quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Uma elite preconceituosa


Laerte Braga

O preconceito não chega às claras. É politicamente correto disfarçá-lo. Vem embutido na ira e na forma sórdida como é distribuído pelos mais diversos canais de comunicação, até o boca a boca.
 
Falo da eleição de uma presidente e não de um presidente.
 
A campanha contra Dilma Roussef traz explícito o rancor e o preconceito dos porões onde se escondem os torturadores da ditadura militar e disfarçado no noticiário de jornais como a Folha de São Paulo, ou revistas como Veja (não tão disfarçado assim). O Jornal Nacional se imagina uma espécie de porta voz divino e acredita que o trono de Deus esteja no PROJAC. Os anúncios se materializam pelo anjo William Bonner e arcanjos são os Marinho.
 
Deus, o deles, de fato, está em Wall Street e espalhado pelas várias agências de propaganda que transformam esse cheiro fétido de ódio em sabão em pó que tira todas as manchas. Ou perfume que perfuma como nenhum outro o seu banheiro, acrescido do fato de ter vida inteligente.
 
No início da campanha eleitoral o jornal Folha de São Paulo, um dos braços da ditadura militar (Operações Bandeirantes e Condor), montou um currículo de Dilma Roussef insinuando assaltos a bancos, assassinatos de inocentes e ações terroristas.
 
A primeira reação veio de dentro do próprio jornal. O Onbudsman, um jornalista eleito para fazer a análise crítica dos fatos noticiados e corrigir distorções, levantou uma série de incorreções no tal currículo.
 
Ao contrário do que apregoa a FOLHA DE SÃO PAULO – UM JORNAL DE RABO PRESO COM O LEITOR –, o rabo está preso na FIESP e no esquema corrupto que tenta transformar o Brasil em colônia de um mundo gerido pelo terror nuclear com sede em Washington. Não foram feitas as retificações, ou correções. Prevaleceu a mentira dos donos.
 
Que Dilma Roussef foi integrante de um grupo de resistência à ditadura militar o País inteiro já sabe. Junto com ela milhares de mulheres e homens enfrentaram o golpe de 1964 e toda a barbárie que caracterizava o movimento.
 
Que Dilma Roussef foi presa e torturada, submetida a vexames diversos nem ela própria nega, nem jamais tentou negar e isso ficou claro na resposta que deu a um senador numa das muitas CPIs fajutas que os tucanos armaram para tentar atingi-la, só não sabe quem não quer.
 
Um dos filmes brasileiros que mais comoveu a opinião pública foi o que mostrou a saga de Zuzu Angel, a célebre figurinista, assassinada pela ditadura militar por exercer com bravura e dignidade o ofício de mãe, na busca de seu filho morto nos cárceres da ditadura. Pelos bravos “patriotas” que apregoavam a tal “democracia a brasileira”.
 
Bem mais que o ofício de mãe. O exemplo de dignidade da mulher como um todo, revestida do caráter que único, de ser humano em seu sentido pleno. Isso significa coragem, porque coragem aí não é bem um ato de heroísmo, mas bravura indômita de quem não se curva ao tacão dos poderosos.
 
Ademar de Barros, ex-governador de São Paulo e um dos protagonistas do golpe militar de 1964 (protagonista de segunda categoria) foi uma espécie de precursor do malufismo. Chegou a fugir do País quando a justiça quis prendê-lo pelas mais variadas formas de corrupção possíveis. Surgiu com Ademar o slogan “rouba mas faz”.
 
A Dilma se imputa uma ação onde um cofre do ex-governador teria sido roubado. No cofre, um milhão de dólares, guardado na casa de uma amante, resultado de propina.
 
Na prática, quando abjetos torturadores tentam desqualificar Dilma Roussef (e nem estou entrando no mérito de sua candidatura) estão tentando desqualificar também centenas de mulheres anônimas que foram vítimas da ditadura e todas as mulheres em todo o País.
 
É o preconceito odioso da supremacia da barbárie.
 
 Há anos nos tribunais brasileiros maridos que se julgavam vítimas de traição e executavam a mulher e o suposto amante, eram absolvidos com um argumento solerte de “legítima defesa da honra” e adultério era crime. A própria palavra adultério, em si, é uma aberração.
 
 Saiam aplaudidos ao final de seus julgamentos.
 
 Há uma verdade em qualquer canto do mundo sobre mulheres submetidas a sevicias, quaisquer que sejam elas. A cara machista da sociedade se apieda num primeiro momento e rotula como mulher vulgar num segundo momento.
 
