Escrito por Luis Fernando Novoa Garzon no Correio da Cidadania | |
A análise e o acompanhamento das transformações observáveis ao longo da
implementação do Complexo Hidrelétrico do rio Madeira (RO) são cruciais
no sentido de testar as metodologias, procedimentos e indicadores que
têm sido apresentados como um "novo paradigma" de construção de grandes
UHEs na Amazônia, que irá nortear a expansão da fronteira elétrica na
região. Durante a fase prévia do licenciamento dos empreendimentos, o
conjunto de incertezas, técnica e socialmente identificadas, para a
população e o meio ambiente, foi certificado como válido e passível de
monitoramento.
Na fase de instalação, subseqüentemente, os consórcios obtiveram plena
discricionariedade para impor seus cronogramas físico-financeiros,
independentemente da execução plena e prévia dos programas
compensatórios e mitigatórios.
Na região do município de Porto Velho (RO) e adjacências, configurou-se,
a partir do início das obras das Usinas Hidrelétricas de Jirau e Santo
Antônio no rio Madeira, a partir de 2008, uma dinâmica social de novo
tipo, com descontinuidades intensificadas no espaço e no tempo, com
efeitos assimétricos sobre os grupos sociais afetados. Esses efeitos são
desproporcionais e diferenciados segundo a posição e o lugar relativo
dos grupos sociais em relação à intervenção referida. Quanto mais
vinculados ao ciclo do rio e de suas margens, maior a perda e dissipação
de poder material e simbólico. Quanto mais instrumentalizados forem em
função dos requisitos e do cronograma das duas obras, maior a
invisibilidade e descartabilidade dos mesmos, incluindo a força de
trabalho direta e indiretamente mobilizada pelas obras, bem como a
população que vai engrossando as áreas peri-urbanizadas da cidade
anfitriã dos dois mega-projetos.
Os danos sócio-econômicos, culturais e ambientais já consubstanciados na
instalação do Complexo Hidrelétrico do rio Madeira constituiriam motivo
suficiente, houvesse rigor proporcional na aplicação da legislação
ambiental ao nível de classificação de risco dos empreendimentos, para a
paralisação das obras e a subseqüente revisão não apenas de sua
metodologia, cronograma, mas da própria viabilidade ambiental atribuída
sob chantagem privada e coerção governamental. Para além das parcas
medidas de compensação e mitigação previstas no licenciamento das duas
obras, está em jogo nesse caso a plena autonomia conferida aos
Consórcios titulares das novas concessões de aproveitamento hidrelétrico
na Amazônia, para gerir o que eram antes considerados "bens públicos".
Com o intuito de consolidar a participação do setor privado (PSP) nas
áreas de infra-estrutura, a ordem unida é a regulamentação
desregulamentadora nas três esferas governamentais, bem como em todas as
instâncias setoriais, creditícias e fiscalizadoras respectivas
(Ministério do Meio Ambiente, IBAMA, Agência Nacional de Águas,
Ministério das Minas e Energia, ANEEL, BNDES, TCU). Flexibilidade
institucional dirigida para o planejamento territorial corporativo e,
subsequentemente, para o rebaixamento ainda maior dos patamares mínimos
de direitos sociais e de salvaguardas ambientais.
O aplainamento do processo de licenciamento, de concessão e de
financiamento desses dois aproveitamentos hidrelétricos no rio Madeira é
uma derivação lógica da política de atração de investimentos para o
setor de infra-estrutura, o cerne do PAC (Programa de Aceleração de
Crescimento), lançado em 2007 e relançado como PAC 2, em 2010. Essa
iniciativa, vista de forma superficial, seria tão somente um programa de
execução de obras prioritárias, quando na verdade compreende também uma
agenda de facilitações regulatórias e creditícias pró-mercado, através
de reformas administrativas e setoriais nos órgãos e na legislação
ambiental, bem como da reestruturação do BNDES. Essa conjunção
materializada na emissão das Licenças Prévias e de Instalação das Usinas
do rio Madeira e na viabilização de seus respectivos leilões fez surgir
um novo e temerário paradigma de "licenciamento automático"(1). A
instalação dessas usinas, na forma como se apresenta, equivale a um
salvo-conduto institucional para a reabertura de um novo ciclo de
grandes projetos hidrelétricos na Amazônia, em território brasileiro e
transfronteiriço.
Já instalados os canteiros de obras das duas usinas, impôs-se a
verificação de como a precarização e flexibilização de sua
regulamentação vêm se refletindo na sua implementação efetiva.
Procurou-se, por conseguinte, diante das lacunas processuais
oficialmente internalizadas, avaliar a possibilidade mesma de se
atestar, nessas condições, consistência e adequação das ações de
remanejamento e as medidas de compensação e mitigação dos impactos
previstos nas comunidades a montante das UHE de Jirau e Santo Antônio.
Como é possível compensar o que nem sequer foi mensurado ou reconhecido
como perda ou dano? Governo e empreendedores determinam, a partir das
UHEs no rio Madeira, que subjetividades e direitos coletivos são
passíveis de compra e venda.
Como concessões elétricas traduzem-se em cessões territoriais
O maleável regime de concessões do setor elétrico aplicado a grandes
aproveitamentos hidrelétricos na Amazônia tem redundado em oficiosos
processos de cessão, a grandes conglomerados privados, de porções
territoriais estratégicas para o país. Tal como o Projeto Grande
Carajás(PA), aprovado em 1982, o Projeto Complexo Madeira é que define a
região que lhe cabe. Grandes Projetos de Investimentos (GPIs), ao
gerarem espaços em função da máxima eficácia dos investimentos aportados
neles, não poderiam deixar de planejar e gerir esses mesmos espaços.
Contudo, à diferença das décadas de 70 e 80, quando o regime militar
procurava incorporar a Amazônia à estrutura produtiva do centro-sul do
país por meio de obras viárias e de incentivos fiscais, a partir dos
anos 90 o avanço da fronteira econômica na região passa a ser
crescentemente dirigido por cadeias globais de valor. As mediações
políticas derivadas de uma rígida divisão inter-regional do trabalho
foram sendo substituídas por fórmulas territoriais flexíveis condizentes
com as novas estratégias de deslocalização dos investimentos e ajustes
espaciais consecutivos. O que não significa ausência de política ou do
Estado, e sim seu pleno disciplinamento em coalizões privado-públicas,
necessariamente nesta ordem. O que pode ser mais ativo, em termos
político-operacionais, que medidas progressivas de liberalização
comercial e flexibilização legal, além do empenho de estatais, bancos e
fundos públicos e semi-públicos na formação de conglomerados
empresariais com raio de atuação no Brasil e/ou a partir dele?
O Projeto Complexo Madeira, que se articula a outros projetos de
interconexão de infra-estrutura no continente, serve de trampolim para
impulsionar uma série de novos mega-projetos na Amazônia. A meta é
estruturar e potencializar plataformas e corredores de exportação, com a
disponibilização não só de energia hidrelétrica e recursos naturais
conexos (terras, jazidas minerais, madeira e biodiversidade), mas da
plasticidade territorial que se fizer necessária, ou for convidativa,
aos conglomerados privados. Os arranjos empresariais resultantes são
concomitantemente eleitos pelo Estado e eletivos das políticas setoriais
deste. O novo planejamento territorial em operação na Amazônia
paradoxalmente dinamiza nossas vantagens comparativas estáticas, em um
processo de acumulação extensiva marcado por especializações regressivas
em termos de agregação de valor e inovação tecnológica.
