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quinta-feira, 5 de abril de 2012

Militares ameaçam jovens que protestaram contra comemoração do golpe de 1964


Site de coronel da reserva exibe vídeo e troca informações sobre jovens que participaram de protesto no Rio de Janeiro | Arte: Ramiro Furquim/Sul21

Samir Oliveira no SUL21

Cinco jovens do Rio de Janeiro que protestaram contra a comemoração do golpe de 1964 feita por militares da reserva no dia 29 de março estão sendo ameaçados e tendo suas vidas expostas. O site A Verdade Sufocada, mantido pelo coronel da reserva Carlos Alberto Brilhante Ustra, publicou fotos com o nome de cinco manifestantes e os locais onde eles trabalham. A ira da caserna recaiu com mais força sobre Luiz Felipe Garcez, que foi flagrado numa fotografia cuspindo no coronel-aviador Juarez Gomes enquanto ele deixava o Clube Militar no Rio de Janeiro.
O site de Ustra, ex-comandante do DOI-CODI de São Paulo e torturador reconhecido pela Justiça, informa o e-mail e os perfis no Twitter e no Facebook de Luiz Felipe. Os dados se espalharam por sites e blogs mantidos por militares, que estão postando diversas ameaças aos cinco jovens pela internet.
No blog do coronel da reserva Lício Maciel – que participou da repressão à Guerrilha do Araguaia – há um vídeo de 3 minutos, que já foi retirado do YouTube, com o título de “maloqueiros alucinados”, em referência aos manifestantes. Os jovens são tratados o tempo inteiro como criminosos e agressores de idosos e os militares fazem questão de expor informações sobre eles.
No post que exibe o vídeo, o comentário de um sujeito identificado como Eduardo Cruz demonstra que a vida desses cinco jovens – especialmente a de Luiz Felipe – foi investigada. “Após um levantamento preliminar, obtive algumas informações importantes sobre o covarde que agrediu aquele senhor idoso no dia 29. O nome completo do meliante é Luiz Felipe Monteiro Garcez, vulgarmente conhecido como Pato, estudante do curso de Produção Cultural do IFRJ (Instituto Federal do Rio de Janeiro) desde 2010. Tem 25 anos de idade, frequenta o Diretório Estadual do PT no Rio de Janeiro e não trabalha”, escreveu o comentarista, que fornece informações dos empregos que o jovem já teve.
Eduardo Cruz vai além em seu comentário no blog de Lício Maciel. Ele dá informações sobre a família de Luiz Felipe e ainda faz juízo de valor sobre sua criação. O comentarista cita o nome da “namoradinha” de Luiz Felipe, informa que ele tem uma filha, publica o nome dos pais do jovem e ainda comenta que eles “visivelmente falharam na educação do moleque”.
Site mantido por Carlos Alberto Brilhante Ustra instiga militares a procurarem informações sobre jovens que participaram do protesto | Foto: Brasil247

Eduardo Cruz finaliza o comentário dizendo que “por enquanto é isso” e assegurando que irá prosseguir com a “averiguação” e que voltará “em breve com informações sobre os outros agressores presentes naquele episódio”.
Nesse mesmo post do blog do coronel Lício Maciel há um link para uma pasta no site de compartilhamentos 4Shared com informações sobre a vida de Luiz Felipe Garcez. São exibidas fotos dele, de sua mulher e até de sua filha. Uma das imagens mostra o jovem com a filha recém-nascida no colo, com as devidas identificações.

“Não podemos nos permitir ter medo”, diz jovem ameaçado

Em conversa por telefone com o Sul21, Luiz Felipe Garcez conta que já recebeu mais de 150 ameaças por Facebook e por e-mail. Ele assegura que o vídeo feito com informações sobre sua vida, de seus amigos e de sua família – que chegou a ter mais de 11 mil acessos até ser retirado do ar – foi produzido por um jovem “infiltrado” no protesto do dia 29 de março e diz que vai entrar com processos judiciais contra as pessoas que estão expondo sua vida. “Estamos tomando medidas preventivas, documentando as ameaças e vamos entrar com um  processo por incitação ao ódio. Não podemos ter medo, senão vão entender que esse tipo de intimidação funciona”, comenta.
Pasta criada em site de compartilhamento exibe fotos e informações de Luiz Felipe e da sua família | Arte: Ramiro Furquim/Sul21

Ele acredita que os ataques venham de grupos organizados de extrema direita – com a presença ou não de militares. “São grupos organizados politicamente que podem ter militares da ativa. Mas não é a instituição Exército que está nos atacando, são fascistas que se organizam internamente”, explica.
Luiz Felipe garante que continuará denunciando os abusos e não se intimidará com as ameaças. “Sabemos que é isso que eles fazem, não podemos esperar nenhum tipo de reação diferente. São filhotes de uma ditadura que matou, perseguiu e torturou, ainda tem muita gente que acredita nisso. Muitos dos que eles mataram deram a vida para que pudéssemos estar hoje protestando. Não podemos nos permitir ter medo”, defende.
Outro manifestante exposto por Ustra, Rodrigo Mondego, também conversou por telefone com o Sul21 e disse que também vem sofrendo ameaças. “Se identificam como militares e nos ameaçam de morte. Entramos em contato com o ouvidor da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, com a Defensoria Pública do Rio de Janeiro, com a OAB-RJ e vamos conversar também com Ministério Público Federal”, avisa.
Rodrigo explica que o principal objetivo é retirar a exposição de seus dados e dos seus amigos dos sites dos militares. “Podemos ver que vários blogs de militares nos citam, basta colocar nossos nomes no Google”, lamenta.
Ele acredita que há policiais da PM do Rio de Janeiro atuando para ajudar na apuração de informações sobre sua vida e a dos outros jovens expostos. E lembra que havia diversos agentes disfarçados da P2 – o setor de investigações da Polícia Militar carioca – durante a manifestação contra a comemoração do golpe no dia 29 de março. “Eles são organizados e muita gente simpatiza com a lógica da ditadura. As ameaças são virtuais, mas vindo de onde estão vindo, tememos que se transformem em realidade”, considera.
Rodrigo diz que está tomando precauções quanto à sua segurança e admite que as ameaças afetam o seu cotidiano. “A tortura psicológica está funcionando”, desabafa.
Dentre as centenas de pessoas que participaram do protesto no dia 29 de março, apenas cinco jovens foram expostos por Ustra. Rodrigo Mondego acredita que foram escolhidos por estarem envolvidos na organização do ato, além de serem todos amigos de Luiz Felipe Garcez. Além disso, todos militam na juventude do PT do Rio de Janeiro.

segunda-feira, 2 de abril de 2012

Retorno àqueles dias “mal-ditos”

Jean Wyllys

Jornalista e linguista, é deputado federal pelo PSOL-RJ e integrante da frente parlamentar em defesa dos direitos LGBT. CARTA CAPITAL
A verdade sobre os porões de tortura, vôos da morte, assassinatos e sequestros para conter a resistência é certamente terrível, mas necessária. Temos direito a ela! Foto: Ag. O Globo

