A liderança pública do presidente
Lula é sempre denunciada pelos liberais como de tipo populista, ou de
tipo carismático personalista. Essa caracterização contrasta com o ethos
participativo estimulado pelo governo. Quais são, depois de oito anos,
as principais conquistas democráticas nessa área?
Luiz Dulci
-- Lula não tem nada de populista. Ele sempre defendeu uma sociedade
civil forte e independente, o contrário do que faz o populismo. Sempre
apoiou os movimentos populares autônomos e críticos. Ajudou a construir
muitos deles, nos últimos 35 anos. Aliás, seu carisma, que é
essencialmente vinculado a um projeto coletivo de emancipação social, e
não personalista, afirmou-se justamente nesse trabalho árduo, cotidiano
de conscientização e organização das classes populares. E o governo Lula
empenhou-se, desde o início, em construir uma nova relação do Estado
com a sociedade. Uma relação de diálogo permanente e de respeito pela
autonomia dos movimentos. E, principalmente, de democratização das
decisões. O próprio Lula tem dito que a democracia participativa é uma
das maiores conquistas, uma das marcas do seu governo, a ser preservada e
ampliada. De fato, houve uma mudança completa no modo de elaborar as
políticas públicas. Mudou também, estruturalmente, a forma de
implementá-las e avaliá-las. Antes, as políticas eram decididas
exclusivamente pelos técnicos e dirigentes dos ministérios. Só os
gestores públicos participavam. A partir de 2003, a população invadiu o
processo (e foi convidada a invadilo). As políticas passaram a ser
formuladas junto com os movimentos sociais nas conferências, conselhos e
mesas de diálogo. O maior exemplo disso são as conferências de
políticas públicas. Já foram realizadas 73 conferências nacionais, sobre
os mais diversos temas. Desenvolvimento, geração de emprego e renda,
inclusão social, saúde, educação, meio ambiente, direitos das mulheres,
igualdade racial, reforma agrária, juventude, direitos humanos, ciência e
tecnologia, comunicação, diversidade sexual, democratização da cultura,
reforma urbana, segurança pública, entre muitos outros. Até os
brasileiros que vivem no exterior já puderam participar de duas
conferências, com delegados de dezenas de países. Elas têm, como se
sabe, um formato congressual. Começam nos municípios, depois há os
encontros estaduais, que finalmente convergem para o evento-síntese em
Brasília. Mais de 5 milhões de pessoas participaram dessas conferências,
nas suas várias etapas. Também os conselhos de políticas públicas, que
hoje existem em todas as áreas, com efetiva presença da sociedade civil,
cumprem papel fundamental. Diversos deles foram inteiramente
reformulados e democratizados; outros, que haviam sido extintos no
período neoliberal, foram recriados. É o caso do Conselho Nacional de
Segurança Alimentar (Consea). E outros foram implantados por Lula, como
os conselhos de Desenvolvimento Econômico e Social, da Juventude, das
Cidades, de Participação Social no Mercosul etc. Sem falar nas mesas
permanentes de diálogo: a mesa com as centrais sindicais sobre a
valorização do salário mínimo; a mesa tripartite
canavieiros usineiros governo; e as mesas da agricultura familiar, das
mulheres camponesas, do funcionalismo, dos atingidos por barragens, da
moradia popular... Todos os grandes projetos do governo Lula, inclusive o
PAC e o Minha Casa, Minha Vida, foram previamente debatidos com a
sociedade civil.
As conferências nacionais temáticas não são em geral deliberativas, mas participam do sistema decisório do governo, desde a construção de agenda, de prioridades, até a viabilização de compromissos assumidos com os delegados. Quais são as funções das conferências nacionais na experiência de construção de políticas públicas do governo Lula?