O compartilhamento jurisdicional empresas-Estado, da região do alto
Madeira, teve início ainda na fase dos estudos ambientais do Complexo
hidroelétrico. Procedeu-se em 2007 uma alteração regulamentar dos
patamares de suficiência de comprovações técnicas e de compromissos
públicos requeridos para atestar a viabilidade ambiental e social das
duas usinas. O seu licenciamento a fórceps ensejou o desmanche como um
todo do licenciamento ambiental nacional. O próprio órgão licenciador, o
IBAMA, sofreu uma intervenção administrativa, em 2007, que além de
fragmentar suas funções originais delimitou-as, retirando dele
capacidade de vetar projetos considerados de "interesse nacional". Na
análise do Estudo de Impacto Ambiental e de suas complementações, a
cargo do então Consórcio Furnas-Odebrecht (hoje Santo Antônio Energia),
identificamos as seguintes distorções e incongruências:
a) Minimização das áreas de impacto direto e indireto com a exclusão do território da Bolívia e das áreas a jusante.
b) Anulação da necessidade prévia dos estudos de bacia.
c) Adoção de metodologias e critérios de certificação que minimizam e mascaram os danos.
d) Definição arbitrária dos Consórcios dos próprios critérios de
suficiência ou de insuficiência de estudos, e medidas mitigatórias e
compensações decorrentes.
e) Aprovação das Licenças Prévias e de Instalação com condicionantes
que procuram substituir o vazio de informação e de diagnóstico pelo
monitoramento das incertezas, o que significa que os empreendedores
adquiriam autonomia para definir os próprios parâmetros da instalação e
operação das usinas.
Esses vícios de origem no processo de licenciamento das UHEs do rio
Madeira reproduziram-se e desdobraram-se no momento de elaboração e de
implementação dos Projetos Básicos Ambientais a cargo dos Consórcios
Energia Sustentável do Brasil(ESBR) e Santo Antônio Energia (SAESA). Nos
dois PBAs consta o princípio de que o empreendedor fica obrigado a
recompor as condições de vida e das atividades produtivas na área
diretamente afetada pelas obras e pela formação do reservatório. Em
tese, a recomposição das atividades e da qualidade de vida, por meio de
indenização justa ou do remanejamento, deveria se dar "em condições pelo
menos equivalentes às atuais". O Programa de Remanejamento a cargo do
Consórcio Santo Antonio Energia, por exemplo, reitera o compromisso de
que se ofereça indenização ou processo de realocamento de modo que
"todos os afetados deverão ter condições de ser remanejados para uma
propriedade pelo menos equivalente" (2).
No entanto, não foram prescritos ou previstos indicadores, critérios e
metas para que essa obrigação fosse cumprida, ou seja, sobre como seria
essa "recomposição", com quais meios, recursos e prazos. O modelo
de reassentamento em agrovilas estranhas às tradições comunitárias
ribeirinhas, e ainda por cima localizadas em solos inférteis sem acesso
ao rio e seus igarapés, constituiu uma via de mão única na "negociação"
da realocação da população atingida. Cerceados pela contagem regressiva
do despejo, cerca de 85% dos afetados submeteram-se ao instrumento da
indenização ou da carta de crédito, proporção averiguada pelo próprio
IBAMA(3). O que deveria ser exceção tornou-se regra, em termos de
deslocamento compulsório, no decorrer da instalação das UHEs no rio
Madeira. Modos de vida amazônicos singulares não deveriam ser
levianamente contabilizados e sim protegidos e sustentados por políticas
públicas que reconhecessem e valorizassem as múltiplas abordagens
coletivas no trato do espaço e do tempo. A indenização exclusivamente
monetária é uma amortização sumária dos compromissos sociais formalmente
assumidos pelos Consórcios junto à população atingida, uma política
oficial de erradicação de dezenas de comunidades ribeirinhas, agora
entregues à sua própria sorte em novas frentes irregulares de ocupação
urbana e rural.
O negligenciamento no cumprimento dos já rebaixados parâmetros sociais e
ambientais se refletiu na falta de detalhamento das diretrizes
constantes nos PBAs das UHEs de Jirau e Santo Antonio. Essa metodologia
de auto-licenciamento depende de combinações nas múltiplas escalas de
governo, o que implica em negociações cruzadas, paralelas ou oficiais,
no uso das verbas de compensação social e rearranjos das contrapartidas
federais, estaduais e municipais. Um complexo intercâmbio de interesses
entre grupos econômicos globais e locais e suas representações políticas
ocorre sob a conveniente fachada de "fornecimento de energia para o
Brasil" e "geração de emprego e renda na região".
O processo de desterritorialização levado a cabo por grandes projetos de
mineração na Amazônia se articula com aquele produzido pelos projetos
hidrelétricos na região. Ambos se retroalimentam, em ordem direta e
reversa. No entorno do Complexo Madeira, o processo de
desterritorialização e de reterritorialização vai se consumando
diligentemente, pelo grau de interpenetração dos Consórcios e
conglomerados anexos com os aparelhos governamentais regulamentadores e
fiscalizadores.
A apropriação do alto Madeira e a definição da forma predominante de seu
uso se associa a estratégias simbólicas de universalização da forma
tida como a mais "adequada" para utilização daquela territorialidade. A
implementação célere e brutal das UHEs de Santo Antônio e Jirau se vale
do alicerce objetivo de expropriações sucessivas, promovidas no bojo da
formação territorial do estado de Rondônia. E ainda conta com o
beneplácito subjetivo de uma população majoritariamente migrante, que,
vítima e órfã de um modernização periférica, se dispõe a qualquer
sacrifício em nome de seu "repatriamento" a qualquer dinâmica que remeta
à centralidade altiva do "progresso", especialmente quando o objeto de
sacrifício maior lhe pareça alheio e exterior, como as comunidades
tradicionais que vivem ao longo do rio Madeira.
O controle e o uso compartilhado das águas e várzeas do rio Madeira pôde
proliferar no interregno dos surtos de expansão mercantis. Exatamente
por isso nunca foram objeto de políticas públicas que dinamizassem suas
potencialidades horizontalizantes, que lhes providenciassem
regularização fundiária, créditos preferenciais, programas de extensão
de caráter agroecológico e infra-estrutura social. Depois de inserido no
mapa dos grandes negócios, agentes econômicos e as arenas estatais por
eles manejadas, o rio Madeira é estampado como providencial
estoque/escoadouro de energia, commodity basilar, porque insumo das demais commodities que têm definido o ritmo de crescimento e o perfil produtivo do país.
Madeira: restabelecer a controvérsia e o contraponto
Podemos atestar que a defasagem entre os direitos e os interesses da
população local e o processo de licenciamento e implementação das UHEs
de Santo Antônio e Jirau no rio Madeira foi voluntária e
premeditadamente construída pelas empresas concessionárias, com anuência
e colaboração do poder público.
Como bônus extra, os Consórcios Santo Antônio Energia (SAESA) e Energia
Sustentável do Brasil (ESBR) podem vender 100% da energia gerada antes
dos prazos previstos contratualmente (dezembro de 2012 e março de 2013,
respectivamente). Os dois consórcios pretendem antecipar a geração em
até 11 meses por isso e contam com a benevolência da ANEEL e do MME para
tanto. Alucinados cronogramas de execução das obras são a contraparte
da ausência de cronogramas físico-financeiros dos programas de
compensação e de mitigação, da mais completa negligência para com a
população que vive ao longo do rio Madeira e com seu meio ambiente. Se
nem sequer as condicionantes da Licença Prévia foram cumpridas, como
acenar com a emissão antecipada da Licença de Operação, sem que se
consolidem mínimas salvaguardas sociais e ambientais?
Na direção contrária, o procedimento democrático elementar, frente ao
conjunto de evidências de descumprimento flagrante de compromissos
legais por parte dos Consórcios liderados pela Odebrecht e pela Suez,
seria a suspensão da Licença da Instalação das Usinas de Santo Antônio e
Jirau e o estabelecimento de um balanço rigoroso das irregularidades
cometidas. Existisse um Ministério de Meio Ambiente com efetividade
similar ao de Minas e Energia, ou um Poder Judiciário desincumbido de
blindagens casuísticas, esta seria a única diretiva cabível diante de
mais um desastre social e ambiental em curso na Amazônia.
