sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

Uma oportunidade histórica para a revolução cubana



Jorge Pereira Filho



Uma notícia aos que alardeiam o fim da revolução cubana com o afastamento do presidente Fidel Castro. Os moradores da ilha caribenha querem defender seu futuro. Mas de forma autônoma, sem os vícios autoritários do passado. E sem cair também nas ilusões propagandeadas por seu vizinho imperialista que há 45 anos impõe um bloqueio econômico, comercial contra os cubanos, condenado pela Assembléia Geral das Nações Unidas.

Esse é o cenário que foi aberto com a decisão do presidente Raul Castro de, em julho deste ano, impulsionar um amplo debate com o povo sobre os rumos da revolução. Para o historiador Ariel Dacal, trata-se de uma oportunidade histórica. “Não é um momento casual. É a hora que Cuba precisa fazer uma substituição rápida e total dos velhos dirigentes revolucionários que começam a cair, pelas leis da vida, da biologia”, avalia.

E nesse processo, a maior reivindicação do povo cubano tem sido questionar as estruturas burocráticas e cobrar, justamente, maior poder de decisão sobre os rumos de seu destino. “A principal demanda que tem aparecido é a de maior participação. De maior controle dos poderes do Estado. De legitimar que repasse potencialidade e recurso aos poderes locais, poderes populares. É a maior reivindicação. Nisso em um marco socialista, de compromisso com a revolução cubana”.

QUEM É

Ariel Dacal Diaz é historiador, cientista político e trabalha no Centro Martin Luther King (CMLK). Foi Chefe de Redação da Publicação de Ciências Sociais. Especializou-se em estudos sobre a crise da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS).

Há uma consulta popular em Cuba sobre os rumos da revolução. Como esse processo está se dando?

Ariel Dacal Diaz - Em 26 de julho, em discurso oficial, Raul Castro elencou um grupo de problemas no país. Grosso modo, apresentou algumas soluções e algumas medidas em curso. Este documento virou um texto de discussão nos núcleos do partido fundamentalmente que, depois, foi ampliado para os bairros e os centros de trabalhadores. Dias depois, Raul vem aos meios de comunicação e afirma que essas propostas discutidas pelo povo cubano vão ser encaminhadas diretamente aos municípios e às províncias para evitar que deturpações nas propostas populares. Isso está ótimo: ao menos, as pessoas podem falar. E Raul está insistindo muito para que a população fale com honestidade, com franqueza, sem medo. E que esse processo será um insumo para a tomada de decisões. Disse também que tampouco deve-se esperar que surgirão soluções imediatas de tudo, mudanças gerais, pois as coisas vão sendo transformadas com o tempo.

E como a população tem recebido essa proposta?

Para alguns, sobretudo os mais velhos, é mais do mesmo. Crêem que, ao final, ninguém vai se dar conta do que pensa a população. Imaginam que as decisões serão tomadas de forma muito limitada, distantes da vontade do povo. Essa é uma preocupação de um setor. Há outro grupo que coloca justamente o contrário. Que agora há uma oportunidade para um diálogo mais importante, mais substancial. Porque, para esse setor, essa é a última oportunidade. Há um consenso sobre isso. E com essa visão, de que se trata de algo fundamental para a continuidade do processo cubano, e a preocupação de que não seja mais do mesmo, é que estão sendo realizados esses debates.

E como os meios de comunicação estão tratando esse processo?

Há uma crítica muito forte. Ninguém sabe o que o povo está dizendo. Não há um meio de comunicação que informe o que está ocorrendo nos debates. A imprensa oficial segue surda e muda a esse processo. Para os meios, esse processo não existe e isso cria uma ansiedade geral. Porque, a partir desta metodologia, Cuba não tem possibilidade de saber como pensa a si mesma.

Mas o que se tem falado, nas ruas, sobre as reivindicações apresentadas?

Há algumas pessoas, por sua conta e risco, dedicadas a levantar informações sobre esses debates. E a principal demanda que tem aparecido é a de maior participação. De maior controle dos poderes do Estado. Que se repasse capacidade de decisão e recursos aos poderes locais, poderes populares. É a maior reivindicação. Nisso em um marco socialista, de compromisso com a revolução cubana. Mas a idéia é: Quem vai decidir? Quem vai implantar o que se decide? A burocracia quer que o processo continue? Porque é justamente a burocracia que está sendo questionada. Mas essa parece ser a última oportunidade. Não é um momento casual. É a hora que Cuba precisa fazer uma substituição rápida e total dos velhos dirigentes revolucionários que começam a cair, pelas leis da vida, da biologia.

Uma crítica feita aos meios oficiais, em Cuba, é o de que não fomentam o debate, dialogam pouco com a vida cotidiana...

Hoje, os meios de comunicação social são um dos focos centrais de críticas do povo. Há uma desconexão com a realidade. Cuba vive hoje um processo intenso de debates e um dos maios importantes é justamente esse: a função dos meios de comunicação social e oficiais. Mas há um segundo debate, uma pseudo-reflexão, que não leva em conta a complexidade do momento histórico que vive Cuba. São discussões mais de caráter moralista, se fulano roubou sua empresa, sem abordar questões estruturais. E isso é um problema. Porque não há espaço para referendar todo esse imaginário, todo esse debate. Tem ocorrido também algo em Cuba que se chama a guerra dos e-mails. É uma certa catarse coletiva sobre os problemas dos meios de comunicação, de transporte, sobre que tipo de socialismo queremos, mas que ainda não se infiltra no corpo social cubano. Há um setor intelectual que está analisando estruturalmente o problema. E, de outro lado, há uma demanda popular, da vida cotidiana, em nível de catarse. O grande problema é que esses dois setores não dialogam entre si e muito menos com a visão oficial. São leituras que precisam se complementar para criar algo superior ao que queremos. Ou seja, não há canais de comunicações. E o tempo corre.