Luiz Dulci --As conferências são deliberativas, sim, pois discutem e aprovam propostas a serem encaminhadas ao Executivo e ao Legislativo. O que elas não são é impositivas, pois isso seria descabido no regime democrático. Trata-se, justamente, de superar essa falsa dicotomia entre representação e participação. Na democracia contemporânea, as instituições representativas são imprescindíveis, ainda que, no caso brasileiro, careçam de reformas profundas. Mas elas não excluem o que Boaventura Santos chamou de uma escuta forte à sociedade. O governo não pode e não deve transferir suas responsabilidades às conferências. Ele as compartilha. Delegados dos ministérios participam ativamente dos grupos de trabalho e das plenárias. Opinam, divergem, concordam, interagem o tempo todo com os cidadãos e os militantes sociais. O próprio presidente Lula compareceu a dezenas de conferências. Isso significa que o governo é parte integrante do processo e compromete-se a levar em conta seus resultados. As deliberações das conferências incidiram fortemente nas políticas públicas implementadas pelo nosso governo. Muitas se tornaram projetos de lei, já aprovados, ou estão em tramitação no Congresso Nacional. Outras, por meio de decretos ou portarias, foram imediatamente postas em prática. E, mesmo quando não era possível concretizá-las de imediato, incorporaram-se à agenda de debates do governo e do país.
Em que medida a discussão e a definição do orçamento nacional podem ser democratizadas? O âmbito nacional impõe obstáculo diverso ao da experiência consagrada do orçamento participativo municipal?
Luiz Dulci -- Em princípio, acho que a democracia participativa pode ser adotada com proveito em todas as esferas de governo. A escuta forte que mencionei será sempre valiosa, por mais complexas e especializadas que sejam algumas políticas. Nas 73 conferências, sem exceção, foram debatidas questões orçamentárias e aprovadas demandas de inversão de prioridades na alocação de recursos. Os conselhos também discutem intensamente temas orçamentários e monitoram de perto a execução dos investimentos públicos. E é claro que as reivindicações negociadas nas mesas permanentes têm impacto direto no orçamento, em benefício dos setores populares. O governo Lula sempre acolheu essas preocupações. No entanto, penso que o chamado ciclo orçamentário isto é, o Plano Plurianual (PPA), a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e o Orçamento propriamente dito (Loas) também pode ser, de alguma maneira, objeto de interlocução específica com a sociedade civil. Já acumulamos uma boa experiência nesse sentido. Mas é preciso encontrar a forma adequada
para fazê-lo. Não acredito, sinceramente, na transposição mecânica do orçamento participativo municipal para o âmbito federal. O OP local tem um caráter de participação direta, inclusive do cidadão individual, que é impossível manter num universo potencial de quase 200 milhões de pessoas. Além disso, a escala territorial é outra, os condicionamentos institucionais são completamente diferentes, o próprio Congresso Nacional tem atribuições na matéria que as Câmaras de Vereadores não possuem. Mas nessa área também é importante a participação social. Será preciso bolar um formato ao mesmo tempo legítimo e eficaz. Talvez ela possa ser feita por meio de entidades populares representativas. A Secretaria-Geral da Presidência chegou a propor aos movimentos sociais um conselho de acompanhamento do ciclo orçamentário. No próximo governo, quem vier a coordenar o diálogo com a sociedade civil poderia, quem sabe, retomar essa ideia.
Em que grau se pode falar na projeção de um sistema federal de participação? Como esse sistema se relacionaria com as funções e a representação do Congresso Nacional?
Luiz Dulci -- Os canais de participação criados e/ou recriados pelo governo Lula conferências, conselhos, mesas de diálogo, ouvidorias etc. já constituem, na prática, um embrião desse sistema. O desafio agora é consolidá-lo, garantindo maior integração entre seus vários instrumentos (das conferências com os conselhos, por exemplo). Além disso, será importante ampliar a qualificação específica para os processos participativos, tanto no governo quanto nos movimentos sociais. Foi o que procuramos fazer com o Programa de Formação de Conselheiros, promovido pela Secretaria-Geral em parceria com a UFMG. Além de quadros do governo, 4.372 lideranças e militantes sociais frequentaram os cursos, gerando uma boa massa crítica. Entre as monografias aprovadas, há algumas que abrem novas perspectivas teóricas e práticas para a democracia participativa. Criar no governo federal a figura do gestor de participação social seria um grande avanço. E é claro que será necessário institucionalizar, mantendo sua flexibilidade política e organizativa, todos os canais que ainda não estão garantidos em lei. Quanto ao Congresso Nacional, como já disse, acho que participação e representação podem e devem ser complementares. Não se trata de substituir uma pela outra, mas de criar entre elas uma saudável dialética política, na qual as duas têm muito a ganhar. Aliás, a Constituição Federal prevê a participação social tanto no Executivo como no Legislativo, com as audiências públicas e os projetos de lei de iniciativa popular.
