sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

O Império de Bases


O número de fato não é de todo importante. Se o total mais apurado é de 900, mil ou 1.100 bases em terras estrangeiras, isto não é o ponto central da questão, mas o que é inegável é que o exército dos EUA mantém, como diz a famosa frase de Chalmers Johnson, um império de bases tão enorme e obscuro que ninguém – nem mesmo o Pentágono – realmente faz idéia de seu tamanho e alcance totais.

Por Nick Turse
- Revista Fórum
Os Estados Unidos tem 460 bases no estrangeiro! Tem 507 bases permanentes! O que os EUA estão fazendo com mais de 560 bases no exterior? Por que é que eles tem 662 bases em outros países? Os Estados Unidos realmente tem mais de 1.000 bases militares espalhadas pelo globo?
Num mundo de estatísticas e precisão, num mundo onde a palavra “transparência” é a palavra do momento em Washington, num mundo onde toda a informação que existe está disponível a um clique de distância, existe um número que nenhum norte-americano conhece. Nem o presidente. Nem o Pentágono. Nem os experts. Ninguém.

O homem que escreveu o livro definitivo sobre o tema não sabia afirmar com certeza. O colunista do New York Times e ganhador do Prêmio Pulitzer não chegou nem perto. Numerosos artigos foram escritos sobre as bases militares norte-americanas, e, no entanto, falharam como todos os outros.

Existem mais de 1.000 bases militares norte-americanas por todo o planeta. Para ser mais específico, o número mais apurado é de 1.077 bases. A não ser que seja 1.088. Ou, se a contagem for diferente, 1.169. Ou mesmo 1.180. Talvez o número seja até maior. Ninguém sabe ao certo.

Fazendo as Contas

Num recente artigo de opinião, o colunista do New York Times Nicholas Kristof explicitou seu mordaz ponto de vista: “Os EUA mantém tropas em mais de 560 bases e outros locais no exterior, muitos dos quais são herança de uma guerra mundial que acabou há mais de 65 anos. Temos medo de que, se retirarmos nossas bases da Alemanha, a Rússia poderá invadir?”

Durante anos, o falecido Chalmers Johnson, o homem que de fato escreveu um livro sobre o império de bases militares norte-americanas, The Sorrows Of Empire (“As Tristezas do Império”, em português), compartilhou o ponto de vista de Nicholas Kristof, e o embasou com a mais detalhada pesquisa já feita sobre o “arquipélago mundial” de bases americanas. Há alguns anos, depois de desbancar os próprios documentos públicos do Pentágono, Johnson escreveu, “Os Estados Unidos mantém 761 ‘localizações’ militares em países estrangeiros. (Este é o termo utilizado pelo Departamento de Defesa, ‘localizações’ ao invés de ‘bases’, ainda que sejam, em verdade, bases.)”

Recentemente, o Pentágono atualizou seus números sobre as bases outras localizações, afirmando que os números haviam diminuído. Se os números caíram ou não ao nível defendido por Kristof, entretanto, é uma questão de interpretação. De acordo com Relatório da Estrutura de Bases de 2010, publicado pelo Departamento de Defesa americano, as forças armadas dos EUA agora mantém 662 localizações estrangeiras em 38 países ao redor do mundo. Uma leitura mais apurada do Relatório, no entanto, traz à tona gigantescos furos e lacunas.

Um Legado de Bases

Em 1955, 10 anos depois que 2ª Guerra Mundial terminou, o Chicago Daily Tribune publicou uma grande investigação sobre as bases, incluindo um mapa sinalizado com pequenas estrelas e triângulos, em sua maioria localizados na Europa e no Oceano Pacífico. “A bandeira americana tremula sobre mais de 300 postos estrangeiros”, escreveu o repórter Walter Trohan. “Acampamentos e bases estão em 12 territórios de posse Americana. As bases externas estão em 63 nações ou ilhas estrangeiras.”

Hoje, de acordo com os mapas publicados pelo Pentágono, a bandeira americana passou a tremular sobre 750 bases militares localizadas em outros países ou em território americano no exterior.  Esse mapa com certeza não considera territórios estrangeiros pequenos, de extensão inferior a 10 acres ou aquele que o exército dos EUA não estipula que valham mais de US$ 10mi. Em alguns casos, muitas bases desse tipo podem ser agrupadas e contadas como apenas uma instalação militar num só país determinado. Uma solicitação de esclarecimento do Departamento de Defesa sobre o assunto não obteve resposta. 

O que nós de fato sabemos é que, nas bases que o exército norte-americano conta, ele controla algo em torno de 52 mil edifícios e mais de 38 mil peças de infraestrutura pesada como cais, piers e gigantescos tanques de armazenamento, sem mencionar mais de nove mil “estruturas lineares” tais como rodovias, ferrovias e tubulações. Também podemos adicionar mais 6.300 edifícios, 3.500 peças de infraestrutura e 928 estruturas lineares que estão em territórios dos EUA no exterior e teremos um total impressionante. E ainda assim, isto não está nem perto da história completa.

Perdendo a Conta

Em janeiro último o coronel Wayne Shanks, um porta-voz da Força Internacional de Assistência a Segurança (ISAF, órgão controlado pelos EUA), me disse que havia cerca de 400 bases norte-americanas e de coalizão no Afeganistão, incluindo acampamentos, bases de operação avançada e postos de combate. Ele esperava que esse número aumentasse em pelo menos 12 durante o ano de 2010. 

Em setembro, entrei em contato com o Escritório de Comando de Relações Públicas da ISAF, para checar as previsões. Para a minha surpresa, me foi dito que “havia aproximadamente 350 bases de operação avançada, com duas grandes instalações militares completas, os campos aéreos de Bagram e Kandahar.” Perplexo com a perda de 50 bases ao invés de um ganho de 12, contatei Gary Younger, um encarregado das Relações Públicas da Força Internacional de Assistência a Segurança. “Há menos de 10 bases da OTAN no Afeganistão”, ele me escreveu num email de outubro de 2010. “Existem mais de 250 bases dos EUA no Afeganistão.”

