sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Não mais a cereja do bolo


Setor cultural ganha importância política inédita com Lula. Inércia em outros setores impede avanços maiores


Leandro Uchoas  do Rio de Janeiro (RJ) no Correio do Brasil

Há oito anos, o Ministério da Cultura (MinC) era apenas um anexo, pouco importante, do governo federal. Tinha atuação rarefeita, concentradora e elitista. Atualmente, porém, na formação do governo de Dilma Rousseff (PT), foi uma das pastas mais disputadas. Mais de 20 nomes foram cogitados até a definição do nome de Ana de Hollanda. O que teria mudado nos dois mandatos do presidente Lula? A julgar pelas avaliações das gestões de Gilberto Gil e Juca Ferreira, feitas por intelectuais progressistas e pela classe artística, muita coisa. Ao contrário de sua área co-irmã, a Comunicação, campo de avanços quase inexistentes no mesmo período, a gestão da Cultura costuma ser bem avaliada. Diversos, os programas do Ministério teriam buscado federalizar a política cultural, descentralizando-a para além da região Sudeste. Também teriam buscado incentivar a cultura “dos de baixo”, ou “desesconder” o Brasil profundo. Estimular a cultura pelas suas pequenas manifestações, nos grotões, nos assentamentos, nas tribos, nos quilombos.
Segundo o MinC, os recursos cresceram de 0,2% do produto interno bruto (PIB), para cerca de 1,3% – R$ 2,3 bilhões (a recomendação mundial da Unesco é que o financiamento supere 1%). Entretanto, os possíveis méritos das políticas do Ministério – questionados por alguns setores da esquerda – estariam mais nos programas adotados. A ideia da cultura como uma indústria, que obedeceria aos mesmos pressupostos de qualquer atividade econômica, teria sido negada pelas gestões Gil/Juca. “De nada adianta os velhos paquidermes da ‘indústria cultural’ quererem reciclar-se por meio da última balela do velho industrialismo capitalista, as ‘Industrias Criativas’. Esse pessoal gosta da forma ‘indústria’, ou seja, da forma da exploração do trabalho alheio. A cultura não é indústria, mas valor, ou seja, significação”, defende Giuseppe Cocco, professor da UFRJ. Os programas do MinC teriam buscado fortalecer pequenas iniciativas, nem sempre geradoras de lucro ou visibilidade, de modo a incentivar, por baixo, a vasta diversidade cultural do país. “Nós trabalhamos a cultura como fato simbólico, fortalecendo as condições para o desenvolvimento das linguagens e das manifestações culturais, como um direito do cidadão, ampliando a acessibilidade, e fortalecendo a economia da cultura”, disse o ministro Juca em seminário recente.

Pontos de Cultura
Dentre os programas que ganharam mais visibilidade está o Cultura Viva. Através dele, mais de cinco mil Pontos de Cultura foram criados pelo Brasil. São manifestações culturais variadas que ganham apoio do governo, em recurso e logística, para prosperar. Em 2003, no primeiro ano do governo Lula, era o sétimo programa em recursos. No final do primeiro mandato já havia alcançado a primeira posição. Os Pontos de Cultura articularam-se nacionalmente, criando espaços políticos de mobilização e elaboração própria de política. Esses pequenos gestores, uma vez empoderados, utilizaram sua articulação para incentivar a aprovação de projetos no Congresso Nacional. Os Pontos de Cultura seriam o rosto mais visível da política cultural lulista, reproduzido em governos estaduais e em outros países, como Argentina e Angola.
Durante os dois mandatos de Lula, o Ministério da Cultura organizou uma série de seminários (redes, fóruns, teias e grupos temáticos), com participação expressiva da sociedade civil, para discutir os mais variados temas. Direito autoral, diversidade cultural, software livre, cultura digital, mídia alternativa. Frequentemente encontrou oposição dentro do próprio governo Lula. As críticas à política do Ministério das Comunicações ganhavam corpo internamente, por apresentarem freios aos avanços necessários à cultura. A lei de Direito Autoral, por exemplo, completa cinco anos de debates intensos. A inquestionável necessidade de reforma enfrenta níveis distintos de opinião. Há os que reivindicam pequenas reformulações na legislação, e os que defendem uma reforma mais radical, sustentando ideias como a propagação da pirataria e a universalização do software livre.

Políticas de fomento
O governo Lula também elaborou o Plano Nacional de Cultura (PNC), espécie de guia para orientar políticas e investimentos em cultura pelos próximos 10 anos. O PNC também cria o Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais, e articula as três esferas de poder. Tem conexões com o Procultura, o novo modelo de financiamento de Cultura, e o Fundo Social do pré-sal, de onde viriam recursos para o setor. Está em fase adiantada de análise pelo Congresso. Outra lei que foi resultado de debates intensos é o Vale Cultura, e que também tende a ser aprovada pelos parlamentares. Através dela, as empresas poderão conceder ao trabalhador R$ 50, em um cartão magnético, para consumo de Cultura. Do total, R$ 5 seria descontados do trabalhador, e o restante de isenção fiscal. Estima-se que cerca de 12 milhões de trabalhadores sejam incluídos, e ganhem acesso a bens culturais antes impensados.
Outra ação governamental, esta para enfrentar o baixo nível de leitura no Brasil, foi zerar o número de municípios sem biblioteca no Brasil. A partir de 2010, só podem receber recursos do MinC as cidades que mantiverem essas bibliotecas em funcionamento. A produção audiovisual, antes concentrada no eixo Rio-São Paulo, também ganhou estímulo à descentralização. A quantidade de documentários produzidos no país deu um salto gigantesco, porém ainda se encontra muita dificuldade na distribuição e veiculação desse farto material – em grande parte pela permanência da concentração dos meios de comunicação, e a oligopolização dos espaços de cinema. O governo criou uma rede de Núcleos de Produção Audiovisual (NPDs), equipados com câmeras e ilhas de edição. Nos NPDs, existentes em diversos estados, há formação básica de roteirização, produção e edição. Em muitos deles, criou-se uma política de incentivo à formação de jovens de baixa renda.
Não por acaso, durante a campanha presidencial, o primeiro grande momento de mobilização entusiasmada à candidatura Dilma aconteceu por intermédio do meio artístico. No Teatro Casa Grande, no Rio de Janeiro (RJ), em 18 de outubro, intelectuais e artistas fizeram uma festa de mobilização em incentivo à então candidata de Lula. De Chico Buarque a Oscar Niemeyer, diversas personalidades de vulto deram seu apoio a Dilma. Até a ocasião do ato, a campanha presidencial era morna, girando em torno de temas menos relevantes, sob perspectivas conservadoras. Talvez nenhum outro setor tenha manifestado sua aprovação de forma tão clara na campanha. Quando, em 2003, Gilberto Gil assumiu o MinC, dizendo que a cultura deixaria de ser a “cereja do bolo”, talvez houvesse algo de profético em seu discurso.

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

As idas e vindas de Portugal

No dia 24 de novembro uma greve geral parou um milhão dos cinco milhões de trabalhadores ativos em Portugal. 

Por Eliza Capai, de Lisboa na Revista Forum

No dia 24 de novembro uma greve geral parou um milhão dos cinco milhões de trabalhadores ativos em Portugal. “A greve geral com mais impacto até hoje", de acordo com o líder sindical Carvalho da Silva, tinha como uma das metas lutar contra o desemprego que acomete 20% dos jovens portugueses e 10,8% da população total do país (de acordo com o relatório “Emprego na Europa 2010” da União Europeia). E um dos efeitos dessa situação foi o incremento da emigração no país. O fluxo atual, só comparado ao êxodo da década de 60, tirou nos últimos cinco anos 350 mil pessoas do país (dados do Observatório das Migrações). No entanto, os destinos da emigração se modificaram.

Antes, os portugueses migravam principalmente para a vizinha Espanha e para o Reino Unido, mas a taxa de desemprego de 20,3% hoje no país hermano e a crise inglesa que prevê a demissão de meio milhão de funcionários públicos no país fizeram com que os lusitanos descessem um pouco no mapa. “Quando as crises são globais as migrações baixam sempre. Aparentemente o único país que escapou a esta baixa foi Angola”, explica Rui Pena Pires, que duas semanas antes da Greve Geral lançava o ‘Atlas das Migrações Internacionais Portuguesas’.

Em 2006, haviam sido tirados apenas 156 vistos de portugueses para a ex-colônia. Três anos depois o número subiu para mais de 23 mil. Atualmente, estima-se que vivam em Angola 100 mil portugueses: quatro vezes mais do que os angolanos que vivem em Portugal. Assim, o país subverte o esquema de migrações norte-sul enquanto Angola contraria a característica das ex-colônias de exportadora de mão de obra. “Angola é o único país fora da Europa para onde se dirige a emigração”, continua Rui Pena Pires.

Entre 2005 e 2008, em Portugal "houve mais saídas do que entradas. Há um déficit migratório", completa Pires. "Este déficit tem consequências no plano demográfico, normalmente associado à sustentabilidade dos sistemas de proteção social. Mas não só nesse plano: não conheço nenhuma economia que cresça com a população a diminuir", explica. De acordo com o Atlas, embora Portugal tenha uma média de emigrados semelhante à de países europeus como o Reino Unido, ele não consegue atrair atualmente a mesma quantidade de imigrantes: são 2,3 milhões de portugueses espalhados no mundo e menos de meio milhão de imigrantes na pátria lusa. Portugal é o 22º país com mais emigração, mas conta com apenas 4,2% de imigrantes na sua população.

A diferença entre as economias dos dois países ajuda a explicar o fluxo. O Produto Interno Bruto de Angola deve chegar a 258,388 bilhões de dólares em 2010, com crescimento de 7,08% neste ano. Por outro lado, em Portugal estima-se que o PIB neste ano será de US$ 161,596 bi, com crescimento de 1,12%. Para os próximos anos, o FMI estima que a distância entre os dois irá aumentar: o crescimento da economia angolana deve ser de 6,29% em 2011 e 6,05% em 2012, enquanto a economia lusa deve ter índices pífios, -0,05% e 0,6% respectivamente.