Na história brasileira, consagrouse, com a herança do período varguista, o formato corporativo de representação de interesses. Em que medida o ethos participativo estimulado pelo governo Lula se relaciona com essa tradição e em que sentido procura ultrapassar seus limites?
Luiz Dulci --Acho que é preciso fazer uma distinção. Nem tudo o que é setorial é corporativo . Há interesses setoriais que não são puramente particulares nem exclusivistas, ou seja, eles não se chocam com os interesses gerais da população. Pelo contrário: servem a eles. É o caso da luta da área da saúde em defesa do SUS, por exemplo, ou da mobilização dos trabalhadores pelo salário mínimo, que é um poderoso fator de desenvolvimento. Mas é importante que os movimentos sociais não sejam setorialistas, que eles dêem conta de inserir suas causas específicas num projeto global de sociedade, capaz de universalizar direitos. Acho que isso está ocorrendo. A luta da agricultura familiar tornou-se também a luta pela segurança alimentar. As centrais sindicais, além dos temas trabalhistas, discutem com o governo aspectos estruturais da política econômica, como a redução dos juros, a ampliação do crédito, os incentivos ao mercado interno, a descentralização industrial. Na verdade, negociam cada vez mais uma estratégia nacional de desenvolvimento. Na crise financeira internacional, isso ficou muito evidente. De imediato, governo e centrais pactuaram um conjunto de medidas para evitar a recessão, sustentar a atividade produtiva e garantir o nível de emprego.
Como a experiência de participação do governo Lula se vincula às tradições dos movimentos sociais? Como fugir aos dilemas da cooptação e do conflito?
Luiz Dulci -- Muitos dos movimentos sociais brasileiros se constituíram na luta contra a ditadura. Com uma cultura, por isso mesmo, fortemente defensiva, autoprotetora, de enorme desconfiança em relação ao Estado. E não podia ser diferente, pois naquela época reagíamos ao Estado-repressor, ao Estado-tecnocrata, ao Estado-cooptador (não raro, essas dimensões se mesclavam). Essa desconfiança se acentuou durante o período neoliberal, com a privatização avassaladora e o empenho sistemático para desconstituir a sociedade civil, desagregá-la, pulverizá-la. No governo Lula, o maior desafio foi inverter essa equação. Fazer com que as classes populares, e suas organizações, assumissem uma atitude criativa perante o Estado. Fazer com que pensassem o Estado como potencialmente a serviço das maiorias sociais. E se dispusessem a interferir nas decisões do Estado, disputando democraticamente as suas escolhas. O que implicava, necessariamente, aproximar-se dele, apropriar-se de um saber sobre as políticas públicas, sem abrir mão da independência nem do direito à crítica. Exercendo a autonomia numa relação politizada com o Estado e não por virar as costas a ele ou por manter-se longe dele, numa atitude de negação absoluta, que acaba por ser paralisante. Estou convencido de que a maioria dos movimentos sociais soube renovar-se culturalmente e assumir um novo protagonismo, sem o qual não haveria sustentação popular para as reformas sociais promovidas pelo governo Lula. É preciso dizer que, nesses oito anos, a imprensa conservadora fez campanha permanente para desqualificar os movimentos sociais e sua relação com o governo. Usou para isso três armas poderosas: a invisibilidade, a desmoralização e a aberta criminalização. Ela simplesmente escondeu, cancelou do noticiário, as principais mobilizações populares do período e as conquistas obtidas, no afã de carimbar as entidades civis como omissas, cooptadas. A julgar pelas TVs, rádios, revistas e jornais, com raríssimas exceções, é como se não tivessem existido as três grandes marchas da classe trabalhadora pelo emprego e pelo salário, cada uma delas levando a Brasília 40 mil, 50 mil participantes; ou os Gritos da Terra, realizados anualmente em todo o país; ou as enormes caravanas da