Em paralelo e procurando explicitar toda a extensão dos danos já
verificáveis produzidos por essas obras incondicionadas, propomos a
criação de uma Comissão de investigação, composta por especialistas,
representantes do Ministério Público Federal, dos movimentos sociais e
da população atingida, para fornecer um quadro fidedigno da
desestruturação social e ambiental que se dá na região do rio Madeira.
Iniciativa que procurará colocar em pauta a revisão do licenciamento
ambiental das duas usinas projetadas, bem com a rediscussão do projeto
Complexo Madeira como um todo.
Seria tarefa prioritária dessa Comissão, em especial dos grupos de
pesquisa universitários adjuntos, explicitar o novo modelo de
investimento e de financiamento aplicado à construção das UHEs de Santo
Antônio e Jirau, identificando atores-chave, suas metodologias obscuras e
truculentas, de modo a possibilitar a responsabilização e
co-responsabilização dos mesmos, em particular do BNDES.
É crucial que se exponha a célere territorialização corporativa de que é
objeto a sub-região protocolarmente denominada "Sudoeste da Amazônia",
no Plano Amazônia Sustentável(PAS), assim como as formas de atualização
do bloco de poder inter-escalar que implicam em novas fórmulas
hegemônicas. Em contraponto, é preciso demarcar as territorializações
ribeirinhas, indígenas e camponesas resilientes, e também as pontes
possíveis com dinâmicas disruptivas de base urbana. A questão central
aqui colocada é: haverá um "nós" denso e representativo para evocar o
significado dessa renúncia, renúncia ao Madeira, ao Xingu, ao Tapajós e
demais rios amazônicos, a tudo que aflora, circula, brota e se
multiplica com seus fluxos?
Luis Fernando Novoa Garzon é professor da Universidade Federal de
Rondônia, membro da Rede Brasil sobre Instituições Financeiras
Multilaterais e doutorando em Planejamento Urbano e Regional
(IPPUR-UFRJ). Contato:
l.novoa@uol.com.br
Notas:
1) GARZON, L., F. Novoa. O licenciamento automático dos grandes projetos de infra-estrutura no Brasil: o caso das usinas no rio Madeira. Revista Universidade&Sociedade nº 42, p.37 a 58, ANDES, Brasília, junho de 2008
2) PBA da UHE de Santo Antônio, 2008 seção 22 p.5.
3) Parecer 029/2010. COHID/CGENE/DILIC/IBAMA, p.11
|
Um blog de informações culturais, políticas e sociais, fazendo o contra ponto à mídia de esgoto.
segunda-feira, 20 de dezembro de 2010
Usinas Hidrelétricas aceleram ‘territorialização corporativa’ da Amazônia
Conto de Natal – Maria e José na Palestina em 2010
por James Petras
Os tempos eram
duros para José e Maria. A bolha imobiliária explodira. O desemprego
aumentava entre trabalhadores da construção civil. Não havia trabalho,
nem mesmo para um carpinteiro qualificado. Os colonatos ainda estavam a
ser construídos, financiados principalmente pelo dinheiro judeu da
América, contribuições de especuladores de Wall Street e donos de antros
de jogo.
"Bem", pensou José,
"temos algumas ovelhas e oliveiras e Maria cria galinhas". Mas José
preocupava-se, "queijo e azeitonas não chegam para alimentar um rapaz em
crescimento. Maria vai dar à luz o nosso filho um dia destes". Os seus
sonhos profetizavam um rapaz robusto a trabalhar ao seu lado…
multiplicando pães e peixes.
Os colonos
desprezavam José. Este raramente ia à sinagoga, e nas festividades
chegava tarde para fugir à dízima. A sua modesta casa estava situada
numa ravina próxima, com água duma ribeira que corria o ano inteiro. Era
mesmo um local de eleição para a expansão dos colonatos. Por isso
quando José se atrasou no pagamento do imposto predial, os colonos
apropriaram-se da casa dele, despejaram José e Maria à força e
ofereceram-lhes bilhetes só de ida para Jerusalém.
José, nascido e
criado naquelas colinas áridas, resistiu e feriu uns tantos colonos com
os seus punhos calejados pelo trabalho. Mas acabou abatido sobre a sua
cama nupcial, debaixo da oliveira, num desespero total.
Maria, muito mais nova, sentia os movimentos do bebê. A sua hora estava a chegar.
"Temos que encontrar um abrigo, José, temos que sair daqui… não há tempo para vinganças", implorou.
José, que acreditava no "olho por olho" dos profetas do Antigo Testamento, concordou contrariado.
E foi assim que
José vendeu as ovelhas, as galinhas e outros pertences a um vizinho
árabe e comprou um burro e uma carroça. Carregou o colchão, algumas
roupas, queijo, azeitonas e ovos e partiram para a Cidade Santa.
O trilho era
pedregoso e cheio de buracos. Maria encolhia-se em cada sacudidela;
receava que o bebê se ressentisse. Pior, estavam na estrada para os
palestinos, com postos de controlo militares por toda a parte. Ninguém
tinha avisado José que, enquanto judeu, podia ter-se metido por uma
estrada lisa pavimentada – proibida aos árabes.
Na primeira
barragem José viu uma longa fila de árabes à espera. Apontando para a
mulher muito grávida, José perguntou aos palestinos, meio em árabe, meio
em hebreu, se podiam continuar. Abriram uma clareira e o casal avançou.
Um jovem soldado
apontou a espingarda e disse a Maria e a José para se apearem da
carroça. José desceu e apontou para a barriga da mulher. O soldado deu
meia volta e virou-se para os seus camaradas. "Este árabe velho
engravida a rapariga que comprou por meia dúzia de ovelhas e agora quer
passar".
José, vermelho de raiva, gritou num hebreu grosseiro, "Eu sou judeu. Mas ao contrário de vocês… respeito às mulheres grávidas".
O soldado empurrou
José com a espingarda e mandou-o recuar: "És pior do que um árabe – és
um velho judeu que violas raparigas árabes".
Maria, assustada
com o caminho que as coisas estavam a tomar, virou-se para o marido e
gritou, "Pára, José, ou ele dispara e o nosso bebê vai nascer órfão".
Com grande
dificuldade, Maria desceu da carroça. Apareceu um oficial do posto da
guarda, a chamar por uma colega, "Oh Judi, apalpa-a por baixo do
vestido, ela pode ter bombas escondidas".
"Que se passa? Já
não gostas de ser tu a apalpá-las?" respondeu Judith num hebreu com
sotaque de Brooklyn. Enquanto os soldados discutiam, Maria apoiou-se no
ombro de José. Por fim, os soldados chegaram a um acordo.
"Levanta o vestido e
o que tens por baixo", ordenou Judith. Maria ficou branca de vergonha.
José olhava para a espingarda desmoralizado. Os soldados riam-se e
apontavam para os peitos inchados de Maria, gracejando sobre um
terrorista ainda não nascido com mãos árabes e cérebro judeu.
José e Maria
continuaram a caminho da Cidade Santa. Foram freqüentes vezes detidos
nos postos de controlo durante a caminhada. Sofriam sempre mais um
atraso, mais indignidades e mais insultos gratuitos proferidos por
sefarditas e asquenazes, homens e mulheres, leigos e religiosos – todos
soldados do povo Eleito.
Já era quase noite
quando Maria e José chegaram finalmente ao Muro. Os portões já estavam
fechados. Maria chorava em pânico, "José, sinto que o bebê está a
chegar. Por favor, arranja qualquer coisa depressa".
José entrou em
pânico. Viu as luzes duma pequena aldeia ali ao pé e, deixando Maria na
carroça, correu para a casa mais próxima e bateu à porta com força. Uma
mulher palestina entreabriu a porta e espreitou para a cara escura e
agitada de José. "Quem és tu? O que é que queres?"
"Sou José,
carpinteiro das colinas do Hebron. A minha mulher está quase a dar à luz
e preciso de um abrigo para proteger Maria e o bebê". Apontando para
Maria na carroça do burro, José implorava na sua estranha mistura de
hebreu e árabe.