Nem lá, nem cá

Filipa Faria, profissional da área de eletrônica, trabalha há dois anos em uma empresa portuguesa de softwares que tem filiais em alguns países africanos. “Nunca tinha pensado em morar lá até ser me oferecido um trabalho no ano passado”, conta. “Perguntaram se eu estaria disponível para ir trabalhar em uma das filiais de Angola porque ainda há muita falta de mão de obra lá. Pensei duas horas e disse logo que sim, que aceitava. Do ponto de vista profissional representa um ganho na carreira”, explica. Além de promoção, Filipa teve um reajuste salarial. “Mas lá o custo de vida é muito mais alto, estou ganhando apenas 30% mais do que ganhava em Lisboa”, explica.

Se realmente os portugueses – e aqui poderíamos incluir também os brasileiros – que seguem para Angola tem seus salários aumentados, o custo social da vida nova tem que ser avaliado e não pode ser contado numericamente. Filipa opta por não fazer como alguns portugueses que conhece, que se mantêm em “guetos de brancos frequentando restaurantes para estrangeiros de cem dólares por jantar” e vivendo em condomínios fechados. Ela tem um grupo de amigos que mescla a comunidade internacional com angolanos. Por tentar circular normalmente em Luanda ela enfrenta parte das restrições sofridas pelos angolanos. “São preocupações básicas com água e luz que eu não tinha em Portugal, como a questão da segurança. Depois, toda a logística envolvida com os transportes, com o fato de não haver táxis, mas são coisas que se aprende a lidar”, esclarece.

O choque cultural também é outro problema que acompanha os lusitanos que vão para Angola. “Há um pouco o estigma de que os portugueses vão para lá para se aproveitar e para continuar a `roubar` como na época da colonização. Isto aconteceu com muitos, mas o que mais vejo é que as pessoas que estão lá querem juntar um bocadinho de dinheiro para comprar uma casa, por exemplo”, justifica Filipa. Não seria de se esperar outra reação, considerando que são apenas 35 anos de independência após uma história colonial exploradora. O preconceito pode ser visto em agressões verbais e físicas ou em pequenos atos cotidianos. Filipa conta que em qualquer compra de rua acaba pagando duas a três vezes o valor que pagaria um angolano. “Por isso, acabamos pagando para nosso motorista fazer as compras”, explica.

“Angola foi muito mitificada nas décadas de 1950 e 1960 como uma espécie de futuro de Portugal, era o novo Brasil na África que se esperava e que também viria a ser multirracial, onde os portugueses pudessem ficar”, explica Rui Ramos. Para o historiador, além da motivação econômica, Angola oferece “este fator mítico, sentimental. Basta falar com estas pessoas que saíram de Angola há trinta anos, mas que nunca perderam este sentimento de nostalgia. Há muita gente que vai por vezes para lá para descobrir aquilo que lhe contaram, e gente mais nova que vai tentar redescobrir o que seus pais ou avós contaram da forma como viviam em África”.

Filipa não é exceção a esta regra. Seus pais, brancos e descendentes de portugueses, são angolanos. Vieram estudar em Lisboa, onde se conheceram e ficaram porque no período eclodiu a guerra na então colônia. “Todas as histórias da minha família estão muito relacionadas com Angola. As histórias que me contavam eram todas fantásticas, envolviam animais selvagens, daqueles que eu só via na televisão... E um estilo de vida mais descontraído”, conta Filipa. “Lembro de histórias do meu pai quando era criança, que ele tinha um macaco no quintal. Isto tudo para mim era fabuloso de imaginar”, continua. Ela diz ainda que seus pais estão muito preocupados com ela estar lá, sozinha, “mas ao mesmo tempo eles respeitam muito a minha opção e se divertem muito em partilhar a minha vida lá: eles conhecem as ruas, os bares, os cafés... então é giro [legal] mostrar as fotos, as diferenças”, encerra.

Na mão inversa

Se os portugueses têm dificuldades quando migram para Angola, a vida tampouco é fácil para quem vai tentar a vida na terra de Cabral. Apesar de Portugal ser historicamente de emigrantes (ver box), o país também recebe pessoas vindas de outros países e reproduz as políticas europeias de imigração. Beatriz Padilla, socióloga especialista em imigração latino-americana do Centro de Investigações do Estudo de Sociologia (CIES, Lisboa), acredita que “a relação é sempre unidirecional: só os imigrantes enxergam a necessidade de se integrar. O discurso é sempre ‘a culpa é deles, eles são ignorantes, as suas culturas são atrasadas, nós na Europa temos os valores universais etc’. Então até que ponto as sociedades europeias recebem com braços abertos aos imigrantes? Eles queriam mão de obra e vieram pessoas, não é?”.

Em Portugal, a maior comunidade imigrante é a brasileira, seguida pela caboverdiana e, depois, pela ucraniana. Esta predominância brasileira se efetivou em função principalmente do famoso 11 de setembro. Com o endurecimento das leis imigratórias norte-americanas, brasileiros, em especial vindos de Minas Gerais, passaram a pousar em terras lusas e, em 2004, já eram a maior comunidade de migrantes e em 2008 já chegavam a 107 mil. Antes disso, a imigração brasileira se caracterizava por ser de profissionais com nível superior, mas hoje a mão de obra não-qualificada é bastante significativa, com trabalhadores da construção civil e trabalho doméstico, por exemplo.

“Até dez anos atrás as maiores comunidades eram de países de língua portuguesa vindos das ex-colônias da África”, explica Beatriz Padilla. “Apesar de serem os imigrantes com maior tempo de fixação, os africanos são ainda os mais discriminados, pois sofrem mais com o racismo e com dificuldades na integração no mercado de trabalho”, continua. “Muitas vezes os filhos destes imigrantes continuam a ser discriminados como os seus pais. Mas é claro que a revolta é diferente porque muitas vezes eles já nasceram em Angola e não são considerados ou vistos como portugueses”, completa.

Cor de pele

Na periferia de Lisboa, em bairros de realojamento de populações vindas dos ‘bairros de lata’ – as favelas lisboetas – trabalha Eunice Gomes. Muitos destes bairros têm população majoritária de imigrantes e Eunice, que fez sua tese sobre a segunda geração de imigrantes caboverdianos em Portugal, consegue observar em sua rotina o que escutava em entrevistas. “A principal revolta das comunidades de portugueses de origem caboverdiana deriva da identidade, da não aceitação devido à cor da pele, e do sistema de legalização dos documentos. Eles se questionam ‘se eu nasci cá por que é que não vou ter direito a ser um cidadão português?’”. Eunice, mulata, é filha de imigrantes. Embora nunca tenha viajado a Cabo Verde, ela se identifica mais com a cultura do arquipélago de seus pais. “A música, a comida, o jeito de ser do caboverdiano”, explica com sorriso largo, “me fazem sentir mais de lá”, conta, ilustrando sua própria tese.

A pesquisadora Beatriz Padilla, neta de espanhóis, nasceu e cresceu na Argentina. De segunda geração assim como Eunice, ela contrapõe os exemplos dos dois lados do mar. “Isso nunca foi uma questão para mim, lá somos todos imigrantes. Hoje sou casada com um português, moro em Lisboa e tenho um filho português. Entretanto, aqui escutamos gente falando com ele ‘ah que bom, você vai passar o Natal na sua terra’ e aí eu fico pensando ‘ué, mas a terra dele é aqui!’ E isso com o meu filho, que é branco, imagina quando as crianças não são brancas. Elas nascem e não são vistas nem tratadas como portugueses e isto é muito grave para a sua integração na sociedade”, garante.

Para romper este ciclo e combater o racismo, parte essencial da transformação é a alteração das leis. É necessário que elas facilitem a imigração e a documentação para que os estrangeiros tenham acesso ao sistema dos países onde vivem – como educação, saúde e moradia. “Embora a lei imigratória portuguesa esteja melhorando ainda há muitos problemas e deficiências. Muitos jovens e adultos nascidos aqui não são cidadãos; às vezes, para conseguir a nacionalidade, têm que apresentar atestado de antecedentes criminais de Cabo Verde, por exemplo. Mas eles nunca foram lá, nasceram e cresceram em Portugal. Para uma família pobre isso pode inviabilizar a efetivação da nacionalidade e uma das consequências é que eles só têm acesso a uma parte do ensino”, explica Beatriz.

Isso ocorre porque ali, como em boa parte dos países europeus, impera o jus sanguinis, ou seja, quem nasce em solo português e é filho de imigrantes não é português. Esta diferença modifica drasticamente a relação na incorporação e integração dos imigrantes aos países de destino. Rui Ramos explica que “Portugal, por ter sido ser Império, se baseava no direito do solo (jus soli) até o final dos 1970. Foi então que uma lei retirou a nacionalidade da maior parte das populações do ultramar”. Segundo ele, “no momento da descolonização da África deu-se o direito aos cidadãos de escolher suas nacionalidades. Aqui em Portugal temeu-se a possibilidade de toda a colônia optar pela nacionalidade portuguesa e vir para cá. Então promoveram uma lei com efeito retroativo e centenas de milhares de pessoas perderam o direito de ser portugueses”. A legislação passou a exigir que aqueles que tinham obtido nacionalidade lusitana, mas não tinham ascendentes portugueses e não residiam em Portugal há mais de três anos não eram portugueses. “Essa foi a maneira de, digamos, desnacionalizar aqueles milhares de angolanos, moçambicanos e outros; desta forma, introduziu-se este direito de sangue”.

Os pais de Eunice foram diretamente afetados pela lei. “Eles nasceram em Cabo Verde”, nos tempos em que o arquipélago era colônia, “e vieram para cá muito jovens, com cerca de dez anos. Meus pais têm residência fixa e aguardam a cidadania e isto tem para lá de quarenta anos”, ri. “Estamos sempre entre dois mundos, acho que a nossa identidade não deveria ser assim, não deveria haver esta diferença. Sou um pouco caboverdiana e um pouco portuguesa, mas o que acontece é que não me sinto aceita em nenhuma das duas sociedades”, lamenta.