agricultura familiar e da reforma agrária; sem falar nas esplêndidas Marchas das Margaridas, que nunca contaram com menos de 30 mil mulheres do campo; ou as diversas e massivas jornadas de luta estudantil em defesa da escola pública; e os dias nacionais da consciência negra e dos direitos das mulheres, entre tantos exemplos que poderíamos citar, nos mais variados setores da vida brasileira. Toda essa vitalidade democrática foi, na verdade, deliberadamente omitida para não desmentir a tese preconcebida da desmobilização completa dos movimentos e de sua suposta estatização . Em alguns casos, tentou-se criminalizá-los, promovendo CPIs (das ONGs e do MST), quebra de sigilos bancários de militantes, processos judiciais etc. Caso contrário, essa mídia teria que admitir que, se não há mais manifestações contra a Alca, é porque derrotamos a proposta da Alca, e hoje avança a integração soberana dos povos do continente; se não há mais atos públicos contra as privatizações, é porque não há mais privatizações, e sepultou-se o dogma destrutivo do Estado mínimo ; se não há protestos contra o desemprego e o arrocho salarial, é porque o país criou, durante o governo Lula, 14 milhões de novos postos de trabalho e a classe trabalhadora teve expressivos ganhos reais, com forte elevação da massa salarial. O que eles não percebem é que, hoje, os movimentos sociais não estão mais na fase de resistência. Junto com o país, passaram à ofensiva. Já não lutam para impedir a supressão de direitos, como acontecia nos governos de Fernando Henrique, e sim para ampliá-los e universalizá-los. Mobilizam-se, a partir de sua autonomia, para aproveitar os espaços de democracia participativa e alargá-los ainda mais. Querem intensificar o atual ciclo de crescimento econômico, distribuindo cada vez melhor os seus frutos. Lutam para que os recursos do pré-sal beneficiem o conjunto da população e sejam de fato destinados à igualdade social e à revolução educacional, cultural e científica a que o país almeja.
As conferências nacionais temáticas não são em geral deliberativas, mas participam do sistema decisório do governo, desde a construção de agenda, de prioridades, até a viabilização de compromissos assumidos com os delegados. Quais são as funções das conferências nacionais na experiência de construção de políticas públicas do governo Lula?
Luiz Dulci --As conferências são deliberativas, sim, pois discutem e aprovam propostas a serem encaminhadas ao Executivo e ao Legislativo. O que elas não são é impositivas, pois isso seria descabido no regime democrático. Trata-se, justamente, de superar essa falsa dicotomia entre representação e participação. Na democracia contemporânea, as instituições representativas são imprescindíveis, ainda que, no caso brasileiro, careçam de reformas profundas. Mas elas não excluem o que Boaventura Santos chamou de uma escuta forte à sociedade. O governo não pode e não deve transferir suas responsabilidades às conferências. Ele as compartilha. Delegados dos ministérios participam ativamente dos grupos de trabalho e das plenárias. Opinam, divergem, concordam, interagem o tempo todo com os cidadãos e os militantes sociais. O próprio presidente Lula compareceu a dezenas de conferências. Isso significa que o governo é parte integrante do processo e compromete-se a levar em conta seus resultados. As deliberações das conferências incidiram fortemente nas políticas públicas implementadas pelo nosso governo. Muitas se tornaram projetos de lei, já aprovados, ou estão em tramitação no Congresso Nacional. Outras, por meio de decretos ou portarias, foram imediatamente postas em prática. E, mesmo quando não era possível concretizá-las de imediato, incorporaram-se à agenda de debates do governo e do país.
Em que medida a discussão e a definição do orçamento nacional podem ser democratizadas? O âmbito nacional impõe obstáculo diverso ao da experiência consagrada do orçamento participativo municipal?
