Dilma não é Serra, que não é FHC. No frigir dos ovos, sequer o Fernando
Henrique de hoje é o mesmo que governou em 1995-2002. Eles são, todos,
diversos, mesmo sendo um a cara do outro, política e socialmente. E se
não acreditam, dêem uma olhada nas taxas de juro praticadas pelo Banco
Central nesses últimos dezesseis anos, a mais efetiva materialização da
principal forma de exploração dos povos e nações nesta fase de domínio
pleno de ordem capitalista em senilidade avançada.
O primeiro turno eleitoral, em 3 de outubro, registrou derrota fragorosa
e histórica do mundo do trabalho diante do grande capital. É simples
expressão patética desse raquitismo social estrutural o esforço
empreendido, nesse segundo turno, para transformar Dilma da Silva,
com ou sem reticências, com ou sem pedidos de desculpas, na expressão
de um Brasil popular, democrático, republicano, social, que o lulismo e o
petismo ajudaram a estrangular nos últimos anos.
O um por cento da votação geral obtido pelos candidatos à presidência do
PSOL, PSTU, PCB e PCO não registra a "infelizmente" "votação baixa"
"das candidaturas identificadas com os partidos de esquerda", como
propõe recente manifesto puxado pela direção do MST. Ao contrário,
constitui o dramático e incontestável registro da defecção política da
população com os partidos e o programa que defendem, bem ou mal, hábil
ou inabilmente, as bandeiras da democracia, do laicismo, da república,
do socialismo. Ou seja, delimita o desconhecimento geral das únicas e
efetivas saídas para a crise histórica e atual de nossa sociedade em
ininterrupto agravamento.
E não devemos culpar a grande mídia pela rejeição da população do
programa do mundo do trabalho e sua adesão a candidaturas e propostas
apoiadas em facções diversas do capital. Repetiremos assim a triste
desculpa do capitão do time goleado: "– Nós jogamos ótimo! Eles jogaram
melhor!". É da natureza da mídia burguesa sufocar seus inimigos
viscerais: o trabalhador organizado e sua luta pela autonomia. O próprio
silêncio da grande mídia não impediu, por exemplo, que alguns
candidatos ao parlamento pelo PSOL obtivessem altas votações,
circunscrevendo em forma inarredável a defecção da população com as
políticas estratégicas psolistas.
A votação mais do que pífia dos partidos ancorados no trabalho e no
socialismo deveu-se certamente a grave erro conjuntural – a liquidação
da unidade dos partidos de esquerda, em favor dos respectivos aparatos,
segundo parece. E se houve razões mais profundas para tal divisão, a
população jamais foi informada sobre elas. Porém, uma Frente de Esquerda
mitigaria, mas não superaria, escore eleitoral que expressou situação
estrutural do movimento social, consolidada muito antes das eleições.
Sem o indiscutível carisma e capacidade de comunicação de Plínio
Sampaio, um PSOL capitaneado por Heloísa Helena talvez obtivesse igual
votação, mas jamais a mesma repercussão. A derrota da ex-senadora em seu
estado natal registra o já sabido – enorme parte de sua alta seara
eleitoral em 2006 não foi colhida nas terras magnânimas das classes
populares, mas nos terrenos inférteis de segmentos médios comumente
conservadores. Consequentemente, jamais rebrotaram ou frutificaram. Com
Marina Silva desempenhando, com o apoio do capital, a função de ponte
para um segundo turno, a ex-senadora assistiria seu antigo escore
eleitoral dissolver-se como sorvete sob o sol abrasador do sertão.
Não podemos também responsabilizar Lula da Silva e o petismo pela enorme
despolitização e desorganização do movimento social, em boa parte
devida à gigantesca cooptação e integração ao Estado, em forma direta ou
indireta, de direções sindicais e populares urbanas e rurais, do
movimento negro organizado etc. O atrelamento de organismos e lideranças
sociais na procura da liquidação da autonomia política, orgânica e
ideológica do mundo do trabalho era condição exigida, pela burguesia,
para a entrega do governo a Lula da Silva e ao petismo. A própria
votação insignificante dos partidos socialistas e classistas qualifica e
fortalece a candidatura de Dilma diante do capital. Lula da Silva,
Dilma e o petismo mostraram-se negociantes honestos e confiáveis.
Entregaram, fresco, como prometido, o peixe que venderam, ainda sendo
pescado.
Entretanto, a ação deletéria do lulismo e do petismo sobre um mundo do
trabalho historicamente frágil e débil talvez tenha sido tão competente
que não poucos segmentos do capital acreditam já desnecessários seus
serviços. Não deixa de ser uma ironia que a despolitização e
desorganização da população, organizada pelo petismo e sindicalismo
colaboracionistas, fertilizaram a adesão multitudinária ao integralismo
evangélico. Cooptação política, social, ideológica e econômica
profundamente conservadora, através de organização popular horizontal e
de proximidade rejeitada pelo petismo quando de sua metamorfose
social-liberal, para melhor manter a desmobilização.
