quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Lula cria empresa para administrar Hospitais – a lógica do lucro chega à saúde pública

Por Elaine Tavares - jornalista

Enquanto era carregado nos braços do povo brasileiro em emocionante despedida, o presidente Lula deixava sobre a mesa de trabalho uma medida provisória que terá conseqüências dramáticas para a maioria da população empobrecida do país. Nesta medida, que tem força de lei com implantação imediata, Lula golpeia de morte uma luta que foi travada ao longo de todo seu mandato contra a privatização dos Hospitais Universitários, responsáveis hoje pela pesquisa de ponta na saúde e pelo atendimento gratuito à população. A medida provisória autoriza a criação de uma empresa pública, de direito privado, chamada de Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares S.. - EBSERH, que, vinculada ao Ministério da Educação, poderá prestar atendimento à saúde e servir de apoio administrativo aos hospitais universitários.

Numa primeira mirada isso pode parecer ótimo e muitos perguntarão como alguém pode ser contra uma idéia como essa. Mas, observando as letras pequenas da lei, pode-se perceber o grau de perversidade que está contido nesta MP. Em primeiro lugar é bom contextualizar o problema. Desde há alguns anos que o Tribunal de Contas da União vem observando algumas ilegalidades nos HUs. Uma delas é a contratação indiscriminada de trabalhadores através de Fundações. Mas, esta foi a forma encontrada pelas administrações para dar atendimento nos HUs, uma vez que não havia concurso público para novas contratações e muito menos vontade política dos reitores em enfrentar o problema de frente. O movimento de trabalhadores sempre se colocou contra essa forma de contrato porque acabava criando duas categorias dentro dos hospitais, a dos servidores públicos, com todos os direitos garantidos e a dos contratados, sempre na berlinda por conta de serem celetistas. Não bastasse essa discriminação funcional, ainda havia intensa rotatividade prejudicando o bom andamento dos trabalhos.

A solução imediatamente apontada pelo governo Lula foi a regularização das fundações privadas dentro das universidades, o que provocou um grande movimento contrário nas Instituições Federais de Ensino Superior. Isso porque, ao longo destes anos, foram divulgados inúmeros escândalos envolvendo as fundações em várias IFES, mostrando o quão funesto era esse sistema de burlagem da lei, no qual as fundações captavam recursos privados para serem aplicados nas universidades, em operações muitas vezes envoltas em irregularidades que beneficiavam pessoas em vez das instituições.

Batendo de frente com o movimento docente e técnico-administrativo o governo do presidente Luis Inácio recuou e, mais tarde, lançou nova ofensiva com a proposta de uma Fundação Pública de Direito Privado que assumiria o papel de todas as fundações já existentes, com possibilidade, inclusive, de administrar as instituições de Educação, Saúde e Cultura. Isso, na prática, era privatizar o sistema público de atendimento à população. Mais uma vez os movimentos de trabalhadores dentro das instituições se mobilizaram e empreenderam longa luta contra esse projeto.

Mas, agora, no apagar das luzes do seu governo, em pleno final do ano, quando os trabalhadores públicos, na sua maioria, estão em férias, Lula cria uma empresa, de administração privada, para administrar os hospitais universitários. A estatal será uma sociedade anônima e terá seu capital oriundo do orçamento da União, portanto pertence à nação. Mas, como é de direito privado, toda a lógica administrativa se prestará a busca do lucro e da produtividade. Coisa que sempre foi combatida pelos trabalhadores, pois, na saúde, não há como trabalhar com produtividade. O que pode ser produtivo num hospital? A doença...

No corpo da medida provisória que cria a estatal de direito privado, o governo promete a prestação de serviços gratuitos de assistência médico-hospitalar e laboratorial à comunidade, assim como a prestação, às instituições federais de ensino ou instituições congêneres, de serviços de apoio ao ensino e à pesquisa, ao ensino-aprendizagem e à formação de pessoas no campo da saúde pública. De novo, isso parece muito bom. Mas, como é uma empresa de direito privado, sua meta é o lucro e aí se inserem as armadilhas.

Como seu papel será o de administrar unidades hospitalares, abre-se o caminho já apontado pelo governo de separação dos hospitais-escola do Ministério da Educação, passando ao campo da Saúde. Pode parecer lógico, mas não é. Os hospitais universitários estão hoje visceralmente ligados à universidade. Têm como função servir de espaço de ensino para os estudantes das mais variadas áreas médicas. Todos os trabalhadores ali lotados estão igualmente ligados à universidade. Com a nova empresa e sua lógica administrativa privada, isso muda. Os trabalhadores poderão ser contratados pela CLT, sem acarretar qualquer vínculo com o Estado e estarão submetidos a metas e produtividade. Isso igualmente cria uma profunda divisão na categoria, com a presença de dois tipos de trabalhadores, os públicos e os privados, ocasionando conflitos e freando as lutas. Segundo a medida, os trabalhadores especializados, ainda que CLT, passarão por concurso, mas o pessoal de nível técnico-administrativo poderá ser contratado sem qualquer concurso e por tempo determinado com contratos temporários. Esta era uma vontade muito antiga do governo, pois, com isso, consegue superar qualquer movimento grevista que venha a ser construído.

Na medida provisória está bem claro que a nova empresa poderá incorporar os trabalhadores que já estão nos quadros dos hospitais assim como os bens móveis e imóveis necessários para o início das atividades. Também diz a MP que a nova estatal estará autorizada a patrocinar entidade fechada de previdência privada, nos termos da legislação vigente, o que significa a abertura para o atendimento aos planos de saúde, também um antigo desejo do agora ex-presidente.

Para os reitores e provavelmente para a maioria dos trabalhadores que ainda estavam vinculados às Fundações, esta medida vem como uma luva para seus interesses. Os reitores poderão seguir contratando trabalhadores sem concurso, resolvendo a questão da terceirização. Além disso, também poderão captar recursos privados de forma mais tranqüila, sem precisar usar subterfúgios ou ilegalidade. Também poderão cobrar uma administração mais enxuta, aos moldes da privada, estabelecendo metas de produtividade. Em suma, tratando a saúde da população como mais uma mercadoria. Os trabalhadores terceirizados, que hoje estão sob a ameaça de perder o emprego, ficam mais tranqüilos e tudo segue dentro da “ordem”. Com isso não haverá mais a necessidade de lutar pelo concurso público.

