O professor Ariovaldo Umbelino, em entrevista à IHU On-Line
defende a Reforma Agrária, pois, “o Brasil possui os maiores latifúndios
que a humanidade já registrou, ou seja, não há limite para o tamanho de
suas propriedades . É uma excrescência, do ponto de vista
internacional, um país ter propriedades privadas que são maiores do que
unidades federativas que possui, sem falar que algumas são ainda maiores
do que muitos países existentes no mundo. Então, é evidente que existe
uma questão fundiária e ela não está resolvida”.
Ariovaldo Umbelino é graduado em Geografia, pela Universidade de São
Paulo, onde também realizou o doutorado em Geografia Humana e obteve o
título de Livre Docência. Umbelino é professor e chefe do departamento
de Geografia da USP. Autor de A geografia das lutas no campo (São Paulo:
Contexto, 1996), entre outras obras, seu livro mais recente é Modo
Capitalista de produção, agricultura e Reforma Agrária (São Paulo:
FFLCU/LABUR EDIÇÕES, 2007).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Existe ainda, no Brasil, uma questão agrária? A Reforma Agrária ainda é uma necessidade?
Ariovaldo Umbelino – Ainda está em jogo o processo produtivo, de um
lado, e a questão da propriedade privada da terra, de outro. Se
analisarmos exclusivamente da ótica do processo produtivo, poderíamos
dizer que não há uma questão agrária no Brasil porque não é um país que
depende de importação de produção de alimento. A única exceção é o trigo
e, vez ou outra, são importados arroz e feijão. De qualquer forma, o
Brasil tem condições e vem produzindo excedentes exportáveis do ponto de
vista agrícola. Então, se eu analiso dessa perspectiva do processo
produtivo, não haveria uma questão agrária.
Mas, quando analiso a questão agrária, na perspectiva da formação da
propriedade privada da terra no Brasil, penso que ela existe sim, ou
seja, cerca de 1/5 das terras no Brasil foram cercadas por pessoas que
não têm documentos hábeis legais para deter o controle dessa propriedade
da terra. Isto quer dizer que uma parte dos que se dizem proprietários
não são de fato proprietários. Além disso, há um grande número, que
podemos classificar como posseiros, que, pela legislação brasileira, têm
direito à legitimação dessa área que ocuparam e que, por direito,
deveriam ter essa correção do ponto de vista da propriedade privada da
terra no Brasil. Mas as médias e grandes propriedades não têm esse
direito. Isso quer dizer que a questão fundiária não está resolvida.
Por outro lado, o Brasil possui os maiores latifúndios que a
humanidade já registrou, ou seja, não há limite para o tamanho das
propriedades do país. É uma excrescência, do ponto de vista
internacional, um país ter propriedades privadas que são maiores do que
unidades federativas que possui, sem falar que algumas são ainda maiores
do que muitos países existentes no mundo. Então, é evidente, como eu
disse, que existe uma questão fundiária ainda não resolvida.
Além disso, há a presença no país de movimentos sociais de luta por
acesso à terra. Simultaneamente à luta desses momentos sociais, há uma
parte do campesinato sem terra no Brasil que abre luta através da
abertura de novas posses. Portanto, existe uma questão agrária, a
questão fundiária não está resolvida, assim como um processo de luta. A
questão da Reforma Agrária é atualíssima e faz parte do processo de
diminuição da violência que existe no campo exatamente porque não está
resolvida.
IHU On-Line – Como o senhor vê o processo de Reforma Agrária atual?
Ariovaldo Umbelino – A Reforma Agrária hoje, do ponto de vista como
está posta no plano governamental, precisa ter dois pontos destacados. A
primeira é que o governo atual, no primeiro mandato, por pressão dos
movimentos, fez o segundo Plano Nacional de Reforma Agrária e se dispôs a
assentar, em quatro anos, 400 mil famílias e no quinto ano mais 140 mil
famílias. Isso daria, em cinco anos, portanto, 540 mil famílias.
