sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Por que sou a favor de benefícios assistenciais

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Gente é pra ser feliz, (…) não pra morrer de fome
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Meire no blog Salada Medica

Este post dá apenas um pontapé para que vocês discutam este tema.
Praticamente não dei plantão em serviço público. Em pouco tempo de formada ingressei na medicina privada e por anos mantive clientela de médio a alto nível sócio-econômico, já que só trabalhava em consultório particular.
Minha vida acadêmica esteve totalmente fora da realidade do nosso país até 2006, quando, pensando em fazer mais do que só consultório particular, trabalhei como médica da Rede Estadual de Assistência à Pessoa com Deficiência e tomei posse no cargo que ora exerço no Governo Federal.
Até entendo por que algumas das pessoas do meu círculo de contatos pensam como eu pensava antes, que políticas sociais são medida populista, que não é dando que se ensina, que não é dando que se leva um povo adiante, que esforço pessoal é suficiente, que iniciativa privada é o que há e por ai vai, porque já pensei assim também e não posso afirmar que a minha posição atual seja a correta.
Quem mudou meu pensamento da água para o vinho não foi nenhum bom argumentador, nenhum sociólogo, nenhuma assistente social. Foi uma baixinha de dois anos de idade, moreninha dos cabelos negros, sorridente, carinhosa, de família muito pobre  e domiciliada na periferia de Natal. Como muitos outros pacientes continuam sendo, ela foi uma das minhas grandes professoras.
A menininha nasceu com surdo-mudez e foi atendida por mim no Centro de Reabilitação Infantil. Indiquei avaliação otorrinolaringológica e ela foi escolhida para receber implante coclear. Vibramos de felicidade porque a pequena iria começar a ouvir, faríamos tratamento com fonoaudióloga  e e ela poderia ter uma vida mais próxima a das crianças de sua idade.
Mas o pai não permitiu a cirurgia, um procedimento caro, mas que seria custeado pelo SUS. Não houve acordo, tentamos de tudo e ele foi inclusive bem agressivo com a equipe. Precisei pedir ajuda ao Conselho Tutelar.
No final das contas o pai, pessoa não alfabetizada, sem formação técnica alguma, sem emprego e sobrevivendo de ‘vínculos’ precários de trabalho braçal, chorou bastante e admitiu o motivo: a menina recebia o amparo social ao deficiente. Se a menininha fosse curada a família  correria o risco de não ter o que comer, porque uma vez deixando de ser ‘deficiente‘, a menina perderia seu benefício (um salário mínimo por mês).
Entre outras atribuições, avalio praticamente todos os dias pessoas com deficiência para subsidiar a concessão deste mesmo benefício. E  não raro me emociono com mães e pais buscando, a todo custo, transformar perante a classe médica o seu filho ou filha em uma criança com invalidez. Os pais circulam em médicos, fazem exames, queixam-se de que crianças sorridentes e sapecas são psicopatas ou que crianças já alfabetizadas tem atraso mental grave e o que é pior, orientam que a criança fique calada e diga que nada sabe durante a entrevista pericial.
Excluindo os casos claros de tentativa de fraudar o sistema,  a manobra resulta do desespero, da falta de perspectiva. É a fome. Uma das formas da família receber a garantia de uma renda mensal é ser acometida por alguma fatalidade. Um pai que fique paraplégico, uma mãe que tenha um derrame e perca a memória, um filho com deficiência grave.
Um povo com fome é de fato um povo inválido, um povo paralisado, desconectado, sem capacidade de ação, é um povo que estende a mão, espera e agradece o pouco que vier, pede esmola para não roubar.
Filho de faminto tem desnutrição intra-útero e corre maior  risco de desenvolver retardo do desenvolvimento motor e cognitvo, além de epilepsia e possivelmente danos na arquitetura cerebral. Enquanto não houver um pequeno enriquecimento do povo muito pobre no nosso país iremos apenas perpetuar essa ciclo bizarro e cruel.
Quando uma família recebe um benefício assistencial que seja de fato suficiente para garantir uma cota calórico-proteica mínima ocorre uma sequência de benefícios. A mãe, que antes precisava se prostituir ou saia para trabalhar como ‘autônoma’ recebendo muito menos do que merece e muitas vezes deixando seus filhos trancados dentro de casa ou largados na rua, pode ser dar ao ‘luxo’ de dar mais atenção às crianças e mantê-las menos próximas do underground.
Sou a favor de um benefício de prestação continuada para toda e qualquer família em alta vulnerabilidade, não só para idosos ou pessoas com deficiência incapacitante, desde que associado a um mecanismo de contrapartida.