Para quem faz a luta nas universidades este foi um duro golpe. A criação da nova empresa pública estilhaça uma luta de anos pela manutenção dos Hospitais Universitários 100% SUS. Com o artigo que permite a contratação de previdência privada, os HUs poderão, enfim, criar as famosas duas portas de entrada: uma para os que dependem da saúde pública e outra para os que têm plano de saúde. Pode parecer que isso está bem, que não vai mudar em nada a vida daqueles que hoje dependem do SUS e que sempre encontraram guarida nos HUs, mas, quando um hospital passa a se mover dentro da lógica privada, tudo muda. É certo que as pessoas vão sentir o peso desta medida bem mais na frente, inclusive, esquecendo como isso aconteceu. Mas, para quem está na luta pela universidade e pela saúde pública é hora de mostrar os funestos efeitos que virão.

É sempre difícil para os lutadores sociais serem os “arautos da desgraça”, aqueles que estão sempre a ver problemas e apontando as críticas. Mas, é o compromisso com a vida digna para todos que leva a essa prática. Nosso papel é mostrar as graves consequências que advirão desta medida e preparar o terreno para as lutas que se farão necessárias quando a privatização da saúde tomar conta de um dos últimos bastiões do atendimento público: os hospitais universitários.

Os ataques implacáveis a Marisa Letícia

Marisa Letícia Lula da Silva: as palavras que precisavam ser ditas
Hildegard Angel em seu blog
Foram oito anos de bombardeio intenso, tiroteio de deboches, ofensas de todo jeito, ridicularia, referências mordazes, críticas cruéis, calúnias até. E sem o conforto das contrapartidas. Jamais foi chamada de "a Cara" por ninguém, nem teve a imprensa internacional a lhe tecer elogios, muito menos admiradores políticos e partidários fizeram sua defesa. À "companheira" número 1 da República, muito osso, afagos poucos.
dirão os de sempre, e as mordomias? As facilidades? O vidão? E eu rebaterei: E o fim da privacidade? A imprensa sempre de olho, botando lente de aumento pra encontrar defeito? E as hostilidades públicas? E as desfeitas? E a maneira desrespeitosa com que foi constantemente tratada, sem a menor cerimônia, por grande parte da mídia? Arremedando-a, desfeiteando-a, diminuindo-a? E as frequentes provas de desconfiança, daqui e dali? E - pior de tudo - os boatos infundados e maldosos, com o fim exclusivo e único de desagregar o casal, a família?
Ah, meus queridos, Marisa Letícia Lula da Silva precisou ter coragem e estômago para suportar esses oito anos de maledicências e ataques. E ela teve.
Começaram criticando-a por estar sempre ao lado do marido nas solenidades. Como se acompanhar o parceiro não fosse o papel tradicional da mulher mãe de família em nossa sociedade.
Depois, implicaram com o silêncio dela, a "mudez", a maneira quieta de ser. Na verdade, uma prova mais do que evidente de sua sabedoria. Falar o quê, quando, todos sabem, primeira-dama não é cargo, não é emprego, não é profissão?
Ah, mas tudo que "eles" queriam era ver dona Marisa Letícia se atrapalhar com as palavras para, mais uma vez, com aquela crueldade venenosa que lhes é peculiar, compará-la à antecessora, Ruth Cardoso, com seu colar pomposo de doutorados e mestrados.
Agora, me digam, quantas mulheres neste grande e pujante país podem se vangloriar de ter um doutorado? Assim como, por outro lado, não são tantas as mulheres no Brasil que conseguem manter em harmonia uma família discreta e reservada, como tem Marisa Letícia.
E não são também em grande número aquelas que contam, durante e depois de tantos anos de casamento, com o respeito implícito e explícito do marido, as boas ausências sempre feitas por Luís Inácio Lula da Silva a ela, o carinho frequentemente manifestado por ele. E isso não é um mérito? Não é um exemplo bom?
Passemos agora às desfeitas ao que, no entanto, eu considero o mérito mais relevante de nossa ex-primeira-dama: a brasilidade.
Foi um apedrejamento sem trégua, quando Marisa Letícia, ao lado do marido presidente, decidiu abrir a Granja do Torto para as festas juninas. A mais singela de nossas festas populares, aquela com Brasil nas veias, celebrando os santos de nossas preferências, nossa culinária, os jogos e brincadeiras. Prestigiando o povo brasileiro no que tem de melhor: a simplicidade sábia dos Jecas Tatus, a convivência fraterna, o riso solto, a ingenuidade bonita da vida rural. Fizeram chacota por Lula colar bandeirinhas com dona Marisa, como se a cumplicidade do casal lhes causasse desconforto.
Imprensa colonizada e tola, metida a chique. Fazem lembrar "emergentes" metidos a sebo que jamais poderiam entender a beleza de um pau de sebo "arrodeado" de fitinhas coloridas. Jornalistas mais criteriosos saberiam que a devoção de Marisa pelo Santo Antônio, levado pelo presidente em estandarte nas procissões, não é aprendida, nem inventada. É legitimidade pura. Filha de um Antônio (Antônio João Casa), de família de agricultores italianos imigrantes, lombardos lá de Bérgamo, Marisa até os cinco de idade viveu num sítio com os dez irmãos, onde o avô paterno, Giovanni Casa, devotíssimo, construiu uma capela de Santo Antônio. Até hoje ela existe, está lá pra quem quiser conferir, no bairro que leva o nome da família de Marisa, Bairro dos Casa, onde antes foi o sítio de suas raízes, na periferia de São Bernardo do Campo. Os Casa, de Marisa Letícia, meus amores, foram tão imigrantes quanto os Matarazzo e outros tantos, que ajudaram a construir o Brasil.
Outro traço brasileiro dela, que acho lindo, é o prestígio às cores nacionais, sempre reverenciadas em suas roupas no Dia da Pátria. Obras de costureiros nossos, nomes brasileiros, sem os abstracionismos fashion de quem gosta de copiar a moda estrangeira. Eram os coletes de crochê, os bordados artesanais, as rendas nossas de cada dia. Isso sim é ser chique, o resto é conversa fiada.
No poder, ao lado do marido, ela claramente se empenhou em fazer bonito nas viagens, nas visitas oficiais, nas cerimônias protocolares. Qualquer olhar atento percebe que, a partir do momento em que se vestir bem passou a ser uma preocupação, Marisa Letícia evoluiu a cada dia, refinou-se, depurou o gosto, dando um olé geral em sua última aparição como primeira-dama do Brasil, na cerimônia de sábado passado, no Palácio do Planalto, quando, desculpem-me as demais, era seguramente a presença feminina mais elegante. Evoluiu no corte do cabelo, no penteado, na maquiagem e, até, nos tão criticados reparos estéticos, que a fizeram mais jovem e bonita.
Atire a primeira pedra a mulher que, em posição de grande visibilidade, não fez uma plástica, não deu uma puxadinha leve, não aplicou uma injeçãozinha básica de botox, mesmo que light, ou não recorreu aos cremes noturnos. Ora essa, façam-me o favor! Cobraram de Marisa Letícia um "trabalho social nacional", um projeto amplo nos moldes do Comunidade Solidária de Ruth Cardoso. Pura malícia de quem queria vê-la cair na armadilha e se enrascar numa das mais difíceis, delicadas e técnicas esferas de atuação: a área social.
Inteligente, Marisa Letícia dedicou-se ao que ela sempre melhor soube fazer: ser esteio do marido, ser seu regaço, seu sossego. Escutá-lo e, se necessário, opinar. Transmitir-lhe confiança e firmeza. E isso, segundo declarações dadas por ele, ela sempre fez. Foi quem saiu às ruas em passeata, mobilizando centenas de mulheres, quando os maridos delas, sindicalistas, estavam na prisão. Foi quem costurou a primeira bandeira do PT. E, corajosa, arriscou a pele, franqueando sua casa às reuniões dos metalúrgicos, quando a ditadura proibiu os sindicatos. Foi companheira, foi amiga e leal ao marido o tempo todo.
Foi amável e cordial com todos que dela se aproximaram. Não há um único relato de episódio de arrogância ou desfeita feita por ela a alguém, como primeira-dama do país. A dona de casa que cuida do jardim, planta horta, se preocupa com a dieta do maridão e protege a família formou e forma, com Lula, um verdadeiro casal. Daqueles que, infelizmente, cada vez mais escasseiam. Este é o meu reconhecimento ao papel muito bem desempenhado por Marisa Letícia Lula da Silvanesses oito anos.
Tivesse dito tudo isso antes, eu seria chamada de bajuladora. Esperei-a deixar o poder para lhe fazer a Justiça que merece.

