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Um blog de informações culturais, políticas e sociais, fazendo o contra ponto à mídia de esgoto.
sexta-feira, 29 de outubro de 2010
Fenomenologia do Lulismo...
Começa o Fórum Mundial da Educação na Palestina
Na marcha de abertura, palestinos e visitantes pedem justiça, dignidade e respeito aos direitos humanos pelo Estado de Israel.
O Forum Mundial da Educação foi
aberto nesta quinta-feira (29), com a presença de ativistas de todo o
mundo, inclusive do Brasil.
Na tradicional marcha que da a largada aos eventos do FSM, cerca de 8 mil participantes, segundo os organizadores, caminharam pelas ruas de Ramallah, na Cisjordania, território ocupado pelo Estado de Israel.
O encontro segue até o próximo domingo (31) e permitirá aos visitantes conhecerem as dificuldades enfrentadas pelos palestinos para assegurar a educacao. Apesar de todos os obstáculos impostos por uma politica segregacionista - como barreiras, muros, postos de controle -, na Palestina praticamente toda a juventude encontra-se na escola e quase não há analfabetismo. (S.M.)
Confira a abertura em imagens de Hilde Stephansen:
Na tradicional marcha que da a largada aos eventos do FSM, cerca de 8 mil participantes, segundo os organizadores, caminharam pelas ruas de Ramallah, na Cisjordania, território ocupado pelo Estado de Israel.
O encontro segue até o próximo domingo (31) e permitirá aos visitantes conhecerem as dificuldades enfrentadas pelos palestinos para assegurar a educacao. Apesar de todos os obstáculos impostos por uma politica segregacionista - como barreiras, muros, postos de controle -, na Palestina praticamente toda a juventude encontra-se na escola e quase não há analfabetismo. (S.M.)
Confira a abertura em imagens de Hilde Stephansen:
Ver online : Ciranda Palestina
De céticos e cínicos
Emir Sader no Carta Maior
Algumas vozes espalham o ceticismo na imprensa,
nas universidades, de repente passam do ceticismo ao cinismo, já não
importa nada, tudo é ruim, cambalache, tudo é igual, o mundo vai para o
pior dos mundos possíveis.
Foi uma atitude que foi amadurecendo ao longo das ultimas décadas, passou-se a achar que o século XX foi um século muito ruim para a humanidade, o pior dos séculos, etc. Uma atitude de melancolia, de desencanto, de desânimo, de abandono da luta, traduzida no ceticismo, na crítica, que se alastra para jovens gerações, precocemente envelhecidas.
Todos os governos, todos os partidos, todos os processos traem, decepcionam, se corrompem. O socialismo teria dado em totalitarismo – e se soma nisso à direita. Os sindicalistas só querem defender seus interesses. A esquerda e a direita são iguais, etc., etc.
Como as teorias parecem ser maravilhosas e as práticas concretas, não, preferem ficar com as teorias – se possível, misturando um pouco de Nietzsche, de Foucault, de Tocqueville. Pronto, o pessimismo está constituído como visão trágica do mundo.
Encontra-se lugar na velha imprensa para escrever, contanto que não se critique a própria velha imprensa, e se concentre em criticar a esquerda – a URSS, Cuba, a Venezuela, Lula, o PT. Terminam fortalecendo o desinteresse pela política, fortalecendo a direita e desalentando os jovens, enquanto ainda mantêm seu prestígio com eles. Depois de um certo momento já se confundem diretamente com a direita.
O ceticismo pode ser liberal, certamente não é marxista. O marxismo parte da realidade concreta, mas sempre na perspectiva da sua transformação. Esse pessimismo, somado ao catastrofismo, fortalece o mundo tal qual ele é, promove a impotência diante da realidade.
Uma análise dialética da realidade supõe a apreensão das contradições que articulam o concreto, desembocando em linhas de ações e não na perplexidade, na impotência, na passividade, na melancolia e no ceticismo.
No momento em que o povo brasileiro, no seu conjunto, pela primeira vez, começa a melhorar substancialmente suas condições de vida e o expressa em um apoio como nenhum governo teve, é triste ver uma parte da intelectualidade de costas para o povo, melancolicamente continuando a pregar que tudo está muito ruim, pior do que antes, brigando com a realidade, em um isolamento total em relação ao povo e ao pais realmente existente.
O otimismo, por si só, não é revolucionário, mas todos os grandes líderes revolucionários foram e são otimistas, porque acreditam sempre nas possibilidades de transformação revolucionária da realidade. Enquanto o ceticismo leva à inação e, muitas vezes, até mesmo ao cinismo.
Foi uma atitude que foi amadurecendo ao longo das ultimas décadas, passou-se a achar que o século XX foi um século muito ruim para a humanidade, o pior dos séculos, etc. Uma atitude de melancolia, de desencanto, de desânimo, de abandono da luta, traduzida no ceticismo, na crítica, que se alastra para jovens gerações, precocemente envelhecidas.
Todos os governos, todos os partidos, todos os processos traem, decepcionam, se corrompem. O socialismo teria dado em totalitarismo – e se soma nisso à direita. Os sindicalistas só querem defender seus interesses. A esquerda e a direita são iguais, etc., etc.
Como as teorias parecem ser maravilhosas e as práticas concretas, não, preferem ficar com as teorias – se possível, misturando um pouco de Nietzsche, de Foucault, de Tocqueville. Pronto, o pessimismo está constituído como visão trágica do mundo.
Encontra-se lugar na velha imprensa para escrever, contanto que não se critique a própria velha imprensa, e se concentre em criticar a esquerda – a URSS, Cuba, a Venezuela, Lula, o PT. Terminam fortalecendo o desinteresse pela política, fortalecendo a direita e desalentando os jovens, enquanto ainda mantêm seu prestígio com eles. Depois de um certo momento já se confundem diretamente com a direita.
O ceticismo pode ser liberal, certamente não é marxista. O marxismo parte da realidade concreta, mas sempre na perspectiva da sua transformação. Esse pessimismo, somado ao catastrofismo, fortalece o mundo tal qual ele é, promove a impotência diante da realidade.
Uma análise dialética da realidade supõe a apreensão das contradições que articulam o concreto, desembocando em linhas de ações e não na perplexidade, na impotência, na passividade, na melancolia e no ceticismo.
No momento em que o povo brasileiro, no seu conjunto, pela primeira vez, começa a melhorar substancialmente suas condições de vida e o expressa em um apoio como nenhum governo teve, é triste ver uma parte da intelectualidade de costas para o povo, melancolicamente continuando a pregar que tudo está muito ruim, pior do que antes, brigando com a realidade, em um isolamento total em relação ao povo e ao pais realmente existente.
O otimismo, por si só, não é revolucionário, mas todos os grandes líderes revolucionários foram e são otimistas, porque acreditam sempre nas possibilidades de transformação revolucionária da realidade. Enquanto o ceticismo leva à inação e, muitas vezes, até mesmo ao cinismo.
quinta-feira, 28 de outubro de 2010
Jornalista é demitido por fazer matéria sobre marxismo
O jornal Diário do Nordeste demitiu, dia
18 de outubro, o jornalista Dawton Moura, por ter escrito e editado
matéria no Caderno 3 sobre as revoluções marxistas que marcaram os
séculos XIX e XX. O caderno especial, de seis páginas, foi considerado
pela direção da empresa "panfletário" e "subversivo", além de
"inoportuno ao momento atual". Tendo, entre outras fontes, o filósofo
Michael Löwi, que estaria em Fortaleza para lançar o livro "Revoluções"
Sindicato dos Jornalistas do Ceará no Carta Maior
No momento em que a grande mídia distorce e
critica o projeto de indicação aprovado na Assembleia Legislativa do
Ceará, que propõe a criação do Conselho Estadual de Comunicação - sob a
alegação de que vai "cercear a liberdade de expressão" -, o jornal
Diário do Nordeste demitiu de forma arbitrária, no último dia 18 de
outubro, o jornalista Dawton Moura, por ter escrito e editado matéria no
Caderno 3 sobre as revoluções marxistas que marcaram os séculos XIX e
XX.
O caderno especial, de seis páginas, foi considerado pela direção da empresa "panfletário" e "subversivo", além de "inoportuno ao momento atual". Tendo, entre outras fontes, o filósofo Michael Löwi, que estaria em Fortaleza para lançar o livro "Revoluções" (com imagens que marcaram os movimentos contestatórios decisivos para a história dos últimos dois séculos), a matéria foi pautada pelo editor-chefe do jornal, Ildefonso Rodrigues, tendo sido sugerida pela historiadora e professora Adelaide Gonçalves, da Universidade Federal do Ceará (UFC). No entanto, ao comunicar a demissão do jornalista, o editor-chefe se limitou a dizer que "não sabia o conteúdo da reportagem até vê-la publicada".
O caso do jornalista Dawton Moura não se trata de demissão por delito de opinião, pois ele não emitiu, em qualquer momento, juízo de valor sobre o conteúdo da pauta. Perdeu o emprego muito menos por incompetência ou negligência na sua função. Ironicamente, o trabalhador foi dispensado simplesmente por cumprir uma pauta que, depois de publicada, percebeu-se ser contra os interesses da empresa. A direção do jornal não pode alegar, no entanto, que desconhecia o conteúdo da matéria, pois além de ter sido pautado pelo editor-chefe, o assunto foi relatado em, pelo menos, quatro reuniões de pauta que antecederam sua publicação.
A demissão do então editor do Caderno 3 expõe o abismo entre o discurso da grande mídia conservadora, que se diz ameaçada em sua liberdade de expressão - inclusive atacando com este falso argumento o projeto do Conselho de Comunicação do Estado -, e suas práticas cotidianas, restritivas ao exercício profissional dos jornalistas, bem como à livre opinião de colaboradores e leitores.