Até ali me parecia que os EUA tinham perdido cerca de 150 bases e eu me encontrava verdadeiramente confuso. Quando contatei diretamente os militares para resolver as discrepâncias entre os números e listei para eles todos os dados que haviam me passado – desde as 400 bases afirmadas por Shanks até os 250 que Younger havia me dito --, fui então transferido e transferido e transferido até que me transferiram para o Sargento de Primeira Classe Eric Brown novamente no Escritório de Comando de Relações Públicas da ISAF. “O número de bases no Afeganistão é, quase certo, 411”, Brown me escreveu num email já em novembro, “e este é uma estatística composta desde Bases Completas até o nível de Posto de Combate”. Mesmo isso, ele alertou, não era uma lista completa, porque, segundo ele, “posições temporárias ainda não foram consolidadas” não constam.

Durante todo o caminho até este cálculo “final”, me foi oferecido certo número de explicações – desde os diferentes métodos de contagem das bases até a falha dos soldados em efetivo trabalho de campo em fornecer informações apuradas – para os dados conflitantes que me haviam passado. Depois de meses trocando emails e vendo os números variarem largamente, terminar em novembro com mais ou menos o mesmo número que eu tinha em janeiro sugeria que os comando militar dos Estados Unidos não está mantendo a conta correta de quantas bases eles tem instaladas no Afeganistão. Aparentemente, o exército simplesmente não sabe quantas bases existem no seu primeiro escalão de operações.

Os pontos obscuros no mundo das bases.

Procure no Relatório da Estrutura de Bases de 2010, do Departamento de Defesa dos EUA por bases no Afeganistão. Vá em frente, leia todas as 206 páginas. Você não encontrará uma menção sequer a estas bases, nem mesmo uma citação ou uma mínima referência de que os Estados Unidos da América tem pelo menos uma base no Afeganistão, muito menos 400. Esta é dificilmente uma omissão insignificante. Adicione essas 411 bases que não aparecem no Relatório às 560 bases apresentadas por Nicholas Kristof e você terá 971 bases. Adicione isto também à conta oficial do Pentágono e ficaremos com um total de 1073 bases e localizações norte-americanas no exterior, por volta de 770 a mais do que Walter Trohan descobriu em seu artigo de 1955. Este número supera, ainda, a contagem de 1967, de que os EUA possuíam 1014 bases em países estrangeiros, ano considerado por Chalmers Johnson “o auge da Guerra Fria.”

Existem, todavia, outros meios de apurar o total. Numa carta escrita na primavera passada, o Senador Ron Wyden e os Representativos Barney Frank, Ron Paul e Walter Jones afirmaram que havia somente 460 instalações norte-americanas no exterior, não contando aquelas do Iraque e do Afeganistão. Nicholas Kristof, que contou 100 bases a mais do que contaram eles, não respondeu a meu email que requisitava esclarecimento, mas aparentemente deve ter feito a mesma análise que fiz: procurar e selecionar no Relatório do Pentágono as localizações que obviamente, apesar de seu tamanho e valor, só poderiam duvidosamente ser contadas como bases, como complexos habitacionais e escolas, hotéis (sim, o Departamento de Defesa possui hotéis), áreas de ski (possui estas também) e os maiores de seus campos de golfe – em 2007, o exército norte-americano alegou possuir um total de 172 campos de golfe dos mais variados tamanho – e cheguei a um total de 570 localizações estrangeiras. Adicionando-as ao número de bases afegãs você chegará então a 981 bases militares no exterior.

Como é óbvio, o Afeganistão não é o único pais com um mundo de bases obscuro. Procure nas contas do Pentágono por bases no Iraque e você não encontrará um único registro. (Esta omissão aconteceu mesmo quando os EUA mantiveram desveladamente mais de 400 bases no Iraque). Hoje a marca dos exércitos americanos sobre o país diminuiu radicalmente. O Departamento de Defesa recusou-se a responder um email que requisitava o número atual de bases instaladas no Iraque, mas relatórios publicados indicam que pouco menos que 88 bases ainda estão lá, incluindo Camp Taji, Camp Ramadi, Base Speicher de Operação de Contingente e a Base da Junta de Balad. Esta última, por si só, comporta por volta de sete mil soldados norte-americanos. Estas bases omitidas elevariam os números totais de bases através do globo para 1069.

As Zonas de Guerra não são os únicos pontos obscuros. Basta observarmos algumas nações do Oriente Médio cujos governos, por medo da opinião pública interna, preferem que nada seja divulgado a respeito das bases militares dos EUA em seus territórios. Para exemplificar, o Relatório da Estrutura de Bases de 2010 lista uma base não nomeada no Kuwait. Ainda assim sabemos que no Golfo Pérsico residem algumas bases americanas, incluindo o Acampamento Arifjan, Acampamento Buering, Acampamento Virginia, Base Naval do Kuwait, Base Aérea Ali Al Salem e a Ordem Udari. Adicione mais estas bases omitidas ao total e ele chega a 1074 bases no exterior.

Mais uma vez, se checarmos o cálculo de bases do Pentágono para o Qatar não obteremos nada. Mas observando o número de empregados do Departamento de Defesa trabalhando no exterior, encontraremos mais de 550 homens e mulheres trabalhando no país. Ainda que esta nação do Golfo Pérsico possa ter oficialmente construído a Base Aérea Al Udeid por si só, dizer que esta base é outra coisa que não uma instalação americana seria, no mínimo, dissimulado, tendo em vista que ela serviu como uma das bases de logística e comando mais fundamentais para os EUA nas Guerras do Iraque e do Afeganistão. Somamos então mais uma base, tendo 1075 até agora.

A Arábia Saudita também foi omitida da conta do Pentágono, ainda que, mais uma vez, a lista de empregados do Pentágono trabalhando no exterior indique que há centenas de soldados americanos neste país. Desde a preparação para a Primeira Guerra do Golfo em 1990 à invasão do Iraque em 2003, as forças armadas dos EUA enviaram centenas de tropas ao reino da Arábia Saudita. Em 2003, em resposta à pressão dos fundamentalistas sobre o governo Saudita, Washington anunciou que retiraria quase todas as suas tropas do país, deixando apenas um pequeno número. Ainda hoje o exército americano continua a treinar e educar soldados em localizações como a Vila Eskan, um complexo que fica 20 km a sul de Riyadh onde, de acordo com números publicados em 2009, 800 empregados americanos estariam instalados.