Entretanto, o Incra não cumpriu essa meta, embora tenha divulgado que
fez assentamentos superiores a essa meta. Na realidade, os dados que o
Incra divulga são relativos à relação de beneficiários da Reforma
Agrária emitidas. Essas relações são emitidas tanto para os assentados
novos como são emitidas para a regularização fundiária e reconhecimento
de assentamentos antigos para que as famílias tenham acesso ao Pronaf.
Além disso, nessa relação, também estão inclusas as emissões feitas aos
quilombolas, as demarcações de terras extrativistas, os reassentamentos
de atingidos por barragens. Tanto a regularização fundiária quanto a
reorganização fundiária e os reassentamentos não são Reforma Agrária.
Reforma Agrária é aquele ato em que o Incra desapropria terras ou usa
terras públicas disponíveis e faz assentamentos novos. Isto é Reforma
Agrária, e o Incra não faz essa separação, e sim junta todos os dados e
divulga um número que não condiz com a realidade. Se fôssemos fazer a
desagregação desses dados que o Incra divulga, apenas 180 mil famílias
de fato foram assentadas em processo de Reforma Agrária. O que estou
querendo dizer é que o governo atual não fez a Reforma Agrária que
prometeu. Ao mesmo tempo, estamos diante de um processo em que o governo
não manifestou qualquer disposição de fazer um terceiro plano nacional
de Reforma Agrária. Resta, evidentemente, aos movimentos sociais, ação e
política de pressão para que o governo retome esse processo. Inclusive,
o governo atual foi mais ainda adiante: ele não só não fez a Reforma
Agrária como passou a privilegiar a regularização fundiária, ou seja, a
concessão de terra aos grileiros na Amazônia Legal. Um contra-senso a
todo programa político elaborado no âmbito do Partido dos Trabalhadores,
que nunca defendeu a concessão de terras aos grileiros.
IHU On-Line – Como esse processo deveria acontecer para que o problema de distribuição de terras fosse sanado?
Ariovaldo Umbelino – A Constituição Brasileira é clara, límpida. A
propriedade privada à terra está subordinada a sua função social. Isto
quer dizer o seguinte: a propriedade privada da terra não é uma
propriedade como outra qualquer. Quando uma pessoa tem um automóvel,
pode deixá-lo na garagem da sua casa apodrecendo e ninguém poderá falar
nada. É um direito dele, que tem o direito absoluto sobre aquela
propriedade. Evidentemente, desde que não esteja atrapalhando terceiros.
Com relação à propriedade privada da terra não, pois não é uma
propriedade absoluta. Ou seja, está submetida ao seu uso produtivo e ao
fato de essa produção seja feita respeitando as leis trabalhistas e as
leis ambientais, e não se produza produtos interessando os tóxicos que
estão definidos na Constituição como situação em que a propriedade não
cumpriria a sua função social. Nós temos no Brasil hoje, do ponto de
vista das grandes propriedades, 120 milhões de hectares de grandes
propriedades, as quais, no cadastro do Incra, já estão identificadas
como improdutivas, ou seja, que não cumprem a sua função social. Qual é a
obrigação constitucional do Incra? Desapropriá-las e destiná-las à
Reforma Agrária, para que cumpram sua função social.
Ao mesmo tempo, há, no Brasil, cerca de 250 milhões de hectares de
terras apropriadas indevidamente. No Rio Grande do Sul, praticamente
metade do município de Bagé, por exemplo, está nas mãos de pessoas que
não têm documentos. Isso está registrado porque os próprios
proprietários declararam. Há, no Rio Grande do Sul, cerca de seis
milhões de hectares de terras devolutas, ou seja, aqueles que controlam
não têm documentos sobre elas. A função do estado é fazer com que o
preceito constitucional da função social da propriedade privada da terra
seja cumprido. É evidente que é função do estado promover a
redistribuição dessas terras através de programas de Reforma Agrária.
IHU On-Line – Como o senhor vê a atuação do MST, atualmente?