"Bem, falas como um judeu mas pareces mesmo um árabe", disse a mulher palestina a rir enquanto o acompanhava até a carroça.
A cara de Maria estava contorcida de dores e de medo; as contrações estavam a ser mais freqüentes e intensas.
A mulher disse a
José que levasse a carroça de volta para um estábulo onde se guardavam
as ovelhas e as galinhas. Logo que entraram, Maria gritou de dor e a
palestina, a que entretanto se juntara uma parteira vizinha, ajudou
rapidamente a jovem mãe a deitar-se numa cama de palha.
E assim nasceu a criança, enquanto José assistia cheio de temor.
Aconteceu que
passavam por ali alguns pastores, que regressavam do campo, e ouviram
uma mistura de choro de bebê e de gritos de alegria e se apressaram a ir
até ao estábulo levando as suas espingardas e leite fresco de cabra,
sem saber se iam encontrar amigos ou inimigos, judeus ou árabes. Quando
entraram no estábulo e depararam com a mãe e o menino, puseram de lado
as armas e ofereceram o leite a Maria que lhes agradeceu tanto em hebreu
como em árabe.
E os pastores
ficaram estupefatos e pensaram: Quem seria aquela gente estranha, um
pobre casal judeu, que chegara em paz com uma carroça com inscrições
árabes?
As novas
espalharam-se rapidamente sobre o estranho nascimento duma criança judia
mesmo junto ao Muro, num estábulo palestino. Apareceram muitos vizinhos
que contemplavam Maria, o menino e José.
Entretanto,
soldados israelenses, equipados com óculos de visão noturna, reportaram
das suas torres de vigia que cobriam a vizinhança palestina: "Os árabes
estão a reunir-se mesmo junto ao Muro, num estábulo, à luz das velas".
Abriram-se os
portões por baixo das torres de vigia e de lá saíram caminhões blindados
com luzes brilhantes, seguidos por soldados armados até aos dentes que
cercaram o estábulo, os aldeões reunidos e a casa da mulher palestina.
Um altofalante disparou, "Saiam cá para fora com as mãos no ar ou
disparamos". Saíram todos do estábulo, juntamente com José, que deu um
passo em frente de braços virados para o céu e falou, "A minha mulher
Maria não pode obedecer às vossas ordens. Está a amamentar o menino
Jesus".
O original encontra-se em http://petras.lahaine.org/articulo.php?p=1831&more=1&c=1.
Tradução de Margarida Ferreira.
Este artigo encontra-se em http://resistir.info/.
O narcotráfico e o aumento da violência social no México
|
Somos as mundanças que queremos no planeta
Esta frase que parece arrogante é,
na verdade, o testemunho do que significa o projeto “Cultivando Agua
Boa” implementado pela grande hidrelétrica Itaipu Binacional nos limites
entre o Brasil e o Paraguai envolvendo cerca de um milhão de pessoas.
Os diretores da empresa – Jorge Samek e Nelton Friedrich – com suas
equipes sabiamente entenderam o desafio global que nos vem do
aquecimento global e resolveram dar uma resposta local, o mais inclusiva
e holística possível. Esta se mostrou tão bem sucedida que fez-se uma
referência internacional.
Seus diretores-inspiradores dizem-no claramente: ”A hidrelétrica Itaipu adotou para si o papel de indutora de um verdadeiro movimento cultural rumo à sustentabilidade, articulando, compartilhando, somando esforços com os diversos atores da Bacia Paraná 3 em torno de uma série de programas e projetos interconectados de forma sistêmica e holística e que compõem o Cultivando Agua Boa; eles foram criados à luz de documentos planetários como a Carta da Terra, o Tratado de Educação Ambiental para Sociedades Sustentáveis, a Agenda 21 e os Objetivos do Milênio”.
Operaram, o que é extremamente difícil, uma verdadeira revolução cultural, vale dizer, introduziram um complexo de princípios, valores, hábitos, estilos de educação, formas de relacionamento com a sociedade e com a natureza, modos de produção e de consumo que justifica o lema, escrito em todas as camisetas dos quatro mil participantes do último grande encontro em meados de novembro:”somos as mudanças que queremos no planeta”.
Com efeito, a gravidade da crise do sistema-vida e do sitema-Terra é de tal magnitude que não bastam mais as iniciativas dos Estados, geralmente, tardias e pouco eficazes. A Humanidade inteira, todos os saberes, as instâncias sociais e as pessoas individuais, devem dar a sua contribição e tomar o destino comum em suas mãos. Caso contrário, dificilmente, sobreviveremos coletivamente.
Christian de Duve, prêmio Nobel de Fisiologia de 1974, nos adverte em seu conhecido livro “Poeira Vital: a vida como imperativo cósmico”(1997) que “nosso tempo lembra uma daquelas importantes rupturas na evolução, assinaladas por extinções em massa”. Efetivamente, o ser humano tornou-se uma força geofísica destruidora. Outrora eram os meteoros rasantes que ameaçavam a Terra, hoje o meteoro rasante davastador se chama o ser humano sapiens e demens, duplamente demens.
Dai a importância de “Cultivando Agua Boa”: mostrar que a tragédia não é fatal. Podemos operar as mudanças que vão desde a organização de centenas de cursos de educação ambiental e capacitação, do surgimento de uma consciência coletiva de corresponsabilidade e cuidado pelo ambiente, da gestão compartilhda das bacias hidrográficas, de incentivo à agricultura familiar, da criação de um refúgio biológico de espécies regionais, de corredores de biodiversidade unindo várias reservas florestais, de mais de 800 km de cercas de proteção das matas ciliares, do resgate de todos os rios, do cultivo de plantas medicinais, da geração de energia mediante os dejetos de suinos e aves, da construção de um canal de 10 km para vencer um desnível de 120 metros e permitir a passagem de peixes de piracema até a criação de um Centro Tecnológico, Centro de Saberes e Cuidados Ambientais e da Universidade da Integração Latino-Americana entre outras não citadas aquí.
A sustentabilidade, o cuidado e a participação/cooperação da sociedade civil são as pilastras que sustentam este projeto. A sustentabilidade introduz uma racionalidade responsável pelo uso solidário dos recursos escassos. O cuidado funda uma ética de relação respeitosa para com a natureza, curando feridas passadas e evitando futuras e a participação da sociedade cria o sujeito coletivo que implementa todas as iniciativas. Tais valores são sempre revisados e pactados. O resultado final é a emergência de um tipo novo de sociedade, integrada com o ambiente, com uma cultura da valorização de toda a vida, com uma produção limpa e dentro dos limites do ecossistema e com profunda solidariedade entre todos. Uma aura espiritual benfazeja perpassa os encontros como se todos se sentissem um só coração e uma só alma.
Não é assim que começa o resgate da natureza e o nascimento de um novo paradigma de civilização?
Seus diretores-inspiradores dizem-no claramente: ”A hidrelétrica Itaipu adotou para si o papel de indutora de um verdadeiro movimento cultural rumo à sustentabilidade, articulando, compartilhando, somando esforços com os diversos atores da Bacia Paraná 3 em torno de uma série de programas e projetos interconectados de forma sistêmica e holística e que compõem o Cultivando Agua Boa; eles foram criados à luz de documentos planetários como a Carta da Terra, o Tratado de Educação Ambiental para Sociedades Sustentáveis, a Agenda 21 e os Objetivos do Milênio”.
Operaram, o que é extremamente difícil, uma verdadeira revolução cultural, vale dizer, introduziram um complexo de princípios, valores, hábitos, estilos de educação, formas de relacionamento com a sociedade e com a natureza, modos de produção e de consumo que justifica o lema, escrito em todas as camisetas dos quatro mil participantes do último grande encontro em meados de novembro:”somos as mudanças que queremos no planeta”.
Com efeito, a gravidade da crise do sistema-vida e do sitema-Terra é de tal magnitude que não bastam mais as iniciativas dos Estados, geralmente, tardias e pouco eficazes. A Humanidade inteira, todos os saberes, as instâncias sociais e as pessoas individuais, devem dar a sua contribição e tomar o destino comum em suas mãos. Caso contrário, dificilmente, sobreviveremos coletivamente.