A contrapartida seria manter a criança na escola, o adolescente em um curso técnico, o adulto em programas de alfabetização, além de um bom programa de controle de natalidade. Tudo isto o Brasil já tem, mas muitas vezes as pessoas não buscam.
Fora a questão humanista em si, vem a questão de saúde pública.
A má alimentação afeta não só o crescimento e desenvolvimento da pessoa, afeta sua imunidade, facilita infecções. Famílias pobres vivem confinadas em ambientes minúsculos, muitas vezes em casas com um cômodo para várias pessoas. O confinamento aliado à desnutrição amplifica a proliferação de vírus, fungos e bactérias, tanto que o Brasil não consegue se livrar da Febre Reumática, da Tuberculose ou da Hanseníase.
Saindo da questão de saúde pública, tem a questão econômica.
O adoecimento destas pessoas gera ônus para os cofres públicos. É muito mais barato manter o povo alimentado, acordá-lo para produzir e impulsionar o desenvolvimento do país do que custear tratamento de condições ligadas a pobreza e subnutrição, exames complementares, honorários médicos, medicamentos…
Se seguirmos em frente no raciocínio, chegamos ainda em outro ponto. A distribuição de dinheiro que está retido nas contas do Governo ou em mãos de graúdos aumenta o poder de compra das pessoas. Isto gera injeção na economia, nas vendas, nos negócios, na capacidade de manutenção das empresas e geração de mais empregos. Parte destes benefícios volta para o próprio governo na forma de impostos sobre produtos e parte fica justamente nas mãos de uma parcela dos contribuintes, sejam eles comerciantes ou empresários.
E fora as questões humanistas, de saúde pública e econômica pinceladas aqui,  há a questão de segurança.
Em ‘O Ensaio Sobre a Cegueira‘ (Saramago), pessoas pacatas e de vida tranquila que se vêem engaioladas e sem suprimentos alimentares, em pouco tempo passam a apresentar comportamento criminoso, do furto ao estupro. Em todo tempo e lugar, onde há miséria e fome há saques e crimes de outras naturezas. Já sabemos que embora exista multicausalidade, inclusive uma predisposição genética ao comportamento sociopata, a variável isolada mais importante na prevalência da criminalidade de um país é a baixa condição socio-econômica.
Então se nada parece um bom argumento para justificar a distribuição de renda para pessoas desfavorecidas, pensar num país com menor violência, com menos crianças nas ruas servindo de ‘aviãozinho‘ para traficantes, com menos pedintes nas ruas não é tentador?
Mas ai vem o argumento do contra que é de fato uma falácia de generalização. ‘Ah, quem tem uma renda mínima não vai mais querer trabalhar, vai se acomodar’. Quem faz isto chama todo o povo brasileiro de oportunista e preguiçoso. Quem convive de perto com gente muito carente pode afirmar que boa parte do povo é formada por pessoas com vontade de mudar de vida, por pessoas que só precisam que uma mão seja estendida, por pessoas que querem o melhor para seus filhos, que querem que seus filhos um dia alcancem algo que nunca alcançaram.
Muitos de nós certamente viemos de famílias pobres e somos resultados dos esforços heróicos de nossos avós e pais.Quem não quiser crescer, que assim fique, viva de uma bolsa qualquer, mas não é por estes que o todo deve ser sacrificado. Façamos a devida medida de justiça.
Em suma e pensando com meus batons, chego a conclusão que a implantação da renda mínima, que seria um benefício idêntico ao concedido a idosos carentes e pessoas com deficiência + invalidez para o trabalho, é estratégia altamente razoável dos pontos de vista de cidadania, saúde pública, economia e segurança e que pode, em médio prazo, mudar o perfil do povo brasileiro.
Quanto menos pessoas com fome e mais pessoas com poder de compra o Brasil ‘produzir’, melhor para todos. Quem paga a conta são os brasileiros que como eu, tiveram mais oportunidades, puderam estudar e ter colocação no mercado, uma vida digna e independente de políticas sociais.  E pagamos satisfeitos se o fruto no nosso trabalho é transformado em algo bom para o país como um todo.
É para papo de mais de metro, porque tem ainda a questão penal. Num pais menos pobre o Estado pode ter garantido o seu direito de punir, pois não há atenuantes para quem rouba de barriga cheia.
Fora tudo isto, esta concessão evitaria a triste necessidade da família carente da atualidade entrar em verdadeiro processo mórbido em busca de um membro da família que seja inválido para que sua renda seja concedida. Vocês não tem idéia de como é triste atender pessoas com este comportamento. O brasileiro não merece essa humilhação e um país com uma carga tributária violenta como o nosso tem o dever de fazer isto.
Abraços,

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