"O Sindicato dos Jornalistas do Ceará protesta contra esta demissão arbitrária e mantém sua luta pela verdadeira liberdade de expressão para os jornalistas e para todos os brasileiros, manifestada em projetos como o do Conselho de Comunicação", afirma o presidente do Sindjorce, Claylson Martins
O caderno especial, de seis páginas, foi considerado pela direção da empresa "panfletário" e "subversivo", além de "inoportuno ao momento atual". Tendo, entre outras fontes, o filósofo Michael Löwi, que estaria em Fortaleza para lançar o livro "Revoluções" (com imagens que marcaram os movimentos contestatórios decisivos para a história dos últimos dois séculos), a matéria foi pautada pelo editor-chefe do jornal, Ildefonso Rodrigues, tendo sido sugerida pela historiadora e professora Adelaide Gonçalves, da Universidade Federal do Ceará (UFC). No entanto, ao comunicar a demissão do jornalista, o editor-chefe se limitou a dizer que "não sabia o conteúdo da reportagem até vê-la publicada".
O caso do jornalista Dawton Moura não se trata de demissão por delito de opinião, pois ele não emitiu, em qualquer momento, juízo de valor sobre o conteúdo da pauta. Perdeu o emprego muito menos por incompetência ou negligência na sua função. Ironicamente, o trabalhador foi dispensado simplesmente por cumprir uma pauta que, depois de publicada, percebeu-se ser contra os interesses da empresa. A direção do jornal não pode alegar, no entanto, que desconhecia o conteúdo da matéria, pois além de ter sido pautado pelo editor-chefe, o assunto foi relatado em, pelo menos, quatro reuniões de pauta que antecederam sua publicação.
A demissão do então editor do Caderno 3 expõe o abismo entre o discurso da grande mídia conservadora, que se diz ameaçada em sua liberdade de expressão - inclusive atacando com este falso argumento o projeto do Conselho de Comunicação do Estado -, e suas práticas cotidianas, restritivas ao exercício profissional dos jornalistas, bem como à livre opinião de colaboradores e leitores.
"O Sindicato dos Jornalistas do Ceará protesta contra esta demissão arbitrária e mantém sua luta pela verdadeira liberdade de expressão para os jornalistas e para todos os brasileiros, manifestada em projetos como o do Conselho de Comunicação", afirma o presidente do Sindjorce, Claylson Martins
quarta-feira, 27 de outubro de 2010
Uma coisa estranha aconteceu na noite passada em Natal
por Miguel Nicolelis*, especial para o Viomundo
Desde que cheguei ao Brasil, há duas semanas, eu vinha sentindo uma
sensação muito estranha. Como se fora acometido por um ataque contínuo
da famosa ilusão, conhecida popularmente como déjà vu, eu passei esses
últimos 15 dias tendo a impressão de nunca ter saído de casa, lá na
pacata Chapel Hill, Carolina do Norte, Estados Unidos.
Mas como isso poderia ser verdade? Durante esse tempo todo eu
claramente estava ou São Paulo ou em Natal. Todo mundo ao meu redor
falava português, não inglês. Todo mundo era gentil. A comida tinha
gosto, as pessoas sorriam na rua. No aeroporto, por exemplo, não
precisava abrir a mala de mão, tirar computador, tirar sapato, tirar o
cinto, ou entrar no scan de corpo todo para provar que eu não era um
terrorista. Ainda assim, com todas essas provas evidentes de que eu
estava no Brasil e não nos EUA, até no jogo do Palmeiras, no meio da
imortal “porcada”, a sensação era a mesma: eu não saí da América do
Norte! Mesmo quando faltou luz na Arena de Barueri durante o jogo,
porque nem a 25 km da capital paulista a Eletropaulo consegue garantir o
suprimento de energia elétrica para um prélio vital do time do coração
do ex-governador do estado (aparentemente ninguém vai muito com a cara
dele na Eletropaulo. Nada a ver com o Palmeiras), eu consegui me sentir à
vontade.
Custou-me muito a descobrir o que se sucedia.
Porém, ontem à noite, durante o debate dos candidatos a Presidência
da República na Rede Record, uma verdadeira revelação me veio à mente.
De repente, numa epifania, como poucas que tive na vida, tudo ficou
muito claro. Tudo evidente. Não havia nada de errado com meus sentidos,
nem com a minha mente. Havia, sim, todo um contexto que fez com que o
meu cérebro de meia idade revivesse anos de experiências traumatizantes
na América do Norte.
Pois ali na minha frente, na TV, não estava o candidato José Serra,
do PSDB, o “partido do salário mais defasado do Brasil”, como gostam de
frisar os sofridos professores da rede pública de ensino paulistana, mas
sim uma encarnação perfeita, mesmo que caricata, de um verdadeiro
George Bush tropical. Para os que estão confusos, eu me explico de
imediato. Orientado por um marqueteiro que, se não é americano nato,
provavelmente fez um bom estágio na “máquina de moer carne de
candidatos” em que se transformou a indústria de marketing político
americano, o candidato Serra tem utilizado todos os truques da bíblia
Republicana. Como estudante aplicado que ainda não se graduou (fato
corriqueiro na sua biografia), ele está pronto para realizar uns “exames
difíceis” e ser aceito para uma pós-graduação em aniquilação de
caracteres em alguma universidade de Nova Iorque.
Ao ouvir e ver o candidato, ao longo dessas duas semanas e no debate
de ontem à noite, eu pude identificar facilmente todos os truques e
estratégias patenteados pelo partido Republicano Americano. Pasmem
vocês, nos últimos anos, essa mensagem rasa de ódio, preconceito,
racismo, coberta por camadas recentes de fé e devoção cristã, tem sido
prontamente empacotada e distribuída para o consumo do pobre povo
daquela nação, pela mídia oficial que gravita ao seu redor.
Para quem, como eu, vive há 22 anos nos EUA, não resta mais nenhuma
dúvida. Quem quer que tenha definido a estratégia da campanha do
candidato Serra decidiu importar para a disputa presidencial brasileira
tanto a estratégia vergonhosa e peçonhenta da “vitória a qualquer
custo”, como toda a truculência e assalto à verdade que têm
caracterizado as últimas eleições nos Estados Unidos. Apelando
invariavelmente para o que há de mais sórdido na natureza humana, nessa
abordagem de marketing político nem os fatos, nem os dados ou as
estatísticas, muito menos a verdade ou a realidade importam. O objetivo é
simplesmente paralisar o candidato adversário e causar consternação
geral no eleitorado, através de um bombardeio incessante de denúncias
(verdadeiras ou não, não faz diferença), meias calúnias, ou difamações,
mesmo que elas sejam as mais absurdas possíveis.
Assim, de repente, Obama não era mais americano, mas um agente
queniano obcecado em transformar a nação americana numa república
islâmica. Como lá, aqui Dilma Rousseff agora é chamada de búlgara, em
correntes de emails clandestinos. Como os EUA de Bill Clinton, apesar de
o país ter experimentado o maior boom econômico em recente memória, foi
vendido ao povo americano como estando em petição de miséria pelo então
candidato de primeira viagem George Bush.
Aqui, o Brasil de Lula, que desfruta do melhor momento de toda a sua
história, provavelmente desde o período em que os últimos dinossauros
deixaram suas pegadas no que é hoje o município de Sousa, na Paraíba,
passa a ser vendido como um país em estado de caos perpétuo, algo
alarmante mesmo. Ao distorcer a verdade, os fatos, os números e, num
último capítulo de manipulação extremada, a própria percepção da
realidade, através do pronto e voluntário reforço do bombardeio
midiático, que simplesmente repete o trololó do candidato (para usar o
seu vernáculo favorito), sem crítica, sem análise, sem um pingo de
honestidade jornalística, busca-se, como nos EUA de George Bush e do
partido Republicano, vender o branco como preto, a comédia como farsa.
Não interessa que 26 milhões de brasileiros tenham saído da miséria.
Nem que pela primeira vez na nossa história tenhamos a chance de remover
o substantivo masculino “pobre” dos dicionários da língua portuguesa.
Não faz a menor diferença que 15 milhões de novos empregos tenham sido
criados nos últimos anos. Ou que, pela primeira vez desde que se tem
notícia, o Brasil seja respeitado por toda a comunidade internacional.
Para o candidato da oposição esse número insignificante de empregos é,
na sua realidade marciana, fruto apenas de uma maior fiscalização que
empurrou com a barriga do livro de multas 10 milhões de pessoas para o
emprego formal desde o governo do imperador FHC.
Nada, nem a realidade, é capaz de impressionar os fariseus e arautos
que estão sempre prontos a denegrir o sucesso desse país de mulatos,
imigrantes e gente que trabalha e batalha incansavelmente para
sobreviver ao preconceito, ao racismo, à indiferença e à arrogância
daqueles que foram rejeitados pelas urnas e vencidos por um mero
torneiro mecânico que virou pop star da política internacional. Nada vai
conseguir remover o gosto amargo desse agora já fato histórico, que
atormenta, como a dor de um membro fantasma, o ego daqueles que nunca
acreditaram ser o povo brasileiro capaz de construir uma nação digna,
justa e democrática com o seu próprio esforço. Como George Bush ao
Norte, o seu clone do hemisfério sul não governa para o povo, nem dele
busca a sua inspiração. A sua busca pelo poder serve a outros
interesses; o maior deles, justiça seja feita, não é escuso, somente
irrelevante, visto tratar-se apenas do arquivo morto da sua vaidade, o
maior dos defeitos humanos, já dizia dona Lygia, minha santa avó
anarquista. Para esse candidato, basta-lhe poder adicionar no currículo
uma linha que dirá: Presidente do Brasil (de tanto a tanto). Vaidade é
assim, contenta-se com pouco, desde que esse pouco venha embalado num
gigantesco espelho.
Voltando à estratégia americana de ganhar eleições, numa segunda
fase, caso o oponente sobreviva ao primeiro assalto, apela-se para outra
arma infalível: a evidente falta de valores cristãos do oponente,
manifestada pela sua explícita aquiescência para com o aborto; sua
libertinagem sexual e falta de valores morais, invariavelmente associada
à defesa do fantasma que assombra a tradição, família e propriedade da
direita histérica, representado pela tão difamada quanto legítima
aprovação da união civil de casais homossexuais. Nesse rolo compressor
implacável, pois o que vale é a vitória, custe o que custar, pouco
importa ao George Bush tupiniquim que milhares de mulheres humildes e
abandonadas morram todos os anos, pelos hospitais e prontos-socorros
desse Brasil afora, vítimas de infecções horrendas, causadas por abortos
clandestinos.