Descontados, Não-Contados e Desconhecidos.

Em adição ao desconhecido número de micro-bases que o Pentágono nem sequer se preocupa em contar e às bases do Oriente Médio e do Afeganistão que permanecem invisíveis ao radar, existem áreas ainda mais obscuras do império das bases: instalações pertencentes a outros países e que são usadas, mas não reconhecidas pelos Estados Unidos ou não declaradas por seu país de posse, também entram na conta. Por exemplo, é bem sabido que as aeronaves americanas, operando sob os auspícios da CIA tanto quanto da Força Aérea Americana e conduzindo uma não tão secreta guerra no Paquistão, decolam de uma ou mais bases localizadas no próprio território paquistanês.

Soma-se a isso ainda outras bases como a “bases disfarçada avançada de operações, comandada pela Junta do Comando de Operações Especiais (JSOC) dos EUA na cidade portuária de Karachi, no Paquistão”, exposto por Jeremy Scahill na revista Nation, e um ou mais campos aéreos gerenciados por empregados da contratadora de segurança privada Blackwater (agora renomeada Xe Services). Mesmo com o cálculo oficial do Departamento de Defesa indicando que existem mais que cem tropas no Paquistão, ainda assim nenhuma base ali é contada.

Da mesma maneira não são contadas as frotas marítimas, frotas estas que consistem em numerosos Porta-Aviões, o maior navio de guerra já produzido, assim como Cruzadores dotados de mísseis guiados, dois Destruidores de Mísseis Guiados, um submarino que ataque e um navio de munição, combustível e suprimentos. Os EUA possuem onze frotas como esta, frotas que se configuram como bases flutuantes do tamanho de cidades que podem cruzar o planeta. Possuem também muitos mais outros navios, alguns comportando cerca de mil pessoas, entre soldados e tripulação. Navios estes que, diz a Marinha, “viajam para qualquer porto numa lista 100 cidades espalhadas pelo mundo”, de Hong Kong ao Rio de Janeiro.

“A habilidade de conduzir funções logísticas a bordo permite que as forças navais mantenham uma estação em qualquer lugar”, diz o Conceito de Operações Navais: 2010, da Marinha americana. Portanto, estas bases que flutuam por debaixo dos dados oficiais deveriam ser contadas também.

Uma Explosão, Uma Lamúria, e o Alam do Século XXI

A Subsecretária Ajuda de Defesa, Dorothy Robyn, quando falou no ano passado ao Subcomitê do Comitê de Gastos do Senado sobre Construções Militares, Veteranos e Agências Relacionadas, se referiu às “507 instalações permanentes”. O Relatório da Estrutura de Bases de 2010 do Pentágono, no entanto, lista 4999 localizações e bases nos EUA, nos seus territórios e em países estrangeiros.

No grande esquema das coisas, o número de fato não é de todo importante. Se o total mais apurado é de 900, mil ou 1.100 bases em terras estrangeiras, isto não é o ponto central da questão, mas o que é inegável é que o exército dos Estados Unidos da América mantém, como diz a famosa frase de Chalmers Johnson, um império de bases tão enorme e obscuro que ninguém – nem mesmo o Pentágono – realmente faz idéia de seu tamanho e alcance totais.

Tudo o que sabemos é que isso desperta a ira de adversários como a Al Qaeda, que isso tem uma tendência a importunar mesmo o mais próximo dos aliados, como o Japão, e que costa aos Americanos que pagam impostos uma pequena fortuna por ano. Em 2010, de acordo com Robyn, a construção e a moradia militar de todas as bases dos EUA gastaram $23,2 bilhões. Somando-se mais um adicional de $14,6 bilhões necessários para reparos, manutenção e recapitalização. Para levar energia às suas instalações, de acordo com as estatísticas de 2009, o Pentágono gastou $3,8 bilhões. E isso não chega nem a tocar a superfície do que as bases norte-americanas mundo a fora custam em termos econômicos.

Como todo império, o império de bases militares dos Estados Unidos, algum dia ruirá. Essas bases, porém, não cairão como uma seqüência filmográfica de dominós bem posicionados. Não cairão, isto é, com a explosão de Álamos futurísticos, mas com a lamúria da insolvência.

De  fato, ao final de 2010, a Comissão de Déficit da Casa Branca – oficialmente conhecida como Comissão Nacional sobre Responsabilidade Fiscal e Reforma – sugeriu cortar em 1/3 os gastos na Europa e na Ásia, o que, na estimativa da Comissão, economizaria por volta de $8,5 bilhões em 2015.

O império das bases, ainda que tenha o tamanho que tem, está destinado a naufragar. Os militares terão que diminuir suas bases de controle estrangeiras e diminuir sua pegada global nos anos que virão. As realidades econômicas necessitarão disso. As escolhas que o Pentágono fará hoje sem dúvida determinarão em que condições nossos recursos voltarão para a casa amanhã. No momento, eles ainda podem escolher se voltar para a casa significará um ato de infalível e magnânima estratégia de estado ou simplesmente um recuo inglório.

Qualquer que seja a decisão, o relógio está correndo, e antes que qualquer retirada se inicie, o exército americano precisa saber exatamente de onde ele retirará suas tropas (e os americanos devem ter uma clara noção de onde estão seus exércitos). Uma contagem honesta de quantas bases os EUA tem no exterior – uma lista verdade, completa e compreensiva – seria um ínfimo primeiro passo no processo necessário de diminuição desta intervenção global.

Nick Turse é jornalista investigativo, editor associado do TomDispatch.com e atualmente também professor o Instituto Radcliffe da Universidade de Harvard. Seu ultimo livro se chama “The Case For Withdrawal from Afghanistan” (Verso Books). Você pode seguí-lo no Twitter @NickTurse. O seu site na internet é NickTurse.com.

Tradução de Cainã Vidor. Publicado por http://www.rebelion.org/noticia.php?id=120157

Alimentos: sintomas da nova crise mundial

140111_food_0Esquerda - Os sinais da nova tormenta estão à vista há algum tempo. A FAO alertou que os preços do arroz, trigo, açúcar, cevada e carne continuarão altos ou vão registar significativos aumentos em 2011. 