Está no assédio, na vulgarização, nas práticas deliberadas de transformar coragem em terrorismo, loucura, histerismo, um monte de ismos. 
 
Numa cidade do interior mineiro, anos atrás, um comprador de cabelos para a indústria de perucas (era comum as mulheres não cortarem seus cabelos), assustou-se ao chegar a uma determinada residência onde compraria os cabelos das filhas de um lavrador com um detalhe que nunca poderia imaginar.
 
Eram três filhas e o pai iria vender o cabelo de apenas duas. Segundo ele, a terceira “já foi usada por um sem vergonha, o cabelo não presta”.
 
Não sei quantas mulheres tombaram na luta contra a ditadura. Aqui no Brasil, no Chile, na Argentina, nas Filipinas, na Indonésia, mas sei que muitas mulheres emprestaram dignidade e determinação à luta contra tiranos.
 
 
 
Entre nós a anistia na verdade não beneficiou a exilados, presos políticos e que tais. Como concebida e determinada em lei garantiu a impunidade de torturadores, estupradores, assassinos. Permanecem sob as sombras de sua covardia a destilar veneno. Foi conseqüência da percepção simples que os governos militares não iriam se sustentar por mais tempo, estavam sendo surrados nas urnas desde 1974 e para evitar derrotas maiores recorriam ao casuísmo da legislação autoritária que lhes garantia a maioria que não tinha.
 
 
 
Uma espécie de saída não tão devagar que pareça provocação, nem tão depressa que pareça medo. Mas saída. E aí, louve-se a capacidade de enxergar esse óbvio do presidente/ditador Ernesto Geisel. Mas registre-se o preço pago junto às hordas de assassinos dos DOI/CODI, a impunidade.
 
Dilma Roussef foi uma dessas resistentes. Como o seu adversário José Arruda Serra.
 
 Ao contrário de Arruda Serra foi presa, torturada, submetida a humilhações, cumpriu pena. Arruda Serra trocou de lado ao primeiro aceno do dinheiro. Veio pelas mãos de seu mentor FHC (entre os traidores, dedos duros, havia um esquema de patente também. Anselmo era cabo, FHC general).
 
É mulher, é mãe, é avó, como milhões de mulheres no País e sobreviveu e superou toda essa caminhada, suportou todas essas provações, manteve-se e mantém-se incólume, preservada em seu caráter, em sua dignidade de ser humano e ser humano mulher.
 
A despeito dos avanços e conquistas da mulher na chamada sociedade civil organizada (trem também que é de lascar, sociedade civil organizada, parece clube de aleluia, aleluia), o preconceito ainda é imenso e se manifesta das mais variadas formas.
 
Neste momento a candidata Dilma Roussef simboliza essa luta que no dizer de Celso Furtado “a revolução feminista foi a mais importante revolução do século XX”.
 
 A dela, de lutar pela presidência da República, a primeira a chegar ao cargo, a de mulheres que saem de suas casas ainda pela madrugada para jornadas de trabalho e se obrigam a lutar ombro a ombro numa tal sociedade que ainda se lhes vê como melancia, ou melão, ou pera.
 
Uma vez uma professora perguntou ao então deputado César Maia se ele sabia o preço do pão de sal. Ele respondeu que não. Ou da condução, do ônibus, ele respondeu que não.
 
A moça, perto de trinta anos de magistério, em sala de aula, salário miserável, mas caráter exemplar, dedicação absoluta, respondeu apenas o seguinte. “Pois deveria saber, afinal você é deputado, que não se vive sem pão e nem se vai ao trabalho sem ônibus”. “Será que você sabe o que é trabalho?”
 
Cada uma dessas afirmações recheadas da polidez do politicamente correto sobre Dilma e mulheres que não estão preocupadas em ser miss laje para aparecer no Faustão, traz em si, além do preconceito contra a mulher como ser humano, a arrogância das elites políticas e econômicas que enxergam apenas pernas, seios e bundas e acham que os cabelos de uma “mulher usada” já não servem.
 
O que a mídia privada tenta imputar a Dilma e deve reforçar esse tipo de canalhice no final da campanha é o que pensam da mulher brasileira. Objeto.
 
Mais que isso. Escondem, ou tentam disfarçar a prepotência na suposição que a tarefa de cada mulher é achar o desodorante certo para o banheiro.
 
São primatas na prática e na essência.

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