George Bush, tanto o original quanto o genérico dos trópicos,
provavelmente conhece muitas mulheres do seu meio que, por contingências
e vicissitudes da vida, foram forçadas a abortos em clínicas bem
equipadas, conduzidas por profissionais altamente especializados,
regiamente pagos para tal prática. Nenhum dos dois George Bushes, porém,
jamais deu um plantão no pronto-socorro do Hospital das Clínicas de São
Paulo e testemunhou, com os próprios olhos e lágrimas, a morte de uma
adolescente, vítima de septicemia generalizada, causada por um aborto
ilegal, cometido por algum carniceiro que se passou por médico e
salvador.
Alguns amigos de longa data, que também vivem no exterior, andam
espantados com o grau de violência, mentiras e fraudes morais dessa
campanha eleitoral brasileira. Alguns usam termos como crime lesa pátria
para descrever as ações do candidato do Brasil que não deu certo, seus
aliados e a grande mídia.
Poucos se surpreenderam, porém, com o fato de que até o atentado da
bolinha de papel foi transformado em evento digno de investigação no
maior telejornal do hemisfério sul (ou seria da zona sul do Rio de
Janeiro? Não sei bem). No caso em questão, como nos EUA, a dita grande
imprensa que circunda a candidatura do George Bush tupiniquim acusa o
Presidente da República de não se comportar com apropriado decoro
presidencial, ao tirar um bom sarro e trazer à tona, com bom humor, a
melhor metáfora futebolística que poderia descrever a farsa. Sejamos
honestos, a completa fabricação, desmascarada em verso, prosa e análise
de vídeo, quadro a quadro, por um brilhante professor de jornalismo
digital gaúcho.
Curiosamente, a mesma imprensa e seus arautos colunistas não tecem um
único comentário sobre a gravidade do fato de ter um pretendente ao
cargo máximo da República ter aceitado participar de uma clara e
explicita fabricação. Ou será que esse detalhe não merece algumas mal
traçadas linhas da imprensa? Caso ainda estivéssemos no meio de uma
campanha tipicamente brasileira, o já internacionalmente famoso
“atentado da bolinha de papel” seria motivo das mais variadas chacotas e
piadas de botequim. Mas como estamos vivendo dentro de um verdadeiro
clone das campanhas americanas, querem criminalizar até a bolinha de
papel. Se a moda pega, só eu conheço pelo menos uns dez médicos
brasileiros, extremamente famosos, antigos colegas de Colégio
Bandeirantes e da Faculdade de Medicina da USP, que logo poderiam estar
respondendo a processos por crimes hediondos, haja vista terem sido eles
famosos terroristas do passado, que se valiam, não de uma, mas de uma
verdadeira enxurrada, dessas armas de destruição em massa (de pulgas)
para atingir professores menos avisados, que ousavam dar de costas para
tais criminosos sem alma .
Valha-me Nossa Senhora da Aparecida — certamente o nosso George Bush
tupiniquim aprovaria esse meu apelo aos céus –, nós, brasileiros, não
merecemos ser a próxima vítima do entulho ético do marketing eleitoral
americano. Nós merecemos algo muito melhor. Pode parecer paranoia de
neurocientista exilado, mas nos EUA eu testemunhei como os arautos dessa
forma de fazer política, representado pelo George Bush original e seus
asseclas, conseguiram vender, com grande sucesso e fanfarra, uma guerra
injustificável, que causou a morte de mais de 50 mil americanos e
centenas de milhares de civis iraquianos inocentes.
Tudo começou com uma eleição roubada, decidida pela Corte Suprema.
Tudo começou com uma campanha eleitoral baseada em falsas premissas e
mentiras deslavadas. A seguir, o açodamento vergonhoso do medo
paranóico, instilado numa população em choque, com a devida colaboração
de uma mídia condescendente e vendida, foi suficiente para levar a maior
potência do mundo a duas guerras imorais que culminaram, ironicamente,
no maior terremoto econômico desde a quebra da bolsa de 1929.
Hoje os mesmos Republicanos que levaram o país a essas guerras
irracionais e ao fundo do poço financeiro acusam o Presidente Obama de
ser o responsável direto de todos os flagelos que assolam a sociedade
americana, como o desemprego maciço, a perda das pensões e
aposentadorias, a queda vertiginosa do valor dos imóveis e a completa
insegurança sobre o que o futuro pode trazer, que surgiram como
conseqüência imediata das duas catastróficas gestões de George Bush
filho.
Enquanto no Brasil criam-se 200 mil empregos pro mês, nos EUA
perdem-se 200 mil empregos a cada 30 dias. Confrontado com números como
esses, muitos dos meus vizinhos em Chapel Hill adorariam receber um
passaporte brasileiro ou mesmo um visto de trabalho temporário e
mudar-se para esse nosso paraíso tropical. Eles sabem pelo menos isto: o
mundo está mudando rapidamente e, logo, logo, no andar dessa carruagem,
o verdadeiro primeiro mundo vai estar aqui, sob a luz do Cruzeiro do
Sul!
Fica, pois, aqui o alerta de um brasileiro que testemunhou os eventos
da recente história política americana em loco. Hoje é a farsa do
atentado da bolinha de papel. Parece inofensivo. Motivo de pilhéria. Eu,
como gato escaldado, que já viu esse filme repulsivo mais de uma vez,
não ficaria tão tranqüilo, nem baixaria a guarda. Quem fabrica um
atentado, quem se apega ou apela para questões de foro íntimo, como a
crença religiosa (ou sua inexistência), como plataforma de campanha
hoje, é o mesmo que, se eleito, se sentirá livre para pregar peças
maiores, omitir fatos de maior relevância e governar sem a preocupação
de dar satisfações aqueles que, iludidos, cometeram o deslize histórico
de cair no mais terrível de todos os contos do vigário, aquele que nega a
própria realidade que nos cerca.
Aliás, ocorre-me um último pensamento. A única forma do ex-presidente
(Imperador?) Fernando Henrique Cardoso demonstrar que o seu governo não
foi o maior desastre político-econômico, testemunhado por todo o
continente americano, seria compará-lo, taco a taco, à catastrófica
gestão de George Bush filho. Sendo assim, talvez o candidato Serra tenha
raciocinado que, como a sua probabilidade de vitória era realmente
baixa, em último caso, ele poderia demonstrar a todo o Brasil quão
melhor o governo FHC teria sido do que uma eventual presidência do
George Bush genérico do hemisfério sul. Vão-se os anéis, sobram os
dedos. Perdido por perdido, vamos salvar pelo menos um amigo. Se tal ato
de solidariedade foi tramado dentro dos circuitos neurais do cérebro do
candidato da oposição (truco!), só me restaria elogiá-lo por este
repente de humildade e espírito cristão.
Ciente, num raro momento de contrição, de que algumas das minhas
teorias possam ter causado um leve incômodo, ou mesmo, talvez, um
passageiro mal-estar ao candidato, eu ousaria esticar um pouco do meu
crédito junto a esse grande novo porta-voz do cristianismo e fazer um
pequeno pedido, de cunho pessoal, formulado por um torcedor palmeirense
anônimo, ao candidato da oposição. O pedido, mais do que singelo, seria o
seguinte:
Candidato, será que dá pro senhor pedir pro governador Goldman
ou pro futuro governador Dr. Alckmin para eles não desligarem a luz da
Arena Barueri na semana que vem? Como o senhor sabe, o nosso Verdão
disputa uma vaguinha na semifinal da Copa Sulamericana e, aqui entre
nós, não fica bem outro apagão ser mostrado para todo esse Brazilzão,
iluminado pelo Luz para Todos, do Lula. Afinal de contas, se ocorrer
outro vexame como esse, o povão vai começar a falar que se o senhor não
consegue nem garantir a luz do estádio pro seu time do coração jogar,
como é que pode ter a pretensão de prometer que vai ter luz para todo o
resto desse país enorme? Depois, o senhor vem aqui e pergunta por que eu
vou votar na Dilma? Parece abestalhado, sô!
* Miguel Nicolelis é um dos mais importantes neurocientistas
do mundo. É professor da Universidade de Duke, nos Estados Unidos, e
criador do Instituto Internacional de Neurociência de Natal, (RN). Em
2008, foi indicado ao Prêmio Nobel de Medicina.
terça-feira, 26 de outubro de 2010
Robert Fisk: A vergonha dos Estados Unidos exposta
Roberto Fisk no Vermelho
Como de costume, os árabes sabiam. Eles sabiam tudo sobre as tortura em massa, o promíscuo tiroteio de civis, o escandaloso uso do poder aéreo contra casas de famílias, os cruéis mercenários norte-americanos e britânicos, os cemitérios de mortos inocentes. Todo o Iraque sabia. Porque eles eram as vítimas.
Só nós poderíamos fingir que não
sabíamos. Somente nós, no Ocidente, poderíamos rechaçar cada acusação,
cada afirmação contra os norte-americanos ou britânicos, colocando algum
digno general - vêm à mente o pavoroso porta-voz militar dos EUA, Mark
Kimmitt, e o terrível chefe do Estado Maior, Peter Pace - a nos cercar
de mentiras.
Leia também
Se encontrávamos um homem que tinha sido torturado, nos diziam que era a
propaganda terrorista; se descobríamos uma casa cheia de crianças
mortas em um ataque aéreo dos EUA, também era propaganda terrorista, ou
dano colateral, ou uma simples frase: Nós não temos nenhuma informação
sobre isso.
Claro, nós sempre soubemos que eles tinham sim. E o oceano de memorandos militares que foi revelado no sábado voltou a demonstrar. A Al Jazeera tem chegado a extremos para rastrear as famílias iraquianas cujos homens e mulheres foram mortos em postos de controle estadunidenses - eu identifiquei alguns porque relatei, em 2004, o carro cravado de balas, os dois jornalistas mortos, até o nome do capitão local estadunidense - e foi o The Independent on Sunday o primeiro a alertar o mundo sobre as hordas de pistoleiros indisciplinados que eram levados a Bagdá para proteger os diplomatas e generais. Estes mercenários, que abriram caminho assassinando nas cidades do Iraque, me insultaram quando lhes disse que estava escrevendo sobre eles, em 2003.