Box 1 – Migração e xenofobia nos países vizinhos

O ‘Atlas das Migrações Internacionais Portuguesas’ é lançado no momento em que a Europa assiste a um crescimento de discursos abertamente xenofóbicos e a chegada ao poder de parlamentares de extrema-direita com discursos anti-imigração. Assim, na Escandinávia, outrora admirada por sua abertura, chegaram aos parlamentos dos países líderes da extrema-direita xenofóbica. A França iniciou a deportação em massa de ciganos (ver matéria na pág. XX). A chanceler alemã Angela Merkel decretou o fracasso do multiculturalismo e deixou claro que quem não aceitar os valores ocidentais não tem lugar por ali, isto no mesmo instante em que um livro anti-islâmico vira best seller no país. A Suíça proibiu a construção de minaretes, o leste europeu continua com políticas nacionalistas inspiradas no fascismo da década de 1930 e a Itália de Berlusconi segue com duras políticas anti-imigratórias. No sul da Europa já é notável a redução da imigração africana e, embora as estatísticas ainda não reflitam, se inicia um movimento de volta para os países de origem.

“Acho que o principal problema que vamos ter nos próximos dez, quinze anos, é uma desagregação de alguns princípios da sociedade europeia que estavam em tese garantidos. Eles têm a ver com a igualdade, os direitos humanos, com a tentativa de integrar e incentivar políticas de diversidade. Creio que com a atual crise e a desintegração que está acontecendo na União Europeia vamos ter uma ou duas décadas de retração para o Estado Nação. Normalmente é necessária uma narrativa muito nacionalista para isto acontecer”, explica o antropólogo e deputado português Miguel Vale Almeida. “Além da crise global, criou-se também o inimigo islâmico, por assim dizer, e que vai fazer com que haja uma reconfiguração identitária na Europa muito baseada simultaneamente na ideia do Estado Nação e, por outro lado, a diferenciação daquilo que é europeu, ocidental, cristão daquilo que é oriental, islâmico e por aí afora. E tenho muito receio deste processo”, lamenta Miguel.

Toda esta onda xenófoba despreza dados de um estudo da ONU que afirma que nos próximos 40 anos a população europeia em idade de trabalho se reduzirá em 20%. Ou seja, a Europa será ainda mais dependente de mão de obra imigrante, e corre o risco de deparar com o que ocorre em Portugal atualmente.

Box 2 – A imigração como problema

O historiador português Rui Ramos coloca a criação do discurso do ‘problema da migração’  em uma perspectiva histórica. “A Europa começou por ser uma grande `exportadora de população` no século XIX antes de se tornar no século XX uma importadora do resto do mundo. O que é interessante é que tanto na fase em que importava como na que exportava, se via a circulação das pessoas como um problema”, explica. “Isto tinha muito a ver com os tipos de Estados que se desenvolveram na Europa a partir do século XIX, que são os Estados nacionais que procuravam populações homogêneas e coesas, e que viam a perda de população como um problema porque se estava não apenas a perder mão de obra como também soldados, recrutamento militar. E via também na entrada daqueles que não eram nativos, que não eram educados conforme os sistemas nacionais, uma perturbação da coesão nacional.”

Desde o início do século passado um terço do crescimento demográfico português é absorvido pela emigração. Entre 1886 e 1950, 1,2 milhão de portugueses chegaram ao Brasil. Até a II Grande Guerra Mundial era para aí que se direcionava o maior fluxo de emigrantes lusos. Neste momento, os portugueses se caracterizavam por uma emigração pouco qualificada. Após a guerra o foco mudou para Estados Unidos, Canadá e Venezuela. Durante seu boom petroleiro, o país de Hugo Chávez foi um polo receptor de imigrantes no sul, situação comparável ao que se passa atualmente com Angola.

Durante a década de 1960, os lusitanos seguiam principalmente para França, Alemanha e Luxemburgo. Com a Revolução dos Cravos, que marcou o início da redemocratização em 1974, a emigração praticamente cessou. O período, que coincide com a descolonização da África, foi marcado pelo retorno de meio milhão de portugueses que viviam nas ex-colônias. Com a entrada na União Europeia em 1986, reinicia-se a onda emigratória em direção à Suíça e depois em direção aos demais países da UE. Neste momento, o perfil do emigrante passa a ser de um profissional qualificado. Em 2000, por exemplo, 13% dos portugueses com nível superior emigraram. Depois da crise econômica global, as emigrações começaram a se dirigir para Angola.



* Eliza faz parte do coletivo de Africa Tas a Ver: www.tasaver.org

Estado retoma setor energético, mas modelo continua o mesmo

Depois da era das privatizações, governo reassume setor; porém, com modelo antigo



Alexania Rossato
de São Paulo (SP)

O avanço do capitalismo sobre o território e os recursos naturais estratégicos, como forma de sair da crise econômica deflagrada em setembro de 2008, tem se materializado no Brasil também com o aumento da construção de usinas hidrelétricas. As obras na Amazônia, considerada a nova fronteira energética, nunca foram tão disputadas e desejadas pelos senhores da energia e questionadas pelo povo.
Na avaliação do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), comparado aos governos anteriores, o presidente Lula não promoveu mudanças estruturais no modelo energético. “O problema central é o atual modelo, que continua gerando energia para servir a indústria eletrointensiva e busca garantir as mais altas taxas de lucro em todas as áreas que compreende o setor elétrico. Transforma a energia em vários negócios, controlados por corporações transnacionais. O Lula ou não quis, ou teve medo de romper com esse modelo”, diz Gilberto Cervinski, da coordenação nacional do MAB.
A retomada do planejamento estatal do setor pelo governo Lula, depois de ter sido abandonado por FHC, segue nesse rumo e aponta para a construção de muitas novas barragens. Aprovado no final de novembro de 2010 pelo Ministério de Minas e Energia, o Plano Decenal de Expansão de Energia 2019 exibe um aumento no consumo de energia que corresponde a uma taxa anual média de crescimento de 5,4%. A oferta de energia elétrica passará de 539,9 terawatt/hora em 2010 para aproximadamente 830 terawatt/hora em 2019, segundo informações do próprio MME.
Esse montante desperta o interesse de empresas transnacionais do mundo todo, já que o Brasil oferece financiamento público através do BNDES, rios abundantes, mão de obra disponível e consumo garantido, seja pelos consumidores residenciais, seja pelo comércio ou pela indústria. “O setor elétrico brasileiro é uma galinha dos ovos de ouro, não há empresa que não queira vir explorar a geração, transmissão e distribuição de energia elétrica no Brasil, as riquezas naturais e as garantias dadas pelo Estado são infinitamente mais atraentes, se compararmos com outros países”, declara Cervinski.
Segundo informações das próprias empresas, os lucros apontados pelos balanços trimestrais estão batendo recordes: a CPFL Energia ampliou seu lucro em 33,8%; a Light quase dobrou no trimestre; a Eletrobrás 76,2%, a Tractebel ampliou em 13,4% e a Eletropaulo elevou seu lucro em 22,7%.
Esses valores podem ser ampliados no próximo período, pois cerca de 20% da geração, 74% da transmissão e 33% da distribuição têm seus contratos de concessão de energia elétrica vencendo a partir de 2012. Quase 100% dessas concessões hoje são estatais e as renovações envolvem valores equivalentes a R$ 30 bilhões ao ano. As empresas privadas do setor elétrico estão pressionando para que o governo leiloe as usinas e as linhas de transmissão, já os movimentos sociais estão propondo reverter para o controle estatal o que está sob controle privado, a renovação das concessões estatais com manutenção do seu controle acionário, além da criação de uma política de aplicação dos recursos para programas sociais.

Entraves na política social
Desde que a maior parte do setor elétrico foi privatizado no início dos anos 1990, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, a política de tratamento social dos atingidos por barragens tornou-se mais restrita e violenta. A pressão por direitos por parte dos atingidos, que antes era dirigida às estatais do setor elétrico, passou a ser feita às empresas transnacionais que, na maioria das vezes, negam as reivindicações, deslegitimam a organização e usam da força policial para desmobilização. Durante o governo Lula, esse quadro não se alterou e muitos atingidos por barragens foram inclusive presos, como aconteceu no Pará, em Santa Catarina e em Rondônia, com a deportação dos bolivianos que participavam dos protestos contra as usinas do rio Madeira.
Uma das críticas feita pelo MAB é com relação à atuação do MME no tratamento das questões sociais, e dos órgãos ambientais, sobre os licenciamentos. Em todas as situações, o Ministério procurou combater as conquistas dos atingidos, tal como aconteceu com o Relatório da Comissão Especial sobre as violações dos direitos humanos em barragens. A mesma coisa pode ser vista nos órgãos ambientais, com um fracionamento que permitiu licenciamentos irregulares e com a aplicação de condicionantes que ficam só no papel, como é o caso de Belo Monte; cujas condicionantes não estão sendo aplicadas e as licenças estão prestes a serem emitidas.
O relacionamento irregular com os atingidos por barragens nos oito anos de governo não propiciou avanços significativos, de mudanças estruturais na condição de vida dos mesmos. Segundo a avaliação do MAB, as políticas foram focalizadas, atendendo pontualmente as reivindicações. “Na nossa avaliação, a condução das políticas de Estado para os atingidos foi inexpressiva, pois não alterou as condições de vida para melhor, apenas tem concedido alguns programas, extremamente burocratizados na sua execução. A política de reassentamentos não avançou em praticamente nada e temos que brigar por mais cestas básicas por famílias ao ano, isso é uma vergonha para quem sempre sobreviveu do plantio e da colheita. Enquanto isso, o BNDES financia a construção de barragens por todo o país, como aconteceu com a usina de Jirau [no rio Madeira], cujo financiamento de R$ 7,2 bilhões foi a maior linha de financiamento dada a uma empresa”, critica Cervinski. (Leia mais na edição 409 do Brasil de Fato, já nas bancas)

Discurso de Raúl Castro


«Grandes têm sido os desafios e perigos desde o triunfo da revolução»

Raúl Castro Ruz*


Companheiras e companheiros:

