Ciranda
- A impressão que se tem é a de que se está entrando no túnel do tempo
e retornando alguns séculos no calendário gregoriano. Aos olhos dos
mais desavisados, pode parecer estranho e até mesmo irreal que ainda
hoje existam pessoas sendo submetidas à escravidão em nosso país. Mas
infelizmente essa gravíssima violação aos direitos humanos é uma dura
realidade no Brasil do século 21.
Milhares de pessoas ainda são submetidas
a trabalho forçado e a condições degradantes no campo e na cidade.
Relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT), de 2005,
estimava em 25 mil o número de trabalhadores mantidos em condições
análogas a de escravos no país. Destes, 80% atuavam na agricultura e
17%, na pecuária. Os números do organismo internacional, no entanto,
parecem estar subdimensionados se levarmos em conta o total de
trabalhadores libertados pelos agentes do governo federal na gestão do
presidente Lula. De 2003 a maio de 2010, foram retirados da condição de
escravos 31.297 pessoas, segundo dados do Ministério do Trabalho e
Emprego.
A prática criminosa não está restrita
apenas ao Brasil e se espalha pelos continentes. A OIT detectou no mesmo
ano, que mais de 12 milhões de trabalhadores eram vítimas da sanha de
latifundiários e empresários inescrupulosos pelo mundo.
O fenômeno da globalização nos anos 90
foi decisivo para abrir as fronteiras dos países ao capitalismo em
escala mundial. As transações comerciais e financeiras disseminaram
ainda mais a busca pelo lucro rápido e exponencial. A maneira encontrada
por esses patrões, para reduzir o preço final de seus produtos, se deu
pela drástica redução do custo-trabalho. Os escravagistas do século 21
não prendem mais seus trabalhadores ao tronco e nem infligem chibatadas.
A escravidão contemporânea tem suas particularidades, mas nem por isso
esses patrões deixam de ser considerados escravocratas. O artigo 149 do
Código Penal brasileiro é absolutamente claro na definição do que seja
praticar escravidão nos dias de hoje.
"Reduzir alguém a condição análoga à de
escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva,
quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer
restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida
contraída com o empregador ou preposto", afirma o texto penal.
Apesar de soar extemporânea, a prática
escravista está arraigada no cotidiano brasileiro mais do que se pode
imaginar. "É uma mentalidade da elite econômica e política do país",
afirma o senador José Nery (PSOL-PA), que preside a Frente Parlamentar
Mista pela Erradicação do Trabalho Escravo no Brasil.
Segundo o senador, a bancada ruralista
no Congresso Nacional impede há 15 anos a aprovação de uma Proposta de
Emenda à Constituição (PEC) para coibir a prática criminosa. Neste
momento, tramita na Câmara dos Deputados a PEC 438 em defesa da
erradicação do trabalho escravo no país. A PEC 438 já foi aprovada em
primeira e segunda votação no Senado e em primeira, na Câmara, e aguarda
a ida ao plenário para a segunda votação. O dispositivo é necessário
para que a matéria possa se transformar em lei.
O sucesso de sua aprovação ainda este
ano está ameaçado. "Apresentamos 280 mil assinaturas ao presidente da
Câmara dos Deputados (Michel Temer) e a todos os lideres partidários
pedindo a urgência na votação da PEC. Mas as lideranças do governo estão
criando várias dificuldades. Dizem que não querem discutir e votar
matérias polêmicas no período pré-eleitoral. Ora é nossa obrigação
aprovar toda e qualquer matéria que diga respeito à dignidade e ao
bem-estar das pessoas. Não concordo com esse tipo de atitude que impede a
legislação de avançar no combate ao trabalho escravo no Brasil",
ressalta Nery.
O parlamentar quer pelo menos incluir a
matéria na pauta de votação da Câmara logo após o término do segundo
turno das eleições. "Estamos tentando arrancar do presidente da Câmara e
dos líderes partidários esse compromisso."
O secretário de políticas sociais da
Central Única dos Trabalhadores (CUT), Expedito Solaney, é menos
otimista que Nery. O sindicalista considera que a PEC só será votada na
próxima legislatura. "Entre por na pauta e não aprovar é melhor jogar
para a frente. É melhor recuar taticamente. O Congresso é muito
conservador, a maioria é ruralista", afirma.
Pelo texto da PEC 438, as propriedades
rurais e urbanas que forem flagradas com trabalhadores escravos serão
expropriadas para efeito de reforma agrária no campo e destinadas a
programas sociais de moradia popular em áreas urbanas.
O arco de alianças eleitoral e da base
de sustentação do governo, além de interesses econômicos dos
parlamentares, impede que a matéria avance com celeridade em Brasília.
Apesar de ninguém defender publicamente o trabalho escravo, na prática
ele é tolerado.
O ex-presidente da Câmara, deputado
Inocêncio de Oliveira (PR-PE), que teve propriedades flagradas por
auditores fiscais do trabalho com a prática da escravidão, não sofreu
nenhum tipo de punição até hoje. Oliveira chegou a ocupar algumas vezes o
cargo de presidente da República durante o mandato de Itamar Franco.
Mais recentemente o senador João Ribeiro
(PR-TO)( ler o comentário do jornalista André Camargo abaixo, desmentindo parte da matéria) também foi acusado de se utilizar de trabalho escravo dentro de
sua propriedade. O Ministério do Trabalho e Emprego não divulga mais
detalhes sobre o andamento do caso, apenas afirma que informações sobre
pessoas físicas e jurídicas só podem ser divulgadas após o término do
processo administrativo.
