Ex-soldados
relatam as “Operações Limpeza” a fim de esconder os corpos dos
guerrilheiros assassinados durante a repressão à Guerrilha do Araguaia
Por Tatiana Merlino, de Marabá (PA) e Brasília (DF)
Numa noite de 1976, Valdim chegou à base militar de Bacaba dirigindo a
picape rural. Ele não desceu do carro, mas viu quando colocaram na
carroceria um saco verde de lona grossa do Exército. A ordem era não
perguntar nada. Mas o odor que vinha do saco o incomodou durante todo o
trajeto até a Casa Azul, como era conhecida a sede do Departamento
Nacional de Estradas de Rodagem, o DNER. “Foi horrível, era um fedor
enorme, me deu até vontade de jogar fora”. A base
militar de Bacaba localizava-se no município de São Domingos do
Araguaia, e o DNER, em Marabá, ambos no Pará. Eram locais de prisão,
repressão e tortura à Guerrilha do Araguaia (1972-1975).
A mesma viagem de transporte dos sacos verdes de lona foi repetida
outras duas vezes por Valdim Pereira de Souza, que trabalhava como
motorista do Exército. Em nenhuma delas ele carregou os sacos, e em cada
viagem seu acompanhante era diferente. Quando chegava à Casa Azul, a
sede do DNER, famosa como local de torturas e execuções, os sacos de
lona eram retirados por funcionários – era preciso duas pessoas para
carregá-los.
Um dia, o funcionário do DNER, de apelido “Pé na Cova”, contou-lhe
que dentro dos sacos havia ossos humanos e que ele os teria levado de
barco até a região conhecida como “inflamável”, a parte mais funda do
rio Tocantins, perto de Marabá.
O ex-militar conta, também, que o tenente-coronel da reserva
Sebastião Rodrigues de Moura, o major Curió, apontado como um dos
comandantes das operações no Araguaia, de quem foi motorista de 1976 a
1983, participou do transporte de um dos sacos. Na ocasião, teria dito:
“Você não viu nada, fique cego e fique mudo”.
Em 1976, quando Valdim carregou sacos, a guerrilha já havia sido
vencida – as tropas militares se retiraram oficialmente em janeiro de
1975. A movimentação de ossos fazia parte de uma das operações limpeza,
que consistiam na retirada de restos mortais dos abatidos para
dificultar uma eventual busca pelos corpos. Anos depois o Exército ainda
negava a existência da guerrilha – que mobilizou 6 mil militares – e
depois procurou soterrar vestígios de execuções, mortes sob tortura, decapitações e assassinatos em operações clandestinas.
Essas operações sucessivas de “pente fino”
foram realizadas de forma clandestina, por oficiais à paisana. Valdim
lembra que demorou a saber que aquele “doutor Luchini” de cabelos
compridos e barbudo era o major Curió. Ele conta que andava com outros
“doutores”, sem saber quem era civil ou militar. Um deles, o “doutor
Carlos”, ele diz ter reconhecido depois, em 1985, quando o viu na
televisão ao se tornar chefe da Polícia Federal. “Era o Romeu Tuma, que
chamávamos de cara de cavalo. “Ele estava sempre por lá”, garante.
Valdim relatou os fatos ocorrido há 35 anos, apenas
em maio de 2010, ao Grupo de Trabalho Tocantins (GTT) – agora, Grupo de
Trabalho do Araguaia (GTA). Como ele, outros ex-militares e ex-mateiros
que participaram da Operação Limpeza são ouvidos pelo GTA com objetivo
de localizar o derradeiro paradeiro dos corpos em determinação à
sentença da juíza Solange Salgado, da 1ª Vara Federal.
RESTOS DA GUERRILHA
As informações de Valdim, sobre o transporte de ossos em 1976, também
se encaixam com depoimentos colhidos pela juíza Solange Salgado (veja
entrevista), sobre uma das primeiras Operações Limpeza, em que militares
disfarçados de familiares desenterraram ossadas na região. Mas ele
também fala de uma Operação Limpeza, voltada para os vivos – os “restos
da guerrilha, aquele pessoal que falava muito e ajudava os
guerrilheiros”. “Muitos morreram misteriosamente”, diz. Não é o único. O
ex-soldado Manoel Messias Guido Ribeiro, diz ter atuado em uma dessas
operações, em 1975. Segundo ele, uma das estratégias do Exército para as
capturas era promover festas “para juntar o povão. Muita gente ia e era
identificada”.