“O Brasil é ao mesmo tempo imperialismo e motor imprescindível para a integração”


O economista e diretor da versão boliviana do Le Monde Diplomatique, Pablo Stefanoni, faz um balanço da política sul-americana



Elena Apilánez e
Vinicius Mansur
de La Paz (Bolívia) via Brasil de Fato

Passados mais de dez anos da ascensão de presidentes de esquerda na América do Sul, o economista Pablo Stefanoni, diretor da versão boliviana do Le Monde Diplomatique, é cético com relação às transformações trazidas por eles ao continente e relativiza a existência de governos de esquerda “radicais” e “moderados”.
Traçando um panorama da conjuntura política do continente, o ex-assessor de comunicação do governo Evo Morales prevê sérias limitações para o crescimento da Alba (Alternativa Bolivariana para as Américas) e muitas possibilidades para a Unasul (União das Nações Sul-Americanas). Na entrevista a seguir, Stefanoni analisa, ainda, a política na Argentina pós-Kirchner, destaca o surgimento de uma direita reciclada na Colômbia e no Chile e debate o papel do Brasil na região.

Brasil de Fato – Como você avalia a categorização dos governos sul-americanos entre esquerda radical, com Bolívia, Venezuela e Equador, e esquerda moderada, liderados por Brasil e Argentina?
Pablo Stefanoni – Esse esquema tem aspectos reais, mas há que relativizá-los. Primeiro, a radicalidade assumida, muitas vezes, não se dá porque os movimentos sejam particularmente mais radicais, senão porque a trajetória institucional e política foi diferente. Os três países considerados de esquerda radical tiveram a implosão do sistema partidário com forte mobilização popular, e era normal que houvesse uma grande demanda por refundação do país, do sistema político. No caso de Uruguai, Brasil e, sobretudo, Chile, a esquerda ganha em um contexto de desmobilização. Além disso, há continuidade institucional e o sistema de partidos continua o mesmo. Em segundo lugar, essa esquerda radical necessita da outra esquerda. Nos momentos-chave, Lula apoiou a Venezuela, como na greve petroleira, na crise da Bolívia houve um apoio importante da Unasul etc. Por isso, se valorizava a vitória de Dilma Rousseff [nos países da América Latina governados pela esquerda], mais do que qualquer debate interno, com a ideia de manter a correlação de forças. Em terceiro lugar, esse esquema supõe que uma esquerda é socialista e outra não, mas, vendo as políticas públicas concretas, nenhuma é socialista. Nem Venezuela nem Bolívia estão avançando rumo a um projeto pós-capitalista. Claro, há diferenças no trato com os EUA, no papel que joga o Estado, mas, vendo o que de fato mudou, o socialismo ainda é bastante retórico. E há muitas coincidências, por exemplo: a legitimidade do Evo não é tão distinta da do Lula. Uma mescla de autoidentificação popular com um líder que surgiu de baixo e políticas sociais. Inclusive, o Bolsa Família é mais radical, por sua abrangência, do que a política de bolsas da Bolívia, que é mais fragmentada.

O senhor não acha que a Venezuela, por exemplo, se diferencia dos outros com suas nacionalizações e políticas públicas que caminham para a transição ao socialismo?
Há tentativas, testes, mas com muitos problemas de eficácia. Promove-se cooperativas, conselhos comunais. Claramente, há um nível de participação popular maior do que havia antes de Chávez. Entretanto, os balanços sobre a geração de uma participação de baixo são complexos. Os conselhos comunais se ocupam de questões bastante locais e vinculadas à falta de Estado nos bairros. Começaram a falar menos de política nacional e aceitar os antichavistas nos conselhos, sempre e quando haja um pacto de não falar muito de política. Há também os conselhos em bairros de classe média alta de Caracas, que são antichavistas, mas que usaram essa fórmula. Quanto à economia, os números mostram que a privada não diminui em relação à estatal. E ainda há dificuldades enormes, para além da vontade do governo, de se pensar uma agenda pós-petroleira. Nisso, coincidem todos. O rentismo [referência à dependência da economia Venezuela da renda do petróleo que exporta] não distribui exatamente a riqueza, porque capta uma renda do mercado internacional e gera uma cultura não do trabalho, mas de como agarrar-se a essas fatias. É bom que se democratize [a renda], mas, depois, o problema sério é pensar um modelo produtivo. O problema venezuelano, hoje, talvez não seja tanto como transitar ao socialismo, mas a essa agenda, ainda que seja a médio prazo, porque não é fácil. Não é que o Chávez não tem vontade: inclusive, ele levou o Instituto de Tecnologia Industrial da Argentina para o país.