Por Thalif Deen, IPS

Nações Unidas – A Organização das Nações Unidas (ONU), que tenta ajudar cerca de mil milhões de pessoas famintas no mundo, antecipa outra crise alimentar neste ano.
E os sinais da nova tormenta estão à vista há algum tempo. A Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO), com sede em Roma, alertou, na semana passada, que os preços mundiais do arroz, trigo, açúcar, cevada e carne continuarão altos ou vão registar significativos aumentos em 2011, talvez replicando a crise de 2007-2008.
Rob Vos, director de políticas de desenvolvimento e análise no Departamento de Economia e Assuntos Sociais da ONU, disse à IPS que o aumento dos preços já afectava vários países em desenvolvimento. Afirmou que nações com a Índia e outras da Ásia oriental e do sudeste já sofrem inflação de dois dígitos, devido ao aumento nos preços dos alimentos e da energia. Na Bolívia, o governo foi obrigado a reduzir os subsídios de alguns dos alimentos da cesta básica, já que estavam a fazer disparar o défice fiscal.
No curto prazo, além de os pobres serem afectados e mais gente poder ser arrastada para a pobreza, essa alta também dificultará a recuperação dos países que enfrentam maior inflação e cairá o poder aquisitivo dos consumidores em geral, afirmou Rob, economista-chefe da ONU. Alguns bancos centrais estão a endurecer as suas políticas monetárias, e governos vêem-se obrigados a apertar o cinto fiscal, acrescentou.
Frederic Mousseau, director de políticas do Instituto Oakland, com sede na cidade norte-americana de San Francisco, disse à IPS que Moçambique já havia sofrido, em Setembro, revoltas populares pelos altos preços do pão, nas quais morreram 13 pessoas. "Manifestações afectaram cerca de 30 países em 2008, e isto poderia repetir-se, já que a situação não mudou nos últimos três meses", afirmou Frederic, autor do livro "O desafio dos altos preços dos alimentos: uma revisão das respostas para combater a fome".
Os países mais vulneráveis são os mais dependentes das importações e os menos capazes de enfrentar com políticas públicas o aumento dos preços nos mercados, acrescentou Frederic. Isto diz respeito a muitas das nações mais pobres, com menos recursos, menos instituições e menos mecanismos públicos para apoiar a produção de alimentos, explicou. No final do ano passado, houve protestos na China pelos altos preços da merenda para estudantes secundários, e na Argélia pelo aumento da farinha, do leite e do açúcar.
Os argelinos voltaram às ruas na semana passada para protestar contra as duras condições económicas. As manifestações acabaram com três mortos e centenas de feridos, enquanto na vizinha Túnis distúrbios similares causaram pelo menos 20 vítimas fatais. Segundo o índice da FAO divulgado na semana passada, os preços de cereais, sementes oleaginosas, lácteos, carnes e açúcar continuam a aumentar por seis meses consecutivos.
"Estamos a entrar em terreno perigoso", disse Abdolreza Abbasian, economista da FAO, a um jornal londrino. Frederic explicou que os preços começaram a aumentar em 2010, depois das más colheitas na Rússia e na Europa oriental, em parte devido aos incêndios durante o Verão boreal. Agora, as severas inundações que afectam a Austrália, quarto maior exportador mundial de trigo, provavelmente afectarão a produção desse cultivo e pressionarão ainda mais os preços para cima, previu.
"Qualquer outro acontecimento, como outro desastre climático nalgum país exportador, ou uma nova alta do petróleo, sem dúvida alguma disparará os preços e fará com que a situação seja pior do que em 2008, ameaçando, portanto, o sustento de milhares de milhões de pessoas em todo o mundo", acrescentou.
Entretanto, Frederic esclareceu que não se trata de um problema de escassez, como ocorreu em 2007-2008. "Não se pode usar a palavra escassez se for considerado que mais de um terço dos cereais produzidos no mundo são usados como alimento para animais, e que uma parte cada vez maior é usada para fazer combustíveis", afirmou. De facto, no mundo foram produzidas 2,232 biliões de toneladas de cereais em 2008, uma quantidade sem precedentes, destacou.
O nível de produção para o período 2010-2011 é levemente menor do que em 2008. Ao contrário daquele ano, quando o arroz foi o responsável pelo aumento dos preços, desta vez é o trigo. Em todo caso, deve-se a uma combinação de factores: má colheita numa parte do mundo supõe uma pressão sobre o mercado, o qual envia sinais negativos aos especuladores. Estes, então, começam a comprar e os preços disparam.

Foto de frankfarm, FlickR

O ATRASO DO PROGRESSO



 





‘No lugar dos valores da vida, preferiu-se o poder, o sucesso e a riqueza por si mesmos’ (Freud, 1930)

Quem analisa o século passado, da urbanização mundial, encontra um traço profético nessa afirmação do ‘pai da psicanálise’. No Brasil, o desenvolvimento econômico também tem se baseado na exacerbação da cultura individualista e na degradação da esfera pública. Mas não há progresso real se não se supera a desigualdade e o atraso político. Nesses aspectos essenciais continuamos mal.
Entre nós, onde os 10% mais ricos ainda ganham 40 vezes mais que os 10% mais pobres, o abismo social ganha tom de tragédia: enlutados, vejamos a condição da maioria absoluta dos vitimados nas enchentes de verão.
Não se culpe o destino ou uma fatalista ‘ira divina’ e sim a falta de prioridade para políticas públicas que poderiam amenizar essa dor indizível. Não se atribua tudo a fenômenos naturais, alguns de fato inéditos. O imprescindível planejamento urbano raramente desce de virtuosas Leis Orgânicas, Planos Diretores e Estatuto das Cidades para a vida. Os insuficientes investimentos em macro-drenagens, contenções e programas habitacionais contrastam com os custos adicionais bilionários da reforma do recém-reformado Maracanã, por exemplo. No plano global, as políticas contra o aquecimento, que implicariam em mudanças drásticas do nosso modo de produzir e consumir, não avançam com a celeridade das crescentes oscilações climáticas.
O país emergente que celebra crescimento tem sua dimensão política soterrada pela avalanche do interesse menor, alimentado pela enchente do desinteresse coletivo. A comovente e episódica onda de solidariedade não tem conseguido transformar-se em torrente cidadã permanente. Promessas de prevenção das autoridades vão embora com as águas de março ou fecham-se após as chuvas de abril.
 Ocupar função pública, salvo exceções, não é mais missão de serviço e sim carreira promissora, inclusive com plano de vencimentos e oportunidades de negócios alentadores. Muitos no Executivo, no Legislativo e no Judiciário distanciam-se da sociedade, fechados em estamentos que se auto-regulam e tornam-se espaço de interesses privados. A moeda de troca nas alianças políticas é a distribuição de cargos e empenhos para consolidação dos ‘currais’ modernos de legitimação pelo voto – até nos recursos para a Defesa Civil! Os palácios só costumam ter alguma conexão com as praças quando ocorrem tragédias ou nos períodos bienais de captação de votos.  Hannah Arendt lembrava que “a sociedade burguesa, baseada na competição e no consumismo, gerou apatia e hostilidade em relação à vida pública, não somente entre os excluídos, mas também entre elementos da própria burguesia”.
Desde os primórdios os povos enfrentam dois desafios: adequar-se à natureza, para não perecer, e limitar o poder, para as maiorias não serem escravizadas por poucos. Caminhamos entre intenções cruzadistas e suas guerras nada santas, entre avanços tecnológicos que propiciariam o bem viver e relações de dominação que excluem amplos setores desses benefícios.
É imperativo o resgate da vida pública cooperativa, transparente, participativa. Res publica livre do interesse mercantil e/ou demagógico – inclusive em relação ao solo urbano. As centenas de mortes que se repetem a cada ano nos interpelam de forma dramática.