Eu nasci em 1974, quando o Brasil estava sob a ditadura do general Ernesto Geisel. Nasci na periferia miserável de Alagoinhas, cidade do interior da Bahia.
Quando me entendi por gente, lá pelos anos 1980, a ditadura ainda vigorava, mas lá, por aquelas bandas, não se fala em ditadura. Meus pais, meus tios e meus vizinhos – aquelas pessoas pobres em luta apenas pelo pão de cada dia – não falavam em ditadura.
E aquele comunicado da censura oficial que antecipava cada programa de tevê que eu via pela janela do único vizinho com aparelho em casa, aquele comunicado nada significava além de um alerta inócuo para mim e para os demais.
Só anos depois, já no final do ensino fundamental, pude perceber, pelos livros da biblioteca da casa paroquial (“Brasil: nunca mais”, o principal deles) que nós fazíamos parte da pátria mãe que dormia distraída enquanto era subtraída em “tenebrosas transações”, para citar Chico Buarque.
Aliás, por falar em Chico Buarque, a trilha sonora oficial daqueles “anos de chumbo” – que inclui, além de Buarque, Geraldo Vandré, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Gal Costa, Torquato Neto, Elis Regina e etc. – não era ouvida naquelas bandas.
O que se tocava nas poucas radiolas, autofalantes da “feira do pau” e na Rádio Emissora de Alagoinhas, eram artistas como Nelson Ned, Odair José, Agnaldo Timóteo, Paulo Sérgio, Cláudia Barroso, Waldick Soriano e Fernando Mendes, além, claro, de Roberto Carlos.
As verdades da ditadura – a censura, os conflitos, as torturas, os assassinatos, os exílios – não chegavam até nós, da mesma maneira que nossa verdade naqueles anos era – e é – ignorada pelos envolvidos na resistência à ditadura e responsável em parte pela construção da memória daquele período.
A memória é uma construção social e, sendo assim, pode cristalizar determinados aspectos de um tempo, em detrimento de outros que poderiam e podem ser muito importantes para se pensar o quadro político-social vigente naqueles anos (afinal, a visão de mundo das camadas populares, colocadas à margem do centro de decisão política, deve ter algo a nos dizer sobre a ditadura: elas não sabiam ou não queriam saber, ou tinham medo de saber ou eram simplesmente ignoradas em sua invisibilidade e subalternidade? Sabemos hoje que, durante a ditadura, o perigo rondava o conhecimento, e que, por isso, muitos oscilavam entre saber e esquecer).
Ora, o historiador francês Jacques Le Goff, afirma que é preciso interrogar-se sobre os esquecimentos.  “Devemos fazer o inventário dos arquivos do silêncio, e fazer a história a partir dos documentos e das ausências de documentos”.
Até onde se sabe, não existem documentos que recupere a memória do tratamento que os líderes dos movimentos revolucionários davam aos homossexuais (em especial às mulheres lésbicas) seja em seus “aparelhos”, seja nas prisões. Sendo assim, devemos trabalhar a partir dessa ausência e do silêncio sobre em torno desse assunto. Há muito para se dizer sobre aqueles dias “mal-ditos”.
A eleição da presidenta Dilma Rousseff – ela mesma uma vítima direta dos crimes da ditadura militar e agente da resistência ao terrorismo de estado praticado naqueles anos – abre um capítulo para a memória, que não consiste apenas em estabelecer uma verdade historiográfica daqueles crimes.
Tanto a verdade historiográfica quanto a temporada de julgamos que esperamos que se suceda à historiografia pressupõem uma construção de significados em um prazo longo (e não podemos ser ingênuos em acreditar que essa construção não resultará em conflito ideológico e de valor – vejam, por exemplos, a tagarelice do deputado e ex-militar Jair Bolsonaro, defendendo que se gozava de liberdade no período da ditadura; a ação de militares contra uma recente novela do SBT que tratou superficialmente daqueles dias “mal-ditos”; e o manifesto contrário à Comissão Nacional da Verdade assinado por mais de cem militares da reserva e seguido pela arrogante declaração do secretário-geral do Exército questionando a veracidade das torturas de que foi vítima a presidenta Dilma).
A verdade – ou verdades – sobre os porões de tortura, vôos da morte, assassinatos, sequestros, a desumanidade dos métodos dos repressores para conter a resistência é certamente terrível, sobretudo para quem sobreviveu aos fatos. Mas é necessária. Eu tenho direito a ela! Minha geração e as que vieram depois têm direito a ela!
A Comissão da Verdade, liberada do imediatismo dos fatos, poderá nos oferecer uma narrativa não unificadora, porque esta não seria desejável. Esperamos que todos os que escreveram aquelas páginas infelizes e sobreviveram a esse ponto de resgatá-las sejam ouvidos pela Comissão da Verdade.
Por isso, para garantir a lisura dos trabalhos da mesma e auxiliá-la ao mesmo tempo, um grupo de deputados da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara – do qual faço parte – decidiu instituir uma Subcomissão Parlamentar da Memória, Verdade e Justiça  que conta com  o coordenação da deputada Luiza Erundina. Assim que se noticiou a existência dessa subcomissão, chegou, ao meu gabinete, um exemplar do calhamaço “A verdade sufocada – a história que a esquerda não quer que o Brasil conheça”, escrito pelo coronel reformado Carlos Alberto Brilhante Ustra.
E eu já o li (criticamente, claro). Sabemos que tanto a Comissão Nacional da Verdade quanto a nossa subcomissão parlamentar não poderão reconstruir tudo, mas a utopia de tudo saber a respeito daquelas páginas infelizes de nossa história deve servir como um programa, um horizonte e uma advertência para o futuro.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Uganda discute trocar pena de morte por prisão perpétua a homossexuais



A minuta da lei será submetida à apuração dos deputados e, se autorizada pelo comitê de Assuntos Legais, poderá ser transformada em lei | Foto: Flickr/James Akena

Da Redação do SUL21

A imprensa ugandense informou nesta quarta-feira (8), que a polêmica lei anti-homossexuais, proposta por um deputado em 2009, será revisada no Parlamento do país e poderá ser remodelada. Em lugar da pena de morte, o parlamento poderá aprovar a prisão perpétua para casos de “comportamento homossexual”.
“Se for aprovada, representará um duro golpe aos direitos humanos de todos os ugandenses de qualquer orientação sexual”, disse, em comunicado, Michelle Kagari, da divisão africana da Anistia Internacional. “É alarmante e decepcionante que o Parlamento de Uganda debata a minuta outra vez. Queremos que a proposta seja rejeitada em sua totalidade. Não devemos legislar sobre o ódio”, acrescenta.
O advogado especializado em direitos humanos Ladislus Rwakafuzi, considerou ilegal que o novo Parlamento herde a proposta anterior e pediu a rejeição da minuta “através de qualquer meio possível”.
Um deputado disse que seus colegas do Parlamento apoiariam o texto para “proteger as crianças dos homossexuais, pois eles as recrutam nas escolas”. Já o autor do documento, o deputado ugandense David Bahati, membro do governante Movimento de Resistência Nacional, defendeu em muitas ocasiões a pena de morte para as atividades que considera como “homossexualidade grave”.
O texto tem como objetivo endurecer as penas contra quem mantiver relações homossexuais, apesar disto já ser considerado crime pelo Código Penal Local.
O Projeto de Lei foi apresentado em 2009, mas, devido às inúmeras críticas de grupos defensores dos direitos humanos, ativistas e outros chefes de governo africanos, foi arquivado e não voltou a ser discutido até o início de 2011.

Com informações do Opera Mundi

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Vitória da truculência. O jornal JÁ fechou


Por Luiz Cláudio Cunha no SUL21

O ex-governador gaúcho Germano Rigotto e sua família, enfim, conseguiram: o , um bravo e pequeno mensário de 5 mil exemplares e 26 anos de vida em Porto Alegre (RS), fechou as portas. Sucumbiu aos dez anos de uma longa, pertinaz perseguição judicial movida pelos Rigotto, que asfixiaram financeiramente um jornal de resistência que chegou a ter 22 profissionais numa redação que hoje se resume a dois jornalistas.
A nota de falecimento do jornal foi dada por seu editor, Elmar Bones da Costa, em amarga entrevista concedida (em 16/1) aos repórteres Felipe Prestes e Samir Oliveira, do site Sul21 (ver aqui). “O caminho natural seria que eu tivesse feito um acordo. Teria resolvido isso e até voltado ao mercado. Mas, eu não tinha feito nada de errado. Fazer um acordo com Rigotto seria trair os próprios princípios do jornal”, explicou Bones, sempre altivo aos 67 anos, com passagens por grandes órgãos da imprensa brasileira (Veja, IstoÉ, O Estado de S.Paulo e Gazeta Mercantil) e pelo comando do CooJornal, o heroico mensário da pioneira Cooperativa dos Jornalistas de Porto Alegre. Na ditadura, Bones enfrentou o cerco implacável da censura e dos militares ao jornal alternativo que incomodava o regime. Na democracia, Bones não resistiu ao assédio sufocante das ações judiciais de Rigotto incomodado pelo bom jornalismo.
Generais e políticos, nos governos de exceção ou nos Estados de Direito, são exatamente iguais quando confrontados com as verdades incômodas que sustentam e justificam a boa imprensa. O ousou fazer isso, em plena democracia, contando a história da maior fraude com dinheiro público na história do Rio Grande do Sul, que carregava nos ombros o sobrenome ilustre de Germano Rigotto. O seu irmão mais esperto, Lindomar, é o principal implicado entre as 22 pessoas e as 11 empresas denunciadas pelo Ministério Público e arroladas em 1995 pela CPI da Assembleia Legislativa gaúcha que investigou uma falcatrua na construção de 11 subestações da Companhia Estadual de Energia Elétrica (CEEE).

O choque de Dilma

Na época, foi um rombo de US$ 65 milhões, que em valores corrigidos correspondem hoje a R$ 840 milhões – mais de 15 vezes o valor do mensalão do governo Lula, o triplo dos desvios atribuídos ao clã Maluf em São Paulo, 21 vezes maior do que o escândalo do Detran que triscou a governadora Yeda Crusius com uma ameaça de impeachment. Em março de 1987, Lindomar Rigotto ganhou na estatal o posto de “assistente da diretoria financeira”, um cargo especialmente criado para acomodar o irmão de Germano. “Era um pleito político da base do PMDB em Caxias do Sul”, confessou na CPI o secretário de Minas e Energia da época, Alcides Saldanha. O líder do governo de Pedro Simon na Assembleia e chefe da base serrana era o deputado caxiense Germano Rigotto.Mais explícito, um assessor de Saldanha reforçou a paternidade ao jornal de Bones: “Houve resistência ao seu nome [Lindomar], mas o irmão [Germano] exigiu”.
Treze pessoas ouvidas pela CPI apontaram Lindomar como “o verdadeiro gerente das negociações” com os dois consórcios, agilizando em apenas oito dias a burocracia que se arrastava havia meses. Uma investigação da área técnica da CEEE percebeu que havia problemas na papelada – documentos adulterados, folhas numeradas a lápis, licitação sem laudo técnico provando a necessidade da obra. Em fins de 1989, Lindomar decidiu sair para cuidar da “iniciativa privada”, comandando com o irmão Julius a trepidante Ibiza Club, uma rede de quatro casas noturnas no Rio Grande e Santa Catarina. A sindicância interna na CEEE recomendou a revisão dos contratos, mas nada foi feito.
A recomendação chegou ao governo seguinte, o de Alceu Collares, e à sucessora de Saldanha na secretaria de Minas e Energia, uma economista chamada Dilma Rousseff. “Eu nunca tinha visto nada igual”, diria Dilma, eletrificada com o que leu, pouco depois de botar o dedo na tomada e pedir uma nova investigação. Ela não falou mais no assunto porque, em nome da santa governabilidade, o PDT de Collares precisava dos votos do PMDB de Rigotto para aprovar seus pleitos na Assembleia. Mesmo assim, antes de deixar a secretaria, em dezembro de 1994, Dilma Rousseff teve o cuidado de encaminhar o resultado da sindicância para a Contadoria e Auditoria Geral do Estado (CAGE), que passou a rastrear as fagulhas da CEEE com auditores do Tribunal de Contas do Estado (TCE) e do Ministério Público.

