A conduta de risco de Tony Gilroy contra o agronegócio
O mesmo diretor de Advogado do Diabo disseca a relação entre transnacionais e escritórios de advocacia, responsáveis por limpar a "sujeira" deixada pela lógica bárbara do grande negócio
Thiago Barison
O suspense indicado a sete oscars conta a história vivida por “Michael Clayton” (George Clooney), advogado de um grande escritório em Nova Iorque responsável pelos casos da fictícia – porém nem tanto – megacompanhia de herbicidas “United Northfield”. A trama é tecida em torno de um processo sofrido pela transnacional do agronegócio, responsável pelo envenenamento de 450 famílias de camponeses. Isso mesmo: as semelhanças com a realidade não são mera coincidência e isto faz de “Conduta de Risco” um filme que nos põe a refletir.
Nesta teia de relações, os advogados são chamados de “faxineiros”: os responsáveis por limpar a sujeira deixada pela lógica bárbara do grande negócio. Diante de lucros monstruosos, a vida e a natureza se mostram meros objetos. E todos envolvidos têm um preço, a ser pago por esse montante volumoso de lucros, proporcionalmente segundo o grau de envolvimento de cada sujeito dessa estrutura.
Ocorre que um advogado do caso muda de lado e sua conduta se torna um risco à boa ordem dos negócios. O suspense então prende a atenção do espectador precisamente porque o encadeamento das cenas aparece como algo terrível, porém possível neste mundo cão. Com efeito, o filme espelha uma realidade em que prevalece a mentira, que aliás é muitas vezes divulgada pelo próprio cinema. Eis aí a razão pela qual vale a pena assistir a obra de Tony Gilroy: num jogo de espelhos, entre as telas e as janelas, a verdade aparece nua e corrosiva como os herbicidas da transnacional.
Propaganda e ideologia
Contar apenas uma cena não vai estragar o espetáculo e pode nos dar uma idéia dos símbolos de que trata o diretor. Diz a bela propaganda da “United Northfield” passada nos telões do Time Square e em todas as televisões do mundo: “we find the seed... we shape the soil... we speed the harvest: we feed the planet.” [encontramos a semente… preparamos o solo… aceleramos a colheita: alimentamos o planeta.].
A reação é imediata: vem-nos à mente as igualmente apelativas peças publicitárias que hoje compõem o mosaico de mentiras coloridas da ideologia capitalista. No caso brasileiro, impossível não lembrar das recentes propagandas de Aracruz, Monsanto & Cia, ou então da Vale do Rio Doce, cujos cenários remontam a um Brasil diverso e próspero: aparecem índios, brancos, negros, jovens, idosos, todos bonitos (bem maquiados), bem alimentados, felizes e cantando as canções da MPB (na voz de artistas à soldo). Um espetáculo farsesco. Tudo isso logo após os movimentos populares se organizarem e botarem nas ruas um plebiscito questionando a privatização da Vale do Rido Doce. Diante de qualquer movimentação dos povos, o capital responde imediatamente com as poderosas armas da videologia.
Recordamos também a última eleição presidencial, em que mudam os atores e o cenário, mas a peça mantém o mesmo roteiro tragicômico. O espectador interage com sua inércia bem acomodada no sofá da sala e, ao final, dá um sorriso amarelo, sabendo que no fundo está sendo enganado. A modernidade perverteu a tragédia grega, retirando a filosofia da arena e introduzindo o culto da mercadoria.
Outras referências
Revelar essa relação íntima entre o mundo dos negócios e a barbárie vivida na Terra tem sido a tônica de bons filmes como Erin Brockovich – uma mulher de talento (indústria química), O Informante (indústria tabagista), O Jardineiro Fiel (indústria de medicamentos), Diamante de Sangue (indústria de jóias e pedras preciosas), Boa Noite e Boa Sorte (grande mídia), Senhor das Armas (indústria bélica), The Corporation (sociedades anônimas em geral), O Bom Pastor (serviços de inteligência dos EUA). A lista é imensa, pois não faltam subsídios para bons roteiristas nas muitas décadas de atuação nefasta do império das transnacionais.
E aqui Tony Gilroy não arriscou e foi buscar no meio jurídico elementos para seu enredo, aproveitando a inspiração obtida em visitas a grandes escritórios de advocacia quando escrevia O Advogado do Diabo (1997). De fato, ali ninguém é inocente e também no terreno do direito as transnacionais têm larga vantagem, comprando tudo e todos.
Um aspecto dessa linhagem de filmes, contudo, nos decepciona. Geralmente em tais filmes, (registre-se: exceções à regra do enlatado americano), são indivíduos, profissionais liberais, intelectuais, figurando como personagens principais, os únicos capazes de enfrentar o poder do capital quando descoberto em sua lógica suja. Para não dizer verdadeiros “heróis” (de cinema, é claro). Isso quando o filme não envereda para um ceticismo paralisante diante do “poder imenso das corporações” ou perante a “maldade intrínseca do ser humano”.
Talvez isso seja mesmo reflexo da falta de alternativas reais, da fraqueza das forças que hoje enfrentam o poder das transnacionais. A tragédia da realidade contemporânea impõe ao cinema crítico certos limites.
E precisamente por esse fato amargo somos forçados a reconhecer a perspicácia e o poder da abordagem presente em filmes americanos dessa linhagem. Os dramas e contradições individuais que levam os heróis a se voltar contra as engrenagens do capital, partindo de dentro delas, ou então a sinceridade corrosiva de personagens anti-heróis que encarnam a alta função de agentes do big business revelam toda a podridão moral e as mentiras utilizadas na constante auto-justificação dessa estrutura desumana. O público tenta se identificar com um ou se afastar do outro, enquanto assiste agoniado ao conflito posto em marcha.
Ao final, portanto, ficamos otimistas diante de trabalhos como o de Tony Gilroy que, no centro da indústria de dominação, com inteligência e ironia, destilam uma crítica ao capital nas entrelinhas de suspenses e tragédias pessoais. A conduta de risco do diretor nos dá bons subsídios para falarmos das mentiras e da verdade sobre o agronegócio.
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