Luiz Dulci -- Em princípio, acho que a democracia participativa pode ser adotada com proveito em todas as esferas de governo. A escuta forte que mencionei será sempre valiosa, por mais complexas e especializadas que sejam algumas políticas. Nas 73 conferências, sem exceção, foram debatidas questões orçamentárias e aprovadas demandas de inversão de prioridades na alocação de recursos. Os conselhos também discutem intensamente temas orçamentários e monitoram de perto a execução dos investimentos públicos. E é claro que as reivindicações negociadas nas mesas permanentes têm impacto direto no orçamento, em benefício dos setores populares. O governo Lula sempre acolheu essas preocupações. No entanto, penso que o chamado ciclo orçamentário isto é, o Plano Plurianual (PPA), a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e o Orçamento propriamente dito (Loas) também pode ser, de alguma maneira, objeto de interlocução específica com a sociedade civil. Já acumulamos uma boa experiência nesse sentido. Mas é preciso encontrar a forma adequada
para fazê-lo. Não acredito, sinceramente, na transposição mecânica do orçamento participativo municipal para o âmbito federal. O OP local tem um caráter de participação direta, inclusive do cidadão individual, que é impossível manter num universo potencial de quase 200 milhões de pessoas. Além disso, a escala territorial é outra, os condicionamentos institucionais são completamente diferentes, o próprio Congresso Nacional tem atribuições na matéria que as Câmaras de Vereadores não possuem. Mas nessa área também é importante a participação social. Será preciso bolar um formato ao mesmo tempo legítimo e eficaz. Talvez ela possa ser feita por meio de entidades populares representativas. A Secretaria-Geral da Presidência chegou a propor aos movimentos sociais um conselho de acompanhamento do ciclo orçamentário. No próximo governo, quem vier a coordenar o diálogo com a sociedade civil poderia, quem sabe, retomar essa ideia.
Em que grau se pode falar na projeção de um sistema federal de participação? Como esse sistema se relacionaria com as funções e a representação do Congresso Nacional?
Luiz Dulci -- Os canais de participação criados e/ou recriados pelo governo Lula conferências, conselhos, mesas de diálogo, ouvidorias etc. já constituem, na prática, um embrião desse sistema. O desafio agora é consolidá-lo, garantindo maior integração entre seus vários instrumentos (das conferências com os conselhos, por exemplo). Além disso, será importante ampliar a qualificação específica para os processos participativos, tanto no governo quanto nos movimentos sociais. Foi o que procuramos fazer com o Programa de Formação de Conselheiros, promovido pela Secretaria-Geral em parceria com a UFMG. Além de quadros do governo, 4.372 lideranças e militantes sociais frequentaram os cursos, gerando uma boa massa crítica. Entre as monografias aprovadas, há algumas que abrem novas perspectivas teóricas e práticas para a democracia participativa. Criar no governo federal a figura do gestor de participação social seria um grande avanço. E é claro que será necessário institucionalizar, mantendo sua flexibilidade política e organizativa, todos os canais que ainda não estão garantidos em lei. Quanto ao Congresso Nacional, como já disse, acho que participação e representação podem e devem ser complementares. Não se trata de substituir uma pela outra, mas de criar entre elas uma saudável dialética política, na qual as duas têm muito a ganhar. Aliás, a Constituição Federal prevê a participação social tanto no Executivo como no Legislativo, com as audiências públicas e os projetos de lei de iniciativa popular.
Na história brasileira, consagrouse, com a herança do período varguista, o formato corporativo de representação de interesses. Em que medida o ethos participativo estimulado pelo governo Lula se relaciona com essa tradição e em que sentido procura ultrapassar seus limites?
Luiz Dulci --Acho que é preciso fazer uma distinção. Nem tudo o que é setorial é corporativo . Há interesses setoriais que não são puramente particulares nem exclusivistas, ou seja, eles não se chocam com os interesses gerais da população. Pelo contrário: servem a eles. É o caso da luta da área da saúde em defesa do SUS, por exemplo, ou da mobilização dos trabalhadores pelo salário mínimo, que é um poderoso fator de desenvolvimento. Mas é importante que os movimentos sociais não sejam setorialistas, que eles dêem conta de inserir suas causas específicas num projeto global de sociedade, capaz de universalizar direitos. Acho que isso está ocorrendo. A luta da agricultura familiar tornou-se também a luta pela segurança alimentar. As centrais sindicais, além dos temas trabalhistas, discutem com o governo aspectos estruturais da política econômica, como a redução dos juros, a ampliação do crédito, os incentivos ao mercado interno, a descentralização industrial. Na verdade, negociam cada vez mais uma estratégia nacional de desenvolvimento. Na crise financeira internacional, isso ficou muito evidente. De imediato, governo e centrais pactuaram um conjunto de medidas para evitar a recessão, sustentar a atividade produtiva e garantir o nível de emprego.
Como a experiência de participação do governo Lula se vincula às tradições dos movimentos sociais? Como fugir aos dilemas da cooptação e do conflito?