O senhor vê uma disputa pela liderança do continente?
Houve uma luta entre Brasil e Argentina, mas a Argentina perdeu. A Venezuela não tem condições, porque o Brasil já não joga em nível sul-americano, mas mundial, inclusive associado ao Bric [Brasil, Rússia, Índia e China]. Ninguém está pensando em competir com o Brasil, que aposta num rumo claro e complexo. O Brasil mescla um “imperialismo” com o papel de motor imprescindível para a integração regional. O Lula viaja com 200 empresários e, quando concede algum crédito, este país tem que contratar uma empresa brasileira. O Brasil é como um monstro ao lado de um monte de economias pequenas, que não têm visão muito clara sobre o que fazer com o Brasil. Há uma atitude de denunciar, como fizeram na Bolívia com a Petrobras, com a Odebrecht no Equador, ou a relação complicada com Itaipu, no Paraguai, mas, depois, chega o Marco Aurélio Garcia [assessor especial da Presidência da República para assuntos internacionais na gestão Lula] e tudo se ajeita.

Qual futuro o senhor vê para a Unasul e a Alba?
A Alba não avançou porque uma integração ideológica é mais complexa, depende de que os governos continuem. A Unasul não depende tanto dos governos coincidirem em tudo. A Bolívia não tem muitas relações com a Nicarágua ou Honduras. Ou seja, não está muito claro qual é o papel da Alba além do alinhamento político. É interessante que esses países possam jogar um certo papel juntos, mas a Alba não deve ser uma alternativa para outras vias de integração. A Unasul avançou muito mais rápido e existe essa coisa de que onde entra o Brasil se avança em nível diplomático, não? Quando o Brasil disse não à Alca, acabou a Alca.

Qual o impacto da morte de Néstor Kirchner para a política argentina?
A oposição fazia mais oposição ao Kirchner, que era uma espécie de copresidente, do que à própria Cristina. Kirchner era o grande disciplinador do peronismo e isso era muito necessário às vezes. Cristina era a presidente da nação e ele do peronismo. Então, temos que ver como ela vai operar isso. Pelas características meio necrófilas, a morte dele fortaleceu Cristina, pois recuperaram toda a figura de Kirchner, com a tentativa de torná-lo um mito, alguém que morreu em combate contra um monte de inimigos, corporações... o velório foi bem político. Ele recuperou todo um discurso e mística dos anos 1970, aproveitando que foi militante da juventude peronista, reativou uma parte de sua biografia muito distante. Porque, na verdade, Kirchner, nos anos 1990, apoiou basicamente o programa neoliberal. Na ditadura, ele era advogado que comprava casas de arremate, aproveitando uma lei de indexação feita pelo governo militar, e é nessa época que aconteceu sua acumulação. Ele tinha um patrimônio declarado de 14 milhões de dólares. Morreu à frente nas pesquisas para as próximas eleições pra presidente, com boa possibilidade de ganhar no primeiro turno. Kirchner não pensava a política como utopias, pensava o poder em seu sentido duro, construir dependências, interesses, redes. Então, há que se ver se Cristina consegue manter esse efeito gerado pela morte do marido. Tampouco há bons candidatos da oposição, além de haver uma parte dos votantes que se tornam “antiantikirchneristas”, ou seja, um rechaço à oposição sem ser kirchneristas. É o que acontece com tantos governos populares, cujas oposições são inapresentáveis. E isso dá vida a Cristina.

E quanto aos países que estão à direita?
[Os presidentes] Juan Manuel Santos, na Colômbia, e Sebastián Piñera, no Chile, surpreenderam um pouco porque se mantiveram olhando para a América Latina, mais do que se esperava. Deram início a uma direita muito mais hábil, pragmática, empresarial, menos conservadora em uma série de temas, inclusive morais. Uma direita parecida à nova direita europeia de [Nicolas] Sarkozi [presidente da França]. Não quero dizer que os conservadores não estão com Piñera, mas ele é liberal, não é pinochetista. Quando seu embaixador na Argentina defendeu Pinochet, ele o retirou 24 horas depois. Santos surpreendeu porque se esperava que fosse uma mera continuidade de Álvaro Uribe [presidente que o antecedeu], mas ele mostrou mais flexibilidade, com a Venezuela, por exemplo. Há razões econômicas também, porque a Venezuela começou a importar alimentos da Argentina e do Brasil. Mas ele ainda prometeu reforma agrária, devolvendo as terras que os paramilitares tomaram de camponeses. Não sei se o fará e não é que ele seja menos de direita, mas se adaptou mais a certas coisas.

E com relação às Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia?
Existe uma possibilidade que a Unasul contribua. De fato, as Farc pediram que Dilma participe como mediadora, apelando um pouco para o seu passado guerrilheiro. O Brasil pode jogar um papel importante nisso, algo que era impensável há dez anos. Mas as Farc são o grande obstáculo para que a esquerda possa disputar algo na Colômbia.

E o Peru?
Aí não se sabe, porque [o presidente] Alan García está de saída e todos creem que o Apra [Alianza Popular Revolucionaria Americana, seu partido] também. Mas o Peru é um pouco surpreendente, porque há alguns dias a relação com a Bolívia era malíssima e, agora, o Peru está deportando os prófugos da Justiça boliviana. Aceitaram também fazer um acordo sobre o mar. E a esquerda ganhou as eleições da capital Lima, apesar de parecer um pouco desarticulada para desafios mais sólidos. Para as próximas eleições, há cinco candidatos que estão com aproximadamente 20% dos votos cada um e dizem que o Apra não ganharia um segundo turno. E olha que a economia do Peru está crescendo 10%.



Pablo Stefanoni é economista e jornalista argentino radicado em La Paz desde 2003. Foi assessor de comunicação do governo Evo Morales. Atualmente, é diretor da versão boliviana do Le Monde Diplomatique e faz doutorado sobre a história das ideias do indigenismo.

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Brevíssima história de 40 anos de políticas neoliberais


Muitos especialistas dizem que a ideologia neoliberal iniciou nos anos 80 com Reagan, Thatcher e a Escola de Chicago. Mas o que tornou possível esse giro na economia política? Que elementos, que novas forças podem explicar essa mudança ideológica e as desigualdades que a seguiram? Como os poderes que tomam decisões políticas foram sendo postos gradualmente nas mãos de um corpo de tecnocratas neoliberais que pontificavam sobre as limitações dos governos? Responder a essas questões passa por reconhecer que este processo durou décadas. O artigo é de Marshall Auerback.

Um assíduo leitor de New Deal 2.0 faz uma aguda questão:
“Há uma questão que nunca consigo responder. Muitos especialistas dizem que a ideologia neoliberal iniciou nos anos 80 com Reagan, Thatcher e a Escola de Chicago. Mas sigo sem entender o que tornou possível esse giro na economia política. Que elementos, que novas forças nos anos 80 podem explicar essa mudança ideológica e as desigualdades que a seguiram?"