*Chico Alencar é professor de História e deputado federal (PSOL/RJ)

Pochmann: “O Brasil já podia ter acabado com a miséria”


Pedro Venceslau, Marcelo Cabral e Conrado Mazzoni   (redacao@brasileconomico.com.br)


O líder do Ipea diz que a meta da presidente Dilma de erradicar a pobreza absoluta até 2014 é factível.
Dentro do organograma do segundo escalão do governo federal, o economista Marcio Pochmann comanda um dos órgãos mais estratégicos.
Cabe ao Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) instrumentalizar com dados e diretrizes todos os ministérios, além, claro, da própria presidente Dilma Rousseff.
Alvo de cobiça entre aliados e disputado por diversas pastas, o Ipea deve seguir sob o comando da Secretaria de Assuntos Estratégicos, como revela Pochmann em entrevista ao Brasil Econômico.
A presidente Dilma Rousseff estabeleceu como meta a erradicação da miséria. Não é um projeto ousado demais?
Foi o Ipea que identificou que era possível o Brasil superar a pobreza até 2015, e em alguns estados em 2011 ou 2012. Nós sofremos crítica de alguns colegas que diziam ser uma miragem. Mas a então candidata Dilma entendeu que isso podia ser um compromisso de campanha. Agora é um compromisso de governo. É plausível.
O senhor já se reuniu com o ministro Moreira Franco, da Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE), onde o Ipea está instalado?
Conversamos na semana passada sobre como ajudá-lo a organizar a SAE. Se vocês querem saber se vai haver mudança na direção do Ipea, não tenho como responder. Nós não tratamos sobre isso. Não temos mandato. Os cargos são de confiança.
Há quem defenda que o Ipea deixe a SAE e vá para o Ministério do Planejamento. O que acha disso?
Ocorreu uma competição entre ministros para ver onde ficaria o Ipea. O que ouvimos em Brasília foi que os ministérios de Ciência Tecnologia, Planejamento e Fazenda se mostraram interessados.
Posso estar equivocado, mas acredito que ele não sai da Secretaria de Assuntos Estratégicos.
O Ipea, que foi criado em 1964, pertencia, na sua origem, à Presidência da República. Foi parte responsável pela Secretaria de Planejamento. Em seus 46 anos esteve subordinado a diferentes ministérios. Nos anos 60 e 70 teve um papel inteligência dentro do governo, porque os ministérios não tinham assessoria técnica.
O Ipea chegou a ter 1200 servidores. Hoje temos 600. Demorou para ele encontrar sua vocação.
Existem ainda hoje correntes de pensamento diferentes no Ipea? Ele ainda se divide entre "fiscalistas" e "desenvolvimentistas"?
Em cada área existem visões diferentes. Essa é a riqueza da instituição. Essa idéia de desenvolvimentista e fiscalista é uma visão meio primitiva que se tinha do Ipea do passado. Estamos em outro patamar. Isso seria limitar a discussão. Quem faz essa divisão são os viúvos do Ipea do passado.
O Ipea tem um orçamento de R$ 302 milhões de reais. O órgão está blindado da disputa entre PT e PMDB por cargos do segundo escalão do governo?
O orçamento era de R$ 190 milhões quando chegamos, em 2007. Do ponto de vista político, não é uma boa área para se ter influência. O Ipea é uma instituição transparente. Há acesso livre aos pesquisadores. Temos comissão de ética e ouvidoria.
O Ipea pretende reforçar suas análises regionais?
Temos uma representação no Norte-Nordeste e outra no Rio de Janeiro. Falta a região Sul. Não dá para pensar o Brasil olhando apenas de Brasília.
O governo vai criar uma nova definição sobre o conceito de miséria no país. Que elementos serão usados para se definir o que é ser miserável no Brasil?
Nós somos um país que não tem uma definição oficial de pobreza. No mundo todo, essa definição é arbitrária.
Indicadores não faltam, o que nós precisamos ter é uma linha administrativa: miserável é aquele que ganha até um determinado valor por mês. Essa definição precisa ter um parâmetro razoável.
É preciso, ainda, haver uma identificação das diferentes formas da manifestação da pobreza. Há um movimento de redução da miséria nos últimos 30 anos. Antes, nos anos 90, a cada dez brasileiros, quatro eram miseráveis. Hoje, a cada dez, um é miserável. Estamos lidando, portanto, com o núcleo duro da pobreza extrema. É preciso reconhecer que essa pobreza extrema não é homogênea, mas diferenciada.
Em que sentido ela é diferenciada?
Por exemplo: existe o pobre estrutural, o das grandes cidades, das pequenas, os de mais idade. Como você vai conseguir uma porta de saída para alguém que tem mais de 70 anos de idade.
É preciso uma definição clara sobre as formas como se manifesta a pobreza. Como a pobreza rural de pessoas mais velhas se enfrenta de um jeito, nas cidades, de outro. O país mais rico do mundo, que é os Estados Unidos, tem o maior programa de assistência de renda. É maior que o Brasil. É maior parcela do mundo assistida. Em todas as economias do mundo há segmentos que não conseguem viver com suas próprias pernas. Outros segmentos podem ser incluídos.
A meta da presidente Dilma de acabar com a pobreza é viável?
O Brasil já podia ter acabado com a miséria no final dos anos 70. Miséria absoluta é o cara não ter o que comer. Isso não é um problema de escassez de alimentos, mas de má distribuição. Vamos acabar de forma tardia. A presidenta disse que a meta é 2014.
Qual a sua análise da situação macroeconômica do Brasil?
De certa maneira temos uma situação de acomodação que era esperada em 2011 devido ao fato que estávamos crescendo em um ritmo muito forte em 2010. Uns acham que nosso problema é ajuste fiscal.
Acham já superamos esse tema tal qual ele foi colocado nos anos 90. A prioridade era essa. Ajuste fiscal é um meio, não o fim. Hoje o fim é o desenvolvimento. Temos que ver medida se ajusta as finanças públicas para viabilizar o desenvolvimento.
Neste âmbito, precisamos olhar quais são as despesas que podem ser reduzidas, aquelas que são improdutivas. Estamos gastando entre 5% e 6% do PIB em pagamento dos juros da dívida.
Isso não gera emprego. Como reduzir o peso da dívida e os juros, que estão em um patamar muito alto, é um bom debate. Do ponto de vista do tempo, vem se reduzindo. Há possibilidade de redução do gasto público, mas temos que olhar quais gastos. O compromisso da presidente de terminar seu mandato com a taxa de juros em 2% real é razoável.
O peso do funcionalismo prejudica o investimento?
Essa é uma visão primitiva de quem não conhece bem o país e outros países. O Brasil não tem muitos funcionários públicos. Temos 11% da população que são ocupadas em serviços públicos, nos Estados Unidos é 16,5%. Na Europa é de 25%. Nos países escandinavos, que são competitivos, 40% da força de trabalho é de funcionários públicos.
O aperto monetário é inevitável?
A aposta de elevação dos juros é uma medida muito pesada para as circunstâncias que estamos vivendo hoje. Quando a taxa de juros se eleva, ela atua sobre todos os setores do sistema econômico. Isso leva a mudanças de decisões.
Quais seriam as alternativas para evitar a alta de juros?
A ampliação das exportações em alguns setores, a redução de impostos, uma política de Incentivos a elevação da produtividade. Temos que ser mais criativos. É claro que, para o Banco central, eleva-se o juro e garante a meta. Mas quais as consequências? Se você elevar a taxa de juros, eleva o gasto público com juros da dívida.
Qual o impacto do câmbio hoje na economia brasileira?
Não é algo homogêneo. Alguns setores, apesar da valorização cambial, estão relativamente bem. Outros estão em dificuldade enorme, sobretudo o industrial. O problema de ter uma taxa só de câmbio é que qualquer mudança sobre ela é boa para uns e ruim para outros. O melhor seria apostar em medidas pontuais para os setores específicos em dificuldades.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Ibama, Belo Monte e um rolo compressor