Estamos há vários dias reunidos debatendo temas transcendentais para o futuro da nação. Neste momento, para além do habitual trabalho em comissões, os deputados também têm funcionado em sessões plenárias, com o propósito de discutir em detalhe a situação económica actual e as propostas de Orçamento e Plano Económico para o ano de 2011.
Os deputados dedicaram largas horas a aprofundar e esclarecer dúvidas e preocupações sobre o Projecto de Orientações da Politica Económica e Social do Partido e da Revolução.
Os nossos meios de comunicação têm divulgado amplamente o desenrolar desses debates, para facilitar a informação da população.
Apesar do impacto na economia nacional da crise mundial, o irregular comportamento das chuvas durante 19 meses, de Novembro de 2008 até Junho do ano em curso e não excluindo os nossos próprios erros, posso dizer que o plano 2010 teve um desempenho aceitável para os tempos que vivemos. Vai atingir a meta de crescimento de 2,1% do Produto Interno Bruto (PIB); cresceu a exportação de bens e serviços; ainda sem se concluir o ano já se alcançou a cifra prevista de visitantes estrangeiros, embora novamente não se tenham cumprido as receitas, consolida-se o equilíbrio financeiro interno e, pela primeira vez em vários anos, começa a verificar-se uma dinâmica favorável, embora limitada, na produtividade do trabalho em relação ao salário médio.
Continuam a diminuir as retenções na fonte de transferências para o exterior, ou o que é o mesmo, as limitações que tivemos que impor nos finais de 2008, nos pagamentos de bancos cubanos a fornecedores estrangeiros, as quais serão suprimidas totalmente no próximo ano; ao mesmo tempo conseguiram-se avanços significativos na renegociação da dívida com os nossos principais credores.
Desejo agradecer de novo a confiança e compreensão dos nossos parceiros comerciais e financeiros, a quem reafirmo o mais firme propósito de honrar pontualmente os compromissos assumidos. O Governo deu instruções precisas para não contrair novas dívidas sem a garantia de poder cumprir o pagamento nos prazos acordados.
Conforme explicou o Vice Primeiro-Ministro e Ministro da Economia e Planificação, Marino Murillo Jorge, o plano do próximo ano prevê um crescimento do PIB de 3,1%, que deverá alcançar-se no meio de um cenário não menos complexo e tenso.
O ano de 2011 é o primeiro dos cinco incluídos na projecção de médio prazo da nossa economia, período em que, gradual e progressivamente, se irão introduzindo alterações estruturais e conceptuais no modelo económico cubano.
Durante o próximo ano vamos continuar com determinação a reduzir gastos desnecessários e a promover a poupança de todos os tipos de recursos que, como temos dito repetidamente, é a fonte de rendimentos mais rápida e segura à nossa disposição.
Também prosseguiremos, sem descurar os mínimos pormenores, a elevar a qualidade dos programas sociais nas áreas de saúde, educação, cultura e desporto, nos quais se identificaram enormes reservas de eficiência no uso mais racional da infra-estrutura existente.
Também aumentaremos as exportações de bens e serviços, ao mesmo tempo que continuaremos a concentrar o investimento nas actividades de mais rápida recuperação.
Em termos do plano e orçamento, temos insistido que deve acabar a história repetida dos enganos e incumprimentos. O plano e o orçamento são sagrados, repito, a partir de agora o plano e o orçamento são sagrados, são elaborados para serem cumpridos, e não para nos conformarmos com explicações de qualquer tipo ou mesmo com imprecisões e mentiras, intencionais ou não, quando não se atingem as metas traçadas.
Às vezes, alguns companheiros, sem um propósito fraudulento, fornecem informações imprecisas aos seus subordinados sem as ter comprovado e, inconscientemente, caem na mentira, mas essas informações falsas podem-nos levar a decisões erradas, com maior ou menor impacto sobre a nação. Quem assim age também mente, e seja quem for, deve ser afastado definitiva ou temporariamente do cargo que ocupa e, depois da análise dos órgãos competentes, também afastado das fileiras do partido se nele milita.
A mentira e os seus efeitos nocivos têm acompanhado o homem desde que aprendeu a falar em épocas remotas, motivando a reprovação da sociedade. Lembre-se que nos Dez Mandamentos da Bíblia, o número oito dispõe: «Não darás falso testemunho nem mentirás.» Também nos três princípios básicos de ética moral da civilização Inca se estabelecia: não mentir, não roubar, não ser preguiçoso.
Devemos lutar para banir definitivamente a mentira e o engano do comportamento dos quadros, a todos os níveis. Não por acaso, o companheiro Fidel na sua brilhante definição do conceito de Revolução, entre outros critérios, disse: «não mentir jamais nem violar princípios éticos.»
Na sequência da publicação em 9 de Novembro do Projecto de Orientações para a Política Económica e Social, o comboio do VI Congresso do Partido está em andamento, pois o verdadeiro congresso será o debate dos seus enunciados, franco e aberto, com os militantes e todo o povo, o que, num verdadeiro exercício de democracia, vai tornar os debates mais ricos; embora não excluindo pontos de vista divergentes, teremos a formação de um consenso nacional sobre a necessidade e a urgência de mudanças estratégicas no funcionamento da economia, com a finalidade de tornar sustentável e irreversível o Socialismo em Cuba.
Não devemos temer as diferenças de critérios e esta orientação, que não é nova, nem deve ser interpretada como limitada à discussão das orientações; as diferenças de opinião, expressas preferencialmente em tempo, lugar e maneira, ou seja, no lugar certo, no momento oportuno e de forma correcta, serão sempre mais desejáveis para a falsa unanimidade com base na simulação e no oportunismo. É, além do mais, um direito de que não se deve privar ninguém.
Quantas mais ideias formos capazes de introduzir na análise de um problema, mais perto estaremos da sua solução.
A Comissão de Política Económica do Partido e os 11 grupos que a compõem, trabalharam durante meses na elaboração das citadas orientações que, como se explicou, constituem o tema central do Congresso, com base na convicção de que a situação económica é a tarefa principal do Partido e do Governo e o objecto básico dos quadros a todos os níveis.
Nos últimos anos insistimos em que não podíamos deixar-nos conduzir pela improvisação e por pressas nessa área, tendo em conta a dimensão, a complexidade e as inter-relações das decisões a tomar. É por isso que eu acho que se fez bem em adiar o Congresso do Partido, apesar de termos tido que resistir com paciência, às reivindicações honestas e também às mal-intencionadas para apressar a adopção de várias medidas, dentro e fora de Cuba. Os nossos adversários no exterior, como era esperado, desafiaram todos os passos que tomámos, primeiro desqualificando-os como cosméticos e insuficientes, agora tentando confundir a opinião pública, pressagiando um segundo fracasso, concentram as suas campanhas na exaltação de um suposto desencanto e cepticismo com que, dizem, o nosso povo tem acolhido este projecto.
Às vezes dá a impressão que os seus desejos mais íntimos os impedem de ver a realidade. Deixando claro as suas verdadeiras pretensões, exigem-nos abertamente que desmantelemos o sistema económico e social que conquistámos, como se esta Revolução estivesse disposta a submeter-se à mais humilhante rendição ou, o que é igual, a reger os seus destinos por condicionamentos degradantes.
Durante mais de 500 anos, de Hatuey a Fidel, muito sangue foi derramado pelo nosso povo para aceitar agora o desmantelamento do que foi conseguido à custa de tanto sacrifício.
Àqueles que guardem essas ilusões infundadas, é bom lembrar-lhes, mais uma vez, a afirmação feita neste Parlamento, em 1 de Agosto de 2009, que passo a citar: «Não me elegeram presidente para restaurar o capitalismo em Cuba nem para entregar a Revolução. Fui eleito para defender, manter e continuar a melhorar o socialismo, não para destruí-lo».
Hoje, acrescento que as medidas que estamos a implementar e todas as alterações que seja necessário introduzir para actualizar o modelo económico, têm por objectivo preservar o socialismo, fortalecê-lo e torná-lo verdadeiramente irreversível, como foi consagrado na Constituição da República, a pedido da imensa maioria da nossa população, no ano de 2002.
Temos de colocar na mesa todas as informações e argumentos que sustentam toda a decisão e de passagem, retirar o excesso de secretismo a que nos acostumámos durante mais de 50 anos de cerco inimigo. Um Estado tem sempre que manter alguns assuntos em segredo, isso é algo que ninguém contesta, mas não as questões definidoras do rumo político e económico da nação. É vital explicar, fundamentar e convencer o povo da justeza, da necessidade e da urgência de uma medida, por mais dura que pareça.
O Partido e a Juventude Comunista, além da Central de Trabalhadores de Cuba e seus sindicatos, junto com as restantes organizações de massas e sociais, têm a capacidade de mobilizar o apoio e a confiança do povo através do debate não vinculado a dogmas e sistemas inviáveis, que constituem uma barreira psicológica colossal, que é imprescindível desmantelar gradualmente e vamos consegui-lo juntos.
É precisamente esse o conteúdo que reservamos para Conferência Nacional do Partido a ser realizada em 2011, após o Congresso, em data a ser fixada posteriormente; iremos analisar, entre outras coisas, alterações aos métodos de trabalho e estilos de trabalho da organização partidária, já que, como resultado das deficiências apresentadas no desempenho dos órgãos administrativos do Governo, o Partido ao longo dos anos teve de se envolver no exercício de funções que não lhe pertencem, o que limitou e comprometeu a sua condição de vanguarda organizada da nação cubana e força dirigente superior da sociedade e do Estado, em conformidade com o artigo cinco da Constituição.
O Partido deve dirigir e controlar, e não interferir nas actividades do governo, a qualquer nível, cuja responsabilidade é a de quem governa, cada um com suas próprias regras e procedimentos, de acordo com as suas missões na sociedade.
É necessário mudar a mentalidade dos quadros e de todos os compatriotas para enfrentar o novo cenário que começa a emergir. Trata-se simplesmente de transformar conceitos errados e insustentáveis sobre o socialismo, profundamente enraizados em amplos sectores da população durante anos, como consequência de uma abordagem excessivamente paternalista, idealista e igualitarista que a Revolução estabeleceu em nome da justiça social.
Muitos cubanos confundem socialismo com direitos e subsídios, igualdade com igualitarismo, muitos identificam a caderneta de racionamento como uma conquista social que nunca deveria ser suprimida.
Neste contexto, estou convencido de que muitos dos problemas que enfrentamos hoje têm a sua origem nesta medida de distribuição, que embora em determinado momento tenha estado animada pelo empenhamento saudável de garantir ao povo uma oferta estável de alimentos e outros bens em vez do açambarcamento sem escrúpulos por parte de alguns para fins do lucro, é uma expressão clara do igualitarismo, que beneficia do mesmo modo aqueles que trabalham e aqueles que não o fazem ou que não precisam e gera práticas de troca e venda no mercado negro, etc, etc.
A solução para esta complexa e sensível questão não é simples, ele está intimamente relacionado com o reforço do papel dos salários na sociedade e isso só será possível se a par da redução dos serviços gratuitos e subsídios, aumentar a produtividade do trabalho e a oferta produtos à população.
Nesta questão, como na redução de pessoal excedentário, o Estado socialista não deixará desamparado nenhum cidadão e mediante o sistema de assistência social, garantirá que as pessoas impossibilitadas de trabalhar receberão a protecção mínima necessária. No futuro, haverá subsídios, mas não aos produtos, e sim para as cubanas e cubanos que por uma razão ou outra, realmente necessitem.
Como é sabido, desde Setembro do ano passado que se eliminou cigarro racionado, um artigo que apenas uma parcela da população recebia e, como é óbvio, pelos seus efeitos nocivos para a saúde, não constitui um produto de primeira necessidade.
No próximo ano, não podemos dar-nos ao luxo de gastar quase 50 milhões de dólares em importações de café para manter a quota actual aos consumidores, incluindo os recém-nascidos. Prevê-se, por ser uma necessidade absoluta, como fizemos até 2005, misturá-lo com cevada, muito mais barata do que o café que nos custa quase três mil dólares a tonelada, enquanto aquela custa 390 dólares.
Se quisermos continuar a beber café puro e sem racionamento, a única solução é produzi-lo em Cuba, onde está provado existirem todas as condições para o seu cultivo, em quantidade suficiente para atender à procura e até para o exportar, e da mais alta qualidade.
Estas decisões e outras que é necessário aplicar, embora saibamos que não são populares, são obrigatórias para podermos manter e melhorar os serviços gratuitos, de saúde pública, educação e segurança social a todos os cidadãos.