O primo sem perdão

O então deputado estadual Vieira da Cunha, do PDT do governador Collares e da secretária Dilma, hoje deputado federal e forte candidato a ministro do Trabalho da presidente Dilma, propôs em 1995 a CPI que jogaria mais luzes sobre a fraude na CEEE. Vinte e cinco auditores quebraram sigilos bancários, fiscais e patrimoniais dos envolvidos. Em 13 depoimentos, Lindomar Rigotto foi apontado como a figura central do esquema, acusação reforçada pelo chefe dele na CEEE, o diretor-financeiro Silvino Marcon. A CPI constatou que os vencedores, gerenciados por Rigotto, apresentaram propostas “em combinação e, talvez, até ao mesmo tempo e pelas mesmas pessoas”.
A quebra do sigilo bancário de Lindomar revelou um crédito em sua conta de R$ 1,17 milhão, de fonte não esclarecida. O relatório final da CPI caiu nas mãos de outro caxiense, que não poupou ninguém, apesar do parentesco. O petista Pepe Vargas, que foi prefeito de Caxias do Sul e hoje é deputado federal pelo PT, é primo de Lindomar e Germano Vargas Rigotto. “De tudo o que se apurou, tem-se como comprovada a prática de corrupção passiva e enriquecimento ilícito de Lindomar Vargas Rigotto”, escreveu o primo Pepe no relatório final sobre o mano de Germano.
Pela primeira vez, entre as 139 CPIs criadas no Rio Grande do Sul desde 1947, eram apontados os corruptos e os corruptores. Além de Lindomar Rigotto e outras 12 pessoas, a Assembleia gaúcha aprovou o indiciamento pela CPI de 11 empresas, sem poupar nomes poderosos como os da Alstom, Camargo Corrêa, Brown Boveri, Coemsa, Sultepa e Lorenzetti. As 260 caixas de papelão da CPI foram remetidas no final de 1996 ao Ministério Público, transformando-se no processo n° 011960058232 da 2ª Vara Cível da Fazenda Pública em Porto Alegre. Os autos somam 100 volumes e 80 anexos e envolvem 41 réus – 12 empresas e 29 pessoas físicas. E tudo isso corre ainda hoje num inacreditável “segredo de Justiça”. Em fevereiro próximo, o Rio Grande do Sul poderá comemorar os 16 anos de completo sigilo sobre a maior fraude de sua história – até o dia em que um magistrado com a coragem da corregedora Eliana Calmon apareça para acabar com este desatino.

A queda e o tiro
 
Duas mortes tornaram ainda mais turbulenta a biografia de Lindomar. A primeira morta foi uma garota de programa, Andréa Viviane Catarina, 24 anos, que despencou nua em setembro de 1998 do 14º andar de um prédio no centro de Porto Alegre, a duas quadras do Palácio Piratini, sede do governo estadual, que Germano Rigotto ocuparia cinco anos mais tarde. O dono do apartamento era Lindomar, que ali estava na hora do incidente. Ele contou à polícia que a garota tinha bebido uísque e ingerido cocaína. Os exames de laboratório, porém, não encontraram vestígios de álcool ou droga no sangue da jovem. A autópsia indicou que a vítima apresentava três lesões – duas nas costas, uma no rosto – sem ligação com a queda, indicando que ela estava ferida antes de cair. Três meses depois, Rigotto foi denunciado à Justiça por homicídio culposo e omissão de socorro. No relatório, o delegado Cláudio Barbedo achou relevante citar o depoimento de uma testemunha descrevendo o réu Lindomar como “usuário e traficante de cocaína”.
A segunda morte é a do próprio Lindomar, aos 47 anos, baleado no olho em fevereiro de 1999, quando perseguia o carro dos assaltantes que levaram a renda do baile de carnaval de sua boate, na praia de Atlântida. A bala certeira arquivou o processo pela morte da garota de programa e engavetou para sempre o seu indiciamento na CPI da CEEE. Ficou no ar o mistério de duas mortes que levantaram mais perguntas do que respostas, terreno fértil para o bom jornalismo. O contou esta intrigante história, sem adjetivos, baseado apenas no inquérito da polícia e nas atas da CPI, compondo uma densa reportagem de quatro páginas retumbantes que ocupou a capa da edição de maio de 2001 sob um título envolvente: “O Caso Rigotto – Um golpe de US$ 65 milhões e duas mortes não esclarecidas”.
O resultado foi tão bom que ganhou os dois principais prêmios jornalísticos daquele ano no sul: o Esso Regional e o ARI, da Associação Riograndense de Imprensa. Todo mundo gostou, menos a família Rigotto. O político ilustre da família, Germano, preparava seu voo como candidato do PMDB ao Piratini e aquele tipo de reportagem, com certeza, não trazia bons ventos. Mas, quem entrou na Justiça contra Bones e o foi dona Julieta Rigotto, hoje com 90 anos, a mãe do futuro governador e do finado réu da CEEE. Uma ação de calúnia e difamação atribuía a Bones o que era uma conclusão do delegado Barbedo: o envolvimento de Lindomar com o tráfico de drogas. Outra ação, contra o jornal, pedia indenização por dano moral.

Coisa da mamãe
 
Bones ganhou todas as ações contra ele, em todas as instâncias. Até o promotor Ubaldo Alexandre Licks Flores rebateu o pedido de dona Julieta, em novembro de 2002: “[não houve] qualquer intenção de ofensa à honra do falecido Lindomar Rigotto. Por outro lado é indiscutível que os três temas [a CEEE e as duas mortes] estavam e ainda estão impregnados de interesse público”. Duas semanas depois, a juíza Isabel de Borba Luca, da 9ª Vara Criminal de Porto Alegre, deu a sentença que absolvia Bones: “(…) analisando os três tópicos da reportagem conclui-se pela inexistência de dolo (…) em nenhum momento tem por intenção ofender (…) não se afastou da linha narrativa (…) teve por finalidade o interesse público”. Em agosto de 2003, por unanimidade dos sete votos, os desembargadores do Tribunal de Justiça negaram o recurso da bravíssima dona Julieta. E o caso foi encerrado na área criminal.
Na área cível, contudo, dona Julieta nunca mais perdeu, a partir de 2003, quando Rigotto já era governador. Bones foi condenado em 2003 a indenizar a matriarca em R$ 17 mil. Ele reagiu e, em 2005, a Justiça ordenou a penhora dos bens da empresa. Em 2009, quando a pena já estava em R$ 55 mil, um perito foi nomeado para bloquear 20% da receita bruta de um jornal comunitário quase moribundo. Cinco meses depois o perito foi embora, sem um tostão, penalizado com a visível indigência financeira do jornal. Em 2010, os advogados de Rigotto conseguiram na justiça o bloqueio das contas pessoais de Bones e seu sócio, o jornalista Kenny Braga.
Antes disso, em novembro de 2009, a família Rigotto fizera uma proposta indecente a Bones. Um acordo para pagar os R$ 55 mil em módicas 100 (cem) prestações mensais, a retirada das bancas da edição do que contava a história de suas desventuras e a publicação de uma nota fundada em duas premissas: “Dona Julieta nunca teve intenção de fechar o jornal” e “a ação não é da família, mas apenas de dona Julieta”. Germano Rigotto, o filho inocente, não aceitava a paternidade do processo. “Isso é coisa da minha mãe”, repetia ele, indignado, replicando o mesmo que dizia José Sarney quando questionado sobre a ação de censura que impede o jornal O Estado de S.Paulo há dois anos e meio de noticiar supostas traficâncias de Fernando Sarney no submundo das verbas federais: “Isso é coisa do meu filho”, repetia Sarney, injuriado, replicando o mesmo que dizia Germano Rigotto…