Leonardo Sakamoto em seu blog


O blog Político, da revista Época, informa que a saída do presidente do Ibama, oficializada hoje, não se deu por motivos pessoais, como alega sua carta de demissão, e sim por conta de pressões para emitir uma licença ambiental para usina de Belo Monte, talvez a mais polêmica das obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC):

Belo Monte derruba presidente do Ibama
 
O presidente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), Abelardo Bayma, pediu demissão do cargo por discordar da emissão da licença definitiva para a implantação da Usina Hidroelétrica de Belo Monte, prevista para ser construída no rio Xingu, no Pará. Em carta enviada à ministra do Meio Ambiente, Izabela Teixeira, Abelardo alegou motivos pessoais para pedir exoneração do cargo. Mas revelou a amigos que deixou o posto depois de ter sido pressionado pela diretoria da Eletronorte a emitir a licença definitiva em nome do IBAMA para a instalação da usina. Ele estava no cargo desde abril do ano passado e é funcionário de carreira da autarquia.
Em reuniões com a diretoria da Eletronorte há dez dias, Abelardo se negou a emitir a licença definitiva para a construção da usina. Ele argumentou que o IBAMA não poderia emitir o documento porque o projeto ainda está cheio de pendências ambientais. Abelardo admitiu que o IBAMA poderia emitir a licença para a instalação e não a definitiva. A construção de Belo Monte foi um dos motivos que levou ao pedido de demissão da ex-ministra do Meio Ambiente Marina Silva. Ela discordava da implantação da usina alegando que a obra causará fortes danos ambientais na região com o alagamento de uma área de aproximadamente 500 km2.
Marina Silva e a então ministra-chefe da Casa Civil, a presidenta Dilma Rousseff, que defende a antecipação dos prazos para a conclusão da usina, prevista inicialmente para outubro de 2015, um ano após o mandato presidencial. Para conseguir antecipar a conclusão, como quer Dilma, é preciso que o Ibama antecipe as licenças, mas o instituto alega que há falhas técnicas a serem reparadas no projeto. A previsão é que Belo Monte gere mais de 11 mil megawats para atender a uma população de 26 milhões de pessoas na região Norte.
Há uma outra versão que diz que a licença que não foi concedida não era a definitiva, mas uma especial para a obra. De qualquer forma, o ponto é o seguinte: Belo Monte será um grande gerador de impactos sociais e ambientais. Por exemplo, o Ministério Púbnlico Federal avalia em cerca de 40 mil o total de atingidos – incluindo populações tradicionais e indígenas.
Como já disse aqui em um post dias atrás, não adianta o governo federal elevar a questão dos direitos humanos nas relações internacionais e não executar o mesmo internamente. Se quiser fazer valer os direitos humanos em regiões rurais, a presidenta Dilma Rousseff terá que comprar brigas com áreas que lhe são importantes, como o setor elétrico. Coisa que, acredito, não vá fazer, muito pelo contrário. Incluída no PAC e no Plano Decenal de Energia (2007-2016), Belo Monte está planejada para ter uma potência máxima de 11,1 mil MW, mas a produção média estimada pela Eletrobrás é de 4.796 MW.
Lutou-se na ditadura não apenas por liberdade civis e políticas, mas por direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais. Desse ponto de vista, como justificar diferenças entre o discurso de uma época em que abríamos grandes estradas em rito sumário para o momento em que construímos gigantescas hidrelétricas em rito sumário, xingando os opositores de “arautos do atraso”?

