Gente é pra ser feliz, (…) não pra morrer de fome
.
Meire no blog Salada Medica
Este post dá apenas um pontapé para que vocês discutam este tema.
Praticamente não dei plantão em serviço
público. Em pouco tempo de formada ingressei na medicina privada e por
anos mantive clientela de médio a alto nível sócio-econômico, já que só
trabalhava em consultório particular.
Minha vida acadêmica esteve totalmente
fora da realidade do nosso país até 2006, quando, pensando em fazer mais
do que só consultório particular, trabalhei como médica da Rede
Estadual de Assistência à Pessoa com Deficiência e tomei posse no cargo
que ora exerço no Governo Federal.
Até entendo por que algumas das pessoas
do meu círculo de contatos pensam como eu pensava antes, que políticas
sociais são medida populista, que não é dando que se ensina, que não é
dando que se leva um povo adiante, que esforço pessoal é suficiente, que
iniciativa privada é o que há e por ai vai, porque já pensei assim
também e não posso afirmar que a minha posição atual seja a correta.
Quem mudou meu pensamento da água para o
vinho não foi nenhum bom argumentador, nenhum sociólogo, nenhuma
assistente social. Foi uma baixinha de dois anos de idade, moreninha dos
cabelos negros, sorridente, carinhosa, de família muito pobre e
domiciliada na periferia de Natal. Como muitos outros pacientes
continuam sendo, ela foi uma das minhas grandes professoras.
A menininha nasceu com surdo-mudez e foi
atendida por mim no Centro de Reabilitação Infantil. Indiquei avaliação
otorrinolaringológica e ela foi escolhida para receber implante
coclear. Vibramos de felicidade porque a pequena iria começar a ouvir,
faríamos tratamento com fonoaudióloga e e ela poderia ter uma vida mais
próxima a das crianças de sua idade.
Mas o pai não permitiu a cirurgia, um
procedimento caro, mas que seria custeado pelo SUS. Não houve acordo,
tentamos de tudo e ele foi inclusive bem agressivo com a equipe.
Precisei pedir ajuda ao Conselho Tutelar.
No final das contas o pai, pessoa não
alfabetizada, sem formação técnica alguma, sem emprego e sobrevivendo de
‘vínculos’ precários de trabalho braçal, chorou bastante e admitiu o
motivo: a menina recebia o amparo social ao deficiente. Se a menininha fosse curada a família correria o risco de não ter o que comer, porque uma vez deixando de ser ‘deficiente‘, a menina perderia seu benefício (um salário mínimo por mês).
Entre outras atribuições, avalio
praticamente todos os dias pessoas com deficiência para subsidiar a
concessão deste mesmo benefício. E não raro me emociono com mães e pais
buscando, a todo custo, transformar perante a classe médica o seu filho
ou filha em uma criança com invalidez. Os pais circulam em médicos,
fazem exames, queixam-se de que crianças sorridentes e sapecas são
psicopatas ou que crianças já alfabetizadas tem atraso mental grave e o
que é pior, orientam que a criança fique calada e diga que nada sabe
durante a entrevista pericial.
Excluindo os casos claros de tentativa
de fraudar o sistema, a manobra resulta do desespero, da falta de
perspectiva. É a fome. Uma das formas da família receber a garantia de
uma renda mensal é ser acometida por alguma fatalidade. Um pai que fique
paraplégico, uma mãe que tenha um derrame e perca a memória, um filho
com deficiência grave.
Um povo com fome é de fato um povo
inválido, um povo paralisado, desconectado, sem capacidade de ação, é um
povo que estende a mão, espera e agradece o pouco que vier, pede esmola
para não roubar.
Filho de faminto tem desnutrição
intra-útero e corre maior risco de desenvolver retardo do
desenvolvimento motor e cognitvo, além de epilepsia e possivelmente
danos na arquitetura cerebral. Enquanto não houver um pequeno
enriquecimento do povo muito pobre no nosso país iremos apenas perpetuar
essa ciclo bizarro e cruel.
Quando uma família recebe um benefício
assistencial que seja de fato suficiente para garantir uma cota
calórico-proteica mínima ocorre uma sequência de benefícios. A mãe, que
antes precisava se prostituir ou saia para trabalhar como ‘autônoma’
recebendo muito menos do que merece e muitas vezes deixando seus filhos
trancados dentro de casa ou largados na rua, pode ser dar ao ‘luxo’ de
dar mais atenção às crianças e mantê-las menos próximas do underground.
Sou a favor de um benefício de prestação
continuada para toda e qualquer família em alta vulnerabilidade, não só
para idosos ou pessoas com deficiência incapacitante, desde que
associado a um mecanismo de contrapartida.