Também há registros de operações “limpeza” em data muito posterior ao
período da guerrilha. A pesquisadora Myrian Luiz Alves ouviu
depoimentos de um ex-guia de que militares disfarçados retiraram restos
mortais na segunda metade dos anos 1990. O livro “Habeas Corpus – Que se
apresente o corpo”, da Secretaria dos Direitos Humanos, cita um
relatório realizado pelo ex-ministro da Defesa, José Viegas Filho, que
faz referência a “haver ocorrido, entre 1988 e 1993, a denominada
‘Operação Limpeza’. [...] Segundo depoimentos, as ossadas, após terem
sido retiradas de suas covas, foram submetidas a ácidos e queimadas. Os
fragmentos restantes teriam sido enterrados em local incerto ou jogados
nos rios da região [...]”.
O livro conclui: “a multiplicidade de datas deixa transparecer que pode ter havido mais de uma ‘Operação Limpeza’”.
INDENIZAÇÕES
Os ex-soldados Valdim e Guido estão entre os que reivindicam, na
Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, indenizações pelas
torturas, prisões e prejuízos que teriam sofrido na época da guerrilha.
Ambos relatam que passaram por treinamentos duros, sob a alegação que
teriam que estar preparados para enfrentar os guerrilheiros. “O que era
para aplicar nos guerrilheiros aplicavam primeiro em nós. Me lembro de
coisas como ser jogado em um buraco pequeno junto com outros soldados
despidos, e aí passavam uma palha com fogo queimando por cima. Faziam a
gente beber lama, sangue. Bebi muito sangue de porco, de galinha. E se
chorasse, era porque era mariquinha”, recorda Guido, que serviu na base
de Xambioá. Os soldados também eram jogados em formigueiros para
aprender a não sentir dor e colocados na “cruz”. “Amarravam os braços e
pernas e ficávamos crucificados, pendurados, feito Jesus”, conta Valdim.
Na região de Marabá, os moradores e ex-soldados comentam a história do
soldado Messias, que após os treinamentos ficou louco e passou a matar
animais para beber seu sangue.
Os ex-soldados também alegam sofrer ameaças, relatadas em audiência
na Secretaria dos Direitos Humanos, em Brasília, em maio passado. “Meus
filhos já se formaram, estão empregados. Agora eu posso falar, se me
matarem não vou deixar ninguém passando fome. Há um lado da sociedade
que quer descobrir tudo, e o outro quer encobrir tudo. E nós estamos no
meio desses caras”, diz Valdim. Ele acredita que dentro do Exército
“ninguém quer falar nada, até porque eles não vão admitir que o quartel
foi um lugar de tortura”.
Até sobre o tipo de tortura usado nos quartéis pairam dúvidas. Uma
das suspeitas é que alguns dos guerrilheiros tenham recebido injeções
letais. O livro “Habeas Corpus” cita uma das expedições do GTT na qual
esteve presente o ex-sargento João Santa Cruz Sacramento, participante
da repressão à guerrilha, que informou estar certo de que duas
militantes, Chica (Suely Nakasawa) e Tuca (Luiza Garlippe) foram mortas
com injeção e sepultadas ao lado do campo de pouso da base militar de
Bacaba.
Outro possível indício do uso da injeção seria o fato de que, durante
a Operação Limpeza, a cova de Chica teria sido aberta e seu corpo
encontrado intato, sem nenhum sinal de decomposição, apenas marcas de
bala, de acordo com depoimento do coronel-aviador Pedro Corrêa Cabral,
citado no relatório da pesquisadora Myriam Luiz Alves, que consta do
processo do Araguaia examinado pela Pública.
Por Tatiana Merlino, de Marabá (PA) e Brasília (DF)
Um comentário:
Turquinho, amigo, grande matéria. Se não revemos nossa história, a vida não se afirma num caminho de superação definitiva do fascismo. Araguaia, lá as histórias são dantescas, Abraços com carinho, jorge
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