Superior Tribunal Militar acata pedido do
jornal e libera acesso ao arquivo. Quais serão as consequências da
divulgação das informações agora?
por Celso Marcondes, em CartaCapital
“STM libera processo da ditadura contra Dilma”: essa é manchete de
capa da edição desta quarta-feira 17 do jornal Folha de S.Paulo. A
matéria principal ocupa quase toda a página 4 e na abertura já
comemora: “advogada da Folha diz que resultado é vitória ‘de toda a sociedade’ ”.
Essa “vitória” que o jornal encampa em nosso nome começou a ser organizada em setembro deste ano, quando a Folha
protocolou mandado de segurança no Superior Tribunal Militar. Na
ocasião, ela argumentou que era direito de todos os brasileiros saber o
histórico da candidata antes que as urnas presidenciais fossem abertas.
No STM, o julgamento foi suspenso duas vezes, mas a Folha não se fez
de rogada, em 19 de outubro apelou para o Supremo Tribunal Federal, na
esperança de que ele determinasse a abertura dos arquivos antes da
realização do segundo turno. Relatora do caso, a ministra Cármem Lúcia,
devolveu o caso ao STM, que só agora, por 10 votos contra 1, liberou o
acesso do ávido jornal paulistano ao processo.
Na próxima semana será publicada a ata da sessão e a partir daí os
repórteres da Folha poderão se deliciar com a leitura de tudo o que os
ditadores e seus funcionários escreveram sobre nossa presidenta eleita
quando ela tinha cerca de 20 anos.
Até aqui, o que, em síntese, todos sabem, é que Dilma Rousseff
combateu a ditadura militar desde muito jovem. Militou numa organização
guerrilheira chamada Vanguarda Armada Revolucionária – Palmares, ficou
presa por mais de dois anos, foi torturada barbaramente e depois de
libertada retomou sua vida no Rio Grande do Sul.
Do meu ponto de vista, é o suficiente, não preciso saber mais. Fico
satisfeito em ter conhecimento que, mesmo usando de métodos que nunca
aprovei, ela teve a coragem de combater os terroristas que tomaram de
assalto o governo e o Estado brasileiro em 1964. Eram eles, como se
sabe, militares, apoiados e sustentados por civis, entre os quais
muitos empresários, inclusive da área de comunicação.
No entanto, para muita gente conhecer este resumo daquela fase da
vida de Dilma não bastou. Desde o momento em que ela foi cogitada como
candidata do presidente Lula, a internet foi dominada por uma onda de
mensagens que questionavam o currículo militante da candidata. Taxada
de cara como “terrorista” até uma ficha falsa foi montada, a descrever
os atentados, sequestros e assaltos a banco nos quais ela teria se
metido.
A mesma Folha, na época, foi o único jornal que embarcou na
história da suposta ficha e a publicou em primeira página, com os
devidos comentários desairosos. Sem ouvir antes a acusada. Revoltada,
Dilma reagiu, pediu direito de resposta, o jornal foi obrigado a lhe
dar espaço e a recuar na denúncia, reconhecendo que não tinha atestado a
autenticidade da peça montada não se sabe aonde, o que se constituiu
num dos episódios mais vergonhosos da história recente do jornal.
Porém, seus proprietários não pararam por aí e durante toda a
campanha eleitoral colocaram jornalistas para investigar este período
de sua vida. Não faltaram entrevistas com ex-companheiros de
militância, nem com ex-militares ou carcereiros que teriam tido contato
com Dilma nos anos 70. O que se buscava então era, digamos, algo mais
concreto no currículo da militante: teria participado de algum
sequestro ou assalto? Atirado ou matado alguém? Delatado companheiros?
Em nenhum momento, porém, qualquer jornalista, depois de muitas
entrevistas e pesquisas em outros arquivos que existem pelo País,
conseguiu qualquer prova de participações ou atos da jovem de 20 anos em
eventos semelhantes.
O que imaginavam os que pretendiam “conhecer melhor a história” da
candidata era que, se acusada concretamente de participação numa ação
violenta, haveria material de combustão suficiente para abalar sua
campanha eleitoral. Numa sociedade pronta para ser comovida por
campanhas conservadoras incentivadas por parte da grande mídia, é fácil
imaginar a repercussão que teria uma manchete do tipo “Dilma
participou de assalto que ocasionou morte de inocente”.
Esta manchete – ou similares – nunca chegou à televisão ou aos
grandes jornais, embora tenha frequentado à exaustão a internet.
Durante a campanha de José Serra, porém, cansamos de assistir a
insinuação: “no meu currículo não há manchas, nem zonas obscuras”, ele
dizia sempre, a deixar claro que o candidato “do bem” não tinha nada a
esconder, mas a “do mal” deveria ter.
Às vésperas da realização do segundo turno, a liminar da Folha de
S.Paulo endereçada ao STF gerou uma onda de rumores nas campanhas.
Esperava-se que uma “grande novidade” vinda da abertura do processo
causasse comoção suficiente para abalar a trajetória da candidata rumo à
vitória nas urnas. A sabedoria da ministra Cármem Lúcia, porém, tirou
do Supremo a responsabilidade pela decisão e inviabilizou o final da
história antes do pleito.
Dentro de alguns dias o caso terá seu desfecho. Todo o Brasil saberá
o que está escrito na ficha real de Dilma Vana Rousseff guardada no
cofre militar até aqui.
Saberemos finalmente se a presidenta eleita – não diplomada ainda -,
no auge dos seus 20 anos, participou ou não de assaltos, sequestros e
atentados. Conheceremos também como foi seu comportamento nas
masmorras.
Estará tudo lá, escrito, bonitinho, preto no branco, apenas marcado
pela ação do tempo. Com carimbos, assinaturas, rubricas e protocolos.
Também pareceres, fotos, recortes de jornais, talvez. Tudo com as
devidas chancelas de Humberto de Alencar Castelo Branco, Arthur da
Costa e Silva, Emílio Garrastazu Médici e Ernesto Geisel.
Os jornalistas da Folha devorarão avidamente as informações do
processo e nos brindarão com um resumo delas. Outros órgãos de
imprensa, como já fizeram no dia de hoje com a decisão do STM,
repercutirão tudo.
Aí então, uma parte dos brasileiros dirá: nada me toca, continuo a
admirar a coragem que a presidenta tinha aos seus 20 anos. Se ela de
fato participou de algum ato violento, seus algozes já a fizeram pagar
por isso. Mesmo assim, não reconheço nenhuma credibilidade nos arquivos
infectos e nos processos manchados de sangue dos generais que
escreveram o pior momento da nossa história. E credibilidade é matéria
prima da imprensa.
Porém, haverá quem vá dizer: não avisamos? Vocês elegeram uma terrorista.
O efeito que este debate irá causar ninguém sabe medir. È fato, porém, que a Folha comemora
hoje a “vitória de toda a sociedade”. Enquanto ela comemora, muitos
arquivos e processos continuam fechados. E torturadores e seus
mandantes caminham impunes por nossas ruas. Ou morrem de velhice.
* Celso Marcondes é jornalista, editor do site de CartaCapital e diretor de Planejamento da revistal.
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