Christian de Duve, prêmio Nobel de Fisiologia de 1974, nos adverte em seu conhecido livro “Poeira Vital: a vida como imperativo cósmico”(1997) que “nosso tempo lembra uma daquelas importantes rupturas na evolução, assinaladas por extinções em massa”. Efetivamente, o ser humano tornou-se uma força geofísica destruidora. Outrora eram os meteoros rasantes que ameaçavam a Terra, hoje o meteoro rasante davastador se chama o ser humano sapiens e demens, duplamente demens.
Dai a importância de “Cultivando Agua Boa”: mostrar que a tragédia não é fatal. Podemos operar as mudanças que vão desde a organização de centenas de cursos de educação ambiental e capacitação, do surgimento de uma consciência coletiva de corresponsabilidade e cuidado pelo ambiente, da gestão compartilhda das bacias hidrográficas, de incentivo à agricultura familiar, da criação de um refúgio biológico de espécies regionais, de corredores de biodiversidade unindo várias reservas florestais, de mais de 800 km de cercas de proteção das matas ciliares, do resgate de todos os rios, do cultivo de plantas medicinais, da geração de energia mediante os dejetos de suinos e aves, da construção de um canal de 10 km para vencer um desnível de 120 metros e permitir a passagem de peixes de piracema até a criação de um Centro Tecnológico, Centro de Saberes e Cuidados Ambientais e da Universidade da Integração Latino-Americana entre outras não citadas aquí.
A sustentabilidade, o cuidado e a participação/cooperação da sociedade civil são as pilastras que sustentam este projeto. A sustentabilidade introduz uma racionalidade responsável pelo uso solidário dos recursos escassos. O cuidado funda uma ética de relação respeitosa para com a natureza, curando feridas passadas e evitando futuras e a participação da sociedade cria o sujeito coletivo que implementa todas as iniciativas. Tais valores são sempre revisados e pactados. O resultado final é a emergência de um tipo novo de sociedade, integrada com o ambiente, com uma cultura da valorização de toda a vida, com uma produção limpa e dentro dos limites do ecossistema e com profunda solidariedade entre todos. Uma aura espiritual benfazeja perpassa os encontros como se todos se sentissem um só coração e uma só alma.
Não é assim que começa o resgate da natureza e o nascimento de um novo paradigma de civilização?
Por que as guerras não são relatadas honestamente?
- O público precisa saber a verdade acerca das guerras. Então porque há jornalistas que cooperam com governos para ludibriar-nos?
por John Pilger
No manual do US Army sobre contra-insurgência, o
general David Petraeus
descreve o Afeganistão como uma "guerra de percepção
... conduzida continuamente com a utilização dos novos
media". O que realmente importa não é tanto as batalhas do
dia-a-dia contra o Taliban e sim o modo como o caso é vendido na
América onde "os media influenciam directamente a atitude de
audiências chave". Ao ler isto, recordei-me do general venezuelano
que dirigiu um golpe contra o governo democrático em 2002.
"Tínhamos uma arma secreta", jactou-se. "Tínhamos
os media, especialmente a TV. Temos de ter os media".
Nunca tanta energia oficial foi gasta para assegurar a conivência de jornalistas com os feitores de guerras de rapina as quais, dizem os generais amigos dos media, agora são "perpétuas". Ao reflectir os mais prolixos senhores da guerra, tais como o waterboarding [*] Dick Cheney, ex-vice-presidente dos EUA, o qual previu "50 anos de guerra", eles planeiam um estado de conflito permanente inteiramente dependente da manutenção à distância de um inimigo cujo nome não ousam dizer: o público.
Em Chicksands, Bedfordshire, o estabelecimento da guerra psicológica (Psyops) do Ministério da Defesa , treinadores de media dedicam-se à tarefa, imersos num mundo de jargões como "dominância de informação", "ameaças assimétricas" e "ciber-ameaças". Eles partilham instalações com aqueles que ensinam os métodos que levaram a uma investigação pública quanto à tortura militar britânica no Iraque. A desinformação e a barbárie da guerra colonial tem muito em comum.
É claro que apenas o jargão é novo. Na sequência de abertura do meu filme, A guerra que você não vê (The War You Don't See), , há uma referência a uma conversação privada pré-WikiLeaks, de Dezembro de 1917, entre David Lloyd George, primeiro-ministro britânico durante grande parte da primeira guerra mundial, e C.P. Scott, editor do Manchester Guardian. "Se o povo realmente soubesse a verdade", dizia o primeiro-ministro, "a guerra cessaria amanhã. Mas naturalmente não sabem, e não podem saber".
Na sequência desta "guerra para acabar com todas as guerras", Edward Bernays , um confidente do presidente Woodrow Wilson , cunhou a expressão "relações públicas" como um eufemismo para propaganda "à qual ganhou má reputação durante a guerra". No seu livro, Propaganda (1928), Bernays descreveu as RP como "um governo invisível" o qual é o verdadeiro poder dominante no nosso país" graças à "inteligente manipulação das massas". Isto era alcançado por "realidades falsas" e a sua adopção pelos media (Um dos primeiros êxitos de Bernay foi persuadir as mulheres a fumarem em público. Ao associar o fumo à libertação das mulheres, ele conseguiu manchete que louvavam os cigarros como "tochas da liberdade".)
Comecei a entender isto quando era um jovem repórter durante a guerra americana no Vietname. Durante a minha primeira missão vi os resultados do bombardeamento de duas aldeias e da utilização do Napalm B , o qual continua a queimar debaixo da pela; muitas das vítimas eram crianças; árvores eram engrinaldadas com pedaços de corpos. O lamento de que "estas tragédias inevitáveis acontecem em guerras" não explicava porque virtualmente toda a população do Vietname do Sul estava em grave risco diante das forças do seu declarado "aliado", os Estados Unidos. Expressões de RP como "pacificação" e "dano colateral" tornaram-se moeda corrente. Quase nenhum repórter utilizava a palavra "invasão". "Emaranhamento" e depois "atoleiro" tornaram-se correntes num novo vocabulário que reconhecia a matança de civis meramente como erros trágicos e raramente questionavam as boas intenções dos invasores.
Nas paredes dos escritórios em Saigão das principais organizações americanas de notícias eram muitas vezes afixadas fotografias horrendas que nunca eram publicadas e raramente eram enviadas porque, diziam, "sensacionalizariam" a guerra ao inquietar leitores e visionadores e portanto não eram "objectivas". O massacre de My Lai em 1968 não foi relatado a partir do Vietname, embora um certo número de repórteres soubesse dele (e de outros atrocidades afins), mas por um freelancer nos EUA, Seymour Hersh . A capa da revista Newsweek denominou-o uma "tragédia americana", implicando que os invasores foram as vítimas: um tema de purgação entusiasticamente adoptado por Holliwood em filmes como O caçador (The Deer Hunter) e Platoon. . A guerra era imperfeita e trágica, mas a causa era essencialmente nobre. Além disso, foi "perdida" graças à irresponsabilidade de uma media hostil e não censurada.
Embora o oposto da verdade, tais falsas realidades tornaram-se as "lições" aprendidas pelos feitores das guerras actuais e por muita gente dos media. A seguir ao Vietname, jornalistas "incorporados" ("embedding") tornaram-se centrais para a política da guerra em ambos os lados do Atlântico. Com honrosas excepções, isto teve êxito, especialmente nos EUA. Em Março de 2002, uns 700 repórteres incorporados e equipes de filmagem acompanharam as forças invasoras americanas no Iraque. Observem os seus relatos excitados e é a libertação da Europa mais uma vez. O povo iraquiano está distante, efémeros actores secundários; John Wayne ressuscitou.