Todos esses temas são muito dignos de exploração e eu, quero dizer desde logo, não posso fazer justiça a eles com uma resposta de duas linhas. É melhor recomendar o soberbo livro de Yves Smith, Econned. O livro proporciona uma excelente explicação histórica do modo como algumas teorias infundadas, mas amplamente aceitas, levaram à execução de políticas que geraram o atual estado de coisas. Também ilumina a capacidade dessas filosofias para ressuscitar mesmo quando se acumulam provas conclusivas contra elas. Documenta não só a crescente degradação dos economistas profissionais neoclássicos (e sua concomitante tendência a reduzir a soma da experiência humana a uma série de equações matemáticas), mas também a maneira pela qual fundações muito bem financiadas subvencionaram universidades e think tanks que, por sua vez, legitimaram e validaram essas filosofias charlatanescas.

A ideia de que governos democraticamente eleitos devem servir-se de políticas fiscais discricionárias para contraestabilizar as flutuações do ciclo do gasto público chegou a ser visto como algo muito próximo ao socialismo. Os poderes que tomam decisões políticas foram postos gradualmente nas mãos de um corpo de tecnocratas neoliberais que pontificavam sobre as limitações dos governos e reforçavam as posições fiscalmente pró-cíclicas, ou seja: reforçavam a contração discricionária quando os estabilizadores automáticos levavam a grandes déficits orçamentários como resultado da frágil demanda não-pública.

Essa mudança em nossas políticas públicas foi acompanhada por um processo de tomada de controle dos juristas em uma longa marcha através do poder Judiciário. Foi um esforço patrocinado pelas grandes empresas, centrado exclusivamente no tema da desregulação, e culminou com um esforço titânico para revogar as reformas do New Deal, limitar o poder dos sindicatos e do próprio governo (salvo em matéria de Defesa, cabe assinalar, que organizou seu próprio e formidável exército de lobistas).

Responder a questão colocada por nosso leitor passa por reconhecer que este foi um processo que durou décadas e que veio acompanhado de enormes somas de dinheiro e de vasto exército de forças empresariais, jurídicas e políticas, empenhado em frustrar qualquer alternativa progressista. O processo inteiro ocorreu em um período de aproximadamente 40 anos. Flexibilização da regulação e da supervisão; uma crescente desigualdade que levou às famílias a se endividar para manter o nível de gasto; cobiça e exuberância irracional e liquidez global excessiva: todos esses são sintomas do mesmo problema.

Mas como tudo começou? A análise que o grande economista Hyman Minsky realizou no final de sua vida é particularmente potente, porque permite ver essas mudanças a partir de uma vasta perspectiva histórica. Minsky chamou a situação de saída da II Guerra Mundial de “capitalismo paternalista”. Ela se caracterizava por um “enorme Tesouro público” (cujo custo equivalia a 5% do PIB) dotado de um orçamento que oscilava contraciclicamente a fim de estabilizar a renda, o emprego e os fluxos de lucros; um Banco Central ao estilo de um “enorme banco” que mantinha baixas as taxas de juros e intervinha como emprestador último de recursos; uma ampla variedade de garantias estatais (seguro de depósitos, respaldo público implícito ao grosso das hipotecas); programas de bem estar social (Seguridade Social, ajuda às famílias com filhos dependentes, ajuda médica); estreita supervisão e regulação das instituições financeiras; e um leque de programas públicos para promover a melhoria da renda e a igualdade de riqueza (tributação progressiva, leis de salário mínimo, proteção para o trabalho sindicalmente organizado, maior acesso à educação e à habitação para pessoas de baixa renda).

Além disso, o Estado jogava um papel importante em matéria de financiamento e refinanciamento (por exemplo, a corporação pública para financiar a reforma de imóveis e a corporação pública para o crédito destinado à compra de imóveis) e na criação de um mercado hipotecário moderno para a compra de imóveis (baseado em um empréstimo de tipo fixo amortizável em 30 anos), sustentado por empresas patrocinadas pelo Estado. Minsky reconheceu papel desempenhado pela Grande Depressão e pela II Guerra Mundial na criação de bases para a estabilidade financeira. Nas palavras de Randy Wray:

“A Depressão pulverizou e expulsou o grosso dos ativos e passivos financeiros: isso permitiu às empresas e às famílias saírem com pouca dívida privada. O ciclópico gasto público durante a II Guerra Mundial criou poupança e lucro no setor privado, enchendo os livros de contabilidade com dívida saneada do Tesouro (60% do PIB, imediatamente depois da II Guerra). A criação de uma classe média, assim como o baby boom, mantiveram alta a demanda de consumo e alimentaram um rápido crescimento do gasto público dos estados federados e dos municípios em infraestrutura e em serviços públicos demandados pelos consumidores metropolitanos.

A elevada demanda dos entes públicos e dos consumidores trouxe por sua vez consigo a possibilidade de se cobrir o grosso das necessidades das empresas para financiar o gasto interno, incluindo os investimentos. Assim, durante as primeiras décadas que se seguiram à Segunda Guerra, o capital financeiro desempenhou um papel muito menor. A lembrança da Grande Depressão gerou relutância em relação ao endividamento. Os sindicatos pressionavam e, frequentemente, obtinham mais e mais compensações, o que permitiu o crescimento dos níveis de vida, financiados em sua maior parte somente com a renda dos trabalhadores”.

Na década de 1970 tudo isso começou a mudar, como é bem explicado em Econned. O gasto público começou a crescer mais lentamente que o PIB; os salários ajustados à inflação se estancaram a medida que os sindicatos perdiam poder; a desigualdade começou a crescer e as taxas de pobreza deixaram de cair; as taxas de desemprego dispararam; e o crescimento econômico começou a desacelerar.

Nos anos 70 assistimos também aos primeiros esforços sustentados para fugir das restrições impostas pelo New Deal, a medida que as finanças respondiam para aproveitar as oportunidades. Com o desastroso experimento monetarista de Volcker (1979-82), muitos dos velhos vestígios do sistema bancário estabelecido pelo New Deal foram arrasados.

O rito de inovações se acelerou a medida que foram se adotando muitas práticas financeiras novas para proteger as instituições do risco da taxa de juros. A despeito de todas as apologias feitas sobre os anos de Volcker a frente da Federal Reserve, o certo é que suas políticas de juros altos assentaram as bases do atual sistema financeiro baseado no mercado, incluídas a titulação hipotecária, a inovação financeira na forma de derivativos para cobrir o risco das taxas de juros, assim como muitos dos veículos financeiros “extra contábeis” que proliferaram nas duas últimas décadas. Legislou-se para criar um tratamento fiscal muito mais favorável aos juros, o que, por sua vez, estimulou as compras alavancadas para substituir ativos por dívida (como a tomada de controle empresarial financiada com dívida que seria servida pelos futuros fluxos de receita da empresa assim controlada).

