Em seminário em Brasília, organizado
para discutir experiências internacionais de regulação da mídia, o
ministro Franklin Martins, da Secretaria de Comunicação da Presidência,
deixou clara a urgência de um novo marco regulatório para o setor no
país, que deve ser construído num debate público e transparente com toda
a sociedade, deixando “fantasmas no porão”. Para Unesco, a legislação
da radiodifusão brasileira é atrasada e pouco sustentada no interesse
público.
Num processo que envolveu mais de 30 mil
pessoas em todo o país, a I Conferência Nacional de Comunicação teve
como uma de suas principais resoluções, aprovada por representantes do
governo, da sociedade civil e do empresariado, a necessidade da
construção de um novo marco regulatório para o país. Ultrapassada – da
década de 60 – e pouco democrática, a legislação que hoje rege o setor
tem se mostrado um entrave não apenas para o desenvolvimento da própria
mídia no país como também um obstáculo considerável para a consolidação
da democracia brasileira. A um mês de completar o aniversário de um ano
da I Confecom, o governo Lula dá um passo significativo para transformar
essa realidade e sinaliza: o governo Dilma deve tratar as mudanças
nessa área como prioritárias.
Foi este o tom do discurso,
corajoso, do ministro Franklin Martins, da Secretaria de Comunicação da
Presidência da República, nesta terça (09) durante a abertura do
Seminário Internacional Comunicações Eletrônicas e Convergência de
Mídias, em Brasília. Para uma platéia repleta de empresários,
organizações da sociedade civil, acadêmicos e convidados estrangeiros,
Franklin colocou o dedo numa ferida que, pelo menos publicamente, já
tinha sido reconhecida pelo Executivo Federal desde a Confecom, mas que
até este momento deixava dúvidas sobre quando e o quanto seria de fato
enfrentada. Depois de viajar por diversos países para conhecer como
outras democracias estão lidando com o processo de convergência
tecnológica, foi hora de trazer especialistas internacionais para
Brasília e dar o pontapé público neste debate, “olhando pra frente”,
como ele deixou claro.
“Cada vez mais as fronteiras entre
radiodifusão e telecomunicação vão se diluindo. Em pouco tempo, para o
cidadão será indiferente se o sinal que recebe no celular ou no
computador vem da radiodifusão ou das teles. A convergência de mídia é
um processo que está em curso e ninguém vai detê-lo. Por isso é bom
olhar pra frente, este é o futuro. E regular esta questão será um
desafio, porque sem isso não há segurança jurídica nem como a sociedade
produzir um ambiente onde o interesse público prevaleça sobre os
demais”, afirmou.
O governo reconheceu que, aqui, o desafio se
mostra maior do que em outros países, porque, além da legislação
atrasada, “acumularam-se problemas imensos, que foram sendo encostado ao
longo do tempo”. Para o ministro, a legislação brasileira é um cipoal
de gambiarras, que não enfrenta as questões de fundo, e que inclusive
não responde aos princípios estabelecidos pela própria Constituição
Federal.
“Criou-se, na área de comunicação, uma terra de ninguém.
Todos sabemos, por exemplo, que deputados e senadores não podem ter
concessões de rádio e TV. Mas todos sabemos que eles tem, através de
subterfúgios, e ninguém faz nada. A discussão foi sendo evitada. E a
oportunidade é discutir tudo isso agora, legislando de uma forma mais
permanente, integradora, cidadã e democrática”, disse Franklin Martins.
Fantasmas no sótão
A
pretensão do governo é fazer as mudanças no marco regulatório através
de um processo público, aberto e transparente, para que a sociedade
brasileira como um todo – e não apenas um grupo ou outro – decida seu
caminho. Até o final da gestão Lula, um ante-projeto de lei, que vem
sendo elaborado por um grupo de trabalho interministerial, será
apresentado à equipe da presidente eleita Dilma Rousseff, que então
decidirá quando e como apresentá-lo ao Congresso Nacional. É neste
debate público que o grupo de trabalho deve basear suas proposições.
Um
dos maiores desafios nessa jornada, no entanto, parece ir além da
própria convergência tecnológica e suas inúmeras inovações. Trata-se de,
exatamente, criar as condições para que o debate público de fato
aconteça, de forma plural e participativa. Foi este o desejo da I
Conferência de Comunicação, que agora parece contar com a vontade
política do governo Lula para ser colocado em marcha.
“O problema
é grande. Os fantasmas passeiam por aí arrastando correntes, impedindo
que a gente ouça o que tem que ouvir. Se formos capazes de nos livrar
dos fantasmas e não os deixarmos controlar nossa discussão, avançaremos.
Isso interessa à sociedade como um todo, não é uma discussão apenas
econômica. A comunicação diz respeito à cidadania, à participação
política e à produção cultural, e por isso a sociedade deve participar
diretamente”, afirmou Franklin Martins. E deu o recado: “convido a todos
então a deixar seus fantasmas no sótão, que é onde eles se sentem
melhor. Vamos nos desarmar dos preconceitos. Essa agenda está na mesa e
será realizada, num clima de entendimento ou de enfrentamento”.