É sempre tentador ignorar uma história dizendo que não há nada de novo. A ideia da história antiga é usada pelos governos para esfriar o interesse jornalístico, pois serve para cobrir a inatividade jornalística. E é verdade que os repórteres já tinham visto antes algo assim. A evidência de envolvimento iraniano na fabricação de bombas no sul do Iraque foi vazada pelo Pentágono para Michael Gordon, do New York Times, em fevereiro de 2007.
A matéria-prima, que agora podemos ler, é muito mais duvidosa do que a versão produzida pelo Pentágono. Em todo o Iraque havia material militar iraniano da guerra Irã-Iraque de 1980-1988, e a maioria dos ataques aos americanos foram realizados nesta fase por insurgentes sunitas.
De fato, os relatórios que sugerem que a Síria permitiu que insurgentes atravessassem seu território estão corretos. Eu falei com famílias de atacantes suicidas palestinos, cujos filhos vieram para o Iraque, a partir do Líbano, por meio da aldeia libanesa de Majdal e, depois, pela cidade nortenha síria de Alepo, para atacar americanos.
Mas, ainda que escrita em concisa linguagem militar, aqui está a evidência da vergonha estadunidense. É um material que pode ser usado por advogados em tribunal. Se 66.081 - me encantou esse 81 - é o número mais alto disponível de civis mortos, então, a cifra real é infinitamente maior, uma vez que este registro só se aplica para os civis dos quais os EUA tinham informações.
Alguns foram levados para o necrotério de Bagdá na minha presença, e foi o oficial a cargo que me disse que o Ministério da Saúde iraquiano tinha proibido os médicos de realizar autópsias dos civis levados por soldados dos EUA. Por que foi dada esta ordem? Teria algo a ver com os 1300 relatórios independentes dos EUA sobre a tortura nas instalações policiais iraquianas?
Os americanos não tiveram melhores resultados da última vez. No Kuwait, as tropas dos EUA podiam ouvir como os kuwaitianos torturavam palestinos nos quartéis de polícia depois que a cidade foi libertada das legiões de Saddam Hussein, em 1991. Até mesmo um membro da família real kuwaitiana participou de atos de tortura.
Os estadunidenses não intervieram e se limitaram somente a queixar-se à família real. Aos soldados sempre dizem que não intervenham. Depois de tudo, o que disseram ao tenente do Exército israelense, Avi Grabovsky, quando ele informou ao seu superior, em setembro de 1982, que falangistas aliados de Israel acabavam de matar mulheres e crianças? Nós já sabemos, nós não gostamos, não intervenha. Isso foi durante o massacre no campo de refugiados de Sabra e Chatila.
A citação vem do relatório da Comissão Kahan de Israel em 1983; sabe Deus o que leríamos, se Wikileaks conseguisse pôr as mãos nos arquivos do Ministério da Defesa de Israel (ou a versão síria, para o caso). Mas, é claro, naqueles dias, não sabíamos como usar um computador, muito menos escrever nele. E isso, naturalmente, é uma das lições importantes de todo o fenômeno Wikileaks.
Na Primeira Guerra Mundial, na segunda, ou no Vietnã, a pessoa escrevia seus informes militares em papel. Talvez os apresentasse triplicado, mas poderia enumerar as cópias, rastrear qualquer espionagem e evitar vazamentos. Os documentos do Pentágono estavam realmente escritos em papel. Mas o papel sempre se pode destruir, molhar, despedaçar até a última cópia.
Por exemplo, depois da guerra de 1914-1918, um segundo tenente Inglês matou um dos trabalhadores chineses que haviam saqueado um comboio militar francês. O chinês tinha ameaçado com uma faca ao soldado. Mas, durante o registro de 1930, o expediente dos soldados britânicos foi censurado três vezes, fato pelo qual não ficou do incidente maior rastro que um diário de guerra de um regimento que relatava o roubo, pelo chineses, do trem francês de suprimentos. A única razão pela qual eu estou ciente dessa morte é porque meu pai era o tenente britânico, e ele me contou a história antes de morrer. Naquele tempo não havia Wikileaks.
No entanto, suspeito que esta grande revelação de material da guerra no Iraque tem implicações sérias para jornalistas e exércitos também. Qual é o futuro dos Seymour Hershes e do jornalismo investigativo da velha escola, que o diário Sunday Times costumava praticar? Que sentido tem enviar equipes de jornalistas para investigar crimes de guerra e reunir-se com gargantas profundas militares se, de repente, quase meio milhão de documentos secretos vão acabar flutuando na frente de alguém em um monitor?
Nós ainda não atingimos o fundo da história da Wikileaks, e suspeito que há mais do que alguns soldados americanos envolvidos nesta última revelação. Quem sabe se não chega ao topo? Em suas investigações, por exemplo, a Al Jazeera encontrou um extrato de uma conferência de imprensa de rotina do Pentágono, em novembro de 2005.
Peter Pace, o nada inspirador chefe do Estado Maior conjunto, informa aos repórteres como os soldados deveriam reagir ante o tratamento cruel de prisioneiros, assinalando com orgulho que o dever de um soldado americano é intervir se observar sinais de tortura.
Em seguida, a câmera se move até a figura muito mais sinistra do secretário de Defesa Donald Rumsfeld, que, de repente, interrompe quase num sussurro, para desespero de Pace: Eu não creio que queira o senhor dizer que os soldados são obrigados a interrompê-la fisicamente. Seu dever é denunciá-la.
Desde então, o significado desse comentário - enigmaticamente sádico à sua própria maneira - se perdeu nos diários. Mas agora o memorando secreto Frago 242 lança mais luz sobre essa conferência de imprensa. Presumivelmente enviada pelo general Ricardo Sanchez, a instrução aos soldados é: Supondo que a denúncia inicial confirme que as forças dos EUA não estavam envolvidas no abuso de prisioneiros, não se realizará maior investigação, a menos que o ordene o alto comando.
Abu Ghraib aconteceu sob a supervisão de Sanchez no Iraque. Sanchez também foi, claro, quem não pôde explicar-me, durante uma conferência de imprensa, por que seus homens mataram os filhos de Saddam Hussein em um tiroteio em Mosul, ao invés de capturá-los.
A mensagem de Sanchez, ao que parece, deve ter tido a aprovação de Rumsfeld. Da mesma forma, o general David Petraeus, tão amado pelos jornalistas norte-americanos, teria sido responsável pelo aumento dramático dos ataques aéreos dos EUA no decurso de dois anos: de 229 sobre o Iraque, em 2006, para 447 mil, em 2007. Curiosamente, os ataques aéreos dos EUA no Afeganistão aumentaram 172% desde que Petraeus assumiu o comando militar.
Tudo isso torna ainda mais surpreendente que o Pentágono agora rasgue as vestimentas porque Wikileaks poderia ter sangue nas mãos. O Pentágono tem estado manchado de sangue desde que deixou cair uma bomba atômica sobre Hiroshima em 1945, e, para uma instituição que ordenou a invasão ilegal do Iraque em 2003 - acaso o número de civis mortos não foi ali de 66 mil, de acordo com suas próprias contas, de uns 109 mil registrados? - é ridículo afirmar que Wikileaks é culpado de assassinato.
A verdade, claro, é que se este vasto tesouro de relatórios secretos tivesse demonstrado que o número de mortos era muito menor do que o que a imprensa proclamava, que as tropas dos EUA nunca toleraram a tortura pela polícia iraquiana, que raramente dispararam contra civis nos postos de controle e sempre levaram os assassinos mercenários à justiça, os generais americanos teriam entregado esses registros para a mídia, sem qualquer encargo, nas escadarias do Pentágono. Não só estão furiosos por terem quebrado o sigilo ou porque se tenha derramado sangue, mas porque eles foram pegos dizendo mentiras que nós sempre soubemos que diziam.
Fonte: The Independent
Claro, nós sempre soubemos que eles tinham sim. E o oceano de memorandos militares que foi revelado no sábado voltou a demonstrar. A Al Jazeera tem chegado a extremos para rastrear as famílias iraquianas cujos homens e mulheres foram mortos em postos de controle estadunidenses - eu identifiquei alguns porque relatei, em 2004, o carro cravado de balas, os dois jornalistas mortos, até o nome do capitão local estadunidense - e foi o The Independent on Sunday o primeiro a alertar o mundo sobre as hordas de pistoleiros indisciplinados que eram levados a Bagdá para proteger os diplomatas e generais. Estes mercenários, que abriram caminho assassinando nas cidades do Iraque, me insultaram quando lhes disse que estava escrevendo sobre eles, em 2003.
É sempre tentador ignorar uma história dizendo que não há nada de novo. A ideia da história antiga é usada pelos governos para esfriar o interesse jornalístico, pois serve para cobrir a inatividade jornalística. E é verdade que os repórteres já tinham visto antes algo assim. A evidência de envolvimento iraniano na fabricação de bombas no sul do Iraque foi vazada pelo Pentágono para Michael Gordon, do New York Times, em fevereiro de 2007.
A matéria-prima, que agora podemos ler, é muito mais duvidosa do que a versão produzida pelo Pentágono. Em todo o Iraque havia material militar iraniano da guerra Irã-Iraque de 1980-1988, e a maioria dos ataques aos americanos foram realizados nesta fase por insurgentes sunitas.
De fato, os relatórios que sugerem que a Síria permitiu que insurgentes atravessassem seu território estão corretos. Eu falei com famílias de atacantes suicidas palestinos, cujos filhos vieram para o Iraque, a partir do Líbano, por meio da aldeia libanesa de Majdal e, depois, pela cidade nortenha síria de Alepo, para atacar americanos.
Mas, ainda que escrita em concisa linguagem militar, aqui está a evidência da vergonha estadunidense. É um material que pode ser usado por advogados em tribunal. Se 66.081 - me encantou esse 81 - é o número mais alto disponível de civis mortos, então, a cifra real é infinitamente maior, uma vez que este registro só se aplica para os civis dos quais os EUA tinham informações.