Luiz Dulci -- Muitos dos movimentos sociais brasileiros se constituíram na luta contra a ditadura. Com uma cultura, por isso mesmo, fortemente defensiva, autoprotetora, de enorme desconfiança em relação ao Estado. E não podia ser diferente, pois naquela época reagíamos ao Estado-repressor, ao Estado-tecnocrata, ao Estado-cooptador (não raro, essas dimensões se mesclavam). Essa desconfiança se acentuou durante o período neoliberal, com a privatização avassaladora e o empenho sistemático para desconstituir a sociedade civil, desagregá-la, pulverizá-la. No governo Lula, o maior desafio foi inverter essa equação. Fazer com que as classes populares, e suas organizações, assumissem uma atitude criativa perante o Estado. Fazer com que pensassem o Estado como potencialmente a serviço das maiorias sociais. E se dispusessem a interferir nas decisões do Estado, disputando democraticamente as suas escolhas. O que implicava, necessariamente, aproximar-se dele, apropriar-se de um saber sobre as políticas públicas, sem abrir mão da independência nem do direito à crítica. Exercendo a autonomia numa relação politizada com o Estado e não por virar as costas a ele ou por manter-se longe dele, numa atitude de negação absoluta, que acaba por ser paralisante. Estou convencido de que a maioria dos movimentos sociais soube renovar-se culturalmente e assumir um novo protagonismo, sem o qual não haveria sustentação popular para as reformas sociais promovidas pelo governo Lula. É preciso dizer que, nesses oito anos, a imprensa conservadora fez campanha permanente para desqualificar os movimentos sociais e sua relação com o governo. Usou para isso três armas poderosas: a invisibilidade, a desmoralização e a aberta criminalização. Ela simplesmente escondeu, cancelou do noticiário, as principais mobilizações populares do período e as conquistas obtidas, no afã de carimbar as entidades civis como omissas, cooptadas. A julgar pelas TVs, rádios, revistas e jornais, com raríssimas exceções, é como se não tivessem existido as três grandes marchas da classe trabalhadora pelo emprego e pelo salário, cada uma delas levando a Brasília 40 mil, 50 mil participantes; ou os Gritos da Terra, realizados anualmente em todo o país; ou as enormes caravanas da agricultura familiar e da reforma agrária; sem falar nas esplêndidas Marchas das Margaridas, que nunca contaram com menos de 30 mil mulheres do campo; ou as diversas e massivas jornadas de luta estudantil em defesa da escola pública; e os dias nacionais da consciência negra e dos direitos das mulheres, entre tantos exemplos que poderíamos citar, nos mais variados setores da vida brasileira. Toda essa vitalidade democrática foi, na verdade, deliberadamente omitida para não desmentir a tese preconcebida da desmobilização completa dos movimentos e de sua suposta estatização . Em alguns casos, tentou-se criminalizá-los, promovendo CPIs (das ONGs e do MST), quebra de sigilos bancários de militantes, processos judiciais etc. Caso contrário, essa mídia teria que admitir que, se não há mais manifestações contra a Alca, é porque derrotamos a proposta da Alca, e hoje avança a integração soberana dos povos do continente; se não há mais atos públicos contra as privatizações, é porque não há mais privatizações, e sepultou-se o dogma destrutivo do Estado mínimo ; se não há protestos contra o desemprego e o arrocho salarial, é porque o país criou, durante o governo Lula, 14 milhões de novos postos de trabalho e a classe trabalhadora teve expressivos ganhos reais, com forte elevação da massa salarial. O que eles não percebem é que, hoje, os movimentos sociais não estão mais na fase de resistência. Junto com o país, passaram à ofensiva. Já não lutam para impedir a supressão de direitos, como acontecia nos governos de Fernando Henrique, e sim para ampliá-los e universalizá-los. Mobilizam-se, a partir de sua autonomia, para aproveitar os espaços de democracia participativa e alargá-los ainda mais. Querem intensificar o atual ciclo de crescimento econômico, distribuindo cada vez melhor os seus frutos. Lutam para que os recursos do pré-sal beneficiem o conjunto da população e sejam de fato destinados à igualdade social e à revolução educacional, cultural e científica a que o país almeja.