A censura do bolso
 
Essa cansativa lenga-lenga jurídica esvaiu a energia que restava do jornal. “A condenação por dano moral é uma coisa completamente absurda”, lembrou Bones na entrevista ao Sul21. “A reportagem que gerou a condenação produziu uma outra sentença, na área criminal do mesmo tribunal, dizendo que a reportagem era correta, de interesse social e não ofendia ninguém. Mas, ao se arrastar, o processo foi gerando efeitos colaterais políticos. Quando começou, em 2002, o Rigotto era candidato ao governo do Estado. Quando houve a decisão, em 2003, ele já era governador. E aí as coisas mudam de figura, porque o jornal foi condenado em função de uma ação movida pela mãe do governador, uma senhora [então] octogenária”.
Bones conta: “Ninguém queria saber os detalhes. Pensavam: ‘o jornal foi condenado, gerou dano moral à mãe do governador, é um jornal desaforado’. Quando fui à audiência, a juíza me tratou como o editor de um pasquim qualquer. Ela nem tinha lido a matéria. Levei os papéis, expliquei, e ela então mudou de postura. Assim, esse efeito se propagou no meio jornalístico e publicitário. No governo, automaticamente, o jornal e a editora foram banidos. Como o governo é o principal anunciante do Estado, estar mal com ele é estar mal com todas as maiores agências de publicidade. Sentimos isso pesadamente. Isso foi somado a um conjunto de fatores conjunturais que nos levou a uma situação de insolvência”.
Bones pega no osso da questão quando lembra o efeito de intimidação generalizada que um processo cível provoca sobre a pauta das redações, um efeito perverso sentido cada vez mais na imprensa brasileira, sufocada pelo que ela chama de “censura pecuniária” de quem recorre cada vez mais aos tribunais para calar eventuais denúncias que contrariam interesses de agentes, políticos e governantes desonestos. “Inicialmente, o objetivo [de Rigotto] era ter uma sentença favorável para poder desqualificar o conteúdo da reportagem e tentar regular a produção de outras… Resolvi entrar com recursos e até hoje não paguei nada. E hoje o jornal não tem mais chão nenhum para negociar”, conta Bones, que tinha conseguido refinanciar suas dívidas pelo Refis da Receita Federal.
“Estava pagando normalmente. Mas aí, com os apertos financeiros em decorrência do processo da família Rigotto, houve atraso no pagamento de algumas parcelas e fomos excluídos do Refis. Entramos na Justiça, ganhamos em primeira e em segunda instância e voltamos para o Refis. Mas houve um recurso da União ao STJ, passados mais de dois anos, e uma outra sentença nos excluiu do Refis. Toda a dívida renegociada venceu e o que voltou para ser quitado, mesmo após cinco anos de pagamentos, com juros, correção monetária e multas, aumentou em dez vezes o valor”.

Uma pauta maldita
 
Somando e multiplicando tudo, o resultado final dessa conta é o fechamento do , vítima talvez da mais longa ação judicial contra a liberdade de expressão no Brasil da democracia. Todo esse drama do e de Elmar Bones, como a roubalheira da CEEE, ainda está envolto num espantoso “sigilo de imprensa”. Ninguém fala, ninguém comenta os detalhes e os antecedentes suspeitos e criminosos que levaram à maior fraude da história do Rio Grande do Sul e à incrível punição de quem a denunciou, não de quem a praticou.
O processo da CEEE se arrasta há 16 anos sob um manto de segredo incompatível com a transparência, a rapidez e a lisura que se exige da Justiça.
Estranhamente, esta é uma pauta que ninguém abraça na imprensa gaúcha e brasileira. Curiosamente, o desfecho final da saga de Elmar Bones e do não mereceram uma única nota de apoio, mero desconforto ou formal solidariedade de jornais, jornalistas, blogueiros ou entidades antes vigilantes na defesa da liberdade de expressão como ANJ, Abert, ABI, Fenaj, Abraji, ARI, sindicatos e assemelhados.
O que aconteceu com Bones e o , pelo jeito, não lhes diz respeito. Ou jamais acontecerá com eles.
O que aconteceu com Germano Rigotto, o filho inocente de dona Julieta, todos sabem. Sobreviveu a duas recentes, retumbantes derrotas na sua declinante carreira política.
Em 2006, quando tentava a reeleição como governador, ficou num surpreendente terceiro lugar, perdendo por míseros 16.342 votos a vaga no segundo turno para a noviça tucana Yeda Crusius, que acabaria vencendo o petista Olívio Dutra por 300 mil votos de vantagem.
Em 2010, Rigotto sofreu um baque ainda maior. Disputando uma das duas vagas ao Senado como favorito, acabou ultrapassado por outra novata em política, a jornalista Ana Amélia Lemos, do PP, eleita com 3,4 milhões de votos, um milhão a mais do que Rigotto. O senador mais votado, com quase 4 milhões, foi Paulo Paim, do PT.
Germano Rigotto ainda não informou se tentará algum cargo municipal nas eleições de 2012.
 
[Luiz Cláudio Cunha é jornalista]

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Acampamento indígena é atacado com tiros no Rio Grande do Sul


Disparos vieram de matagal vizinho à área onde vivem 13 famílias Kaingang, num total de 70 índios, no município de Santa Maria

Renato Santana
de Brasília para o BRASILdeFATO


Três projéteis percorreram, no início dessa semana, o acampamento indígena Ketyjug Tentu (Três Soitas), disparados de matagal vizinho à área onde vivem 13 famílias Kaingang, num total de 70 índios, no município de Santa Maria, região central do Rio Grande do Sul. Ninguém se feriu.
O autor dos disparos não foi identificado, mas a motivação está bem clara aos indígenas: os quase 13 hectares ocupados desde dezembro pelos Kaingang – com apoio dos Guarani - e agora reivindicados junto à Fundação Nacional do Índio (Funai) como tradicional.
Boletim de ocorrência foi lavrado e a área periciada. Um dos disparos feito na direção de um grupo de crianças, reunidas em brincadeira, atingiu prédio vizinho ao acampamento e por pouco não vitimou uma moradora e sua filha. A polícia iniciará investigação para apurar o ataque, na medida em que outras ocorrências de violência contra a comunidade e apoiadores já tinham sido registradas.
Desde 2000 os Kaingang e Guarani lutam para o Poder Público oficializar a posse permanente do terreno. Os indígenas lutavam para que a Funai comprasse a terra, mas os 12 indivíduos que se dizem proprietários não tiveram interesse em negociar.
Com o intuito de resolver o impasse, em maio do ano passado aconteceu na Câmara dos Vereadores da cidade a 1ª Assembleia Popular Indígena.
“A Funai e a prefeitura firmaram com o MPF (Ministério Público Federal) o compromisso de em 60 dias apresentar uma solução para o caso. Isso não aconteceu e então decidimos pela ocupação da área central do terreno para pressionar. Agora queremos a identificação e demarcação”, explica a liderança Augusto Kaingang.
Em 19 de dezembro último, duas semanas depois da ocupação, a Justiça Federal determinou a situação dos Kaingang como de direito indígena, ou seja, o caso é de competência Federal, de interesse nacional e se enquadra nos termos constitucionais. Uma importante vitória dentro da luta pela terra.
“Através desse documento (da Justiça Federal) estamos tentando o diálogo com todos os setores”, afirmou em entrevista Matias Rempel, integrante do Grupo de Apoio aos Povos Indígenas (Gapin), a Seção Sindical dos Docentes da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Rempel afirma que um dos principais problemas é a segurança no acampamento. Com a decisão da Justiça Federal, ele espera que a situação seja resolvida.
Os proprietários pediram a reintegração de posse do terreno. A Justiça negou por entender que a Funai precisa montar Grupo de Trabalho (GT) de identificação da área. Só com o resultado qualquer decisão judicial poderá ser tomada.

Rota de passagem

Santa Maria é secularmente rota de passagem dos povos indígenas do Rio Grande do Sul. Por estar localizada no centro do estado, dezenas de caminhos se cruzavam sobre ela - assim como os povos indígenas que eles percorriam. A cidade também foi palco de diversas batalhas dos indígenas do líder Sepé Tiaraju contra os exércitos de Portugal e Espanha, durante o século 18.
“Pela oralidade, constatamos que há mais de 100 anos as famílias indígenas passam por ali para coletar e vender produtos confeccionados pelos próprios indígenas. Vindos de todos os cantos do estado, encontram nesse local reivindicado uma instalação; algumas são fixas para receber as outras famílias”, explica o historiador e missionário da equipe de Porto Alegre do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Roberto Liebgott.
O missionário explica que na área reivindicada os indígenas conseguem manter um espaço de sobrevivência, manutenção da cultura e convívio entre as aldeias. “Famílias que vivem no Norte do estado foram para o local ajudar na ocupação, porque todas usam o local para a comercialização de artesanatos”, relata Liebgott.
Para ele, o Poder Público municipal nunca aceitou a presença dos indígenas na cidade. Ao contrário da população, composta por 200 mil pessoas, que vê com bons olhos os povos originários ali presentes – inclusive com ajuda de cestas básicas e roupas. O missionário aponta que falta infraestrutura no terreno para o melhor assentamento dos indígenas.
“É um direito desses povos e o Poder Público precisa se organizar para atender. Em Santa Maria ainda temos um grupo Guarani Mbyá acampado na beira da BR-392 e que reivindica a demarcação da terra indígena Arenal. São demandas que precisam ser atendidas”, diz Liebgott.

Ameaças e projetos

Os indígenas têm bem claro o que pretendem para a área. Conforme Augusto Kaingang, duas ideias permeiam a luta: a construção de um centro cultural e um espaço para alojar os estudantes indígenas da Universidade Federal localizada em Santa Maria. “Éramos 22 povos aqui no Rio Grande do Sul. Depois do massacre, restaram três povos (Kaingang, Guarani e Xahua). Para os sobreviventes é muito importante divulgar a cultura”, afirma.
Augusto esclarece que o importante para os indígenas é aprender a conviver com as diferenças, mas para a sociedade envolvente não é assim e, portanto, os direitos indígenas são sempre violados e desrespeitados: “Então temos que ir para a luta. Não resta alternativa a não ser reunir os povos e exigir o que é nosso”.
A reação de quem não quer os indígenas no local ao processo de luta veio com os mecanismos de sempre: ameaças e xingamentos, além dos recentes disparos contra a comunidade. De acordo com boletins de ocorrências registrados, um arrendatário é o principal autor das pressões.
“Ele disse que ia correr comigo de lá e botar fogo nos barracos. Vive dizendo que os brancos fizeram nossa cabeça pelas terras. O que não é verdade”, relata Augusto. Além do indígena, outros Kaingang foram ameaçados, bem como apoiadores, entre eles integrantes do Gapin. A Polícia Federal e o MPF também receberam registros das ameaças.