Os excedentes orçamentários dos anos Clinton – outro exemplo de ascendência de uma filosofia neoliberal que fugiu da política tributária e determinou a primazia da política monetária – restringiram a demanda agregada, encolheram as receitas e criaram uma maior dependência da dívida privada como meio de sustentar o crescimento e as receitas. Esse foi claramente facilitado por inovações que ampliaram o acesso ao crédito e mudaram os critérios das empresas e dos lares para definir o nível de endividamento prudente. O consumo conduzia o timão e a economia voltou finalmente aos rendimentos dos anos 60. Regressou o crescimento robusto, agora alimentado pelo déficit do gasto privado, não pelo crescimento do gasto público e da receita privada. Tudo isso levou ao que Minsky chamou de capitalismo dos gestores do dinheiro.

Esse é o contexto histórico básico que veio se desenvolvendo nos últimos 40 anos. E essa é, provavelmente, uma resposta que vai mais além do que nosso amável leitor queria, mas sua questão não é daquelas que possa ser respondida laconicamente.

(*) Marshall Auerback é analista econômico, pesquisador do Roosevelt
Institute, colaborador da New Economic Perspectives e da NewDeal 2.0.

Tradução para SinPermiso: Casiopea Altisench
Tradução para Carta Maior: Katarina Peixoto

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Exame de DNA faz homem ser inocentado após passar mais de 30 anos na prisão nos EUA

Cornelius Dupree Jr. com a mulher Selma Perkins Dupree - AP
DALLAS - Graças a um exame de DNA, um homem que havia sido condenado por roubo e estupro teve sua sentença revertida nesta terça-feira após passar mais de 30 anos na prisão nos Estados Unidos. Cornelius Dupree Jr., de 51 anos, foi formalmente inocentado após cumprir parte da pena de 75 anos de reclusão à qual havia sido sentenciado. Ele ficou preso entre dezembro de 1979 e julho de 2010, quando foi posto em liberdade condicional.
Uma semana depois, saíram os resultados do exame de DNA que provaram sua inocência, mas o cancelamento da condenação só veio agora. Ele se tornou a pessoa a passar mais tempo presa antes de ser inocentada por um exame deste tipo no estado do Texas.
- É uma alegria estar livre de novo - disse Dupree após a decisão de um tribunal em Dallas.
Ele foi condenado em 1980 por estuprar e roubar uma mulher de 26 anos. O crime teria acontecido quando a vítima parou em uma loja de bebidas com o marido. Ele teria sido expulso do carro onde estavam. Dois homens teriam levado a mulher para um parque. A vítima reconheceu Dupree após ele ser detido sob acusação de envolvimento com outros crimes.
Segundo o Innocence Project, organização baseada em Nova York e especializada nestes casos, nos EUA apenas outros dois presos passaram mais tempo na cadeia indevidamente antes de serem soltos: um homem passou 35 anos detido na Flórida e outro ficou 31 anos numa prisão no Tennessee.
No Texas, desde 2001 pelo menos 41 pessoas condenadas por engano já foram libertadas graças a exames de DNA. É o número mais alto entre os estados americanos. 

Fonte: O globo

Educação e inclusão: ano-velho ou ano-novo?



Lucio Carvalho * Adital 
 
 A universalização do atendimento escolar, preconizada como a segunda grande diretriz do Plano Nacional de Educação (PNE) 2011-2020, enviado ao Congresso Nacional em fins de dezembro (15/12) pelo Ministro Fernando Haddad, do MEC, enfrenta desde já um importante desafio pelo menos no que se refere à educação especial. Caberá aos deputados federais eleitos, que assumem suas funções em 1º de fevereiro de 2010, conhecer, analisar e decidir pelo PNE e também sobre proposta de Decreto Legislativo que visa anular a aplicação de regulamentação proposta pelo Conselho Nacional de Educação (CNE) no que diz respeito à matrícula de estudantes com deficiência nas classes comuns do ensino regular.
É o que pretende o PDC-2846/2010 (http://www.camara.gov.br/internet/sileg/Prop_Detalhe.asp?id=485598), de autoria do Deputado Eduardo Barbosa (PSDB-MG) que também é presidente da FENAPAES, Federação Nacional das APAES (Associações de Pais e Amigos dos Excepcionais). Barbosa alega a inconstitucionalidade da Resolução 4/10 da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação (CBE/CNE) e propõe anular o artigo da resolução que trata do caráter complementar e/ou suplementar do atendimento educacional especializado, justificando que alunos com deficiência possam receber exclusivamente a educação oferecida pelas escolas especiais, deixando de frequentar o espaço comum das escolas regulares, tendo em vista que o projeto de decreto visa tão somente a suspensão do efeito da norma expedida pelo CNE e publicada pelo Ministro Fernando Haddad em julho de 2010 e a obrigatoriedade dos sistemas de ensino em matricular alunos com deficiência.
A principal barreira legal que o projeto do Deputado Barbosa vai encontrar pelo caminho é a legislação federal atual, que incorporou com força de emenda constitucional a Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência e que assegura, em seu Art. 24, um sistema educacional inclusivo em todos os níveis e prevê que todos os apoios necessários sejam dirigidos a inclusão plena dos indivíduos na sociedade. A proposta ainda impacta o desejo da Conferência Nacional de Educação (CONAE) que confirmou em abril de 2010 o sentido de universalização a partir da instituição de uma escola unificada. Avanço nas matrículas e na qualificação
O último ano foi o segundo em que o número de alunos com deficiência matriculados em classes comuns do ensino regular superou as matrículas em escolas especiais. De acordo com o Censo Escolar 2010, o número de alunos com deficiência matriculados em todos os sistemas de ensino aumentou cerca de 10% e, segundo o INEP, isso resulta de uma maior presença social através do desenvolvimento da educação inclusiva. Por todo o país, dezenas de cursos envolvendo professores e gestores na área de educação aconteceram no sentido de qualificar a escola comum como um espaço efetivamente democrático e capaz de atender às diferenças inerentes a população de alunos, seja através dos poderes públicos municipais e estaduais como no meio universitário, atingindo novos profissionais da educação. Muitas escolas especiais, inclusive algumas APAES, redimensionaram sua forma de atendimento e passaram a atuar em regime de colaboração com a escola regular. Elas oferecem, no contraturno, o atendimento educacional especializado (AEE), que é um serviço disponibilizado aos alunos com deficiência também pelas próprias escolas e constitui a base da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, sustentada pelo MEC e recentemente regulamentada pelo CNE.
Resistências não são novidade
Não são exatamente novidade as resistências em torno da atual política de inclusão. Além das escolas especiais, que veem seus recursos ameaçados e seus serviços com uma clientela cada vez menor, também muitas escolas particulares ainda rejeitam essa nova perspectiva de atendimento. Mesmo sendo integrantes do sistema geral de ensino e obrigadas a cumprir a legislação educacional em vigor, ainda são muito frequentes situações de constrangimento às famílias de crianças com deficiência que encontram dificuldade inclusive para matricular seus filhos e imposições contratuais desiguais, como obrigações de pagamentos adicionais e outras necessidades específicas negociadas em particular. Sob o pretexto de aumentar custos em decorrência de necessidades não habituais, cria-se um espírito de animosidade que vai encontrar solução muitas vezes judicialmente. O judiciário, por sua vez, ainda vem assimilando os valores expressos na nova ordem constitucional sobre o tema e o resultado disso são prejuízos desnecessário à população, que apenas quer ver cumpridos os seus direitos. As decisões judiciais, entretanto, cada vez mais tem favorecido aos cidadãos e também o Ministério Público tem agido como indutor de políticas públicas, orientando e fiscalizando tanto escolas públicas quanto privadas, em todas as modalidades de ensino.
No legislativo, o tema tem sido objeto de disputa e debates há pelo menos dez anos, desde que o MEC assumiu posição em prol da educação inclusiva e despertou a reação das escolas especiais, principalmente através da FENAPAES. Desde então, o debate ganhou importância na comunidade escolar, no meio acadêmico e também na cobertura jornalística, escapando do discurso especializado e ganhando relevância na sociedade de um modo geral. Em dezembro, o Senado Federal promoveu o 6º Fórum Senado Debate Brasil, com o objetivo de capacitar os agentes legislativos a observar e efetivar os princípios propostos na Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência. Resta saber se o legislativo que irá tomar posse em fevereiro próximo irá acompanhar a vontade pública expressa na CONAE e no PNE e respeitar a hierarquia legal em vigor no Brasil ou se irá prevalecer o desejo de quem quer voltar atrás na implementação da educação inclusiva, abrindo brechas para que crianças com deficiência e suas famílias voltem a submeter-se à exclusão precoce do convívio social escolar e alijando-as do direito indisponível à educação e participação plena na sociedade.