Educação e redução das desigualdades regionais são focos para erradicação da miséria

Felipe Prestes no Sul21

A erradicação da miséria é uma das metas da presidenta Dilma Rousseff, que já anunciou a criação de um PAC para cuidar desta missão. Para que todos os brasileiros tenham condições de viver com dignidade, especialistas apontam que o governo federal terá de dar atenção especial às desigualdades regionais. Os estudos mais recentes mostram que as zonas rurais das regiões Norte e Nordeste ainda são importantes bolsões de miséria. Mas a pobreza extrema é também um problema em todo o país, especialmente nas áreas periféricas das grandes cidades. Nestas localidades o desenvolvimento econômico já chegou, mas não incluiu a todos. É preciso apostar, principalmente, na qualificação destes excluídos, por meio da educação.
Os estudos mais recentes mostram que as regiões Norte e Nordeste ainda apresentam as maiores incidências de miserabilidade. Estados como Alagoas e Maranhão em 2008 apareciam ainda com mais de 30% de extremamente pobres segundo pesquisas de instituições como o IPEA e o Centro de Políticas Sociais da FGV. O estudo “Geografia da Pobreza”, da FGV, aponta que o Nordeste, em 2008, tinha 30,69% de miseráveis (cerca de 16 milhões de pessoas), e o Norte, 19,07% (pouco mais de três milhões de cidadãos), considerando a faixa de miséria ter renda domiciliar per capita abaixo de R$ 137.
Entretanto, em números absolutos, a região Sudeste é a segunda região com mais pobreza extrema. Os 9,68% de miseráveis no Sudeste significam quase oito milhões de pessoas. E as regiões Sul e Centro-Oeste também apresentam números significativos de extremamente pobres. O Sul tem cerca de dois milhões de miseráveis (7,29%), e o Centro-Oeste, 1,5 milhão de cidadãos (10,49%).
“Do ponto de vista da presença de pessoas pobres no total de sua população, o Norte e o Nordeste são as regiões com maiores bolsões. Por outro lado, é necessário considerar que mesmo as regiões ricas como São Paulo ainda tem um contingente absoluto de pobres considerável”, afirma Márcio Pochmann. Ex-diretora da Sudene e integrante do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social durante os oito anos de Governo Lula, a economista Tânia Bacelar chega a conclusão semelhante. “A pobreza no Brasil tem dois endereços: o Norte e o Nordeste, em especial na zona rural, e as grandes cidades em todo o país”.

Desigualdade histórica

Bacelar e Pochmann também concordam no diagnóstico para os altos índices de pobreza extrema nas regiões Norte e Nordeste. Segundo ambos, o olhar especial dado pelo Governo Lula a estas regiões não foi suficiente para colocá-las em igualdade com as demais, porque a desigualdade histórica era muito grande. “Na transição de um país rural para a sociedade urbana e industrial nós tivemos uma concentração das oportunidades econômicas nas regiões Sul e Sudeste do país. Nos anos setenta tivemos uma expansão da fronteira agrícola que permitiu ao Centro-Oeste ser o celeiro agroalimentar brasileiro. As regiões Norte e Nordeste convivem ainda com mazelas herdadas deste baixo dinamismo historicamente acumulado”, explica Pochmann.
“No século XX o Nordeste perdeu o trem do desenvolvimento industrial. Não houve investimentos em infraestrutura e em ciência e tecnologia”, afirma Tânia Bacelar. A economista diz que o presidente Lula “deu um empurrão” para a região ao realizar investimentos, como a construção de estradas, da ferrovia Transnordestina e a transposição do Rio São Francisco. Além disso, a Petrobras passou a ter no Governo Lula atuação bem mais significativa no Nordeste. Bacelar explica ainda que as políticas sociais como o Bolsa-Família tiveram grande impacto nas regiões menos desenvolvidas do país.

Bruno Alencastro/Sul21
Nas periferias das grandes cidades, pessoas precisam de qualificação (Foto: Bruno Alencastro/Sul21)