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

“Governo federal avançou pouco na garantia de direitos”, critica Jean Wyllys



"É preciso que o Estado garanta a proteção à família monoparental e à família homoparental" | Foto: Reinaldo Ferrigno/Ag.Câmara

Samir Oliveira no SUL21

O deputado federal Jean Wyllys de Matos Santos (PSOL-RJ) é um dos rostos novos — e bastante atuantes — da 54ª legislatura do Congresso Nacional. Ele trouxe de forma inédita o enfrentamento aberto e sem preconceitos de temas que costumam estacionar no conservadorismo de muitos parlamentares, como a garantia de direitos a homossexuais. Avanços que talvez pareçam simples e dos quais os heterossexuais sempre desfrutaram, como o direito ao casamento civil, mas para os quais os homossexuais ainda não encontram amparo na letra fria da lei.
Nesta entrevista, concedida por telefone ao Sul21, Jean faz uma avaliação das conquistas e dos retrocessos vividos em 2011. O parlamentar não poupa críticas ao governo da presidente Dilma Rousseff, que no início do ano resolveu suspender o programa Escola Sem Homofobia. “A presidente tratou uma política de promoção dos direitos humanos como uma propaganda de opção sexual. Como se orientação sexual fosse uma questão de opção”, dispara.
O deputado considera que o governo federal avançou muito pouco na garantia de direitos humanos – não só a homossexuais, mas também aos negros, aos sem-terra e aos quilombolas, entre outros. Jean acredita que é preciso haver uma compreensão maior sobre o conceito de miséria, cuja erradicação é o principal eixo defendido por Dilma. “É preciso que a presidenta entenda que a miséria não é só econômica. Há miséria no país quando homossexuais são assassinados pelo simples fato de serem homossexuais. Há miséria no país quando posseiros e grileiros matam lideranças no sul da Bahia”, explica.
“Há inércia do governo federal no que diz respeito a garantir direitos humanos, em especial dos homossexuais”
Sul21 – Como o senhor avalia as ações desenvolvidas durante o primeiro ano do seu mandato?
 
Jean Wyllys – Foi um ano de conquistas. Posso até não ter tido proposições legislativas aprovadas, mas houve o enfrentamento para a garantia de políticas públicas. Tivemos a reestruturação da Frente Parlamentar Mista pela Cidadania LGBT. Graças a ela pudemos fazer enfrentamentos públicos importantes. Enfrentamos, por exemplo, a bancada evangélica, que tentou impedir a Receita Federal de incluir parceiros homossexuais no Imposto de Renda para fins de dedução. Graças a nossa atuação isso foi garantido. Fizemos um enfrentamento importante em relação aos atos que resultaram na suspensão do projeto Escola Sem Homofobia. Desconstruímos a mentira que foi disseminada e fizemos oposição ao governo federal, que cedeu fácil às pressões e às chantagens dos conservadores. Realizamos o 8º Seminário LGBT com o tema do casamento civil igualitário. Realizamos também o seminário internacional Famílias pela Igualdade, que discutiu os novos modelos de família que precisam ter a proteção do Estado. É preciso que o Estado garanta a proteção à família monoparental e à família homoparental. É fundamental que o conceito de família seja dilatado e esse seminário foi importante, porque trouxemos representantes dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário da Argentina para falarem sobre como foi positivo para o país a aprovação do casamento civil igualitário. Também fizemos um debate muito bom em torno da criminalização da homofobia. Não conseguimos aprovar o projeto de lei no Senado, mas fizemos um debate relevante e enfrentamos as forças conservadoras que queriam enterrar de vez esse projeto. Então a Frente Parlamentar Mista LGBT teve um papel muito relevante, inclusive quando a senadora Marta Suplicy (PT) resolveu ceder aos conservadores e apresentar um substitutivo que não era o esperado pela comunidade LGBT.
"O governo não falhou só com a comunidade LGBT. Falhou também com a comunidade negra. Até hoje a lei que assegura o ensino da história da África não foi implementada nas escolas" | Foto: Beto Oliveira/Ag.Câmara

Sul21 – Ocorreu recentemente a 2ª Conferência Nacional LGBT. Qual a importância do evento para a garantia de avanços nas causas reivindicadas?
 
Jean – A presidente Dilma (Rousseff) não esteve presente, mas foram três de seus ministros, a Luiza Bairros (Igualdade Racial), a Maria do Rosário (Direitos Humanos) e o Gilberto Carvalho (Secretaria-Geral). A conferência mostrou que o movimento LGBT continua vivo e de pé. Não se pode pensar que apenas a ABGLT (Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais) representa o movimento. Essa entidade está por demais adestrada pelo governo federal. Os líderes viraram gestores públicos, portanto não há espaço para a crítica. Mas um novo movimento relacionado às redes sociais se fez presente na conferência e levantou a voz contra a inércia do governo federal no que diz respeito a garantir direitos humanos, em especial dos homossexuais.

Sul21 – Que outras deficiências o senhor aponta na política de direitos humanos do governo federal?
 
Jean – O governo não falhou só com a comunidade LGBT. Falhou também com a comunidade negra. Até hoje a lei que assegura o ensino da história da África e dos valores culturais africanos para a identidade nacional não foi implementada nas escolas. Não houve capacitação dos professores para isso e os alunos negros e adeptos de religiões de matriz africana continuam descriminados nas escolas. As escolas públicas estão cada vez mais cristãs, professando uma fé cristã em detrimento de outras fés. O governo também é negligente com os sem-terra. Avançou-se pouco no que diz respeito à reforma agrária e à regulamentação de assentamentos. O governo falhou na demarcação de terras indígenas. A situação do povo patachós no sul da Bahia se estende por quase 20 anos e ainda não foi enfrentada. A demarcação das terras dos quilombolas também não. E o governo cedeu bastante ao agronegócio, através do novo código florestal.
Ao mesmo tempo em que o PT faz uma ação discursiva aos movimentos sociais, faz uma cessão às forças conservadoras
Sul21 – Mas a presidente Dilma havia garantido que um dos pontos principais do seu governo seria a garantia dos direitos humanos, fator inclusive preponderante na política externa.
 
Jean – O governo federal avançou muito pouco no que diz respeito aos direitos humanos, ainda que a presidenta, em sua mensagem ao Congresso, tenha dito que se pautaria pela defesa intransigente dos direitos humanos. O governo adotou como slogan “País Rico é País sem Miséria”. Mas é preciso que a presidenta entenda que a miséria não é só a econômica. A miséria econômica precisa ser enfrentada e todos concordamos com isso. Inclusive porque a miséria econômica vulnerabiliza minorias. Um gay pobre de periferia é muito mais vulnerável que um gay de classe média. Mas também há miséria no país quando homossexuais são assassinados pelo simples fato de serem homossexuais. Há miséria no país quando posseiros e grileiros matam lideranças no sul da Bahia sem que o Ministério Público e a Justiça Federal enfrentem essa violência. É preciso que o governo entenda a miséria num sentido muito mais amplo e ele mostrou que está interessado apenas no aspecto econômico dela.
Jean Wyllys: "Não me sinto isolado e tenho aliados muito fortes" | Foto: Leonardo Prado/Ag.Câmara

Sul21 – Não houve avanços com a chegada do PT ao poder, depois de o Brasil ter passado por governos de direita, com Sarney, Collor e FHC?
 
Jean – O PT está numa encruzilhada. Um amigo meu até disse mais: o PT é a encruzilhada. O governo federal, que é petista, tem compromisso com as bandeiras históricas do partido, que são todas da esquerda: garantia dos direitos humanos, legalização do aborto, descriminalização da maconha, demarcação de terras… Porém, o partido não ficaria nove anos no poder se não tivesse constituído uma base aliada que lhe garantisse a estabilidade. Só que essa base aliada é composta em sua maioria por forças conservadoras. Essa é a encruzilhada: manter o compromisso com as bandeiras históricas e ao mesmo tempo satisfazer a base aliada para garantir a governabilidade e a permanência no poder. O partido tenta resolver isso com duas ações. Uma meramente discursiva, dirigida aos movimentos sociais. É muito blá blá blá, muita conferência, muito plano aprovado, e pouco recurso garantido. Não adianta aprovar um PNDH-3 se não há no orçamento da União recursos para a implementação de políticas de garantia dos direitos humanos, e em especial de direitos de LGBTs. E ao mesmo tempo em que o PT faz uma ação discursiva aos movimentos sociais, faz uma cessão às forças conservadoras. Assim, temos o PT nove anos no poder, com poucos avanços efetivos.

Sul21 – A retirada, por decisão da presidente Dilma, do programa Escola Sem Homofobia é um exemplo dessa concessão aos conservadores?
 