O apogeu foi a entrada vitoriosa em Bagdad e as imagens da TV de multidões a saudar a queda de uma estátua de Saddam Hussein. Por trás desta fachada, uma equipe americana de operações psicológicos (Psyops) manipulava com êxito o que um ignorado relatório do US Army descreve como um "circo dos media [com] quase tantos repórteres quanto iraquianos". Rageh Omaar , que estava ali pela BBC, informou no noticiário principal da noite: "O povo saiu saudando [os americanos], mostrando sinais em V. Isto é uma imagem que acontece por toda a capital iraquiana". De facto, na maior parte do Iraque, em grande parte não relatada, estava em marcha a conquista sangrenta e a destruição de toda uma sociedade.
Em The War You Don't See, Omaar fala com franqueza admirável. "Realmente não fiz o meu trabalho adequadamente", afirma ele. "Levanto a minha mão e afirmo que não pressionei os botões mais incómodos com força suficiente". Ele descreve como a propaganda militar britânico manipulou com êxito a cobertura da queda de Bassorá, a qual a BBC New 24 informou ter caído "17 vezes". Esta cobertura, afirma ele, foi "uma câmara de ressonância gigante".
A simples magnitude do sofrimento iraquiano na carnificina tem pouco espaço nos noticiários. De pé em frente à Downing Street nº 10, na noite da invasão, Andrew Marr , então editor político da BBC, declarou: "[Tony Blair] disse que seriam capazes de tomar Bagdad sem um banho de sangue e que no fim os iraquianos estariam a celebrar, e em ambas as afirmações ele demonstrou estar conclusivamente correcto..." Pedi uma entrevista a Marr, mas não recebi resposta. Estudos da cobertura televisiva feitos pela Universidade de Gales, Cardiff e Media Tenor , descobriram que a cobertura da BBC reflectia esmagadoramente a linha do governo e que informações do sofrimento de civis foram relegadas. A Media Tenor coloca a BBC e a CBS dos EUA entre os principais de meios de comunicação ocidentais que permitiram a invasão. "Estou perfeitamente aberto à acusação de que fomos ludibriados", disse Jeremy Paxman, ao falar no ano passado a um grupo de estudantes acerca das não-existentes armas de destruição em massa . "Nós o fomos claramente". Como um profissional altamente pago da comunicação, ele deixou de dizer porque foi ludibriado.
Dan Rather, que foi a âncora dos noticiários da CBS durante 24 anos, foi menos reticente. "Havia um medo em toda sala de redacção da América", contou-me, "um medo de perder o emprego ... o medo de lhe afixarem alguma etiqueta, impatriótica ou outra". Rather afirma que a guerra nos transformou em "estenógrafos" e que se jornalistas houvessem questionado os enganos que levaram à guerra do Iraque, ao invés de amplificá-los, a invasão não teria acontecido. Esta é uma visão não partilhada por um certo número de jornalistas sénior que entrevistei nos EUA.
Na Grã-Bretanha, David Rose, cujos artigos no Observer desempenharam um papel importantes ao ligar falsamente Saddam Hussein à al-Qaida e ao 11/Set, deu-me uma entrevista corajosa na qual afirmou: "Não posso dar desculpas ... O que aconteceu [no Iraque] foi um crime, um crime em escala muito grande ..."
"Será que isso torna os jornalistas cúmplices?", perguntei-lhe.
"Sim ... talvez inconscientes, mas sim".
Qual o valor de jornalistas que falam assim? A resposta é dada pelo grande repórter James Cameron , cuja corajosa e reveladora reportagem filmada, feita com Malcom Aird, do bombardeamento de civis no Vietname do Norte foi proibida pela BBC. "Se nós, cuja missão é descobrir o que os bastardos estão a tramar, não informarmos o que descobrimos, se não falarmos alto", disse-me ele, "quem é que vai travar toda essa guerra sangrenta acontecendo outra vez?"
Cameron não podia ter imaginado um fenómeno moderno tal como o WikiLeaks mas certamente teria aprovado. Na actual avalanche de documentos oficiais, especialmente aqueles que descrevem as maquinações secretas que levaram à guerra – tal como a mania americana sobre o Iraque – o fracasso do jornalismo raramente é notado. E talvez razão porque Julian Assange parece excitar tal hostilidade entre jornalistas que servem uma variedade de "lobbies", aqueles a quem o porta-voz de imprensa de George Bush certa vez chamou de "possibilitadores cúmplices", é que a WikiLeaks e o contar da verdade envergonha-os. Por que o público teve de esperar pelo WikiLeaks para descobrir como a grande potência realmente opera? Como revela um documento de 2000 páginas escapado do Ministério da Defesa, os jornalistas mais eficazes são aqueles encarados nas sedes do poder não como embebidos ou membros do clube, mas como um "ameaça". Isto é a ameaça da democracia real, cuja "moeda", disse Thomas Jefferson, é o "livre fluxo de informação".
No meu filme, perguntei a Assange como WikiLeaks trataria das draconianas leis secretas pelas quais é famosa a Grã-Bretanha. "Bem", disse ele, "quando olhamos para os documentos rotulados na Lei de Segredos Oficiais, vemos uma declaração de que é um delito reter informação e é um delito destruir a informação, de modo que a única resultante possível que temos de publicar a informação". Estes tempos são extraordinários.
Nunca tanta energia oficial foi gasta para assegurar a conivência de jornalistas com os feitores de guerras de rapina as quais, dizem os generais amigos dos media, agora são "perpétuas". Ao reflectir os mais prolixos senhores da guerra, tais como o waterboarding [*] Dick Cheney, ex-vice-presidente dos EUA, o qual previu "50 anos de guerra", eles planeiam um estado de conflito permanente inteiramente dependente da manutenção à distância de um inimigo cujo nome não ousam dizer: o público.
Em Chicksands, Bedfordshire, o estabelecimento da guerra psicológica (Psyops) do Ministério da Defesa , treinadores de media dedicam-se à tarefa, imersos num mundo de jargões como "dominância de informação", "ameaças assimétricas" e "ciber-ameaças". Eles partilham instalações com aqueles que ensinam os métodos que levaram a uma investigação pública quanto à tortura militar britânica no Iraque. A desinformação e a barbárie da guerra colonial tem muito em comum.
É claro que apenas o jargão é novo. Na sequência de abertura do meu filme, A guerra que você não vê (The War You Don't See), , há uma referência a uma conversação privada pré-WikiLeaks, de Dezembro de 1917, entre David Lloyd George, primeiro-ministro britânico durante grande parte da primeira guerra mundial, e C.P. Scott, editor do Manchester Guardian. "Se o povo realmente soubesse a verdade", dizia o primeiro-ministro, "a guerra cessaria amanhã. Mas naturalmente não sabem, e não podem saber".
Na sequência desta "guerra para acabar com todas as guerras", Edward Bernays , um confidente do presidente Woodrow Wilson , cunhou a expressão "relações públicas" como um eufemismo para propaganda "à qual ganhou má reputação durante a guerra". No seu livro, Propaganda (1928), Bernays descreveu as RP como "um governo invisível" o qual é o verdadeiro poder dominante no nosso país" graças à "inteligente manipulação das massas". Isto era alcançado por "realidades falsas" e a sua adopção pelos media (Um dos primeiros êxitos de Bernay foi persuadir as mulheres a fumarem em público. Ao associar o fumo à libertação das mulheres, ele conseguiu manchete que louvavam os cigarros como "tochas da liberdade".)
Comecei a entender isto quando era um jovem repórter durante a guerra americana no Vietname. Durante a minha primeira missão vi os resultados do bombardeamento de duas aldeias e da utilização do Napalm B , o qual continua a queimar debaixo da pela; muitas das vítimas eram crianças; árvores eram engrinaldadas com pedaços de corpos. O lamento de que "estas tragédias inevitáveis acontecem em guerras" não explicava porque virtualmente toda a população do Vietname do Sul estava em grave risco diante das forças do seu declarado "aliado", os Estados Unidos. Expressões de RP como "pacificação" e "dano colateral" tornaram-se moeda corrente. Quase nenhum repórter utilizava a palavra "invasão". "Emaranhamento" e depois "atoleiro" tornaram-se correntes num novo vocabulário que reconhecia a matança de civis meramente como erros trágicos e raramente questionavam as boas intenções dos invasores.