Alguns foram levados para o necrotério de Bagdá na minha presença, e foi o oficial a cargo que me disse que o Ministério da Saúde iraquiano tinha proibido os médicos de realizar autópsias dos civis levados por soldados dos EUA. Por que foi dada esta ordem? Teria algo a ver com os 1300 relatórios independentes dos EUA sobre a tortura nas instalações policiais iraquianas?
Os americanos não tiveram melhores resultados da última vez. No Kuwait, as tropas dos EUA podiam ouvir como os kuwaitianos torturavam palestinos nos quartéis de polícia depois que a cidade foi libertada das legiões de Saddam Hussein, em 1991. Até mesmo um membro da família real kuwaitiana participou de atos de tortura.
Os estadunidenses não intervieram e se limitaram somente a queixar-se à família real. Aos soldados sempre dizem que não intervenham. Depois de tudo, o que disseram ao tenente do Exército israelense, Avi Grabovsky, quando ele informou ao seu superior, em setembro de 1982, que falangistas aliados de Israel acabavam de matar mulheres e crianças? Nós já sabemos, nós não gostamos, não intervenha. Isso foi durante o massacre no campo de refugiados de Sabra e Chatila.
A citação vem do relatório da Comissão Kahan de Israel em 1983; sabe Deus o que leríamos, se Wikileaks conseguisse pôr as mãos nos arquivos do Ministério da Defesa de Israel (ou a versão síria, para o caso). Mas, é claro, naqueles dias, não sabíamos como usar um computador, muito menos escrever nele. E isso, naturalmente, é uma das lições importantes de todo o fenômeno Wikileaks.
Na Primeira Guerra Mundial, na segunda, ou no Vietnã, a pessoa escrevia seus informes militares em papel. Talvez os apresentasse triplicado, mas poderia enumerar as cópias, rastrear qualquer espionagem e evitar vazamentos. Os documentos do Pentágono estavam realmente escritos em papel. Mas o papel sempre se pode destruir, molhar, despedaçar até a última cópia.
Por exemplo, depois da guerra de 1914-1918, um segundo tenente Inglês matou um dos trabalhadores chineses que haviam saqueado um comboio militar francês. O chinês tinha ameaçado com uma faca ao soldado. Mas, durante o registro de 1930, o expediente dos soldados britânicos foi censurado três vezes, fato pelo qual não ficou do incidente maior rastro que um diário de guerra de um regimento que relatava o roubo, pelo chineses, do trem francês de suprimentos. A única razão pela qual eu estou ciente dessa morte é porque meu pai era o tenente britânico, e ele me contou a história antes de morrer. Naquele tempo não havia Wikileaks.
No entanto, suspeito que esta grande revelação de material da guerra no Iraque tem implicações sérias para jornalistas e exércitos também. Qual é o futuro dos Seymour Hershes e do jornalismo investigativo da velha escola, que o diário Sunday Times costumava praticar? Que sentido tem enviar equipes de jornalistas para investigar crimes de guerra e reunir-se com gargantas profundas militares se, de repente, quase meio milhão de documentos secretos vão acabar flutuando na frente de alguém em um monitor?
Nós ainda não atingimos o fundo da história da Wikileaks, e suspeito que há mais do que alguns soldados americanos envolvidos nesta última revelação. Quem sabe se não chega ao topo? Em suas investigações, por exemplo, a Al Jazeera encontrou um extrato de uma conferência de imprensa de rotina do Pentágono, em novembro de 2005.
Peter Pace, o nada inspirador chefe do Estado Maior conjunto, informa aos repórteres como os soldados deveriam reagir ante o tratamento cruel de prisioneiros, assinalando com orgulho que o dever de um soldado americano é intervir se observar sinais de tortura.
Em seguida, a câmera se move até a figura muito mais sinistra do secretário de Defesa Donald Rumsfeld, que, de repente, interrompe quase num sussurro, para desespero de Pace: Eu não creio que queira o senhor dizer que os soldados são obrigados a interrompê-la fisicamente. Seu dever é denunciá-la.
Desde então, o significado desse comentário - enigmaticamente sádico à sua própria maneira - se perdeu nos diários. Mas agora o memorando secreto Frago 242 lança mais luz sobre essa conferência de imprensa. Presumivelmente enviada pelo general Ricardo Sanchez, a instrução aos soldados é: Supondo que a denúncia inicial confirme que as forças dos EUA não estavam envolvidas no abuso de prisioneiros, não se realizará maior investigação, a menos que o ordene o alto comando.
Abu Ghraib aconteceu sob a supervisão de Sanchez no Iraque. Sanchez também foi, claro, quem não pôde explicar-me, durante uma conferência de imprensa, por que seus homens mataram os filhos de Saddam Hussein em um tiroteio em Mosul, ao invés de capturá-los.
A mensagem de Sanchez, ao que parece, deve ter tido a aprovação de Rumsfeld. Da mesma forma, o general David Petraeus, tão amado pelos jornalistas norte-americanos, teria sido responsável pelo aumento dramático dos ataques aéreos dos EUA no decurso de dois anos: de 229 sobre o Iraque, em 2006, para 447 mil, em 2007. Curiosamente, os ataques aéreos dos EUA no Afeganistão aumentaram 172% desde que Petraeus assumiu o comando militar.
Tudo isso torna ainda mais surpreendente que o Pentágono agora rasgue as vestimentas porque Wikileaks poderia ter sangue nas mãos. O Pentágono tem estado manchado de sangue desde que deixou cair uma bomba atômica sobre Hiroshima em 1945, e, para uma instituição que ordenou a invasão ilegal do Iraque em 2003 - acaso o número de civis mortos não foi ali de 66 mil, de acordo com suas próprias contas, de uns 109 mil registrados? - é ridículo afirmar que Wikileaks é culpado de assassinato.
A verdade, claro, é que se este vasto tesouro de relatórios secretos tivesse demonstrado que o número de mortos era muito menor do que o que a imprensa proclamava, que as tropas dos EUA nunca toleraram a tortura pela polícia iraquiana, que raramente dispararam contra civis nos postos de controle e sempre levaram os assassinos mercenários à justiça, os generais americanos teriam entregado esses registros para a mídia, sem qualquer encargo, nas escadarias do Pentágono. Não só estão furiosos por terem quebrado o sigilo ou porque se tenha derramado sangue, mas porque eles foram pegos dizendo mentiras que nós sempre soubemos que diziam.
Fonte: The Independent
A Revolução Mexicana de 1910: de quem e para que?
Escrito por Guga Dorea no Correio da Cidadania | |
Nessa série de artigos sobre os 100 anos da Revolução Mexicana estamos
chegando ao período em que as forças políticas em jogo demonstraram cada
vez mais quais projetos de futuro elas tinham para o México. A data
histórica que ficou oficialmente marcada como a da revolução – 20 de
novembro de 2010 – deixou, na prática, uma questão em aberto até os dias
de hoje.
Qual foi o real significado daquele acontecimento histórico e até que
ponto o denominado neozapatismo é uma tentativa de resgatar o passado em
um momento presente, tendo em vista transformar as atuais configurações
políticas, sociais, econômicas e culturais do México atual? É diante
dessas indagações que pretendemos, daqui para frente, buscar compreender
como o México pode ser um exemplo significativo de como o capitalismo
se desenvolveu entre o final do século XIX e início do XX, até a sua
entrada globalizada e supostamente vitoriosa no mundo do cyberespaço, em
que o passado é concebido como algo a ser velozmente ultrapassado e
desintegrado.
Mas vamos com calma. Como estava o México no ano de sua revolução?
Segundo Adolfo Gilly, entre muitos outros autores, algo em torno de 80%
de suas terras estavam nas mãos dos grandes fazendeiros, o que não
significava ausência de resistência dos camponeses e indígenas, aqueles
que foram alijados do que eles próprios intitulavam culturalmente como
"madre tierra", já mostrando com esse nome a sua forma diferenciada de
lidar e de "olhar" para a natureza.
Para o pensador, o quadro social, econômico, político e cultural do
México de 1910 era o de uma face dupla. De um lado, as reformas
capitalistas, iniciadas no governo de Benito Juárez e fortalecidas, de
forma autoritária, na era Porfírio Díaz, geraram um país marcado pela
entrada fulminante das ferrovias nas terras camponesas e indígenas, o
que correspondeu à utilização de áreas rurais para a produção de
matérias primas a serem exportadas, sobretudo aos mercados dos EUA e da
Grã-Bretanha.
No outro lado dessa instigante equação, apesar dos camponeses e
indígenas, diante dessa nova realidade, terem se transformado, em sua
maioria, em mão de obra útil para os interesses do sistema, foram eles
que revelaram o chamado "México profundo", um país que a subjetividade
capitalista não conseguiu contaminar e muito menos cooptar por completo.
E esse México permanece potencialmente vivo até os dias de hoje.
Luta pelo poder
De um ponto de vista político, Adolfo Gilly nos mostrou ainda como a
luta pela manutenção ou conquista do poder se desenvolveu nas vésperas
da revolução. No âmbito da situação, o receio de Porfírio Díaz era a de
que o avanço de seu opositor mais perigoso, Francisco Madero, viesse a
insuflar e a incentivar os camponeses e indígenas a radicalizarem seu
desejo por uma transformação verdadeira, que fizesse tremer, de fato, os
alicerces de um ainda incipiente, mas poderoso ideologicamente,
capitalismo.
Madero, por sua vez, tinha como principal preocupação realizar mudanças
pacíficas e burguesas de seu interesse antes que os movimentos
camponeses e indígenas radicalizassem a luta. O objetivo, portanto, era o
de conter as massas e promover uma "revolução" aos moldes da crença na
intitulada modernidade, seguindo caminhos já percorridos pelos grandes
centros "desenvolvidos" daquela época.
Foi nessa circunstância que no dia 5 de junho de 1910 Porfírio Díaz
venceu as eleições fraudulentas, apesar de seu anúncio de renúncia.
Resultado: Madero é preso, enfraquecendo o seu objetivo de realizar uma
revolução controlada e supostamente pacífica. Pouco tempo depois
(outubro desse mesmo ano), ele é posto em liberdade condicional, escapa
para os EUA e, logo na seqüência, retorna ao México para se proclamar
presidente provisório do México em San Luis de Potosi, que fica ao norte
do país, porém não na fronteira com os estadunidenses.