Jean – O governo cedeu às forças conservadoras cristãs quando enterrou o projeto Escola Sem Homofobia, cedendo a uma mentira. Esse projeto levantou um debate que tornou isso evidente. Ainda que um certo setor das lideranças LGBTs esteja adestrado pelo governo, um outro setor se levantou, articulado com o movimento dos indignados e das ocupações, que se expressa nas redes sociais. Essa nova juventude foi para as redes sociais e denunciou essa covardia do governo. A presidenta fez uma suspensão absolutamente equivocada. Não bastou suspender, ela ainda disse que o governo não faria promoção de opção sexual de ninguém. Isso foi um golpe nos homossexuais. Foi um golpe em mim, como ativista, como parlamentar, e um golpe nas lideranças do movimento LGBT no Brasil inteiro. Inclusive nas lideranças petistas do movimento. Era um projeto de enfrentamento ao bullying homofóbico, que é responsável pela evasão escolar, pelo suicídio e pela depressão infanto-juvenil. A presidente tratou uma política de promoção dos direitos humanos como uma propaganda de opção sexual. Como se orientação sexual fosse uma questão de opção. A religião é uma opção. Orientação sexual não é opção.
“Dilma Rousseff disse que o governo não faria promoção de opção sexual de ninguém. Isso foi um golpe nos homossexuais”
Sul21 – O Congresso Nacional possui, em sua maioria, integrantes bastante conservadores. O senhor se sente isolado na defesa da garantia de direitos aos homossexuais?
 
Jean – Não me sinto isolado. Existe uma correlação de forças. Os conservadores podem ter maior número e mais força econômica, mas há também deputados progressistas. Lembro de um discurso da Benedita da Silva, que foi a primeira mulher negra a entrar no Congresso, que disse: “Se não fossem os homens brancos do Congresso, aliados à minha causa, eu não teria avançado”. Digo o mesmo: se não fossem os parlamentares heterossexuais aliados aos LGBTs eu não teria avançado tanto. Tenho aliados muito fortes. A frente parlamentar é composta por deputados bastante ativistas, de diferentes partidos.

Sul21 – Mas são deputados da base aliada do governo federal. Será que o apoio deles não vai só até o ponto em que os interesses do Palácio do Planalto sejam afetados?
 
Jean – A frente parlamentar tem sido muito republicana na sua postura. A Érika Kokay (PT), inclusive, fez uma crítica à presidente Dilma na conferência. Isso me deu aval para avançar.

Sul21 – E como é sua relação com a bancada evangélica? Há diálogo possível?
 
Jean – A bancada evangélica não constitui um bloco monolítico. Há divergências internas e graças a isso há alguns setores mais abertos ao diálogo. Por isso conseguimos aprovar o estatuto da juventude, incluindo nele a diversidade sexual e religiosa. Foi um avanço que só conseguimos graças ao diálogo com esses setores mais abertos da bancada evangélica. Mas os mais conservadores são mais histriônicos e estridentes. Eles não entendem a ideia de estender a cidadania aos homossexuais porque querem negar a existência dos homossexuais. É um entendimento simplório de alguém que ignora todas as conquistas humanas em termos de conhecimentos nos últimos anos. Essas pessoas acham que os homossexuais têm que ser curados, acham que temos um desvio moral e de saúde. Daí vem toda oposição a políticas públicas e iniciativas legislativas que tentam estender a cidadania aos homossexuais.

Sul21 – Uma figura que chama bastante atenção nesse tipo de pensamento é o deputado federal Jair Bolsonaro (PP-RJ)…
 
Jean – O Bolsonaro é uma caricatura. Ele faz da caricatura a sua atuação. E ao fazer da crítica ao movimento LGBT a sua bandeira ele tenta rebaixar a própria política LGBT, com uma postura histriônica, midiática.
“Quem segurou a onda do debate nacional em torno da questão da homofobia foi a Globo, na novela Insensato Coração”
"A comunidade LGBT é muito diversa entre si, embora tenha uma base comum de identificação. E queremos que todos sejam respeitados nas suas diferenças" | Foto: Saulo Cruz/Ag.Câmara

Sul21 – Com a dificuldade de o Congresso aprovar leis que garantam direitos a homossexuais, o Judiciário tem preenchido essa lacuna, tomando decisões que asseguram garantias em casos específicos.
 
Jean – Fico muito feliz em viver numa república federativa sustentada na tripartição e na autonomia dos poderes. Se o Executivo tem uma base aliada conservadora e faz pouco, e o Legislativo não avança porque numericamente os conservadores são maioria, resta ao Judiciário, que não está sob pressão eleitoral, garantir os direitos. Mas não podemos nos contentar com isso. Sabemos que amplos setores da sociedade brasileira são excluídos do acesso à Justiça. Não podemos achar que uma decisão do Judiciário basta, é preciso garantir leis. Queremos os mesmos direitos com os mesmos nomes, é isso que precisa ser garantido.

Sul21 – Como o senhor avalia o papel da mídia na formação de imaginários sobre gays? Há avanços ou ainda se reproduz muito os estereótipos?
 
Jean – Quando a Globo colocou a questão da homofobia na novela Insensato Coração, as pessoas ficavam envergonhadas vendo o personagem do Cássio Gabus Mendes. Isso sensibilizou muita gente que negava sua própria homofobia. O Brasil é um país curioso: nega que é racista e homofóbico, mas pratica essas duas coisas. Acredito que estão havendo avanços. Entre a suspensão do projeto Escola Sem Homofobia e a votação do PL 122/06 (que criminaliza a homofobia), quem segurou a onda do debate nacional em torno da questão da homofobia foi a Globo, através da novela Insensato Coração. E o movimento LGBT utilizou as falas da novela e as situações que ela expôs. A telenovela tem um papel preponderante na formação do imaginário nacional. E a Globo prestou um serviço relevante nesse caso. Mesmo o Crôdoaldo, personagem da novela do Agnaldo Silva, traz um ponto de vista interessante. Muita gente acha que ele é caricato. Mas enxergo mais além: acho que é uma provocação do Agnaldo Silva. Por que as pessoas têm que aceitar só o gay-sala-de-estar, o gay que está de acordo com os valores estéticos burgueses heterossexuais? O gay que não se parece com gay é o que é aceito. O Crôdoaldo é afeminado, gosta da Madonna, ele quer ser aceito na sua diferença. É isso que defendemos. Nada mais diferente de um gay do que outro gay, né? A comunidade LGBT é muito diversa entre si, embora tenha uma base comum de identificação. E queremos que todos sejam respeitados nas suas diferenças.

Sul21 – Inclusive um ponto que é pouco conhecido é o preconceito que existe dentro do próprio movimento LGBT em relação a travestis e transexuais, por exemplo.
 
Jean – Os gays foram educados nas mesmas escolas que os héteros, consumiram a mesma publicidade, assistiram as mesmas novelas, leram os mesmos livros… Se essa cultura heteronormativa faz de um heterossexual um homofóbico, também pode fazer de um gay um homofóbico. Se desvencilhar dessa homofobia introjetada é se desconstruir, sair da vergonha para o orgulho. É o famoso sair do armário. Então isso tudo faz com que alguns gays ainda conservem preconceitos e achem, por exemplo, que a travesti é uma caricatura. Eu tive a mesma educação machista que você. Se hoje sou feminista e não tenho misoginia é porque desconstruí isso em mim. Mas tem homens que passam a vida misóginos, achando que mulher é só para transar e não dão valor à mulher para além da cama.
“As paradas gays precisam ser repensadas. Têm que abrir mão da massa para serem mais políticas”
Sul21 – Como o senhor avalia a importância das paradas gays atualmente? Elas estão conseguindo impor uma agenda ao movimento e à sociedade ou ficam muito centradas na celebração?
 
Jean – As paradas precisam ser repensadas pelos seus organizadores. Elas viraram eventos de massa e têm um papel relevante que é dar visibilidade aos modos de vida gays. São uma celebração do orgulho de ser gay, então elas têm mesmo que ser uma festa, não vejo problema nenhum nisso. Mas acho que elas precisam ser repensadas, porque já atravessamos o período da visibilidade. Agora as paradas têm que abrir mão da massa para serem mais políticas. Elas precisam deixar no imaginário das pessoas qual a pauta que está sendo discutida. Precisam dizer: “Estamos aqui celebrando o orgulho de ser, contra a vergonha e contra a discriminação, mas nossa pauta política é tal”.
"Numa democracia há o tempo do debate. Não dá para fazer tudo, mas é importante que alguém com as minhas características esteja no Congresso Nacional" | Foto: Beto Oliveira/Ag.Câmara

Sul21 – Como está a situação da proposta de emenda constitucional (PEC) de sua autoria que legaliza o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo?
 
Jean – Já conseguimos 99 assinaturas, das 171 necessárias. Ano que vem com certeza iremos conseguir todas. Mas já há uma campanha em curso no site casamentociviligualitario.com.br. O mandato deu o pontapé inicial, mas a campanha já é da sociedade civil.

Sul21 – Apesar de sua militância política ser de longa data, nesse ano o senhor entrou na atuação institucional e partidária. O que está achando desse novo trabalho?
 