Dentre
os fantasmas que precisam ser deixados no porão está a tese – tão
difundida pelos grandes meios de comunicação – de que regulação é
sinônimo de censura à imprensa. Na abertura do seminário internacional,
foi necessário afirmar mais uma vez, para quem já deveria estar
convencido disso, que o Brasil goza de absoluta liberdade de imprensa.
“Essa
história de que a liberdade de imprensa está ameaça é uma bobagem, um
truque, isso não está em jogo. A liberdade de imprensa significa a
liberdade de imprimir, divulgar, de publicar. A essa não deve, não pode e
não haverá qualquer tipo de restrição. Isso não significa que não pode
haver regulação do setor. Vocês verão relatos neste evento de diversas
democracias, e verão que em todas elas há regulação, o que não significa
nada que haja censura”, repetiu.
Sem explicitar, o governo Lula
acabou admitindo que deixou a desejar no campo das comunicações. E para
os participantes da sociedade civil que vieram a Brasília conhecer as
experiências de outros países, talvez esta tenha sido a mensagem mais
alentadora: esta área deve ser tratada com prioridade no governo Dilma.
“Estou
convencido de que a área de comunicação terá, no próximo governo, o
mesmo tratamento que teve a energia no governo Lula. Algo estratégico
para o crescimento. Ou se produz um novo marco regulatório ou vamos
perder o bonde. Em 2008, a radiodifusão faturou R$ 11,5 bilhões; e as
empresas de telecomunicações, R$ 130 bilhões. Em 2009, os números foram
R$ 13 bilhões e R$ 180 bilhões respectivamente. É evidente que, se não
houver regulação, a radiodifusão será atropelada por uma jamanta. E se
não houver o debate, quem vai regular é o mercado. E quando o mercado
regula, quem ganha é o mais forte”, avisou Franklin.
“É necessário
regular, criar políticas públicas e gerar um ambiente para que a
sociedade se sinta não só usuária dos serviços de comunicação, mas
cidadã. Se formos capazes de entender isso, teremos mais vozes falando,
mais opiniões se expressando no debate público. É “mais” e não “menos” o
que está em jogo neste processo”, concluiu.
Mais interesse público
Também
em sintonia com o que apontou a I Confecom e com a linha política
manifestada pela Secretaria de Comunicação, uma das primeiras
participações internacionais no seminário expôs objetivamente os pontos
nevrálgicos da legislação brasileira que precisam avançar para que o
setor, de fato, permita a expressão dessa multiplicidade de vozes. O
canadense Toby Mendel, diretor executivo do Centro de Direito e
Democracia, organização internacional de direitos humanos com foco no
conhecimento legal sobre direitos fundamentais para a democracia,
incluindo o direito à informação, a liberdade de expressão e o direito
de participação, apresentou o resultado de um estudo encomendado pela
Unesco sobre o marco regulatório em 10 grandes democracias, incluindo o
Brasil. E, a partir de padrões internacionais, fez recomendações para o
processo que se inicia em território nacional.
Uma delas é a de
ampliar a transparência e garantir o interesse público nos processos de
renovação das concessões de rádio e TV. “Em muitos países, este momento é
uma oportunidade para avaliar mudanças que precisam ser feitas pelo
concessionário, para apontar eventuais regras que não tenham sido
respeitadas. No Brasil, esta avaliação não acontece”, disse Toby Mendel.
A
prática reforça outros problemas da legislação não enfrentados pelo
Estado brasileiro: a regulação da propriedade privada dos meios – com
medidas como a proibição da propriedade cruzada – e a garantia da
liberdade de expressão.
“A liberdade de expressão vai além do
direito do emissor dizer o que pensa. É também o direito do receptor, do
telespectador, do leitor, receber uma variedade de informações e de
pontos de vista. Se a propriedade dos meios não é regulada, isso pode
até ser ok do ponto de vista do emissor, mas o direito do receptor de
receber idéias plurais começa a ser reduzido. Ou seja, o Estado não pode
simplesmente deixar o mercado agir”, afirmou o consultor da Unesco.
Na
mesma linha, Mendel apontou a importância de regras para a difusão de
conteúdo na radiodifusão, como a proteção de crianças, o combate a
discursos que violem os direitos humanos e a promoção do jornalismo
imparcial. É preciso ainda regulamentar o artigo da Constituição que
garante percentuais para a difusão de conteúdos regionais e
independentes nas emissoras de rádio e TV e garantir o direito de
resposta.
“Tudo isso está na Constituição, mas não é cumprido.
Também é preciso haver um sistema que receba queixas neste sentido, um
órgão regulador independente que pode aplicar sanções diante do
descumprimento dessas regras”, explicou Mendel, que defendeu ainda a
importância do fortalecimento do sistema público de comunicação e da
comunicação comunitária brasileira.
A lista é grande, e foi
sendo recheada com outras sugestões vindas dos representantes dos demais
países presentes ao seminário – o que apenas reforça e confirma o
tamanho do desafio que o Brasil tem pela frente se quiser mesmo mexer
neste vespeiro.
Fotos: Antonio Cruz/Abr