Ariovaldo Umbelino – O MST, como movimento social de luta pela
Reforma Agrária e pelo acesso à terra, educação, saúde e tudo aquilo que
qualquer cidadão por direito deveria ter, responde aos seus objetivos.
Se existe Reforma Agrária no Brasil, ela foi fruto dessa luta histórica
nesses 25 anos de existência do MST. Este é um movimento social de
importância política no Brasil porque forçou o Estado a colocar na
agenda política a realização da Reforma Agrária. Então, ele tem a sua
importância de natureza política porque cobra que o direito que aqueles
que não têm terra se faça no âmbito do Estado. Portanto, trata-se de um
movimento social de grande importância para o processo de democratização
do acesso à terra e da própria propriedade privada de terra no Brasil.
IHU On-Line – Que análise o senhor faz das experiências de assentamentos criadas pela política de Reforma Agrária?
Ariovaldo Umbelino – Em primeiro lugar, é preciso dizer que uma
política de Reforma Agrária tem dois pilares principais: o primeiro
pilar é aquele relativo ao acesso à terra, que nós chamamos de política
fundiária, ou seja, se criar as condições para que haja acesso à terra,
sobretudo às terras de qualidade e, evidentemente, que isso não
aconteceu, de maneira geral, no Brasil, porque, via de regra, os
assentamentos foram feitos em áreas distantes, em solos não propícios. O
segundo é o resultado econômico. Do ponto de vista da Reforma Agrária, a
grande maioria desses assentados saiu de uma condição para uma condição
de pelo menos ter acesso à produção de alimentos. Desse ponto de vista,
a Reforma Agrária cumpre a sua função social. Ela só não é mais
progressista porque a política agrícola realizada pelos diferentes
governos não tem permitido.
IHU On-Line – O governo Lula anunciou nesta semana uma ajuda
financeira significativa para o agronegócio. De que forma o senhor
analisa essa decisão?
Ariovaldo Umbelino – Eu analiso de forma como a realidade indica, ou
seja, o governo atual, do presidente Lula, fez a preferência pelo
agronegócio. Assim, ele não fez a opção preferencial pela Reforma
Agrária ou pelos movimentos sociais. Por isso, continua fazendo
concessões de recursos financeiros públicos para esse setor, que tem
sido contemplado com fatias expressivas do orçamento. O governo atual
continua realizando a sua política de apoio ao agronegócio, que, no meu
ponto de vista, pode colocar o país, mais cedo ou mais tarde, dentro da
questão da insegurança alimentar. Isso porque, do total da famosa safra
de grãos, vamos verificar que 80% ou pouco mais é produção de soja e
milho, que não são produzidos para serem consumidos no Brasil, mas sim
para exportar. Enquanto isso, a produção de arroz, feijão e trigo no
Brasil não cresce desde 1992. O que mostra que a sociedade brasileira
está comendo a safra que está sendo plantada e colhida. Isso é um risco
muito grande, ou seja, se perder a soberania alimentar no nosso país.
Evidente que essa política atual é uma suicida.
Eu gostaria de retomar a questão central que envolve o debate da
Reforma Agrária, que é o fato de que 1/5 das terras do Brasil não
pertencem aqueles que a cercaram. Em geral, são esses que estão em
terras que não lhes pertence, do ponto de vista legal, e que, no
entanto, se agarram ao direito de fazer críticas às ações dos movimentos
sociais, que não têm por parte do governo atual o cumprimento das ações
da Reforma Agrária. Então, é preciso que a sociedade brasileira tenha
consciência de que a Reforma Agrária é necessária e só ela irá garantir
ao país a produção de alimentos em quantidades, de modo a que nós
tenhamos, simultaneamente, segurança e soberania alimentar. Além disso, é
com a Reforma Agrária que os países desenvolvidos conseguiram chegar às
condições de soberania alimentar. É evidente que o Brasil tem uma
estrutura fundiária altamente concentrada nas mãos das elites que
controlam terras que não lhes pertence, o que é um contra-senso e uma
ilegalidade denunciados pelos movimentos sociais.
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