* Membro do Comitê de Comunicação da Federação Brasileira das Associações de Síndrome de Down e colaborador da Inclusive - Ag ência para Promoção da Inclusão

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Não chores por mim, Argentina


A Enguia era um homem magro. Os cabelos escassos eram bem penteados, e fixados, sem um fio fora do lugar. Gostava de jantares finos, com amigos com os quais compartilhasse os mesmos ideais. Sabia, ideais são perigosos, e dividi-los, só com poucos. Gostava da convivência com prelados da Igreja Católica. Sempre os tinha nos jantares finos, convidados seus ou dos amigos, e sempre, também, piedosos no cultivo dos mesmos ideais.
A Enguia não sorria. Um ser contido. Sem sentimentalismos. E quando nos jantares os prelados e amigos sorriam, ele os olhava por detrás dos óculos com um olhar enigmático, o que os deixava entre intrigados e inquietos, porque sempre queriam agradá-lo. Com toda força de sua alma, e era um católico fervoroso, combatia o comunismo e os comunistas, de qualquer espécie ou natureza. Era uma raça que pretendia extinguir, e o conseguiria com a graça e as bênçãos de Deus.
Penso já haver dito, e se não o fiz, repito: era um ser temente a Deus, católico fervoroso. Tinha hábitos espartanos, próprios de militares. Toda manhã se reunia com seu chefe de inteligência. Com ele, avaliava a situação do País, e especialmente quantos inimigos haviam sido abatidos no dia anterior e a quantas andavam os mais de 500 campos de concentração que seu regime havia construído. Com os comunistas, não havia por que descansar. Estavam sempre à espreita. A qualquer dúvida, melhor matá-los. Torturá-los, nem que até a morte, era sempre um serviço nobre, a favor da Nação. Matar e torturar eram procedimentos necessários.
E depois da reunião com o chefe de inteligência, sempre muito cedo, cumpria seu ritual de bom católico. Piedoso, assistia à missa, com impressionante contrição, sempre devidamente escoltado por sua segurança. Não gostava que chamassem de ditadura o governo que dirigia. Os inimigos da pátria é que o rotulavam dessa maneira. Estava salvando a Nação da escória comunista. E não gostava das denúncias de torturas. Como não torturar se esse era o único jeito de tirar informações dos comunistas? Os comunistas eram o diabo, e contra o Mal vale tudo. Ele representava o bem. Tinha convicção disso.
O regime que ele personificava começara em 1976. Terminará em 1983. Havia colocado ordem no País. Retomara as relações cordiais com os EUA. Dava-se bem com os presidentes dos países vizinhos, especialmente com os que seguiam a mesma linha, e não escondia a admiração por Pinochet, exemplo de homem que soube combater sem sentimentalismos os comunistas, soube varrer o comunista Allende do poder. Matar um comunista era um ato quase higiênico. Homem ou mulher, não importava. Tinha raiva especial das mulheres comunistas.
Sua expressão fria, sombria para tantos, quase uma esfinge, deixava trair irritação quando lhe falavam das denúncias no exterior sobre número de assassinados pelo regime. O que são 30 mil mortos diante do serviço que estamos prestando ao País? Irritava-se mais ainda quando revelavam que militares estupravam constantemente as mulheres presas. Ora, aquelas vacas, aquelas putas. Deviam agradecer de estarem vivas, murmurava entre dentes. Estão recebendo o que merecem, não têm o que reclamar. Defendeu sempre a tese de que a crueldade às vezes se impõe, como no caso do regime que conduzia com mão firme.
Aos 85 anos, não se arrepende de nada. De nada. Voltaria a matar e a torturar com a mesma convicção e insensibilidade. Não há qualquer sinal de arrependimento nele. Numa biografia se disse que ele era o mal em estado puro. Nada mais exato.
A Enguia vai cumprir os seus últimos dias de vida na cadeia. Foi condenado à prisão perpétua um pouco antes do Natal pelo genocídio, pelas atrocidades que cometeu enquanto dirigiu o País.
As mulheres, os homens, os filhos sem pai e sem mãe, os milhares de exilados, as Mães da Praça de Maio, os milhares de ex-presos exultam. Eles nunca se esqueceram de Jorge Rafael Videla. Enguia é como o chama o escritor argentino Tomás Eloy Martinez, em O Purgatório. A Argentina fez justiça. Que tarda, mas não falha. Cedo ou tarde, o Brasil também há de punir os seus torturadores, muitos certamente apenas pós-mortem.