O próprio líder da Revolução cubana, o companheiro Fidel, no seu discurso histórico em 17 de Novembro de 2005, disse textualmente: «Uma conclusão que eu tirei após muitos anos: entre os muitos erros que temos cometido, o maior erro foi acreditar que alguém sabia de socialismo, ou que alguém sabia como construir o socialismo». Há apenas um mês, exactamente ao cabo de cinco anos, Fidel através da sua mensagem por ocasião do Dia Internacional do Estudante ratificou estes conceitos que permanecem em pleno vigor.
Pela minha parte, lembro a abordagem de um laureado cientista soviético há cerca de meio século atrás, que, embora teoricamente se tivesse comprovado a possibilidade do voo humano para o espaço, acreditava que ainda era uma viagem ao ignorado, ao desconhecido.
Se bem que contemos com o legado teórico marxista-leninista, onde é cientificamente comprovada a viabilidade do socialismo e a experiência prática das tentativas de construção em outros países, a construção da nova sociedade na área económica é, na minha humilde opinião também uma viagem para o desconhecido, onde cada passo deve meditar-se profundamente e ser planificado antes do próximo, onde os erros se corrijam oportuna e prontamente, para não deixar que o tempo dê a solução, pois só os irá aumentar e, no final nos passar-nos-á uma factura ainda mais cara.
Estamos plenamente conscientes dos erros que cometemos e precisamente por isso as Orientações marcam o início do caminho da correcção e da necessária actualização do nosso modelo económico socialista.
Ninguém se deve deixar enganar: as Orientações apontam a direcção para o futuro socialista, ajustado às condições de Cuba, e não ao passado capitalista e neocolonial derrubado pela Revolução. O Planeamento, e não o livre mercado será a marca distintiva da economia e não será permitido, como indicado no terceiro ponto das orientações gerais, a concentração da propriedade. Mais claro que a água, embora não haja pior cego que aquele que não quer ver.
A construção do Socialismo deve estar em conformidade com as peculiaridades de cada país. É uma lição histórica que aprendemos bem. Não pensamos voltar a copiar ninguém. Bastantes problemas nos trouxe fazê-lo, mas também porque se copiámos de forma errada; não ignoramos porém as experiências dos outros, aprendemos com elas, incluindo com as experiências positivas dos capitalistas.
Pensando sobre a necessária mudança de mentalidades vou citar um exemplo: se chegamos à conclusão de que o exercício do emprego por conta própria constitui mais uma alternativa de emprego para pessoas em idade de trabalhar, a fim de aumentar a oferta de bens e serviços á população e libertar o Estado dessas actividades para se concentrar no que é decisivo, o que compete ao Partido e ao Governo é facilitar a sua gestão e não criar estigmas ou preconceitos em relação a eles e para isso é necessário mudar a actual apreciação negativa existente em alguns de nós em relação a esta forma de trabalho privado. Os clássicos do marxismo-leninismo ao projectarem as grandes linhas que deviam caracterizar a construção da nova sociedade, definiram, entre outras, que o Estado, representando todo o povo, manteria a propriedade dos meios fundamentais de produção.
Nós absolutizámos esse princípio e passámos para a propriedade estatal a maior parte da actividade económica do país. Os passos que temos vindo a dar e daremos na expansão e flexibilização do trabalho por conta própria, são o resultado de uma profunda reflexão e análise e podemos garantir que desta vez não haverá recuo.
Por seu lado, a Central de Trabalhadores de Cuba e os respectivos sindicatos nacionais estão a estudar as formas e métodos para a organização desta força laboral, promover a estrita observância da lei e os impostos e motivar nestes trabalhadores a rejeição das ilegalidades. Devemos defender os seus interesses, como fazemos com qualquer outro cidadão, desde que actuem em conformidade com as normas jurídicas aprovadas.
Nesse sentido reveste-se de grande importância a introdução a diferentes níveis do ensino básico do sistema fiscal, a fim de familiarizar, de forma permanente e concreta, as novas gerações na aplicação dos impostos como a forma mais universal de redistribuição do rendimento nacional, no interesse da sustentabilidade das despesas sociais.
A nível de toda a sociedade, devemos incentivar valores cívicos de respeito e cumprimento por parte dos contribuintes com as suas obrigações fiscais, criar nas pessoas essa cultura e disciplina, bonificar os que cumprem e punir a evasão fiscal.
Outra tarefa em que, apesar dos progressos alcançados, ainda há muito a fazer é na atenção ás diferentes formas de produção na agricultura, de modo a eliminar diversas barreiras existentes para potenciar as forças produtivas nos nossos campos e a correspondente poupança nas importações de alimentos, por forma a que agricultores obtenham remuneração razoável e justa pelo seu sacrificado trabalho, o que não justifica a imposição de preços excessivos para o público.
Mais de dois anos depois de iniciada a entrega em usufruto de terras abandonadas, acho que estamos em posição de considerar o aluguer de áreas adicionais para além dos limites regulamentados pelo Decreto-Lei 259, de Julho de 2008, àqueles agricultores agro-pecuários com melhores resultados no uso intensivo dos solos sob sua responsabilidade.
Devo esclarecer que as terras dadas em usufruto são propriedade de todo o povo, por isso, se foram solicitadas para outros usos, o Estado deve compensar o investimento dos proprietários e pagar o valor de benfeitorias.
Uma vez concluídos os estudos a partir das experiências acumuladas, apresentaremos ao Conselho de Estado as correspondentes propostas de alteração do decreto-lei.
Um dos obstáculos mais difíceis de superar para conseguirmos uma visão diferente, e temos de admiti-lo publicamente, é a falta de cultura económica da população, incluindo alguns quadros de direcção que, mostrando uma ignorância suprema nesta matéria, ao enfrentar problemas diários adoptam ou propõem decisões sem pararem um momento para avaliar os seus efeitos e custos, ou se há recursos afectados no plano e orçamento para tal fim.
Não digo nada de novo, quando afirmo que improvisar, particularmente na economia, leva seguramente ao fracasso, independentemente dos bons propósitos pretendidos.
Em 2 de Dezembro passado, por ocasião do 54 º aniversário do desembarque do Granma, o órgão oficial do nosso partido reproduziu um trecho do discurso de Fidel em 1976, na mesma data, quando se comemoravam apenas 20 anos do evento e que, pela sua actualidade, julguei oportuno mencionar: «A força de um povo e de uma revolução consistem precisamente na sua capacidade de compreender e lidar com as dificuldades. No entanto, avançaremos em muitos campos e lutaremos incansavelmente para melhorar a eficiência da economia, economizar recursos, reduzir gastos não essenciais, aumentar as exportações e criar em cada cidadão uma consciência económica. Disse antes que todos nós somos políticos, agora acrescento que todos devemos também ser economistas, não economicistas, porque não é a mesma coisa uma mentalidade de poupança e eficiência e uma cultura de consumo».
Dez anos depois, no 1º de Dezembro de 1986, durante a sessão do Terceiro Congresso do Partido, Fidel disse textualmente: «Muitas pessoas não entendem que o Estado socialista, nenhum Estado, nenhum sistema pode dar o que não tem, e muito menos terá o que não se produz; está a dar-se dinheiro sem produtividade. Estou certo de que as folhas de pagamento inflacionadas, o excesso de dinheiro pago ás pessoas, os inventários supérfluos, o desperdício, têm muito a ver com o grande número de empresas não lucrativas que há no país …» Fim de citação.
Passados 34 e 24 anos, respectivamente, destas orientações do Chefe da Revolução, estes e muitos outros problemas ainda estão presentes.
Fidel com o seu génio ia abrindo brechas e apontava o caminho, e nós não soubemos proteger e consolidar os progressos na prossecução destes objectivos.
Faltou coesão, organização e coordenação entre o Partido e o Governo; no meio das ameaças diárias e urgências quotidianas negligenciámos o planeamento médio e longo prazo, não fomos suficientemente exigentes perante erros económicos cometidos por alguns dirigentes e também demorámos a rectificar decisões que não tiveram o efeito esperado.
Mais de uma vez referi a que nesta Revolução já quase tudo já foi dito, pelo que deveríamos rever que orientações do Chefe da Revolução quais as que cumprimos e as que ficaram por cumprir, a partir do seu vibrante apelo «A História me absolverá» até hoje. Recuperaremos as ideias de Fidel que permanecem válidas e não permitiremos que nos aconteça o mesmo.
Os erros, se são discutidos simplesmente com honestidade, podem transformar-se em experiências e lições, para os superar e não para voltar a cair neles. Essa é precisamente a grande utilidade da análise em profundidade dos erros e deve começar a ser uma norma permanente de conduta de todos os líderes.
A realidade dos números está para além das nossas aspirações e desejos. Na aritmética elementar do primeiro grau da escola primária, aprende-se desde cedo que dois e dois são quatro, não são cinco ou seis; não é preciso ser economista para o entender, por isso, se num dado momento temos que fazer alguma coisa em matéria económica e social com os recursos disponíveis, façamo-lo com consciência das consequências e sabendo de antemão que, no final, a crueza dos factos se imporá inevitavelmente.
Cuba tem dezenas de milhares de profissionais graduados pela Revolução nas áreas de economia, contabilidade e finanças, para citar apenas alguns com esse perfil, que não os temos sabido utilizar adequadamente em benefício do desenvolvimento ordenado da nação.
Nós temos o mais precioso, o capital humano, e temos de o congregar com a colaboração da Associação Nacional de Economistas e Contabilistas (ANEC) para empreender a tarefa de educar nesta matéria, de forma consistente e sistemática, o nosso povo e seus dirigentes em todos os níveis. Uma grande representação do Comité Nacional da ANEC participou nos primeiros seminários sobre as orientações que organizámos, e muitos de seus membros estão envolvidos no processo de debates em curso.
Há que destacar a contribuição decisiva de milhares de contabilistas para recuperar o lugar da contabilidade na direcção da actividade económica, que evidentemente é um pré-requisito indispensável para assegurar o sucesso e a ordem em tudo o que propomos.
Nestas circunstâncias, não se deve perder de vista a importância de manter uma abordagem diferenciada para com os jovens, e em correspondência com isso, destaco a decisão de excluir dos processos de disponibilidade laboral os recém-formados a trabalhar no cumprimento do Serviço Social.
No entanto, não se trata de colocá-los em funções não relacionadas com o seu perfil profissional, como já aconteceu no passado, em que chegaram a colocar-se como porteiros do centro laboral, precisamente porque este período é projectado para os treinar com base na produção e serviços, completar, na prática, a formação teórica das escolas e cultivar neles o amor ao trabalho.
Não menos importante é a obra dos quadros e especialistas envolvidos na elaboração e revisão de documentos legais, em consonância com as mudanças que se vão implementando; por exemplo, apenas para dar cobertura legal para duas orientações (números 158 e 159), relativas ao exercício de trabalho por conta própria, o seu sistema fiscal e os processos de disponibilidade de trabalho, foram obrigados a emitir cerca de 30 disposições, entre decretos-lei, acordos de governo e resoluções de vários ministérios e institutos nacionais.
Há poucos dias uma resolução do Ministério das Finanças que modificou os preços de aprovisionamento de um grupo de produtos agrícolas, teve de anular 36 resoluções desse mesmo organismo emitidas em anos anteriores, mas todas ainda em vigor.
Esses factos dão uma ideia do trabalho que temos pela frente em matéria de ordenamento jurídico, para fortalecer as instituições do país e eliminar muitas proibições irracionais que duraram anos e que, independentemente das circunstâncias existentes, criaram um terreno fértil a múltiplas actuações à margem da lei, muitas vezes a origem da corrupção a vários níveis. Pode chegar-se a uma conclusão comprovada pela vida: proibições irracionais fomentam violações, o que por sua vez leva à corrupção e à impunidade; por isso eu acho que as pessoas têm razão nas suas preocupações sobre o uso de procedimentos complexos relacionados com a habitação e a compra e venda de veículos entre indivíduos, para citar apenas dois exemplos que estão actualmente em estudo para uma solução ordenada.
Ao mesmo tempo, impõe-se a simplificação e ordenação da legislação vigente, normalmente bastante dispersa. Os documentos são feitos para serem do domínio dos responsáveis pela sua execução, a não para serem arquivados. Por conseguinte, é necessário educar todos os quadros e exigir que trabalhem com as leis que regem as suas funções e fiscalizar o seu cumprimento, como condição de idoneidade para ocupar uma determinado cargo.
Vale a pena lembrar uma vez mais que a ignorância da lei não isenta ninguém do seu cumprimento e que, segundo a Constituição, todos os cidadãos têm direitos e deveres iguais, pelo que qualquer pessoa que comete um crime em Cuba, independentemente do cargo que ocupe, seja ele quem for, terá que enfrentar as consequências dos seus erros e o peso da justiça.