O grande tropeço dos partidos da esquerda que se definem como
anti-capitalistas – PSOL, PCB, PSTU, PCO – foi indiscutivelmente a não
convergência em frente que apontasse para além das eleições, na procura
da aglutinação e extensão das vanguardas políticas e sociais, para
melhor enfrentarem os dramáticos embates com que a população já se
confronta e se confrontará nos próximos tempos, seja qual seja o
vencedor do segundo turno. Movimento unitário que impediria ou minoraria
que essas organizações saíssem do pleito, como saíram, todas,
maltratadas e fragilizadas, mesmo quando aumentaram eventualmente a
representação parlamentar, como no caso do PSOL.
O nível dramático da crise de autonomia do mundo do trabalho no Brasil
ficou registrado na submissão subjetiva das direções de suas já frágeis
organizações. Elas abandonaram incontinenti as posições autonômicas
defendidas para aderirem ao setor considerado mais democrático e mais progressista
do capital, que acabavam de denunciar no primeiro turno. Cambalhota que
registra, no melhor dos casos, as ilusões e dependências
político-ideológicas à burguesia e, no pior, acomodação oportunista à
estrepitosa votação do lulismo-petismo. Paradoxalmente, essa posição
referenda as ilusões dos trabalhadores e da população que optaram pelo voto útil, em Dilma do Lula e no petismo, já no primeiro turno. Se é pra pedir pra deus, pra que rogar pro santo!
A quase totalidade da direção do PSOL abraçou-se com o petismo, deixando
no isolamento dos justos seu candidato à presidência e a pequena
minoria que manteve seus compromissos com este último e com os
princípios que sempre defendeu. Não sabemos qual a dimensão da
resistência no PCB, caso tenha ocorrido, a uma decisão que enterrou, no
mínimo por um muito longo tempo, qualquer credibilidade à sua proposta
de "reconstrução revolucionária". A conclamação automática do PSTU ao
voto nulo perde sentido devido à votação liliputiana de Zé Maria, em
contradição direta com a tradicional auto-proclamação como vanguarda
revolucionária dessa organização, já com trinta anos de história.
O mundo se encontra em fase perigosamente declinante. O pouco que resta
da ordem socialista engolfa-se, em ritmo diverso, que tende a se
unificar, nas últimas fases de movimento da restauração capitalista:
China, Cuba, Vietnã etc. O inevitável domínio da barbárie social,
apontada como ogro medonho, a espantar a humanidade no seu horizonte
histórico, na antevisão genial de Rosa Luxemburgo, no caso da vitória do
capital, aboleta-se já despachado em nossa sala de visita. A luta por
reorganização socialista do mundo, denunciada ontem como miragem
utópica, apresenta-se hoje como solução necessária e imprescindível para
talvez a própria sobrevivência da humanidade.
A solução-superação de uma ordem capitalista globalizada, crescentemente senil e autofágica, se dará, caso se dê,
através de processo necessariamente internacional. Os recuos e avanços,
através do mundo, das lutas sociais, debilitam ou fortalecem os
trabalhadores e seu projeto histórico como um todo. Na Europa, sobretudo
na Grécia, na Itália e na França, os trabalhadores levantam-se em
respostas duríssimas à ofensiva geral contra as populações, delimitando,
nas ruas, a oposição irredutível, entre trabalho e capital, em todas as
esferas sociais. A solução positiva dessas jornadas exige a difícil
construção de direções e de programas que apontem e organizem, sem
concessões de qualquer tipo, a transformação de batalhas ainda
defensivas em assaltos às casamatas e quartéis-generais da ordem
capitalista.
O Brasil desempenha papel determinante no confronto mundial entre
capital e trabalho. O domínio do conservadorismo e do oportunismo no
nosso país-continente pesa duramente sobre a América do Sul, em
especial, e o mundo, em geral. É de urgência atroz a reagrupação,
centralização e intervenção dos núcleos da vanguarda política e social
que se buscam a defesa da autonomia do trabalho diante de todas e
quaisquer expressões do capital. Reagrupação que, separando o joio e o
trigo, facilite a difícil e complexa construção de programa que expresse
as necessidades quotidianas e gerais da sociedade. Definição que exige
integração organizada e crítica às lutas sociais, ainda que pontuais,
ancorada no esforço e na necessidade mundial dos trabalhadores. Um
movimento necessariamente estranho ao cretinismo parlamentar, ao
propagandismo retórico, ao sindicalismo corporativista, ao autismo e ao
dogmatismo partidário.
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