientes no mundo todo.
Naquele encontro, ela teria perguntado ainda sobre a capacidade do GSI em vigiar e capturar esses ‘terroristas’. “A resposta não me pareceu tão confiante assim. Ele disse basicamente que isso é muito difícil. São Paulo tem uma população estrangeira muito grande. Fronteiras são difíceis de controlar: essa é a atitude brasileira em relação a isso”. Segundo a analista, eles teriam reconhecido que há alvos de terrorismo no Brasil. E teriam citado uma misteriosa “casa noturna israelense” em São Paulo como um exemplo.
“Eu levantei a questão do terrorismo, já que Macedo Soares é basicamente o único brasileiro que foi citado pelo Wikileaks. Eu perguntei a ele se isso causou algum tipo de problema e ele riu e disse “só inveja”! Aparentemente, vários oficiais brasileiros ficaram seriamente com ciúmes de que ele tenha ficado com toda a fama, haha”, relata Bhalla no seu email. Macedo Soares foi interlocutor do ex-embaixador Sobel nos primeiros documentos diplomáticos vazados.

Amazônia e crack
 
A conversa não parou por aí. Bhalla chegou a ser convidada a visitar um posto militar na Amazônia na sua próxima visita, “coisa que eu definitivamente vou fazer”. Ouviu do alto escalão do GSI que “a corrupção nesses postos é mais concentrada na polícia do que nos militares”.
“Um deles levantou um ponto interessante, dizendo que uma coisa que o Brasil tem feito muito bem é controlar a qualidade dos precursores químicos que entram no país. Então, a cocaína produzida na Bolívia, por exemplo, não é ‘classe A’ que os compradores de NY querem. Ao invés disso, são de baixa qualidade, crack, que é vendido em São Paulo. Então essa é uma consequência não-intencional para eles: drogas mais baratas e de baixo valor permeiam o mercado brasileiro”, descreveu.
No fim da mensagem, a analista diz ter desgostado da capital federal, no mesmo tom informal que marca os demais emails da Stratfor publicados pelo WikiLeaks. E envia uma foto sua diante da catedral de Brasília.
A correspondência com Macedo Soares não terminou aí, como mostra a esfuziante mensagem sobre o mapa com o Brasil no centro, reenviado a Bhalla dois meses depois da visita.
A reportagem procurou o GSI através da sua assessoria de imprensa, mas recebeu como resposta que o ministro José Antônio de Macedo Soares está de férias no exterior e se disponibilizaria a esclarecer o assunto depois do dia 3 de março. A assessoria confirmou, no entanto, que o ministro-chefe José Elito Siqueira “recebeu, em 06 Jan 11, a Sra Reva Bhalla para cumprimento protocolar durante a sua visita ao GSI”.
Oficialmente, o governo sempre negou a existência de atividades terroristas no Brasil – e continua negando, mesmo depois das revelações do Wikileaks. Já os militares brasileiros parecem ficar bem mas à vontade quando falam do assunto com americanos – sejam eles diplomatas, militares, ou arapongas como os da Stratfor.
*Reportagem feita em parceria com a revista Carta Capital