Passando a outro assunto, também recolhido nas Orientações. Foram excluídos do plano para o próximo ano 68 investimentos significativos para o país por não cumprirem os requisitos estabelecidos; entre eles, a obrigação do financiamento, a preparação técnica e dos projectos, a definição das empresas de construção capazes de cumprir os prazos fixados e a avaliação dos estudos de viabilidade. Não permitiremos o desperdício de recursos destinados a investimento por causa da espontaneidade, da improvisação e da superficialidade que em muitos casos, têm caracterizado o processo de investimento.
Ao abordar estas questões é obrigatório referir ao papel decisivo que devem desempenhar os quadros do Partido, do Estado, do Governo, as organizações de massas e os jovens na condução coordenada e harmoniosa do processo de actualização do modelo económico cubano.
No decorrer da progressiva descentralização que estamos a implementar, tomaram-se várias medidas para aumentar a autoridade dos dirigentes empresariais e administrativos, em quem continuamos a delegar competências. Paralelamente, aperfeiçoam-se os procedimentos de controlo e sobem para níveis mais elevados a exigência face a manifestações de negligência, de preguiça e outros comportamentos incompatíveis com o desempenho de um cargo público.
Igualmente estamos plenamente conscientes dos danos que durante anos foram causados à política de quadros pelo fenómeno da «pirâmide invertida”, ou seja, em que os salários não estão em consonância com a importância e a hierarquia de cargos de gestão ocupados, nem à adequada diferenciação entre uns e outros, o que desincentiva a promoção dos mais capazes para maiores responsabilidades nas empresas e nos próprios ministérios. Esta é uma questão fundamental que deve ser resolvida em conformidade com as orientações descritas nos números 156 e 161, relativos à política salarial.
O VI Congresso do Partido deve ser, pela lei da vida, o último da maioria dos que integramos a Geração Histórica; o tempo que nos resta é curto e sem o menor sinal de imodéstia ou vaidade pessoal, eu acho que temos a obrigação de aproveitar o peso da autoridade moral que temos para deixar o rumo traçado.
Não nos vemos como mais inteligentes ou capazes, mas estamos convencidos que temos o dever fundamental de corrigir os erros que cometemos nessas cinco décadas de construção do socialismo em Cuba e, nesse sentido, vamos usar todas as energias que nos restam e que felizmente não são poucas.
Vamos reforçar a firmeza e a intransigência com o mal feito; os ministros e os outros dirigentes políticos e administrativos sabem que terão todo o nosso apoio quando, no cumprimento das suas funções, eduquem e ao mesmo tempo exijam aos seus subordinados e não temam levantar problemas. Descobrir os problemas para enfrentar o trabalho mal feito é agora uma das nossas principais tarefas.
Também é claro para todos que não estamos nos primeiros anos após o triunfo em 1959, quando alguns dos que ocupavam posições no governo renunciavam para demonstrar a sua oposição aos primeiros passos radicais que dava a Revolução, e por isso essa atitude se classificava como contra-revolucionária. Hoje, quando um quadro se senta cansado ou incapaz de realizar as suas funções plenamente, o verdadeiramente revolucionário e honesto é pedir a demissão, com dignidade e sem medo, que é sempre preferível à destituíção.
Em relação a assunto, devo fazer uma referência a três companheiros que tiveram importantes responsabilidades na direcção do Partido e do Governo, e que pelos erros que cometeram, o Bureau Politico pede para renunciarem á sua qualidade de membros deste órgão de direcção, do Comité Central e de deputados à Assembleia Nacional do Poder Popular.
Trata-se de Jorge Luis Sierra Cruz, Yadira Garcia Vera, e Pedro Sáez Montejo. Os dois primeiros foram libertados já das suas responsabilidades de Ministros dos Transportes e da Indústria Básica, respectivamente. Sierra por assumir atribuições que não lhe competiam e que levaram a erros graves na direcção, e Yadira Garcia por um péssimo trabalho à frente do Ministério, reflectido sobretudo no fraco controle sobre os recursos destinados ao processo de investimento, levando ao desperdício destes, como foi comprovado no projecto de ampliação da empresa de níquel Pedro Soto Alba, em Moa, Província de Holguín. Ambos os companheiros foram severamente criticados em reuniões conjuntas da Comissão do Bureau Político e do Comité Executivo do Conselho de Ministros.
Por seu lado, Pedro Sáez Montejo, mostrando uma superficialidade incompatível com o cargo de Primeiro Secretário do Partido na cidade de Havana, violou regras do trabalho partidário, o que foi discutido com ele numa comissão do Bureau Politico, presidida por mim e composta pelos companheiros Machado Ventura e Esteban Lazo.
É justo assinalar que os três reconheceram os erros apontados e assumiram uma atitude correcta, razão pela qual a Comissão do Bureau Político decidiu manter o seu estatuto de membros do partido. Da mesma forma, considerou-se conveniente colocá-los em trabalhos relacionados com suas especialidades.
Pessoalmente, os três permanecerão meus amigos, mas eu só tenho compromissos com o povo e especialmente com os que caíram nestes 58 anos de luta contínua desde o golpe de estado de 1952. Se seguimos este procedimento com três altos dirigentes, saibam que esta é a linha que seguirá o Partido e o Governo com todos os quadros. Mais exigência, uma vez que alertaremos e adoptaremos as medidas disciplinares adequadas quando forem detectadas violações do estabelecido.
Conforme o prescrito pela Lei que altera a Divisão Político-Administrativa, no próximo mês de Janeiro irão criar-se as novas províncias de Artemisa e Mayabeque, cujos órgãos de Governo começarão o seu trabalho sob novos conceitos de organização e estrutura, muito mais racionais do que os da actual província de Havana.
Definiram-se funções, estruturas e modelos. Trabalha-se na definição das suas competências, assim como nas relações com os órgãos da administração central do Estado, as empresas nacionais e as organizações políticas e de massas. Vamos acompanhar de perto esta experiência para uma gradual generalização aos outros órgãos do governo local, ou seja, a todo o país, ao longo dos próximos cinco anos. Defendemos a utilidade de continuar a elevar gradualmente a autoridade dos governos provinciais e municipais e dotá-los de maiores poderes para gerirem os orçamentos locais, aos quais se destinarão parte dos impostos gerados pela actividade económica, a fim de contribuir para o seu desenvolvimento.
No meio da conturbada situação internacional avançam as relações com os povos e governos de quase todas as nações.
O mundo foi surpreendido com as revelações chocantes de centenas de milhares de documentos classificados do governo dos Estados Unidos, alguns deles muito recentes, sobre as guerras no Iraque e Afeganistão e, em seguida, uma variedade de temas nas suas relações com dezenas de Estados.
Enquanto todos se perguntam o que realmente está acontecer e como isso pode estar relacionado com os meandros da política americana, o que foi difundido até agora mostra que este país, por mais que se esconda numa retórica fácil, segue em essência a política de sempre e age como um polícia mundial.
Nas relações com os Estados Unidos não se vê a menor vontade de rectificar a política contra Cuba, nem para eliminar os seus aspectos mais irracionais. É evidente que nesta questão ainda é prevalecente uma poderosa minoria reaccionária que serve de sustentáculo à máfia anti-cubana.
Os Estados Unidos não só ignoram o grande protesto de 187 países que exigem o fim do bloqueio económico, comercial e financeiro contra nosso país, como em 2010 reforçaram a sua aplicação e incluíram novamente Cuba nas suas listas espúrias, através das quais se arrogam o direito de julgar e caluniar os Estados soberanos para justificar uma acção punitiva, ou mesmo actos de agressão.
A política dos Estados Unidos contra Cuba não tem a menor credibilidade. Eles não têm outro remédio senão recorrer à mentira para reiterar acusações entre as quais sobressaem, pela sua escandalosa falsidade, que somos um pais patrocinador do terrorismo internacional, tolerante perante o tráfico interno de mulheres e crianças para exploração sexual, violador flagrante dos direitos humanos e responsável por restringir, de maneira significativa, as liberdades religiosas.
O governo dos EUA tenta esconder os seus próprios pecados e procura fugir às suas responsabilidades no facto de continuarem impunes nesse país notórios terroristas internacionais, reclamados pela justiça de vários países, ao mesmo tempo que mantêm em injusta prisão os nossos Cinco irmãos por lutarem contra o terrorismo.
Nas suas caluniosas campanhas sobre o tema dos direitos humanos em Cuba, os Estados Unidos tiveram a conivência dos países europeus, conhecidos pela sua cumplicidade com os voos secretos da CIA, o estabelecimento de centros de detenção e tortura, por descarregar os efeitos da crise económica sobre os trabalhadores de menores recursos, pela violenta repressão sobre os manifestantes e a aplicação de políticas discriminatórias contra os imigrantes e as minorias.
Juntamente com as nações irmãs da América Latina continuaremos a luta pela emancipação e a integração no âmbito da Aliança Bolivariana para os Povos de Nossa América, trabalharemos para reforçar a solidariedade e a unidade que nos fortalecerá a todos cada vez mais.
Assim continuaremos a apoiar a fraterna nação do Haiti, onde o nosso pessoal de saúde, juntamente com médicos latino-americanos e haitianos formados em Cuba, enfrenta com abnegação, de forma desinteressada e humanitária, a epidemia de cólera, os danos do terramoto e as consequências de séculos de exploração e pilhagem deste nobre povo, que precisa da comunidade internacional de recursos para a reconstrução e, especialmente para o desenvolvimento sustentado.
É também uma ocasião propícia para, a partir deste Parlamento, enviar em nome de todos os cubanos, uma mensagem de encorajamento e solidariedade para com o povo irmão da Venezuela, que sofre o impacto de chuvas torrenciais, com perdas de vidas humanas e danos materiais. As dezenas de milhares de voluntários cubanos servindo naquele país, receberam logo instruções para se colocarem à disposição do Presidente Hugo Chávez para o que fosse preciso.
Em Abril próximo cumprem-se 50 anos da proclamação do carácter socialista da nossa Revolução. Nas areias de Playa Girón as nossas forças lutaram pela primeira vez em defesa do socialismo e, em apenas 72 horas e sob a liderança pessoal do Comandante em Chefe derrotaram a invasão mercenária patrocinada pelo governo dos EUA.
Por ocasião deste relevante acontecimento, em 16 de Abril realizaremos um desfile militar, com a participação de tropas e meios de combate, à qual assistirão os delegados ao VI Congresso do Partido, que nessa mesma tarde deverão reunir para começar os seus trabalhos, que esperamos concluir em 19 de Abril, Dia da Vitória de Playa Girón. O encerramento do desfile será levado a cabo por dezenas de milhares de jovens, representando as gerações mais novas, que constituem a garantia da continuidade da Revolução.
Esta comemoração será dedicada à nossa juventude, que nunca abandonou a Revolução.
Jovens foram os que caíram no assalto aos quartéis Moncada e Bayamo:
• jovens foram os que se sublevaram em Santiago de Cuba sob a liderança de Frank País;
• jovens eram os expedicionários do navio Granma, que, após a queda do Alegría de Pío formaram o Exército Rebelde, reforçados por ondas de jovens das zonas rurais e das cidades, o primeiro reforço de Santiago pessoalmente organizado e enviado pelo próprio Frank;
• jovens eram os membros do poderoso movimento clandestino;
• jovens foram os valorosos assaltantes do Palácio Presidencial e da Rádio-Reloj em 13 de Março de 1957, liderados por José Antonio Echeverría;
• jovens foram os que lutaram heroicamente em Giron;
• jovens e adolescentes aderiram à campanha de alfabetização também há 50 anos;
• jovens eram a maioria dos combatentes na luta contra os bandos mercenários organizados pela CIA;
• jovens foram os protagonistas de belas páginas de coragem e estoicismo em missões internacionalistas em diversos países, nomeadamente na ajuda aos movimentos de libertação em África;
• jovens são os nossos Cinco Heróis que arriscaram suas vidas na luta contra o terrorismo e sofrem já mais de 12 anos de prisão cruel;
• jovens são muitos dos milhares e milhares de colaboradores cubanos que defendem a vida humana curando doenças erradicadas em Cuba, apoiam programas de alfabetização e difundem a cultura e a prática do desporto para crianças e adultos em todo o mundo.
Esta revolução é obra do sacrifício da juventude cubana: operária, camponesa, estudantil, intelectual, militar, de todos os jovens em todas as épocas em que lhes coube viver e lutar.
Essa revolução será conduzida pelos jovens cheios de optimismo e fé inabalável na vitória.
Grandes têm sido os desafios e perigos desde o triunfo da Revolução e, muito especialmente, a partir de Girón, mas nenhuma dificuldade foi capaz de nos subjugar. Estamos aqui e estaremos pela dignidade, integridade, coragem, firmeza ideológica e espírito de sacrifício e revolucionário do povo de Cuba, que há muito tempo fez seu o conceito de que o socialismo é a única garantia de permanecer livre e independente.