Jean – Não dá para fazer tudo o que a gente pensa, porque a democracia tem seu tempo. Às vezes somos impacientes com o tempo da democracia, mas é o preço que temos que pagar. É ao contrário das autocracias e ditaduras, onde as coisas são determinadas. Numa democracia há o tempo do debate. Não dá para fazer tudo, mas é importante que alguém com as minhas características esteja no Congresso Nacional. Não necessariamente eu, mas é preciso que determinados temas sejam tratados com coragem e que seja feita a articulação da política de direitos humanos com a política mais ampla. Não se pode discutir direitos humanos sem discutir a política orçamentária e todas as concessões que o governo federal faz ao sistema financeiro, destinando 45% do orçamento ao pagamento de juros e amortizações da dívida pública, que já deveria ter sido auditada há muito tempo. As pessoas me perguntam se eu estou gostando (de ser deputado) como se fosse uma partida de futebol (risos). Sempre respondo que não é uma questão de gostar ou não, é um imperativo. É preciso estar aqui (no Congresso).

Sul21 – E como o senhor projeta seu futuro político? Cogita concorrer a alguma prefeitura ou governo?
 
Jean – Dizia minha mãe que o futuro a Deus pertence. Não vou especular sobre o futuro. No momento, o que eu quero fazer é um excelente mandato. E isso implica em enfrentar forças por demais bem equipadas.

sábado, 3 de dezembro de 2011

“Gozar virou uma obrigação que não tem nada a ver com prazer”, afirma historiadora


"O brasileiro continua profundamente racista, machista e homofóbico"

Rachel Duarte no SUL21

Sexo. Quais heranças do passado ainda estão presentes na sociedade quando o assunto é sexualidade e erotismo? A historiadora paulista Mary Del Priore, especialista em História do Brasil, conta como foi o rápido processo de transformação do comportamento da sociedade brasileira desde os tempos da censura até os dias de hoje. Autora do livro Histórias Íntimas: Sexualidade e Erotismo na História do Brasil (2010), Mary Del Priore descreve como, desde o século XVII, o sexo é considerado algo sujo, principalmente por influência católica. Apesar de evoluírem para relações mais livres, homens e mulheres ainda sofrem para compreender as mudanças e sua própria sexualidade.
De acordo com a historiadora, ainda que as pessoas digam que convivem melhor hoje com a homossexualidade, boa parte da sociedade vive uma dupla personalidade. “Na vida pública o brasileiro é descolado, gosta de piada suja, paquera a mulher do próximo e topa todas. Mas, na sua vida privada e intimidade, ele continua profundamente racista, machista e homofóbico”, afirma.
Outro aspecto que Mary Del Priore analisa na entrevista ao Sul21 é que as conquistas das mulheres ao longo da história foram positivas sob muitos aspectos, mas que o Brasil ainda careceria de políticas públicas para o gênero feminino. “Temos muitas mulheres nos governos, mas ainda precisamos de ações concretas visando a garantia de direitos”, critica. Ela cobra das próprias mulheres a mudança de postura diante da liberdade sexual para o enfrentamento do que chama de “cachorrice”, um comportamento massificado de mulheres que agem de forma a contribuir com a manutenção de esteriótipos machistas. “É um anacronismo a gente achar que as mulheres de antigamente — por não gozarem tanto quanto as de hoje — eram frustradas”, afirma.

Sul21 – A senhora lançou um livro sobre sexualidade e erotismo na História do Brasil. O quanto a sociedade se modificou e o quanto ainda estão presentes as heranças dos séculos passados?

Mary Del Priore - Sexualidade e erotismo sempre foram assuntos tratados na literatura mundial. Na Ásia, com as poesias eróticas; na Europa, principalmente na Itália e na França, houve grande produção de textos e contos eróticos nos séculos XVII e XVIII. Mas, aqui no Brasil, esta literatura só vai aparecer no final do século XIX. São textos curiosos porque os termos da linguagem chula e os palavrões eram alterados em razão da censura que sempre houve em relação ao assunto, então surgiam coisas engraçadas como ‘apêndice varonil’ ou ‘cetro’. Nada era dito de forma explícita. Sempre tivemos um mal estar para tratar das questões do sexo e do erotismo no Brasil. Estudos sobre a história da sexualidade brasileira são raros. Apareceram, por exemplo, implicitamente em outros trabalhos de autores como Ronaldo Vainfas e do antropólogo baiano Luis Moti. Poucos estudos foram sistemáticos.
"O sexo no Brasil, em razão da presença da Igreja Católica, de outras igrejas e de uma sociedade patriarcal, sempre foi sinônimo de sujeira, de pecado ou de alguma coisa que tinha que ser escondida debaixo do tapete"

Sul21 – Qual é a influência da miscigenação na sexualidade brasileira em termos de formação de padrões estéticos, corporais e sexuais?

Mary Del Priore – É uma história de muita repressão e ao mesmo tempo de muito espaço. O sexo no Brasil, em razão da presença da Igreja Católica, de outras igrejas e de uma sociedade patriarcal, sempre foi sinônimo de sujeira, de pecado ou de alguma coisa que tinha que ser escondida debaixo do tapete. Só podemos pensar em liberação nos anos 70, quando houve um movimento mundial não só de afirmação das minorias (mulheres, gays), mas também movimentos de liberação de costumes amplificados pela pílula anticoncepcional. Foi a época do maio de 68 na França, do movimento hippie nas universidades americanas, da batida pesada do rock com letras que falavam de sexo como “(I Can´t Get No) Satisfaction”, dos Rolling Stones. Então, na época, toda esta discussão mundial começou a chegar à praia brasileiras, contaminando a juventude universitária que se unia no movimento de militância contrária ao governo militar. A liberação sexual se integrou a isso. Então, eu digo que os anos 70 e 80 é quando todos os tabus começaram a ser colocados em xeque por nossa sociedade. Discussões sobre o orgasmo, discussões sobre casais mais igualitários, divórcio. É lógico que a sociedade machista respondeu rapidamente. Tal período de libertação foi quando ocorreram os crimes mais violentos contra as mulheres brasileiras. Isto deu origem ao primeiro movimento feminista intitulado “Quem ama não mata”. Mulheres foram mortas por usarem biquini, por fumar, por assistirem ao seriado Malu Mulher. Tudo era motivo para os homens mostrarem seu machismo frente às mudanças em curso.

Sul21 – No século 21, é possível dizer que sexo ainda é tabu?

Mary Del Priore – As regiões são diferentes. Rio Branco, no Acre, é diferente de Porto Alegre. A periferia do Amapá também não tem nada a ver com a periferia do Rio de Janeiro. O que eu acho interessante e procuro explorar no meu livro é a permanência de determinadas características que são muito antiquadas no que se refere ao sexo. Na vida pública, o brasileiro é descolado, gosta de piada suja, paquera a mulher do próximo e topa todas. Mas, na sua vida privada e intimidade, ele continua profundamente racista, machista e homofóbico. Eu acho lamentável, para um país que é a oitava economia do mundo, o fato de possuir uma cidadania tão partida. As pessoas não podem mais continuar vivendo com estas duas caras. Uma discussão precisará se impor. A legislação que protege as mulheres e garante o casamento homoafetivo ajuda a consolidar certas posições que foram duramente conquistadas. Mas precisamos avançar para uma tolerância maior das diferenças e uma aceitação das sexualidades diferentes.
Gozar virou uma obrigação que não tem nada a ver com ter prazer. Tudo isso é reflexo das mudanças muito rápidas e deveria fazer a sociedade brasileira refletir para onde está indo.
"Nas grandes cidades, a religião foi substituída por produtos religiosos"

Sul21 – Qual o limite entre a liberdade e a libertinagem?

Mary Del Priore - Aí é que está. O Brasil sempre foi um país pobre. Até a metade do século XIX, a maior parte das pessoas tinha relações sexuais em esteiras, no chão duro ou em redes. As pessoas não tinham dinheiro para comprar uma cama. O quarto do casal é uma coisa inventada e construída pela privacidade na metade do século XIX, assim como a chegada dos produtos de higiene que permitiram as relações com mais liberdade. Este processo de construção da privacidade foi completamente detonado com a chegada da era tecnológica. Hoje, com a aparelhagem eletrônica, computadores, câmeras, a internet, qualquer pessoa, mesmo na sua “privacidade”, pode se dar a ver. Qualquer moça pode mostrar sua nudez, se prostituir via internet. Temos o aumento da pedofilia e prostituição na internet. O mundo da telinha, seja ela do computador ou do celular, abriu uma possibilidade enorme para a pessoa ficar mostrando aquilo que elas têm de mais privado. É muito questionável a passagem desta liberdade para a chamada libertinagem. Eu diria que o que falta é a consciência das pessoas sobre seu próprio corpo e sua própria sexualidade. As transformações ocorreram de forma muito rápida. As mulheres foram drenadas para dentro do mercado de trabalho, associando trabalho com liberdade financeira, pílula, prazer. Foram bombardeadas por uma série de imagens em revistas e na televisão. Criou-se a ideia de que elas tem que gozar. Gozar virou uma obrigação que não tem nada a ver com ter prazer. Tudo isso é reflexo das mudanças muito rápidas e deveria fazer a sociedade brasileira refletir para onde está indo. Falta um momento de pausa para reflexão.

Sul21 – Como alcançar isto diante da complexidade que ainda é enfrentar o tema da sexualidade no Brasil? Qual é o papel do estado neste processo?