Nas paredes dos escritórios em Saigão das principais organizações americanas de notícias eram muitas vezes afixadas fotografias horrendas que nunca eram publicadas e raramente eram enviadas porque, diziam, "sensacionalizariam" a guerra ao inquietar leitores e visionadores e portanto não eram "objectivas". O massacre de My Lai em 1968 não foi relatado a partir do Vietname, embora um certo número de repórteres soubesse dele (e de outros atrocidades afins), mas por um freelancer nos EUA, Seymour Hersh . A capa da revista Newsweek denominou-o uma "tragédia americana", implicando que os invasores foram as vítimas: um tema de purgação entusiasticamente adoptado por Holliwood em filmes como O caçador (The Deer Hunter) e Platoon. . A guerra era imperfeita e trágica, mas a causa era essencialmente nobre. Além disso, foi "perdida" graças à irresponsabilidade de uma media hostil e não censurada.
Embora o oposto da verdade, tais falsas realidades tornaram-se as "lições" aprendidas pelos feitores das guerras actuais e por muita gente dos media. A seguir ao Vietname, jornalistas "incorporados" ("embedding") tornaram-se centrais para a política da guerra em ambos os lados do Atlântico. Com honrosas excepções, isto teve êxito, especialmente nos EUA. Em Março de 2002, uns 700 repórteres incorporados e equipes de filmagem acompanharam as forças invasoras americanas no Iraque. Observem os seus relatos excitados e é a libertação da Europa mais uma vez. O povo iraquiano está distante, efémeros actores secundários; John Wayne ressuscitou.
O apogeu foi a entrada vitoriosa em Bagdad e as imagens da TV de multidões a saudar a queda de uma estátua de Saddam Hussein. Por trás desta fachada, uma equipe americana de operações psicológicos (Psyops) manipulava com êxito o que um ignorado relatório do US Army descreve como um "circo dos media [com] quase tantos repórteres quanto iraquianos". Rageh Omaar , que estava ali pela BBC, informou no noticiário principal da noite: "O povo saiu saudando [os americanos], mostrando sinais em V. Isto é uma imagem que acontece por toda a capital iraquiana". De facto, na maior parte do Iraque, em grande parte não relatada, estava em marcha a conquista sangrenta e a destruição de toda uma sociedade.
Em The War You Don't See, Omaar fala com franqueza admirável. "Realmente não fiz o meu trabalho adequadamente", afirma ele. "Levanto a minha mão e afirmo que não pressionei os botões mais incómodos com força suficiente". Ele descreve como a propaganda militar britânico manipulou com êxito a cobertura da queda de Bassorá, a qual a BBC New 24 informou ter caído "17 vezes". Esta cobertura, afirma ele, foi "uma câmara de ressonância gigante".
A simples magnitude do sofrimento iraquiano na carnificina tem pouco espaço nos noticiários. De pé em frente à Downing Street nº 10, na noite da invasão, Andrew Marr , então editor político da BBC, declarou: "[Tony Blair] disse que seriam capazes de tomar Bagdad sem um banho de sangue e que no fim os iraquianos estariam a celebrar, e em ambas as afirmações ele demonstrou estar conclusivamente correcto..." Pedi uma entrevista a Marr, mas não recebi resposta. Estudos da cobertura televisiva feitos pela Universidade de Gales, Cardiff e Media Tenor , descobriram que a cobertura da BBC reflectia esmagadoramente a linha do governo e que informações do sofrimento de civis foram relegadas. A Media Tenor coloca a BBC e a CBS dos EUA entre os principais de meios de comunicação ocidentais que permitiram a invasão. "Estou perfeitamente aberto à acusação de que fomos ludibriados", disse Jeremy Paxman, ao falar no ano passado a um grupo de estudantes acerca das não-existentes armas de destruição em massa . "Nós o fomos claramente". Como um profissional altamente pago da comunicação, ele deixou de dizer porque foi ludibriado.
Dan Rather, que foi a âncora dos noticiários da CBS durante 24 anos, foi menos reticente. "Havia um medo em toda sala de redacção da América", contou-me, "um medo de perder o emprego ... o medo de lhe afixarem alguma etiqueta, impatriótica ou outra". Rather afirma que a guerra nos transformou em "estenógrafos" e que se jornalistas houvessem questionado os enganos que levaram à guerra do Iraque, ao invés de amplificá-los, a invasão não teria acontecido. Esta é uma visão não partilhada por um certo número de jornalistas sénior que entrevistei nos EUA.
Na Grã-Bretanha, David Rose, cujos artigos no Observer desempenharam um papel importantes ao ligar falsamente Saddam Hussein à al-Qaida e ao 11/Set, deu-me uma entrevista corajosa na qual afirmou: "Não posso dar desculpas ... O que aconteceu [no Iraque] foi um crime, um crime em escala muito grande ..."
"Será que isso torna os jornalistas cúmplices?", perguntei-lhe.
"Sim ... talvez inconscientes, mas sim".
Qual o valor de jornalistas que falam assim? A resposta é dada pelo grande repórter James Cameron , cuja corajosa e reveladora reportagem filmada, feita com Malcom Aird, do bombardeamento de civis no Vietname do Norte foi proibida pela BBC. "Se nós, cuja missão é descobrir o que os bastardos estão a tramar, não informarmos o que descobrimos, se não falarmos alto", disse-me ele, "quem é que vai travar toda essa guerra sangrenta acontecendo outra vez?"
Cameron não podia ter imaginado um fenómeno moderno tal como o WikiLeaks mas certamente teria aprovado. Na actual avalanche de documentos oficiais, especialmente aqueles que descrevem as maquinações secretas que levaram à guerra – tal como a mania americana sobre o Iraque – o fracasso do jornalismo raramente é notado. E talvez razão porque Julian Assange parece excitar tal hostilidade entre jornalistas que servem uma variedade de "lobbies", aqueles a quem o porta-voz de imprensa de George Bush certa vez chamou de "possibilitadores cúmplices", é que a WikiLeaks e o contar da verdade envergonha-os. Por que o público teve de esperar pelo WikiLeaks para descobrir como a grande potência realmente opera? Como revela um documento de 2000 páginas escapado do Ministério da Defesa, os jornalistas mais eficazes são aqueles encarados nas sedes do poder não como embebidos ou membros do clube, mas como um "ameaça". Isto é a ameaça da democracia real, cuja "moeda", disse Thomas Jefferson, é o "livre fluxo de informação".
No meu filme, perguntei a Assange como WikiLeaks trataria das draconianas leis secretas pelas quais é famosa a Grã-Bretanha. "Bem", disse ele, "quando olhamos para os documentos rotulados na Lei de Segredos Oficiais, vemos uma declaração de que é um delito reter informação e é um delito destruir a informação, de modo que a única resultante possível que temos de publicar a informação". Estes tempos são extraordinários.
O original encontra-se em www.guardian.co.uk e em www.johnpilger.com
Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
domingo, 19 de dezembro de 2010
A comida não pode ser barata? Uma resposta cúmplice aponta a causa dessa injustiça
Por Antonio Cechin e Jacques Távora Alfonsin no Sul21
“A sociedade tem de aceitar que a época da comida barata acabou.”
Assim, o presidente da Farsul resumiu sua opinião sobre o preço da
comida, na edição de sexta-feira, 17, do jornal Zero Hora.
Para quem ainda passa fome no Brasil, é difícil recordar quando, no
passado, a comida foi barata. Em todo o caso, tratando aquela opinião de
uma necessidade vital das pessoas, como é a de se alimentar, é
conveniente analisar-se o dito no que ele pode revelar sobre as causas
de uma injustiça social como essa, pois, pelo jeito, não temos saída e
estamos condenados a aceitá-la.