* Discurso do General do Exército Raúl Castro Ruz, Presidente dos Conselhos de Estado e de Ministros de Cuba, na Assembleia Nacional em 18 de Dezembro, 2010.
Tradução de Guilherme Coelho

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

“Regular a comunicação nada mais é do que cumprir com o Estado de Direito”

Integrantes do Coletivo Intervozes falam sobre estudo que lança luz sobre o funcionamento dos órgãos reguladores do setor em 10 países



Eduardo Sales de Lima da Redação do Brasil de Fato

Toda vez que se fala sobre a necessidade de se regular a comunicação no Brasil, os grandes meios do país disparam: tal medida seria “ditatorial”, “atentado à liberdade de expressão”, “cerco à mídia”. Ignoram, ou fingem ignorar, que mecanismos de controle sobre o setor existem em muitas nações do mundo, inclusive aquelas consideradas exemplos de democracia para esses mesmos meios.
O Intervozes - Coletivo Brasil de Comunicação Social realizou um levantamento sobre o funcionamento de órgãos reguladores que atuam sobre a rádio e a televisão em 10 países. O estudo trouxe à tona o caráter independente desses órgãos, com ênfase nas questões de garantia de competição, gestão do espectro e regulação de conteúdo.
Os países estudados foram Reino Unido, França, Canadá, Estados Unidos, Bósnia e Herzegovina, Argentina, Uruguai, Alemanha, Espanha (com um capítulo especial sobre a Catalunha) e Portugal. A seguir, leia uma entrevista, via correio eletrônico, com Ramênia Vieira da Cunha e Sivaldo Pereira, ambos pesquisadores responsáveis pela pesquisa.

Brasil de Fato – Dos países que vocês pesquisaram, qual (ou quais) apresentaram uma estrutura de regulação de mercado e conteúdo que mais lhe(s) chamaram a atenção positivamente? Por quê?
Sivaldo Pereira – Podemos apontar, por exemplo, a independência e a efetividade do modelo britânico com o Ofcom (Departamento de Comunicação) e o modelo bósnio-herzegovino, com a Agência Regulatória da Comunicação (CRA). O Ofcom, por exemplo, busca concretizar o ideal de uma agência autônoma sem perder em força regulatória do Estado. Possui um código de qualidade de conteúdo para a radiodifusão que é constantemente debatido e atualizado e que dá as diretrizes para o bom andamento dos sistemas de comunicação, chegando inclusive a aplicar uma média de 18 multas por ano a empresas infratoras. Veja que ninguém chama isso de censura, nem mão de ferro do Estado, nem ditadura da esquerda, como se fala no Brasil: nada mais é do que o Estado de Direito sendo cumprido.
Na Bósnia e Herzegovina, a criação de uma agência regulatória que busca cumprir os princípios de qualidade e ética à risca é justamente uma resposta ao trauma que o país sofreu devido ao mal uso da comunicação de massa no contexto da guerra, considerado por muitos especialistas um dos principais elementos que levaram o país ao conflito. Esses sistemas, de algum modo, preveem formas de participação do cidadão no sistema, aproximando-se, assim, do interesse do público.
Ramênia Vieira da Cunha – A Alemanha me chamou muito a atenção, por manter uma estrutura com autoridades de regulação da mídia em cada estado da federação (são 16 estados regulados por 14 autoridades de mídia – duas delas têm jurisdição sobre dois estados). Isso torna a regulação mais adaptada à realidade de cada uma dessas regiões, cabendo à associação nacional das autoridades (a ALM) o papel de agente regulador das transmissões e coberturas de abrangência nacional. A preocupação com a proteção à criança e ao adolescente também chama a atenção na legislação alemã.
Na Espanha, é a defesa contra a discriminação da mulher que ganha um bom espaço na regulação do conteúdo e do funcionamento das emissoras de radiodifusão. No Uruguai, ainda que o marco regulatório ainda esteja em discussão, o modelo atual prevê a regulação das telecomunicações e da comunicação audiovisual por um único órgão, o que elimina eventuais choques de competências entre organismos distintos e pode ser fator positivo para o controle efetivo sobre o funcionamento das emissoras.