O Ministério também mantém uma lista com
o nome de quem usa o trabalho escravo no País. A lista suja, como é
conhecida a relação de escravagistas, é atualizada semestralmente e pode
ser consultada em
http://www.mte.gov.br/trab_escravo/...
CPT X latifúndio Para o bispo emérito de
Goiás e membro da Comissão Pastoral da Terra (CPT), Dom Tomás Balduino,
o trabalho escravo ainda não foi erradicado do Brasil porque mexe com
os interesses dos aliados políticos do governo Lula. O mesmo argumento é
utilizado para explicar a não realização da reforma agrária no país.
"Por que não há reforma agrária? Porque
mexe na terra dos aliados do governo. É uma lógica fácil de entender. O
trabalho escravo cresce com o agronegócio, que é a menina dos olhos da
política governamental. Apesar de ter apresentado um plano de
erradicação para o trabalho escravo, o governo continua elogiando os
usineiros, chamando-os de heróis. A concentração do capital em poucas
mãos com o apoio governamental está criando uma desigualdade social
brutal. O Brasil é o segundo país do mundo em concentração de terra, em
latifúndio. Só perde para o Paraguai", critica o religioso.
Dom Tomás cita o caso da Cosan, holding
do setor sucroalcooleiro, que utiliza trabalho escravo em suas usinas,
para demonstrar a falta de compromisso do agronegócio com a dignidade
humana.
A Cosan é a maior empresa produtora de
áçucar e álcool do mundo. É proprietária das marcas do açúcar União e Da
Barra. Em dezembro de 2008, a companhia também passou a controlar a
operação de ativos da distribuição de combustíveis da Esso. e assumiu o
controle da produção e distribuição dos lubrificantes Mobil. Além dos
setores de alimentos e combustíveis, a Cosan também atua na área de
produção de energia elétrica a partir do bagaço da cana de açúcar.
O exemplo de pujança que a empresa tenta
demonstrar mascara uma realidade nada agradável. A Cosan engrossa a
lista suja de empresas que utilizam o trabalho escravo em suas unidades
divulgada pelo Ministério do Trabalho e Emprego. A companhia ingressou
no ranking escravista no final do ano passado. Seus advogados se
apressaram e obtiveram liminar na Justiça para retirá-la da lista suja. O
Ministério tenta agora cassar a liminar expedida, para inseri-la
novamente na lista dos escravagistas.
Ícone do desrespeito às normas mais
elementares da dignidade humana, a Cosan é responsável, em parceria com a
ExxonMobil, eplo patrocínio do principal prêmio do jornalismo
brasileiro: o Prêmio Esso.
A empresa que pratica escravidão em suas
propriedades também tem seu Conselho de Administração um ex-ministro da
Fazenda. Mailson da Nóbrega integra seu conselho administrativo desde
dezembro de 2007.
Capital paulista abriga escravidão
Prática criminosa cresce no coração do capitalismo com utilização de mão de obra sulamericana na indústria de confecção.
Se engana quem pensa que o trabalho
escravo é uma característica apenas dos rincões mais afastados das áreas
urbanas. Apesar de um maior número de trabalhadores escravizados se
encontrarem na zona rural, a prática criminosa se propaga também na
principal cidade do país.
A indústria da confecção desponta como a
principal área de absorção da mão de obra escrava na cidade. A
Associação Brasileira da Indústria Têxtil calcula que a demanda por
roupa cresce 3% ao ano. Mas assim como no campo, não há estatísticas
oficiais que projetem com segurança o número de pessoas nessas
condições, embora se saiba que não são poucas.
A quase totalidade desses trabalhadores
vem de regiões empobrecidas da Bolívia e do Paraguai, castigadas no
passado recente por décadas de ditadura feroz. "Todos os dias chegam ao
Brasil de três a cinco ônibus lotados de pessoas para trabalharem nessas
oficinas", afirma a Defensora Pública Federal, Daniela Muscari
Scacchetti.
A precariedade das condições de vida em
seus países de origem e a falta de instrução escolar as torna presas
fáceis nas mãos de capitalistas escravagistas. Apesar de os
atravessadores serem as figuras mais visíveis aos olhos do trabalhador
são os grandes magazines os responsáveis pela prática criminosa.
A rede de lojas Marisa, por exemplo, já
levou 49 autos de infração dos auditores fiscais do trabalho e foi
autuada em R$ 600 mil. "Mas a gente acredita que a imensa maioria da
produção têxtil paulista, o que costuma ser comercializado por C&A,
Renner, Riachuelo, Pernambucanas, griffes como a Collins, é resultado de
mão de obra escrava de trabalhadores sulamericanos", conta o chefe da
Seção da Fiscalização do Trabalho da Superintendência Regional de São
Paulo, Renato Bignami.
Além de jornadas extenuantes de
trabalho, precarização das condições de trabalho e do cerceamento à
liberdade, com ameaças a vida do trabalhador e de seus familiares no
país de origem, o valor pago ao trabalhador é irrisório. Para fazer uma
camiseta, recebe em torno de R$ 0,40 a R$ 0,50. Um casaco mais elaborado
que leva até três horas para ficar pronto pode render no máximo R$
1,50. A mesma peça é vendida na loja de departamento por R$ 300.