Nesse momento, Madero lançou o chamado Plano de San Luis em que, além de
consagrar-se presidente, negou tanto o princípio da reeleição como o
próprio governo de Porfírio Díaz. No artigo 3º do plano, em uma
estratégia política, garantiu também a devolução de terras a seus
antigos proprietários, sobretudo os indígenas, o que seria a sua única
promessa considerada realmente social.
No dia 20 de novembro de 1910, data oficial da revolução, conclamou a
"todos os cidadãos mexicanos" a se armarem e defenderem seu plano de
tomada de poder. No entanto, Madero só iria promover uma tentativa de
entrada definitiva no México em fevereiro de 1911, sendo derrotado no
dia 6 de março. Enquanto isso, os camponeses do estado de Morelos, tendo
o também camponês Emiliano Zapata à frente, pegam em amas e se apoderam
de algumas fazendas, o que assustou Madero, colocando em xeque sua
tentativa de promover a revolução burguesa.
Segundo já nos mostrou o próprio Adolfo Gilly, entre outros pensadores,
como Madero nunca deixou de acenar para um possível acordo de transição
com o governo de Porfírio Díaz, esse avanço camponês acelerou tal
processo, surgindo assim, nos bastidores da política, os Acordos da
Cidade Juarez (fronteira com os EUA), onde o então presidente Díaz mais
uma vez se comprometeu a renunciar e a entregar interinamente o cargo de
presidente para Francisco Leon.
Em linhas gerais, continuando na trilha de Adolfo Gilly, o intuito desse
acordo era tentar dizer que, com a queda de Porfírio Díaz, a revolução
mexicana estava concluída, o que levaria à necessidade e mesmo exigência
de os camponeses entregarem as armas, em uma falsa idéia de que, enfim,
a paz havia chegado ao México.
Zapata e Villa
A paz burguesa não se concretizou e o estado de Morelos, no sul do
México, foi se transformando em um dos eixos principais da resistência
aos acordos de Cidade Juarez. A conexão entre os camponeses que não
tiveram suas terras confiscadas e os novos proletários agrícolas,
cooptados e praticamente escravizados pelos engenhos do açúcar, levou à
criação do Exército Libertador do Sul, dirigido por Zapata.
Quando Madero assumiu o poder, logo veio a proposta para que entregasse
as armas, solicitação negada por ele. Zapata então exige a aplicação
imediata do Plano de Ayala. Firmado em 28 de novembro de 1911, o plano
declarou que o acordo da Cidade Juárez havia significado, na prática, o
descaso e abandono de Madero em relação ao lema dos movimentos
camponeses e indígenas: terra para quem nela trabalha.
Nesse contexto, camponeses e indígenas do sul entraram em guerra e
recuperaram parte de suas terras, mantendo viva a revolução. No entanto,
segundo Adolfo Gilly, o Exército Libertador do Sul era limitado do
ponto de vista da tomada do poder de Estado, não tendo conseguido,
portanto, impedir que a solução da revolução, naquele período, fosse
burguesa. De um lado, apontou ele, a ala mais à direita da burguesia
exigia que governo de Madero reprimisse o movimento camponês e indígena
com maior veemência.
De outro, os movimentos organizados e os pequeno burgueses mais
radicais, representados sobretudo pelo anarquismo de Ricardo Magón,
exigiam a imediata devolução das terras para os camponeses e indígenas.
Não acatando as duas exigências, Madero, no meio dessa artilharia
ideológica, foi obrigado a amargar um isolamento político, o que levou à
sua renúncia, em 25 de maio de 1911.
Apesar de apoiar estrategicamente Madero, na luta contra a ditadura
Porfirista, Zapata sempre foi independente em relação à proposta liberal
da revolução. Enquanto isso, a posição de Francisco Villa era
considerada bem menos politizada. No início, ele era de fato aliado à
direção burguesa. Acreditava nas propostas de Madero.
No entanto, esse alinhamento político não significava uma postura
pacífica e subalterna. Pelo contrário, internamente Villa preocupava,
tanto quanto Zapata, a elite burguesa com seu exército, a Divisão do
Norte, sempre atento às reivindicações camponesas e indígenas. A ligação
política entre Villa e Zapata, ao contrário, era uma garantia de que a
queda de Porfírio Diaz não iria se tornar o passo derradeiro da
revolução.
Explicando melhor o quadro político daquele efervescente momento
histórico do México, a ala mais conservadora da burguesia não estava
acreditando que Madero teria forças políticas suficientes para conter o
avanço tanto dos movimentos camponeses e indígenas como da pequena
burguesia mais radical. Segundo a interpretação de Adolfo Gilly,
entretanto, foi o assassinato de Madero e a subida ao poder do General
Victoriano Huerta, representando o grupo conservador e mais autoritário,
que incendiou definitivamente a luta da esquerda pela radicalização da
revolução. Isso porque caiu por terra o que restava do prestígio de
Madero em relação aos movimentos camponeses e indígenas.
Por conta disso, o General Venustiano Carranza foi logo se proclamando
seguidor de Madero, acusando Huerta de "usurpador" do poder. Luta entre
generais pelo poder, ambos, cada um à sua maneira, querendo alijar ou
submeter as massas a seus interesses. Nesse jogo político, Zapata
permaneceu independente politicamente, enquanto Villa se alinhou, no
início, ao General Carranza. Esse, por sua vez, sabia que sem o apoio
logístico das massas organizadas não teria acesso ao poder.
Foi só chegar ao poder, entretanto, para ele recuar em sua posição e
passar a reprimir os movimentos sociais organizados de forma
contundente, desagradando ao grupo pequeno-burguês desenvolvimentista,
representado por Alvaro Obregón, outro general que até então havia
atuado como elo de ligação entre a liderança burguesa da revolução e as
reivindicações de Zapata e Villa. O projeto político de Obregón era o de
garantir o desenvolvimento capitalista, mas com a visão estratégica de
que era importante promover concessões aos camponeses e indígenas,
sempre tendo em mente o enfraquecimento político dos movimentos
revolucionários.
No outro lado dessa realidade extremamente desfavorável para os setores
mais oprimidos da sociedade mexicana, o trator capitalista não conseguiu
devastar o que Adolfo Gilly denominou como "memória coletiva",
sobretudo da cultura indígena, do que aparentemente estava sendo
substituído pela crença no progresso e na homogeneização das relações
humanas e culturais.
Podemos dizer, nesse entrelaçar de idéias, experiências e projetos
políticos, revolucionários e reformistas, que novembro de 1910 sempre
esteve bem mais próximo do que Adolfo Gilly chamou de "revolução
interrompida". Fica então a pergunta: é possível finalizar essa
revolução no mundo contemporâneo? Mas o que é ser revolucionário nos
dias de hoje?
Guga Dorea é jornalista e cientista político. Atualmente é
colaborador do Projeto Xojobil e integrante do Instituto Futuro Educação
(IFE).
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Turquia: o longo caminho da europeização
Havana, (Prensa Latina)
Turquia tem percorrido um longo e escabroso caminho que
já soma várias décadas na tentativa de se aderir definitivamente à
União Européia (UE) como membro de pleno direito.
Muito
aconteceu desde que em 1963 a Comunidade Econômica Européia,
antecessora da UE, subscrevesse o tratado de associação com o estado
turco denominado Acordo de Ancara.
Um
protocolo adicional fixou em 1970 os objetivos da sociedade
fortalecendo as relações comerciais e financeiras entre a eurozona e a
Turquia com a instauração de uma União Alfandegária.
Por
anos, a entrada desse país à UE como membro pleno tem sido motivo de
calorosas controvérsas que ainda não deixam ver a luz ao final do túnel.
Nações
como Alemanha e França oferecram uma férrea resistência que fundamentam
com a ideia de que seria mais conveniente conceder a Turquia um
estatuto de associação privilegiada e nada mais.
O
temor a um aumento da imigração turca e o consiguinte aumento da
influência islâmica dentro a zona contam entre as razões que esgrimem
Berlim e Paris.
A
onda xenófoba que se vive em alguns dos países da UE onde têm ganhado
terreno partidos de extrema direita também não põe fácil o assunto à
candidatura turca.
No
entanto, expecialistas advertem que a verdadeira razão se encontra no
fato de que Turquia conta agora com uns 72 milhões de habitantes e para
2015 se espera que sua população exceda a da Alemanha.
Se
entrasse na UE, Ancara teria em suas mãos o poder de decisão em não
poucas instituições européias graças a sua enorme população de direito, o
que para alguns representa uma ameaça.
Atendendo
ao critério dos analistas, para além de considerações de índole
religiosa ou racial, a oposição à adesão turca constitui, antes de mais
nada, um problema político.
Com olhar no Ocidente
A
aprovação de emendas constitucionais no início de setembro constitui um
importante passo com rumo à integração já que limpa várias das
exigências feitas pelos 27 ao governo da Turquia.
58
por cento do eleitorado turco aprovou em referendo, entre outros, a
eliminação do fator militar da Constituição e a ampliação dos direitos
de setores desfavorecidos.
Recep
Tayyip Erdogan, premiê de Turquia, celebrou a aprovação das emendas por
considerar que as mesmas fazem o país transpassar o limiar para uma
democracia avançada com o olhar no Occidente.
O
chanceler espanhol, Miguel Ángel Moratinos, estimou que a consulta foi
extremamente positiva e demonstrou o compromisso modernizador e a
vocação europeísta da Turquia.
Moratinos confiou em que no futuro sejam superadas as reticências de alguns membros da UE com respeito à incorporação plena.
Mas
para promover a abertura das negociações previstas para 2014 sobre a
eventual entrada da Turquia, o grupo comunitário impõe ainda outras
condições.
O
presidente da Comissão Européia, José Manuel Durao Barroso, assinalou
diferenças culturais e uma mudança de atitude para esse país como
obstáculos que frustram as ambições turcas de unir ao bloco.