A contrapartida seria manter a criança
na escola, o adolescente em um curso técnico, o adulto em programas de
alfabetização, além de um bom programa de controle de natalidade. Tudo
isto o Brasil já tem, mas muitas vezes as pessoas não buscam.
Fora a questão humanista em si, vem a questão de saúde pública.
A má alimentação afeta não só o
crescimento e desenvolvimento da pessoa, afeta sua imunidade, facilita
infecções. Famílias pobres vivem confinadas em ambientes minúsculos,
muitas vezes em casas com um cômodo para várias pessoas. O confinamento
aliado à desnutrição amplifica a proliferação de vírus, fungos e
bactérias, tanto que o Brasil não consegue se livrar da Febre Reumática,
da Tuberculose ou da Hanseníase.
Saindo da questão de saúde pública, tem a questão econômica.
O adoecimento destas pessoas gera ônus
para os cofres públicos. É muito mais barato manter o povo alimentado,
acordá-lo para produzir e impulsionar o desenvolvimento do país do que
custear tratamento de condições ligadas a pobreza e subnutrição, exames
complementares, honorários médicos, medicamentos…
Se seguirmos em frente no raciocínio,
chegamos ainda em outro ponto. A distribuição de dinheiro que está
retido nas contas do Governo ou em mãos de graúdos aumenta o poder de
compra das pessoas. Isto gera injeção na economia, nas vendas, nos
negócios, na capacidade de manutenção das empresas e geração de mais
empregos. Parte destes benefícios volta para o próprio governo na forma
de impostos sobre produtos e parte fica justamente nas mãos de uma
parcela dos contribuintes, sejam eles comerciantes ou empresários.
E fora as questões humanistas, de saúde pública e econômica pinceladas aqui, há a questão de segurança.
Em ‘O Ensaio Sobre a Cegueira‘
(Saramago), pessoas pacatas e de vida tranquila que se vêem engaioladas e
sem suprimentos alimentares, em pouco tempo passam a apresentar
comportamento criminoso, do furto ao estupro. Em todo tempo e lugar,
onde há miséria e fome há saques e crimes de outras naturezas. Já
sabemos que embora exista multicausalidade, inclusive uma predisposição
genética ao comportamento sociopata, a variável isolada mais importante
na prevalência da criminalidade de um país é a baixa condição
socio-econômica.
Então se nada parece um bom argumento
para justificar a distribuição de renda para pessoas desfavorecidas,
pensar num país com menor violência, com menos crianças nas ruas
servindo de ‘aviãozinho‘ para traficantes, com menos pedintes nas ruas não é tentador?
Mas ai vem o argumento do contra que é de fato uma falácia de generalização. ‘Ah, quem tem uma renda mínima não vai mais querer trabalhar, vai se acomodar’.
Quem faz isto chama todo o povo brasileiro de oportunista e preguiçoso.
Quem convive de perto com gente muito carente pode afirmar que boa
parte do povo é formada por pessoas com vontade de mudar de vida, por
pessoas que só precisam que uma mão seja estendida, por pessoas que
querem o melhor para seus filhos, que querem que seus filhos um dia
alcancem algo que nunca alcançaram.
Muitos de nós certamente viemos de
famílias pobres e somos resultados dos esforços heróicos de nossos avós e
pais.Quem não quiser crescer, que assim fique, viva de uma bolsa
qualquer, mas não é por estes que o todo deve ser sacrificado. Façamos a
devida medida de justiça.
Em suma e pensando com meus batons, chego a conclusão que a implantação da renda mínima, que seria um benefício idêntico ao concedido a idosos carentes
e pessoas com deficiência + invalidez para o trabalho, é estratégia
altamente razoável dos pontos de vista de cidadania, saúde pública,
economia e segurança e que pode, em médio prazo, mudar o perfil do povo
brasileiro.
Quanto menos pessoas com fome e mais
pessoas com poder de compra o Brasil ‘produzir’, melhor para todos. Quem
paga a conta são os brasileiros que como eu, tiveram mais
oportunidades, puderam estudar e ter colocação no mercado, uma vida
digna e independente de políticas sociais. E pagamos satisfeitos se o
fruto no nosso trabalho é transformado em algo bom para o país como um
todo.
É para papo de mais de metro, porque tem
ainda a questão penal. Num pais menos pobre o Estado pode ter garantido
o seu direito de punir, pois não há atenuantes para quem rouba de
barriga cheia.
Fora tudo isto, esta concessão evitaria a
triste necessidade da família carente da atualidade entrar em
verdadeiro processo mórbido em busca de um membro da família que seja
inválido para que sua renda seja concedida. Vocês não tem idéia de como é
triste atender pessoas com este comportamento. O brasileiro não merece
essa humilhação e um país com uma carga tributária violenta como o nosso
tem o dever de fazer isto.
Abraços,
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