Mary Del Priore – Apesar de termos mulheres no poder, falta avançar nas políticas de valorização do gênero feminino. Faltam políticas de amparo da gravidez na adolescência, para crianças abandonadas, para mulheres que trabalham. Temos muitas mulheres na política e poucas políticas de gênero. Um exemplo grosseiro do que eu estou dizendo, é a iniciativa da ministra que tentou impedir a propaganda com a Gisele Bündchen. Ela é uma belíssima modelo, não tenho nada contra ela. Mas, uma propaganda destas na França, em que movimentos de mulheres são muito bem organizados, jamais iria ao ar. Eu acho que a ministra tinha toda a razão de retirar do ar este anúncio na medida em que ele “coisifica” a mulher brasileira e reitera que através do sexo se consegue tudo. Esta associação permanente da mulher como desfrute e com disponibilidade sexual tem que ser combatida.

Sul21 – A mudança comportamental da sociedade contemporânea sofre a influência da mídia, como a senhora mesmo salienta. O quanto mudou desde as chanchadas e contribuições de nomes como Nelson Rodrigues — os quais falavam de erotismo indiretamente, sem serem explícitos como as produções atuais — até os filmes pornográficos, hoje amplamente acessíveis?

Mary Del Priore – Os teóricos procuram matizar tudo isso.  Há quem defenda que a pornografia não é pornográfica. Há também quem defenda que a mídia não dita, ela apenas representa os anseios da sociedade, mas na verdade nós estamos num país de analfabetos, de pessoas muito pouco educadas. Não sou eu que digo isto. Há pesquisas internacionais que apontam o atraso do país em termos educacionais, isto não é novidade nenhuma. E é óbvio que com um baixo nível de escolaridade, o impacto da imagem é muito maior aqui do que em países em que a educação permite o discernimento sobre o que está sendo visto. A imagem acaba modelando comportamentos. Onde há educação, as pessoas se aproximam das informações de forma crítica. O que observamos, por exemplo, é que frente a esta “Cachorrice” — que é o movimento das meninas que frequentam os bailes funks e transam com todos e engravidam sem medir as conseqüências — , há o movimento das “Princesas”, originário das igrejas protestantes, que são moças querem casar virgem e valorizam a castidade. Haverá o momento em que iremos ver mulheres se organizando para  serem identificadas como algo além do que um pedaço de carne.

Sul21 – Qual o peso da igreja na sexualidade dos brasileiros?

Mary Del Priore – De novo temos que considerar as características das diferentes regiões. Nas áreas rurais, por exemplo, as religiões ainda ditam as normas, a igreja organiza a sociedade. As comunidades rurais tendem a ser controladas de forma mais próxima. É difícil que um adultério não seja logo conhecido ou que um gay não seja logo reconhecido e venha ter problemas. Tudo que “foge a regra” é mais fácil de perceber. Nas grandes cidades não. Nelas a religião assume outras formas. A religião institucional foi substituída por produtos religiosos. Shows, cultos, padre que canta e lança CD. Chamo isto de o “difuso religioso” que tomou conta das grandes capitais.
A autoestima masculina está tão baixa que eles passaram a usar o artifício da dor de cabeça para não ter relações sexuais.
Sul21 – Mas o modo como a igreja vê o matrimônio ainda castra e condiciona?
A capa do livro de Mary del Priore

Mary Del Priore – No meu livro, eu discorro sobre como o casamento é concebido pela Igreja Católica nos séculos XII e XIII. Ele acaba sendo uma espécie de não-lugar do erotismo. É apenas o lugar de encontro para a procriação. O mais importante era a família ter filhos. O sexo de lazer e diversão ficava para os homens no bordel. Eu lembro que é um anacronismo a gente achar que as mulheres da época, por não gozarem tanto quanto as de hoje, eram frustradas. Muito pelo contrário, as mulheres tinham outros projetos. A agenda delas era outra. Elas ficavam muito satisfeitas em criarem seus filhos, em serem mães de família, em terem poder de mando dentro de suas casas. O projeto feminino, até os anos 50, foi muito diferente do que o nosso hoje. Hoje é ter carreira, ascensão, é ganhar dinheiro. Nós estamos num percurso muito diferente. Então, enquanto o casamento era o lugar para a procriação, a igreja tinha enorme influência, sobretudo conduzindo os casais na forma estes deveriam se relacionar sexualmente. O sexo deveria ser breve, objetivo. Uma vez que a mulher engravidasse eram suspensas as relações sexuais. Durante a amamentação também não se podia ter relações sexuais. A partir do século XIX, a medicina também passa a exercer um papel importante na sexualidade, tentando associar a família feliz à família saudável. A família saudável era aquela que tinha filhos saudáveis, bem constituídos. Por isso, também se recomendava aos casais que não perdessem tanto tempo rolando na cama durante as relações, porque isso enfraqueceria os corpos. Já o século XX é o da descoberta do corpo, do esporte, da modificação da indumentária, da entrada da mulher no mercado de trabalho, do aparecimento da lingerie. Claro que estas questões impactam no casamento. Discussões de relações mais igualitárias começam a se fazer presentes. À medida que a mulher foi ganhando dinheiro, passou a controlar a sua procriação e foi em busca do prazer. Este se tornou um tema novo para os casais. Hoje as coisas estão bastante diversificadas também. Os homens também alegam estar com dor de cabeça, o que antes eram coisas das mulheres. Os homens estão sentindo o impacto destas transformações. A autoestima masculina está tão baixa que eles passaram a usar o artifício da dor de cabeça para não ter relações sexuais.
(risos)

Sul21 – O comportamento na era pós-moderna ou contemporânea caminha para termos uma futura sociedade poligâmica e bissexual?

Mary Del Priore – Não. No Brasil ainda se casa muito. O casamento ainda é uma instituição importante. O número de divórcios aumentou, mas ainda há a preocupação em constituir famílias, em se unir no matrimônio. A família ainda é uma instituição muito valorizada.  As relações parentais mudaram muito. As mulheres, por estarem no mercado de trabalho, passaram a ter filhos cada vez mais tarde. Então, quando eles vêm, são extremamente valorizados. O número de filhos caiu brutalmente para uma média de dois por família, não de seis como na década de 60. Tudo isso leva a uma valorização da vida do casal monoparental. Portanto, as coisas mudaram. O que é interessante, segundo a pesquisa do IBGE, é que homens e mulheres são realmente sexos opostos, no sentido de que eles definições muito diversas a respeito do casamento. Para o homem brasileiro, o casamento é o momento de constituir família. Portanto, brigas ou infidelidades não causam tantos arranhões. Para as mulheres é uma questão de amor e sobretudo o desejo de viver uma paixão. Quando elas não veem cumprida esta agenda, querem mudar de parceiro. Por isso, temos aumento de casamentos e também de divórcios.
Podemos terminar como na Alemanha, onde na maior parte dos domicílios vivem pessoas sozinhas. Não se precisa do outro. Você faz sexo sozinho, se comunicando e masturbando através da telinha.

Sul21 – Segundo dados do IBGE, as pessoas casam e se separam cada vez mais. Isto não seria uma espécie de poligamia?

Mary Del Priore - Poligamia eu acho que não. Mas eu até encerro meu livro dizendo que esta espetacularização do sexo trazida pela internet — em que se pode fazer sexo virtual, ver sexo na telinha, sozinho diante da mesma — , aponta para um individualismo crescente das relações. Podemos ficar como a Alemanha, onde na maior parte dos domicílios vivem pessoas sozinhas. Não se precisa do outro. Você faz sexo sozinho, se comunicando e masturbando através da telinha. Então, há autores que defendem que esta é a nossa tendência também. E há outros, mais liberais, que dizem que isto são experiências como outras quaisquer. Eu costumo dizer que, como historiadora, eu só posso olhar para o retrovisor. Eu não consigo projetar nada, isto é para os sociólogos. Mas, diante destas visões todas, acho que ninguém ousa dizer o que será daqui 30 anos.

Sul21 –  A decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a união homoafetiva e o aumento crescente de gays assumidos causam reações violentas no país. Parece que a homossexualidade passou a existir só agora.

Mary Del Priore – A história da homossexualidade no Brasil é horrível. Os casais homossexuais sempre sofreram brutalmente. O jovem homossexual, seja homem ou mulher, sofre muito com a segregação familiar. Se olharmos para trás, veremos que esta perseguição começa no século XVI, com as visitas da Santa Inquisição ao Brasil. Lá, já perseguiam os sodomitas. Eles perseguiam mais os homens do que as mulheres. Eles achavam que aquilo que as mulheres podiam fazer entre elas, como não haveria desperdício de sêmen, não era um pecado tão grave, diferentemente das relações entre homens. Toda a medicina do século XIX vai perseguir o que foi chamado de “missexuais”. Vai definir que estas pessoas são doentes. Vemos isto inclusive nos manuais de educação sexual que são publicados durante o governo Getúlio Vargas. A intenção era extirpar os homossexuais do Brasil. A obsessão pela virilidade torna o homossexual um bode expiatório. Como se não bastasse, o anúncio da chegada da Aids no Brasil, nos anos 80, foi feito no programa Fantástico, com o locutor, de voz fúnebre, anunciando a doença como uma doença de gays. Até os anos 80, os gays foram sempre associados a coisas terríveis das quais eles não tinham a menor culpa. Foi algo desumano e que só se explica pelo profundo machismo da nossa sociedade.