A
inserção dessa nação, que tem na UE a seu principal sócio comercial
desde o estabelecimento da união alfandegária em 1996, volta a preocupar
os países comunitários, colocados face à polêmica.
Supostas
violações dos direitos humanos e atritos com Chipre, um membro da UE
que Turquia não reconhece, contam entre os desafios que deverá superar
Ancara
De
qualquer forma, a UE não é alheia às transformações internas que têm
lugar nesse país, as que fortalecem seu papel geopolítico a nível
regional com uma significativa influência econômica.
Segundo
fontes oficiais, os empresários turcos controlam na Europa empresas e
fábricas que somam um total de 500 mil empregados cujas faturações
rondam os 51 milhões de dólares.
A
Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico prevê que
para o ano 2050 Turquia, que cresce a um ritmo de cinco por cento ao
ano, ocupará o segundo lugar entre as economias européias.
segunda-feira, 25 de outubro de 2010
O subjornalismo do JN 45 foi longe demais
MUDANÇA DE COMANDO NA GLOBO
Laerte Braga do sitio grupobeatrice
Os
estragos causados pelo episódio da bolinha de papel atirada contra o
candidato José FHC Serra são de grande monta na REDE GLOBO. A reação
indignada de alguns jornalistas, em São Paulo principalmente, a
preocupação com o bombardeio e desafios de outras redes em torno do
noticiário do JORNAL NACIONAL sobre o episódio, tudo isso e muitos
fatos outros, estão levando a direção geral do grupo a avaliar se
promovem Ali Kamel para cima e afastam o todo poderoso do departamento
de jornalismo, ou se simplesmente entram num acordo e Kamel vai cantar
noutra freguesia.
A bolinha de papel não se desmanchou na água e acabou sendo a gota que faz transbordar.
A
decisão será tomada após as eleições. Carlos Augusto Montenegro,
diretor presidente do IBOPE, aumentou as preocupações do comando do
grupo ao levar a informação que a bolinha de papel terá custado alguns
pontos preciosos a José FHC Serra nas intenções de votos e Dilma teria
hoje algo em torno de 16% de vantagem sobre o tucano.
O
temor da GLOBO não está no fato do JORNAL NACIONAL ter apresentado um
parecer forjado em torno do incidente envolvendo José FHC Serra. A
mentira é intrínseca ao grupo. Mas no risco de crescimento das redes
concorrentes. A RECORDE a mais próxima nos números de audiência e no
que isso pode representar a curto, médio ou longo prazo para o
“esquema”
O
império de Roberto Marinho, pela primeira vez, parece estar sentindo o
golpe, se vendo nas cordas e apostando fichas numa improvável eleição
de José FHC Serra, mesmo assim, a um preço alto demais.
Para
alguns setores do comando do grupo a empresa não é como VEJA. Tem
preocupações com o parecer ser e não pode entrar numa zona de
turbulência sem perspectiva de uma saída tranqüila. Ou pelo menos tenta
fazer crer que é diferenciada. Banditismo de estilo mais nobre. Sangue
azul.
A
sorte de Ali Kamel está ligada à eleição de José FHC Serra e a própria
GLOBO sabe que, a essa altura do campeonato, essa chance é mínima. Nem
coelho da cartola, nem uma legião de coelhos.
E
há quem entenda que o diretor de jornalismo comprometeu a
credibilidade da rede e é preciso recuperá-la o mais rápido possível. O
nível a que a grande mídia, GLOBO à frente, levou a campanha, o mais
baixo da história das campanhas presidenciais no Brasil, pode afetar
para além do JORNAL NACIONAL, do departamento de jornalismo, todo
grupo.
Um
episódio mais ou menos semelhante aconteceu em 1982 quando Armando
Nogueira deixou o departamento de jornalismo da rede por conta do
escândalo da PROCONSULT. Àquela época o fato revestiu-se de tal
gravidade que algo inimaginável aconteceu. Brizola foi aos estúdios da
GLOBO numa tentativa da empresa de atenuar os prejuízos causados com
outra tentativa, a de fraude na totalização dos votos para o governo do
estado do Rio.
Foi o primeiro momento na história de impunidade da GLOBO que a turma se viu acuada.
Kamel
não age sozinho e nem monta todo esse sórdido esquema de mentira à
revelia dos donos do império. Faz o que faz com aprovação dos senhores
do “negócio”. A diferença é que os senhores do “negócio” se preservam
nos castelos do baronato Marinho e têm, sempre, um bode expiatório à
mão.
Sem
falar nos interesses que acoplam a GLOBO a um todo que ultrapassa o
setor de comunicações. Os braços são longos a toda a atividade
econômica no País em se tratando de interesses escusos. Ou seja, há
necessidade de prestar conta aos que pagam e ditam os caminhos do
grupo.
Nesta
campanha eleitoral os interesses bilionários em jogo e a aposta de
todas as fichas na campanha de José FHC Serra parecem ter deixado cegos
os moradores do castelo e do PROJAC, uma espécie de centro de
mentiras, boatos e cositas más.
A
turbulência chegou ao auge no laudo falso do perito Ricardo Molina,
prontamente desmentido pelas redes concorrentes e por um fenômeno que a
GLOBO ainda não absorveu inteiramente. A blogsfera. Ou seja, o
conjunto de blogs independentes de grandes e anônimos jornalistas ou
não, a derrubar em cima de cada mentira, a versão global.
Hoje
o número de internautas no País é significativo, a repercussão dos
comentários em blogs, sites, portais, redes de comunicação acaba por
criar uma força quase tão poderosa quanto a GLOBO.
Quase
tão poderosa? É a avaliação de alguns especialistas pelo simples fato
que, nesta eleição a candidata do PT vence por larga margem entre os
eleitores de renda mais baixa (políticas sociais de Lula) e o prejuízo à
GLOBO acontece nas chamadas classes médias, divididas entre os dois
candidatos e ponderável parcela escapando do fascínio do plim plim.
O
poder aquisitivo dos brasileiros aumentou nesses últimos oito anos, há
um orgulho nacional com o papel do Brasil no mundo e o que esse novo
perfil provoca no mundo da comunicação não foi ainda tratado
corretamente pela GLOBO, a mídia privada como um todo, não foi absorvido
o que quer dizer que nessa nova realidade ainda tateiam apesar de
todos os esforços para diminuir o impacto da transformação.
Foi visível na campanha de Obama, é visível na campanha de Dilma.
Tornou-se mais difícil mentir, enganar, características do grupo e da mídia privada.
O
que não quer dizer que até domingo, 31 de outubro, dia da votação,
todo o grupo não vá se empenhar na campanha de José FHC Serra e na onda
de mentiras e boatos que possam prejudicar Dilma Roussef.
Nem
tem como. Equivaleria a um pouso de barriga e os riscos de um incêndio
são altos demais numa eventual mudança de posição (fora de propósito),
ou correção de rota para uma área neutra.
A gênese da GLOBO é a mentira e o DNA preserva suas principais características até o último suspiro.
O que assusta os donos do “negócio” para além da derrota eleitoral? Um monte de fatores.
Surge
uma discussão no Brasil impensável há meses atrás, falo de proporções.
Até que ponto é possível a uma empresa/famílias manter o monopólio das
comunicações e associada a empresas outras (menores), mas fechando o
cerco em torno de quem ainda lê jornal impresso, revistas e que tais?
O
que é de fato liberdade de expressão? A mentira? O engajamento em
interesses de grupos econômicos nacionais e estrangeiros (associados)?
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Mais do nunca a França precisa de uma esquerda unida
Sabia-se que, depois da decisão, em 20
de outubro, teria de se interromper ou continuar a greve na França.
Sabe-se também que uma lei como a do corte de aposentadorias não será a
última que um governo conservador venha a aprovar, sob o pretexto de
sanear o orçamento e repartir os encargos. Um olhar ao que ocorre do
outro lado do Canal da Mancha mostra já aos franceses tudo o que pode
ocorrer. Mais do que nunca se precisa, na França, de uma esquerda unida:
para o movimento grevista atual e para tudo o que dele possa advir. O
artigo é de Michael Krätke.
Michael R. Krätke - SinPermiso
Milhões de franceses perderam a paciência
nestes últimos dias e se puseram na ofensiva, protestando contra a
reforma das aposentadorias.
Por duas vezes, já – em 1995 e em 2003 -, atrevimentos parecidos, camuflados de projetos de reforma naufragaram no rompante dos protestos de massas nas ruas. Várias cabeças representativas da classe política rodaram pela arena. Agora Sarkozy também tem de temer por sua sobrevivência política. O cenário não oferece dúvida: se ele perde esta batalha pode ir se despedindo de sua reeleição em 2012. Se o movimento de protesto triunfa a esquerda terá melhores perspectivas do que teve até agora para ganhar as presidenciais.
A idade de aposentadoria legal teria de passar de 65 para 57 e de 60 a 62 para uma aposentadoria antecipada, não integral. Nestes últimos casos, o número de anos de contribuição para conseguir uma aposentadoria máxima passou já de 37, 5 para 41. Uma das consequências, segundo estatísticas da União Européia é que 13% dos aposentados se encontram hoje, na França, abaixo da linha da pobreza (na Alemanha, essa quantia é de 17% e na Grã Bretanha, 30%). Trabalhar durante mais tempo para ter uma aposentadoria mais baixa, como ocorre aos alemães ou aos britânicos? De maneira alguma: a maioria dos franceses quis vetar esse excesso.
A onda de manifestações, a série de greves e bloqueios massivos, longe de minguar, não pararam de crescer, dia após dia. Até o começo da semana passada, lançaram-se às ruas diariamente mais de 3 milhões de pessoas. Os estudantes do ensino médio e universitário se uniram num movimento de greve. Mais de 1200 centros de ensino médio e muitas universidades fizeram greve. A classe política francesa tem, desde maio de 1968 um pânico inveterado da aliança entre estudantes e operários. Pois agora somaram-se os aposentados...
Os caminhoneiros confluem no movimento grevista. Antes como agora, eles se aposentam aos 55 anos. Sua operação padrão paralisou estradas francesas: o acesso aos depósitos de combustível e petróleo, a distritos industriais inteiros, deixou muitos estabelecimentos fechados. É evidente: na França houve e segue havendo solidariedade entre quem chamamos de trabalhadores assalariados.