No geral, como funciona a regulação de conteúdo nos países pesquisados por você? As agências reguladoras são, de fato, independentes?
Sivaldo – Os países que conseguem hoje ter melhor qualidade de conteúdo são aqueles que possuem códigos que buscam cristalizar princípios aos quais os meios estão submetidos democraticamente. Observe que não se trata de impor quais conteúdos devem ou não ser veiculados pelos meios, pois isso implicaria em podar a criatividade e a liberdade de expressão. Na verdade, trata-se de garantir que os conteúdos sejam plurais, diversos e que respeitem questões como equilíbrio de gênero, étnico, regional e político.
Ramênia – Há características comuns entre os agentes reguladores pesquisados. Uma delas é a busca pela independência em relação às empresas de comunicação, públicas ou privadas, e aos governos. O Executivo e o Legislativo participam, em maior ou menor grau, da indicação dos componentes dos órgãos reguladores, geralmente com participação prévia da sociedade. De qualquer forma, a maior parte dos países impede que os órgãos tenham como diretores pessoas com interesses econômicos ligados direta ou indiretamente ao setor regulado. O problema é montar um sistema legal que consiga identificar plenamente essas relações de interesses.
De forma geral, os organismos de regulação têm atuação tanto sobre o licenciamento das emissoras quanto sobre o mercado – em alguns casos, como na Alemanha, com controle sobre a concentração de poder econômico e político, pelo menos em termos teóricos. Esses órgãos também determinam a existência de infrações à lei e aplicam as respectivas sanções. Em termos de regulação de conteúdo, os organismos de regulação agem a partir de denúncias feitas pelo público ou por meio do monitoramento da programação pós veiculação. Ou seja, não ocorre nenhum tipo de censura prévia nos países pesquisados.

A proibição de que os órgãos de regulação tenham como diretores pessoas com interesses econômicos ligados direta ou indiretamente ao setor regulado me parece algo muito distante da realidade brasileira (leia matéria sobre um possível marco regulatório no Brasil na página 11). O Brasil já apresenta um acúmulo no debate que possa pressionar os poderes públicos para a criação de uma agência com um caráter participativo de toda a sociedade?
Ramênia – O Brasil está iniciando um processo. O debate existe, embora ainda muito restrito às universidades e às organizações não governamentais que militam na área. Mas é um processo que vai avançar, certamente. Claro que, pelas características das empresas de comunicação em atividade no Brasil e pela fase de desregulamentação das comunicações verificada na segunda metade do século passado, será um processo mais semelhante ao instalado na Argentina – de disputas acirradas de poder e de ações desesperadas por parte das empresas para evitar a perda da hegemonia – do que a relativa tranquilidade com que a regulamentação foi estabelecida na Europa, a partir de diretivas da União Europeia.
Sivaldo – Essa cultura política que envolve participação e autonomia ainda é um desafio no Brasil. Órgãos como a Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) buscam autonomia mas não se abrem efetivamente para a participação do cidadão comum. Isso acaba repercutindo – ou reforçando – um perfil demasiadamente técnico-econômico. Algo claramente sentido na hora de a agência regular o setor das telecomunicações, por exemplo: ao invés de priorizar o mérito de um “player” em cumprir horizontes e princípios constitucionais valoriza-se, apenas, sua robustez enquanto empresa. Mas creio que estamos num momento importante de se pressionar para que haja um modelo regulatório que triangule participação, autonomia e efetividade, como ocorre em qualquer país democrático. Por isso que o debate sobre regulação dos meios de comunicação não pode ser mais estigmatizado como violação à liberdade de imprensa. É simplesmente o Estado de Direito sendo posto a funcionar. Empresas de comunicação das diversas áreas como impresso, TV, rádio, telefonia, internet não estão acima da lei: precisam cumprir regras e prestar contas de suas atividades, responder por elas publicamente. Toda democracia pressupõe veículos de comunicação livres, mas também pressupõe que os mesmos estejam qualificados para cumprirem suas funções públicas ao invés de servir a interesses privados de grupos econômicos ou políticos.

Alguns países trabalham ainda com questões de imparcialidade e pluralidade de visões na cobertura jornalística. No Brasil, a grande mídia prima por um jornalismo que não é plural, isso é fato. Nesse setor, nosso país estaria muito atrasado em relação aos países pesquisados?
Sivaldo – Sim. O Brasil está muito aquém de um modelo de regulação sofisticado em termos democráticos. Na verdade, mal temos regulação no setor. Veja que caiu a Lei de Imprensa, que não era boa, mas ficamos na várzea... sem regulação nenhuma para o setor, o que é ainda pior. E na radiodifusão e telecomunicações, onde sobrou alguma regulação precária, prevalece uma omissão institucionalizada, como é o caso da prática já histórica do Ministério das Comunicações ou um tecnicismo econômico fechado em si mesmo, como é o caso da Anatel.
O problema é que essa mistura de selva regulatória, omissão e tecnicismo não é mais sustentável. Não mais nesses tempos de convergência tecnológica. E, para piorar, o Brasil ainda luta para ter um sistema público de comunicação, aquele de forte presença, autonomia e que não possua fins lucrativos e tenha independência em relação ao governo (a exemplo da NHK, no Japão, o sistema ARD e ZDF da Alemanha ou a famosa BBC britânica).
Em solo brasileiro, prevaleceu uma distorção em que há um hiperdesenvolvimento de um sistema de comunicação privado, isto é, com fins lucrativos, algo que não ocorre em boa parte de países democraticamente desenvolvidos. E falo no sentido clássico de “public broadcast” (radiodifusão pública), em que há investimento público significativo que mantém um sistema de comunicação qualificado e independente. Algo diferente, por exemplo, de um veículo estatal diretamente subordinado ao governador ou presidente. No Brasil, a criação da EBC já foi um avanço. Porém, ainda temos poucos investimentos e é preciso aumentar a participação civil no controle da empresa, desvinculando-a ainda mais do governo e dando meios para se transformar numa grande rede que possa equilibrar-se ao sistema comercial hoje preponderante no país.

Sivaldo Pereira da Silva é PhD em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Universidade Federal da Bahia, professor do Departamento de Comunicação da Universidade Federal de Alagoas e membro do Intervozes.
Ramênia Vieira da Cunha é jornalista e membro do Intervozes.

Governo liberta trabalhadoras em boate no MT

Leonardo Sakamoto em seu blog

Você é explorada sexualmente em uma boate e como pagamento ganha fichinhas que podem ser trocadas por produtos com preço superfaturado (como macarrão instantâneo, cigarros, bebidas…) na loja do próprio estabelecimento em que você trabalha. Se não quitar a dívida contraída dessa bola de neve fraudulenta, fica trabalhando. Para a alegria dos clientes e dos donos do estabelecimento.


Essa foi a situação a que estavam expostas 20 mulheres em Várzea Grande, município vizinho à capital do Estado do Mato Grosso, Cuiabá. De acordo com reportagem de Bárbara Vidal, da Repórter Brasil, elas estavam mantidas em alojamentos precários e superlotados no interior da casa noturna Star Night. As jovens eram obrigadas a permanecer o tempo inteiro (quando digo o tempo inteiro, refiro-me às 24 horas do dia) à disposição dos donos do lugar, localizado a cerca de um quilômetro do Aeroporto Internacional Marechal Rondon. Não tinham folga nem aos domingos ou feriados. Algumas delas assinaram um contrato – ilegal, é claro – que as proibia de deixar a boate se não houvesse pagamento das “dívidas”.
Segundo Valdiney Arruda, chefe da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego do Mato Grosso e acompanhou a ação, as mulheres “viviam em regime total de subordinação”. Além de precários e superlotados, os espaços não tinham ventilação adequada e proteção contra incêndio e não respeitavam normas de higiene.
Outros quatro trabalhadores (um gerente e três garçons) também foram retirados de lá. Não ficavam acomodados na boate e retornavam para suas casas após o expediente, mas enfrentavam condições precárias, com jornadas exaustivas e sem descanso. Todas as vítimas tinham entre 18 e 23 anos de idade.
A operação também contou com a participação da Polícia Civil, Guarda Municipal e Conselho Tutelar e foi realizada em novembro. Participaram ainda integrantes da Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública e da Comissão Estadual de Erradicação do Trabalho Escravo do Mato Grosso, após investigações que começaram quatro meses antes. As vítimas receberam os seus direitos trabalhistas, foram orientadas para que retornassem a seus municípios de origem e vão receber seguro-desemprego.
O Relatório Global sobre Tráfico de Pessoas lançado no ano passado pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e o Crime Organizado em parceria com a Iniciativa Global da ONU contra o Tráfico de Pessoas apontou que a forma mais comum de tráfico humano (79%) é para a exploração sexual, em que as vítimas são predominantemente mulheres e meninas. Em 30% dos países que fornecem informações sobre o gênero dos traficantes, as mulheres são a maioria dos traficantes.
Mulheres que vão buscar uma condição de vida melhor em outras cidades ou mesmo países e que não possuem informações sobre seus direitos são as mais atingidas pelo problema. Além disso, muitas acabam não procurando auxílio por vergonha de sua condição e medo de sanções criminais.