Segundo essa maneira de pensar, cabe uma comparação. Entre o possível
prejuízo que a fração de empresários representada pela tal liderança
possa ter na venda do indispensável à vida das pessoas, e o que essas
possam sofrer por não poderem pagar o que lhes mata a fome, quem não
pode sair perdendo é o dono do capital (nem sempre identificado, em
tudo, com o “produtor rural”, a economia familiar que o comprove), pois,
em todo o contexto explicativo da entrevista, a “comida barata” aparece
como prejuízo certo desse personagem.
Como o mercado, onde esse capital se alimenta de dinheiro e não de
comida, é um ente abstrato, de humor desconhecido, refletido em
expressões tão grandiloqüentes quanto aleatórias do tipo “crise da
economia mundial”, “excesso de demanda”, “defesa da liberdade de
iniciativa econômica”, “globalização”, as causas dos perversos efeitos
da previsão feita pelo presidente da Farsul geralmente ficam isentas de
qualquer investigação sancionatória, inclusive do ponto de vista
jurídico. A “mão invisível” (Adam Smith) dos seus ciclos econômicos de
crise, exploração da natureza e das gentes, trata de imunizá-lo.
Algumas mãos visíveis de defesa desse tipo de irresponsabilidade,
todavia, podem ser identificadas, como prova a afirmação categórica do
ministro da agricultura, publicada na mesma edição de ZH, segundo a qual
“índices de produtividade é assunto encerrado.”
Ali aparece, novamente, o porque de se encerrar esse assunto: “Quem
deve definir o que, como e quando o produtor brasileiro vai produzir é o
mercado, a visão que ele tem de oportunidades de negócios, perspectivas
de preço, demanda do mercado interno e internacional. Não pode ser um
ato autoritário, de cima para baixo, dizendo que tem de produzir com
tais índices de produtividade. Não é assim que se faz”.
Entre o que a sociedade, portanto, “tem de aceitar” como diz o
presidente da Farsul, e a forma como essa aceitação deve ser feita
(“assunto encerrado”, “não é assim que se faz”…), como diz o ministro da
Agricultura, o Estado, a democracia, os Poderes Públicos, o ordenamento
jurídico não têm que dar palpite nem se meter.
A lei e o direito, assim, não têm voz nenhuma aí. Quem deve mandar
sobre o que deve se produzir “é o mercado”, “as oportunidades de
negócios”, as “perspectivas de preços”, somente o dinheiro, em última
análise. Poucas vezes se reconheceu, com tanta clareza e pelas vozes dos
seus mais fiéis representes, onde se encontra, efetivamente, o “ato
autoritário, de cima para baixo”, a que faz referência o ministro da
agricultura. Ele desce do mercado e é indiscutível, fatal, como ato
caracteristico de toda ditadura. A/o pobre faminta/o que se submeta a
esse ente-ídolo capaz de ditar o que, como, quando e quanto ele deve
comer. Não é por acaso, portanto, que acabe morrendo de fome. O Estado e
a democracia prossigam fingindo terem o poder de garantir a vida e a
liberdade do povo pobre.
Haja fome, então, para suportar uma opressão a esse nível. Ela
comprova a maior contradição presente em todo o nosso sistema econômico.
Justamente quando a produção rural conquista quantidades de alimento
mais do que suficientes para alimentar o povo todo, o chamado “preço de
mercado” cai a níveis tão baixos, que somente a retenção dessas
quantidades consegue cobrir o custo da produção, seja o real, seja o
inventado por quem sabe manipular dados a favor do seu lucro. Aí o
Estado deixa de ser o vilão e passa a ser a solução…
Não é preciso ser economista para compreender onde tudo isso vai dar.
Esse ar de fatalidade, no qual se inspiram as opiniões das referidas
lideranças, não é igual ao do clima, corriqueiramente invocado em favor
das alegadas dificuldades pelas quais passam os seus liderados. Que a
freqüência desse repetido queixume já alcançou status de segunda
natureza, isso não dá para negar, pois não há ano em que ele não repita o
seu choro.
Quanto cinismo e hipocrisia se refletem, pois, quando o respeito à
lei, especialmente a da segurança nacional, é invocado com veemência,
por essas lideranças, sempre que o povo necessitado de casa e comida
toma em suas próprias mãos a iniciativa de proclamar que o tal respeito
só vale, de fato e materialmente, em favor de minorias historicamente
protegidas por uma ideologia sem outras referências que não as da
propriedade e as do mercado. Se o destinatário de algumas vantagens
previstas em lei é a/o pobre, elas ignoram e desprezam a lei. Essa
exige, por exemplo, o cumprimento da função sal da propriedade, “em prol
do bem coletivo”, das “necessidades dos cidadãos”, da “erradicação da
pobreza”, de “direitos humanos fundamentais”, expressões que não faltam
na Constituição Federal, no Estatuto da Terra e no Estatuto da Cidade,
entre outras regras jurídicas. Aí, o seu efeito material, concreto, é
igual a zero, já que o mercado, pelo menos o refletido nas opiniões
publicadas pela ZH, não precisa se preocupar com isso.
O direito à alimentação, por exemplo, somente entrou expressamente na
Constituição em fevereiro deste ano (Emenda 64), como se a satisfação
de uma necessidade vital como essa, de tão desrespeitada no país,
tivesse necessidade de se proclamar em lei, para ser reconhecida como
direito. Muito antes, os tratados internacionais que o Brasil assinou,
como o dos direitos econômicos, sociais e culturais de 1966, já
vinculavam o nosso país, inclusive, à reforma agrária capaz de, no
mínimo, atenuar as danosas conseqüências da comida cara.
Os conceitos de “soberania alimentar” e de “segurança alimentar”,
capazes de dar sustentação a direitos fundamentais de todo o povo,
garantindo-lhe presidir o que plantar, colher, criar e abater, sem
correr o risco da fome, pela falta de acesso à terra, devem inverter os
sentidos das lições ditadas pelo presidente da Farsul e pelo ministro da
Agricultura. O primeiro “tem de aceitar” e o segundo não pode
“encerrar assunto” que envolva direitos como os que as suas opiniões
desconsideram. O “realismo econômico” da comida cara, sem outro remédio,
previsto por eles, se está sendo pelo menos mitigado nos seus danosos
efeitos sociais, isso não se deveu ao mercado, lá erguido à panacéia dos
nossos males, mas sim aos assentamentos gerados pela reforma agrária,
pelo menos os que deram certo justamente por obedecer à outra lógica que
não a exclusiva do mercado. Não foi este também que presidiu a política
pública de implantação do Fome Zero e do Bolsa Família.
Se existem mais brasileiros saciados, hoje, não devem isso ao
mercado. Felizmente, há uma outra economia em curso, familiar,
solidária, cooperativa, diferente dessa que acumula na mão de poucos o
que falta na mesa de muitos. É por isso que a reforma agrária, esses
assentamentos e essas políticas públicas recebem críticas tão ácidas das
lideranças latifundiárias e daquelas que, no exercício do Poder
Público, lhes são fiéis. “Paternalismos oficiais”, “favelas rurais”
costumam aparecer sustentando essas críticas. É que o ídolo ao pé do
qual elas se ajoelham, rezam e acendem velas diárias de adoração, não
aceita outra forma de produção, distribuição e partilha dos bens
indispensáveis à vida das pessoas que não passe pelo seu poder de
exclusão, medido de acordo com a capacidade de pagar que cada uma dessas
tenha alcançado.
Aquela outra economia sabe que o dinheiro não se come, nem impõe um
“ter de aceitar” ou um “assunto encerrado” prepotentes e
anti-democráticos como os publicados pela ZH do dia 17. Os direitos e os
interesses alheios não lhe são estranhos ou, até, hostis. O que ela
mais deseja é a suficiência para todas/os e não somente para um pequeno
grupo. Está a serviço de uma justiça social capaz de produzir comida e
mesa fartas onde ninguém se assente constrangido pela dor de saber-se
estranho à comum união.
Assinar:
Postagens (Atom)