Sarkozy intransigente
Inimaginável na Alemanha, apesar de todos os inconvenientes de tráfego, apesar da ameaça de suspensão do fornecimento de energia elétrica, apesar da previsível escassez na provisão de alimentos, apesar alvoroços e algazarras, uma folgada maioria de franceses apóia o movimento grevista nacional. Todas as pesquisas coincidem: entre 70% e 75% da população total rechaçam a reforma de Sarkozy e defendem o protesto. Para 84% dos jovens entre 18 e 24 anos, a aposentadoria se converteu numa promessa enganosa de uma futuro nebuloso. Além disso, dois terços dos franceses acreditam que as greves deveriam ter ocorrido desde o princípio de uma maneira mais radical. Por que não passar a uma greve geral indefinida? 50% dos franceses apoiariam.
É verdade que a esquerda estava dividida, mas pôde colocar-se, junto aos sindicatos, na cabeça do movimento. No Senado, os socialistas manobraram para ganhar tempo, apresentando centenas de emendas à lei de reforma, para adiar a votação final. Isso ajudou aos que protestavam nas ruas, sobretudo a comunistas e trotskistas, que exigiam um referendum sobre a questão das aposentadorias.
Nicolas Sarkozy se manteve duro até o final. Tratou por vários meios de dividir o movimento, apontando sobretudo aos poucos sindicatos homogêneos. Houve pequenas concessões – por exemplo, para mães com mais de três filhos -, para desprender algumas centrais sindicais da frente grevista. No fim das contas, todas essas manobras deram em nada, embora François Chérèque, chefe da central socialista CFDT tenha chegado a entrar em negociações. Mas quando se viu que o primeiro ministro Fillon não tinha outra coisa a oferecer senão cosméticos do projeto de reforma, não tardaram a dissipar as dúvidas. O Ministério do Interior fez das suas e manipulou sem escrúpulos as cifras e as informações. Três milhões e meio de grevistas e manifestantes foram reduzidos, como na semana anterior, a menos de um milhão. Mas não se pode negar que o corte de pensões afeta a todos. A paz e a ordem deixaram de ser o primeiro dever cidadão.
Um olhar através do canal da Mancha
Há que se enfrentar a verdade, arguía o governo: se a expectativa de vida segue aumentando, também há que se trabalhar mais tempo. Compare-se com o que ocorre nos outros países da União Européia e dêem-se conta do que fazem. Mas isso de pouco adianta a Sarkozy e a Fillon, porque mais de dois terços dos franceses consideram simples desfaçatez a pretensão de converter as aposentadorias em bode expiatório do déficit orçamentário. Se a caixa estatal está vazia, algo terá a ver com os atos de conciliação e com o resgate dos grandes bancos afetados, com as isenções fiscais às empresas e às entidades financeiras, muitas das quais causaram a crise financeira. Fala-se num “hiato geracional”; é claro que não se entende por que não se fala de um “hiato de justiça”.
Até agora as greves vinham se decidindo no dia a dia, e isso também por causa da certeza de que, depois de sua votação no Senado, as coisas seriam muito diferentes e a reforma iria se tornar lei. Independente do que a maioria dos franceses pensa. Sabia-se que, depois da decisão, em 20 de outubro, teria de se interromper ou continuar a greve. Sabe-se também que uma lei como a do corte de aposentadorias não será a última que um governo conservador venha a aprovar, sob o pretexto de sanear o orçamento e repartir os encargos. Um olhar ao que ocorre do outro lado do Canal da Mancha mostra já aos franceses tudo o que pode ocorrer. Mais do que nunca se precisa, na França, de uma esquerda unida: para o movimento grevista atual, e para tudo o que dele possa advir.
(*) Michael R. Krätke, membro do Conselho Editorial de SINPERMISO, é professor de política econômica e direito tributário na Universidade de Amsterdã. É pesquisador associado ao Instituto Internacional de História Social desta mesma Universidade e é catedrático de economia política e diretor do Instituto de Estudos Superiores da Univesidade de Lancaster no Reino Unido.
Tradução: Katarina Peixoto
Por duas vezes, já – em 1995 e em 2003 -, atrevimentos parecidos, camuflados de projetos de reforma naufragaram no rompante dos protestos de massas nas ruas. Várias cabeças representativas da classe política rodaram pela arena. Agora Sarkozy também tem de temer por sua sobrevivência política. O cenário não oferece dúvida: se ele perde esta batalha pode ir se despedindo de sua reeleição em 2012. Se o movimento de protesto triunfa a esquerda terá melhores perspectivas do que teve até agora para ganhar as presidenciais.
A idade de aposentadoria legal teria de passar de 65 para 57 e de 60 a 62 para uma aposentadoria antecipada, não integral. Nestes últimos casos, o número de anos de contribuição para conseguir uma aposentadoria máxima passou já de 37, 5 para 41. Uma das consequências, segundo estatísticas da União Européia é que 13% dos aposentados se encontram hoje, na França, abaixo da linha da pobreza (na Alemanha, essa quantia é de 17% e na Grã Bretanha, 30%). Trabalhar durante mais tempo para ter uma aposentadoria mais baixa, como ocorre aos alemães ou aos britânicos? De maneira alguma: a maioria dos franceses quis vetar esse excesso.
A onda de manifestações, a série de greves e bloqueios massivos, longe de minguar, não pararam de crescer, dia após dia. Até o começo da semana passada, lançaram-se às ruas diariamente mais de 3 milhões de pessoas. Os estudantes do ensino médio e universitário se uniram num movimento de greve. Mais de 1200 centros de ensino médio e muitas universidades fizeram greve. A classe política francesa tem, desde maio de 1968 um pânico inveterado da aliança entre estudantes e operários. Pois agora somaram-se os aposentados...
Os caminhoneiros confluem no movimento grevista. Antes como agora, eles se aposentam aos 55 anos. Sua operação padrão paralisou estradas francesas: o acesso aos depósitos de combustível e petróleo, a distritos industriais inteiros, deixou muitos estabelecimentos fechados. É evidente: na França houve e segue havendo solidariedade entre quem chamamos de trabalhadores assalariados.
Sarkozy intransigente
Inimaginável na Alemanha, apesar de todos os inconvenientes de tráfego, apesar da ameaça de suspensão do fornecimento de energia elétrica, apesar da previsível escassez na provisão de alimentos, apesar alvoroços e algazarras, uma folgada maioria de franceses apóia o movimento grevista nacional. Todas as pesquisas coincidem: entre 70% e 75% da população total rechaçam a reforma de Sarkozy e defendem o protesto. Para 84% dos jovens entre 18 e 24 anos, a aposentadoria se converteu numa promessa enganosa de uma futuro nebuloso. Além disso, dois terços dos franceses acreditam que as greves deveriam ter ocorrido desde o princípio de uma maneira mais radical. Por que não passar a uma greve geral indefinida? 50% dos franceses apoiariam.
É verdade que a esquerda estava dividida, mas pôde colocar-se, junto aos sindicatos, na cabeça do movimento. No Senado, os socialistas manobraram para ganhar tempo, apresentando centenas de emendas à lei de reforma, para adiar a votação final. Isso ajudou aos que protestavam nas ruas, sobretudo a comunistas e trotskistas, que exigiam um referendum sobre a questão das aposentadorias.
Nicolas Sarkozy se manteve duro até o final. Tratou por vários meios de dividir o movimento, apontando sobretudo aos poucos sindicatos homogêneos. Houve pequenas concessões – por exemplo, para mães com mais de três filhos -, para desprender algumas centrais sindicais da frente grevista. No fim das contas, todas essas manobras deram em nada, embora François Chérèque, chefe da central socialista CFDT tenha chegado a entrar em negociações. Mas quando se viu que o primeiro ministro Fillon não tinha outra coisa a oferecer senão cosméticos do projeto de reforma, não tardaram a dissipar as dúvidas. O Ministério do Interior fez das suas e manipulou sem escrúpulos as cifras e as informações. Três milhões e meio de grevistas e manifestantes foram reduzidos, como na semana anterior, a menos de um milhão. Mas não se pode negar que o corte de pensões afeta a todos. A paz e a ordem deixaram de ser o primeiro dever cidadão.
Um olhar através do canal da Mancha
Há que se enfrentar a verdade, arguía o governo: se a expectativa de vida segue aumentando, também há que se trabalhar mais tempo. Compare-se com o que ocorre nos outros países da União Européia e dêem-se conta do que fazem. Mas isso de pouco adianta a Sarkozy e a Fillon, porque mais de dois terços dos franceses consideram simples desfaçatez a pretensão de converter as aposentadorias em bode expiatório do déficit orçamentário. Se a caixa estatal está vazia, algo terá a ver com os atos de conciliação e com o resgate dos grandes bancos afetados, com as isenções fiscais às empresas e às entidades financeiras, muitas das quais causaram a crise financeira. Fala-se num “hiato geracional”; é claro que não se entende por que não se fala de um “hiato de justiça”.
Até agora as greves vinham se decidindo no dia a dia, e isso também por causa da certeza de que, depois de sua votação no Senado, as coisas seriam muito diferentes e a reforma iria se tornar lei. Independente do que a maioria dos franceses pensa. Sabia-se que, depois da decisão, em 20 de outubro, teria de se interromper ou continuar a greve. Sabe-se também que uma lei como a do corte de aposentadorias não será a última que um governo conservador venha a aprovar, sob o pretexto de sanear o orçamento e repartir os encargos. Um olhar ao que ocorre do outro lado do Canal da Mancha mostra já aos franceses tudo o que pode ocorrer. Mais do que nunca se precisa, na França, de uma esquerda unida: para o movimento grevista atual, e para tudo o que dele possa advir.
(*) Michael R. Krätke, membro do Conselho Editorial de SINPERMISO, é professor de política econômica e direito tributário na Universidade de Amsterdã. É pesquisador associado ao Instituto Internacional de História Social desta mesma Universidade e é catedrático de economia política e diretor do Instituto de Estudos Superiores da Univesidade de Lancaster no Reino Unido.
Tradução: Katarina Peixoto
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