Silvia Alvarez de Campo Grande (MS) no Correio do Brasil
Avatar não foi a primeira produção dos Estados Unidos a tratar dos impactos da ganância do lucro em comunidades. Floresta das Esmeraldas, filme de John Boorman, de 1985, conta a história de um engenheiro estadunidense que veio construir um megaempreendimento na Amazônia, mas é confrontado pela tribo “povo invisível”, tendo inclusive seu filho sido sequestrado pelos índios e se tornado, posteriormente, um deles. A obra em questão é a Usina Hidrelétrica (UHE) de Tucuruí, construída entre 1976 e 1984 em plena ditadura civil-militar, no rio Tocantins, no Pará.
A história não ficcional das comunidades atingidas por Tucuruí – até
então povos invisíveis aos olhos do Estado – está agora registrada no
relatório final da Comissão Especial do Conselho de Defesa dos Direitos
da Pessoa Humana (CDDPH), órgão ligado ao Ministério da Justiça. O
documento foi aprovado no dia 22 de novembro, em Campo Grande (MS), na
202ª reunião extraordinária do Conselho. Além da hidrelétrica do Pará,
outros seis projetos foram visitados e analisados pela Comissão – casos
escolhidos seguindo os critérios de diversidade regional, tipos de
projeto (de geração de energia e de retenção de água), tamanho e fase
(em processo de licitação, implantação e já concluído). São eles: UHE
Canabrava (GO), UHE Aimorés (MG), UHE Foz do Chapecó (RS e SC), Pequena
Central Hidrelétrica (PCH) Fumaça (MG), PCH Emboque (MG) e Barragem de
Acauã (PB).
“Ao final de seus trabalhos, a Comissão Especial considera verídica e
verificável a denúncia encaminhada pelo Movimento dos Atingidos por
Barragens ao Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana”. Essa é a
conclusão do relatório. O MAB havia encaminhado, em 2006, denúncias de
violações de direitos humanos ao CDDPH, que deram origem à criação da
Comissão Especial. O objetivo era verificar as denúncias e apresentar
propostas para prevenir novas violações e minimizar os impactos sofridos
pelas populações atingidas por barragens no Brasil. Entre 2007 e 2010, a
Comissão realizou visitas às regiões dos sete casos escolhidos,
participando de audiências públicas, colhendo depoimentos e requisitando
documentos aos atingidos, órgãos públicos e empresas.
O presidente do CDDPH e Secretário Especial de Direitos Humanos,
ministro Paulo Vanucchi, na abertura da reunião, parabenizou o trabalho
da Comissão Especial considerando-o muito eficiente e competente. “Foi
um trabalho histórico, que levou cerca de quatro anos. Li atentamente o
relatório e sugeri que seja feito um sumário executivo para facilitar a
leitura e a divulgação”, declarou o ministro. De acordo com o
representante do Ministério Público Federal (MPF) na Comissão, João
Aquira Omoto, a aprovação do relatório é de extrema importância, “pois é
o reconhecimento do Estado de uma situação que estava se perpetuando
sem que houvesse, de fato, medidas e propostas para resolvê-la”.
Segundo o relatório, “os estudos de caso permitiram concluir que o
padrão vigente de implantação de barragens tem propiciado, de maneira
recorrente, graves violações de direitos humanos, cujas conseqüências
acabam por acentuar as já graves desigualdades sociais, traduzindo-se em
situações de miséria e desestruturação social, familiar e individual”. A
Comissão identificou, nos casos analisados, um conjunto de 16 direitos
humanos sistematicamente violados, dentre os quais merecem destaque o
direito à informação e participação; direito ao trabalho e a um padrão
digno de vida; direito à moradia adequada; direito à melhoria contínua
das condições de vida; e direito à plena reparação das perdas.
Para Carlos Vainer, relator e representante do Instituto de Pesquisa e
Planejamento Urbano e Regional da UFRJ na Comissão, o principal direito
violado é o da informação. “As populações não são informadas dos
grandes projetos que se abaterão sobre suas regiões. No máximo, são
confrontadas com processos de comunicação social, que na verdade
constituem um marketing desses projetos, cuja mensagem é a de que eles
promoverão o progresso e a felicidade geral daquela população. Essa
violação se verifica em todos os casos estudados”, afirmou Vainer
durante a reunião do CDDPH.
A falta de uma definição ampla do conceito de atingido é apontada no
relatório como uma das principais causas de ocorrência de violações de
direitos humanos em implantações de barragens. Um dos frutos desse
estudo é o Decreto nº 7.342 da Presidência da República, de 26 de
outubro de 2010, que institui o cadastro socioeconômico para
identificação, qualificação e registro público da população atingida por
barragens. A instituição do cadastro é uma antiga reivindicação do MAB e
uma das recomendações do relatório da Comissão Especial.
Para Ricardo Montagner, representante do MAB na Comissão, o relatório
será mais um instrumento de luta para os atingidos por barragens e, por
isso, vai ser amplamente divulgado pelo movimento. “A aprovação do
relatório legitimou as denúncias e a luta histórica feita pelo MAB.
Vamos pressionar os órgãos públicos e as empresas para que apliquem as
medidas de reparação recomendadas pela Comissão”, declara.
Parece ficção…
Para Montagner, um dos piores
casos analisados pela Comissão é o de Acauã. O relatório definiu os
reassentamentos em que vivem os atingidos como verdadeiros campos de
concentração. “Ali, tiraram o direito à vida. As terras do
reassentamento não são próprias para o cultivo e as comunidades estão
isoladas, sem possibilidades de trabalho próximo”, denuncia.
Tucuruí também é considerado um caso desolador. Vinte e seis anos
depois de construída a usina, centenas de atingidos ainda não foram
reconhecidos e indenizados. Ocorreram graves impactos sociais e
ambientais ainda não mitigados com repercussão negativa sobre a
existência material e imaterial das populações e dos povos indígenas
Parakanã, Asuriní e Gavião da Montanha. Ao contrário, esses impactos só
tendem a aumentar com a conclusão das eclusas da barragem, inauguradas
no dia 30 de novembro.
Em Aimorés, o que chamou mais a atenção da Comissão foi a paisagem
deixada pela hidrelétrica: onde antes corria um rio, há somente poças
que constituem, segundo o relatório, verdadeiros criadouros de vetores. A
multiplicação de focos de aedes não traz riscos apenas de epidemias de
dengue, uma vez que o mosquito é também o vetor urbano da febre amarela.
Recomendações
Recomendações
“Sejam
quais forem as opções de desenvolvimento econômico e as escolhas que
vier a fazer a nação nas áreas de geração e transmissão de energia
elétrica e de gestão de recursos hídricos, nada pode justificar
violações de direitos humanos”, constata o relatório. A comissão
recomendou a adoção de mais de 100 medidas para garantir e preservar os
direitos humanos dos atingidos por barragens e evitar novas violações.
O advogado Leandro Scalabrim, que também acompanhou a elaboração do
relatório, destaca a recomendação de que se constitua uma Comissão
Nacional de Reparação dos atingidos por barragens no âmbito da
Secretaria Especial dos Direitos Humanos e com a participação de outros
órgãos públicos. “O único caso histórico parecido com este é o da
comissão de anistia”, diz.
Além disso, o relatório apontou a necessidade de conceber, formular e
implementar políticas de reparação específicas para grupos, famílias e
indivíduos mais vulneráveis como idosos, crianças, doentes crônicos e
portadores de deficiências físicas.