Emiliano José

Emiliano José é jornalista, escritor, doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Universidade Federal da Bahia. www.emilianojose.com.br

Obra de Fernando Pessoa

Banco Mundial e FMI



JUREMIR MACHADO DA SILVA
  no sitio do CPERS

O Pior do mundo atual é a tecnoburocracia. O pior da tecnoburocracia é o FMI. Seguido de perto pelo Banco Mundial. O FMI já afundou muito país com seu receituário salvacionista. A Argentina ainda paga a conta de ter acreditado nos idiotas do FMI. O Banco Mundial pratica a soberba chantagista. Só empresta para quem está disposto a crer nas suas teses bizarras. Quem precisa, acredita em qualquer coisa. Li nos jornais que o Banco Mundial não está contente com o Brasil. Acha que estamos gastando demais em educação. É o caso de exclamar com toda a convicção: uau! Os tecnocratas do Banco Mundial asseguram que o Chile gasta menos e melhor do que nós. As circunstâncias e déficits educacionais históricos parecem não ser levados em consideração. Compara-se cebola com batata e alho. Afinal, tudo acaba no mesmo no lugar.

Os idiotas de plantão no Banco Mundial puxam a orelha brasileira por ter aumentado generalizadamente os salários dos professores. Afirmam que não há garantia de melhora na educação com aumento de salário. Uau! Certamente nossa educação melhorará se as fortunas ganhas por nossos professores forem congeladas. Ou reduzidas. Eu tenho certeza de que os rendimentos do Banco Mundial melhorarão se o bando de nababos inúteis empregados por essa nebulosa instituição tiverem seus salários reduzidos em dois terços. O Banco Mundial é contra o excesso de repetência no Brasil. O negócio é aprovar por decreto. Se os professores não tiverem aumentos de salário, pelo jeito, as reprovações cairão. Triste país que precisa pedir penico ao Banco Mundial. Ficamos livres do FMI. Precisamos ouvir sermão dos bad boys do Banco Mundial.

Quando eu era criança, ficava espantado ao ver um colega repetir todas as matérias de um ano por ter sido reprovado em apenas uma delas. Por que não repetia a matéria perdida em outro turno? Tive um colega que rodou dois anos seguidos em Técnicas Artísticas. Era péssimo em desenho. Eu também. Não sei como consegui passar. O Banco Mundial deveria emprestar dinheiro para o Brasil indenizar todas as famílias que tiveram o futuro dos seus filhos ceifados pela reprovação em desenho ou pela punição excessiva, geradora de evasão, com a repetição de ano pela perda de uma disciplina. Reprovei o sistema. Reprovo o Banco Mundial. Aposto que a faxineira do banheiro da sala do presidente do Banco Mundial ganha 15 vezes mais que qualquer professor de ensino fundamental ou médio no Brasil. Nada contra as faxineiras. É claro.

O BM merece nota zero em Pedagogia. Em lugar de estimular a cooperação, tenta introduzir o neoliberalismo educativo total. A ideia é jogar professor contra professor, escola contra escola, aluno contra aluno, numa competição desenfreada e fadada ao fracasso. A turminha do Banco Mundial dificilmente passaria num teste básico de meritocracia. É gente apadrinhada que conseguiu uma boca internacional, uma teta com poderes planetários. Queria ver esses burocratas dando aula e administrando a vida com os salários dos nossos professores. Venham!


JUREMIR MACHADO DA SILVA é professor e escritor

Na Bahia fazendeiro desrespeita lei e faz despejo com pistoleiro





MST - 030111_jagunco [Frei Henri Burin des Rosiers] 
No dia 25 de dezembro, por volta do meio-dia, 7 (sete) homens encapuzados e fortemente armados despejaram 45 famílias do Acampamento São José, localizado na fazenda Cruzeiro Novo, distante 20 Km da Vila Alacilândia, no município de Conceição do Araguaia. A fazenda tem como suposto proprietário Milton Gomes de Oliveira, deputado estadual do Estado da Bahia.
Embora o Juiz da Vara Agrária de Redenção, tenha concedido uma liminar, em 25 de novembro, em favor do fazendeiro, o grupo armado sequer esperou que o juiz determinasse a ida de um oficial de justiça ao acampamento, acompanhado de policiais militares para o devido cumprimento da ordem judicial, conforme determina a lei.
De acordo com informações dos acampados, quem comandava ação ilegal eram: um capitão da Polícia Militar de nome “Seade” e um policial civil de nome “César”, ambos lotados em Conceição do Araguaia. As famílias foram expulsas para fora da fazenda e homens armados passaram a fazer vigilância na propriedade para impedir a volta dos trabalhadores.
A liminar deferida pelo juiz em favor do fazendeiro, contraria uma recomendação do Tribunal de Justiça do Pará que orienta todos os juízes das varas agrárias a realizarem audiências de justificação prévia, com a presença do INCRA, antes de analisar o pedido de liminar. O Juiz não observou a recomendação do Tribunal ao qual é subordinado.
Informado do interesse do INCRA em desapropriar o imóvel, no dia 16 de dezembro passado, em uma reunião em Redenção, o Ouvidor Agrário Nacional, Dr Gercino Silva, determinou que a Ouvidoria oficiaria ao magistrado da Vara Agrária de Redenção, solicitando a designação de uma audiência de conciliação no bojo da ação de reintegração de posse da fazenda Cruzeiro Novo, dessa vez com a presença do INCRA, e que, solicitaria ainda, a suspensão do cumprimento da liminar até a realização da referida audiência.
Há 9 (nove) meses, que as famílias encontravam-se acampadas nas proximidades do limite da propriedade aguardando que o INCRA avaliasse as condições do imóvel e se seria viável para a reforma agrária.
O fato de o despejo ter sido realizado em dia de feriado de natal e sem a presença de um oficial de justiça com o devido mandado do juiz, são indícios de que policiais civis e militares de Conceição do Araguaia poderão ter agido fora da lei para favorecer o fazendeiro e deputado no Estado da Bahia.
A Comissão Pastoral da Terra do sul do Pará encaminhará denúncia formal à Ouvidoria Agrária Nacional, à presidência do Tribunal de Justiça do Estado e ao Ministério Publico para que o caso seja devidamente apurado.

* Frei Henri Burin des Rosiers é advogado da CPT da Diocese de Conceição do Araguaia.