E por que avalia que o Estado cubano está distante da vida cotidiana?

Há uma tarefa revolucionária que é diluir esse Estado no corpo social, fazer com que seja o Estado do povo, do trabalhador, e não da burocracia.

E o debate que está ocorrendo segue mais no sentido de avançar no socialismo ou regressar a formas capitalistas?

A discussão segue mais no marco socialista, mas no imaginário social as práticas e como vão se relacionando com o corpo social tendem mais ao capitalismo. Pode parecer contraditório, mas é assim. Há um grupo pensando no socialismo, mas a própria dinâmica e o referente individual das pessoas têm muita força. E alguns setores, em minoria, querem a social-democracia.

Mas não é possível que os Estados Unidos se intrometam nesse processo?

Não, os grupos e os setores asquerosamente estadunidenses não têm legitimidade ver nesse processo. As pessoas os desprezam. Os Estados Unidos não são um modelo, há uma consciência geral de que são uma merda. O problema não está por aí. É mais perigoso porque é mais sutil. É sim reproduzir lógicas liberais, de produção capitalista. Isso mesmo pessoas comprometidas com revolução porque falta possibilidade de debater revolucionariamente.

Você poderia dar um exemplo disso?

Sim, o reordenamento empresarial em Cuba. As empresas estatais em Cuba estão incorporando as técnicas empresariais capitalistas. Mas o essencial, para uma referência socialismo, é dar o poder aos trabalhadores. E ninguém fala disso.

Há preocupação hoje com a juventude cubana, sobretudo a que cresceu no período especial, conviveu com os momentos mais difíceis, de carências. Essa juventude é muito influenciada pelos valores capitalistas, do consumismo?

Em Cuba, não há consumismo. Pelo contrário. Há uma história do não-consumo e, neste contexto, a projeção do consumismo é muito atrativa. É uma porta muito tentadora para uma juventude e mesmo os que não são tão jovens. Mas eu não reduzo o tema da cultura aqui. Digo que precisamos de uma cultura superior na compreensão da política. Que o povo tenha seus processos de equívocos, de criação coletivo. É um processo longo e já perdemos muito tempo. Para mim, a mudança está aí. Está na perspectiva de como os cidadãos, mulheres, homens se organizam, se educam e superam culturalmente esse individualismo. Como superam a idéia de que eu sou o sujeito que vou resolver o meu problema isoladamente, e caminhem para o sentido de como eu participo, dialogo e me reconheço em um trabalho coletivo. A questão não é reprimir o consumismo, mas superá-lo culturalmente.

Por que você afirma que é necessário estudar três tipos de Estado – o de bem-estar social, o fascista e o do socialismo real – para criarmos algo novo? O que eles têm de essencial?

Porque é a experiência acumulada, sobretudo no século 20, para enfrentar o neoliberalismo. Ao fracassar essas três experiências, veio essa etapa neoliberal. Que é o mesmo que as velhas formas de dominação do capital em um contexto sem resistência. É importante resgatar porque fracassaram essas experiências para saber que não estamos reinventando nada. Claro, há muita criatividade no contexto atual. Mas é fundamental estudarmos esse legado histórico, sobretudo vislumbrando um movimento histórico que vai resultar no enfrentamento com o capitalismo.

O senhor acredita que há espaço hoje para um Estado fascista na América Latina?

Sim, por conta da própria condição extrema de miséria na região e também devido à expansão do conservadorismo e das visões reacionárias no continente. São dois traços que me preocupam, a possibilidade de que surja algo parecido com o fascismo. Que se combinem esses fatores, no sentido nacionalismo, ainda que contra o imperialismo, e que reproduzam uma lógica de dominação também capitalista. Os níveis de organização da violência social na América Latina são um nutriente para um regime parecido ao fascismo.

De qualquer forma, o Estado de bem-estar social, ou algo parecido, segue como um modelo que se contrapõe ao neoliberalismo...

O capitalismo nacional tende a isso. O que digo sobre estudar essas experiências históricas é para compreender que há limites. E que há um ciclo e, em algum momento, atentará contra a lógica mesmo do sistema. A acumulação e um Estado que distribui não podem compor um Estado de bem-estar. Que condições materiais teria uma essa burguesia nacional para desenvolver um processo nacionalista, com uma visão mais social? É preciso fazer perguntas.

E o socialismo real?

A pergunta que se faz é que, se pelo fato de o socialismo real fracassar, será que não há nada o que resgatar dessa experiência? Não houve nada de positivo ou negativo? Não há princípios invioláveis do que não se deva fazer em nome de uma sociedade socialista? É preciso estudar isso porque serve para nossa organização.

O que fracassou em 1991?

O regime de dominação e opressão burocrática, a ditadura burocrática soviética, foi isso o que fracassou. O socialismo não fracassou.

Que aspectos você ressaltaria em um esboço de uma análise sobre o fracasso soviético?

Impossível responder brevemente, mas podemos dizer que essencialmente é a própria complexidade de criar uma sociedade superior em um país atrasado material e culturalmente. Um país assediado pela burguesia de forma atroz. Um país onde o sonho libertário encontrou muitas dificuldades, que incluíam mortes, guerras cruéis. E a renúncia de um setor ao processo revolucionário, assumindo a reprodução de uma lógica de dominação política não superada que tinha como base um despreço à capacidade real de o povo se governar. Mas foi evidentemente um processo muito mais complexo do que isso.

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