Desenvolvimento regional e qualificação

Para o presidente do IPEA, Márcio Pochmann, após o avanço das políticas sociais de âmbito nacional, o país está diante de um ‘núcleo duro’ da pobreza, que precisa ser combatido com foco em políticas regionais em paralelo às políticas nacionais. “Estamos observando uma convergência entre expansão econômica e melhor repartição destes ganhos na sociedade. Mas para os próximos anos, a continuidade desta trajetória implica em maior sofisticação das políticas públicas, considerando que estaremos diante de um núcleo duro da pobreza extrema. É preciso ter em vista especificidades regionais, é difícil chegar a esta pobreza consolidada em determinados lugares”, afirma o presidente do IPEA Márcio Pochmann. Para o pesquisador, o compromisso político assumido por Dilma Rousseff só será concretizado se for feito um esforço comum entre o governo federal, os poderes executivos estaduais e municipais, e a sociedade civil.
Segundo o estudo “Geografia da Pobreza”, da FGV, em 2008, mais de 34% dos moradores de áreas rurais no país estavam abaixo da linha da miséria. Tânia Bacelar afirma que esta questão se aprofunda ainda mais nas regiões Norte e Nordeste. “Há um hiato em termos de padrão de vida, especialmente entre as zonas rural do Norte e do Nordeste e o resto do país. Na zona rural do Nordeste há, por exemplo, 33% de analfabetismo enquanto a média nacional é de 9%”. A doutora em economia aponta que há também em outras regiões do país localidades com menor dinâmica produtiva.
No Rio Grande do Sul, isto se aplica às metades Sul e Oeste do estado e, em especial, à Região Noroeste. O economista da FEE Adelar Fochezatto explica que os últimos dados que mostram índices de pobreza por município do estado se baseiam no censo de 2000. Entretanto, os dados do censo de 2010 já mostram que há um êxodo populacional nestas regiões, o que dá fortes indícios de que elas continuam sendo as regiões com maior índice de pobreza extrema.
Fochezatto ressalta, contudo, que o maior número de pessoas abaixo da linha da pobreza extrema está mesmo na Região Metropolitana de Porto Alegre. “A participação de famílias pobres no total de famílias dos municípios é maior na Região Noroeste. Mas o número é pequeno na Região Noroeste, porque são municípios pequenos. Se a gente for pensar onde estão os pobres em números absolutos, eles estão na Região Metropolitana”.
Fochezatto explica as diferenças entre a miséria da Grande Porto Alegre e a das regiões menos desenvolvidas do estado. “A gente pode falar de dois tipos de pobreza. A pobreza por insuficiência de desenvolvimento, lá daquela região (Noroeste), por exemplo. As pessoas são pobres porque não têm alternativa. Já a pobreza da Região Metropolitana é decorrente de exclusão do processo de desenvolvimento. O desenvolvimento não incorpora todo mundo. Muitos ficam excluídos. Boa parte destes excluídos sai, inclusive, das regiões de menor desenvolvimento”.
A explicação de Fochezatto, não é diferente do que diz Tânia Bacelar. “No meio urbano, geralmente você tem pessoas (abaixo da linha de pobreza extrema) que não têm qualificação para se inserir vida da cidade, que não tiveram oportunidade. Em regiões menos desenvolvidas, as pessoas até têm ocupação, mas a atividade econômica é muito frágil”, explica a ex-diretora da Sudene.
Para Fochezatto, as ações para combater a pobreza extrema precisam ser no sentido de levar o desenvolvimento para regiões de economia retraída. “Lá é preciso pensar em empreendedorismo. Criar e atrair empresas, fazer convênios para produção de merendas escolares no campo. Alternativas para promover o emprego”. Nas grandes cidades, segundo o economista, é preciso investir na qualificação da mão-de-obra e em criar frentes de trabalho, investindo, por exemplo, em obras públicas.
O investimento em educação é um dos pontos-chave para a redução da miséria segundo Adelar Fochezatto. Um estudo recente da FEE, em parceria com a Secretaria de Justiça e Desenvolvimento Social do estado, mostrou que a pobreza extrema aparece no Rio Grande do Sul em maior número entre os jovens de até 20 anos e em entre os que têm menores índices de escolaridade. “Fazer com que estes jovens se mantenham na escola e tenham ensino de qualidade é um dos grandes desafios”, aponta.

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Pochmann foi um dos que sugeriu a criação de linha oficial de pobreza (Foto: Divulgação/UnB)

Como medir a pobreza

Uma das intenções da presidenta Dilma é criar uma linha oficial de miséria no país. O presidente do IPEA, Márcio Pochmann, foi um dos que sugeriu a criação do índice. “O critério é subjetivo. O que é miserabilidade? A gente (do IPEA) tem um critério, um quarto de salário mínimo per capita, outros têm outros valores”, explica.
Um dos índices é o dos Objetivos do Milênio das Nações Unidas, de um dólar per capita por dia – valor bem menor que os utilizados pelo IPEA e por outros institutos de pesquisa. Foi com base neste valor da ONU que o governo federal conseguiu retirar 28 milhões de pessoas da linha da miséria, o que não deixa de ser um grande feito. Pelo IPEA, os números são mais modestos. Entre 1995 e 2008, 13,1 milhões de brasileiros deixaram a pobreza extrema, segundo o instituto.
Mas um índice oficial de pobreza não é para saber se quem divulga dados está mais ou menos correto, e sim para que o governo possa estabelecer políticas para uma faixa determinada de pessoas. “Há governos que têm uma linha oficial de pobreza, como é o caso dos Estados Unidos. Pode-se achar que está errado, mas é sobre estes que o governo vai tratar como prioridade. Do ponto de vista do governo, o que interessa é ter um horizonte para que estabeleça qual é o segmento sobre o qual vai atuar de maneira mais privilegiada e para ter condições de saber se esta interferência é exitosa”, explica Pochmann.
Uma questão a ser analisada é que os índices que são geralmente utilizados para medir pobreza se baseiam apenas na renda. Assim, se o Brasil erradicar a miséria isto não significa que não haverá mais brasileiros analfabetos, ou vivendo ao lado de esgoto a céu aberto, por exemplo. E os serviços públicos costumam demorar mais para chegar do que a renda. “Os programas de transferência são os programas geralmente de menor custo, porque é tão somente a transferência da renda. Agora, um programa de saúde, por exemplo, precisa do equipamento necessário para operar, pessoas qualificadas”, explica Pochmann.
Ainda assim, o pesquisador defende que os indicadores de renda são eficazes para que mostrar quem vive em situação de vulnerabilidade social. “O indicador de renda é o indicador mais fácil de você identificar onde estão os pobres e os mais pobres entre os pobres. É claro que a pobreza não é só uma questão de renda. Mas você observando, atuando sobre aqueles que menos recebem, certamente estará atuando sobre os que têm mais dificuldades de acesso a outros aspectos que podem definir a pobreza de maneira mais ampla”, diz o presidente do IPEA.
Tânia Bacelar acredita que o governo federal deve utilizar vários índices para considerar a pobreza e a miséria. Ela ressalta, por exemplo, que o programa Luz Para Todos foi, para muitas pessoas, mais importante que o Bolsa-Família. “Acho que podemos ampliar o conceito de pobreza. Concordo que a renda é o aspecto prioritário, já que ela é necessária até para que se possa comer. Só que a pobreza é muito mais do que a renda. O pobre pode morrer, por exemplo, de uma doença que já não mata quase ninguém”.

Tráfico de órgãos: um relatório devastador


Em meio a críticas e deboche, relatório apresentado recentemente no Conselho Europeu reacende as discussões sobre a possibilidade dos prisioneiros do Exército de Libertação do Kosovo (UCK) terem sido vítimas de tráfico de órgãos.
por Jean-Arnault Dérensno diplo-br
Caiu como uma bomba o relatório sobre tráfico de órgãos apresentado pelo deputado suíço Dick Marty   diante do Conselho Europeu , que apontavam como vítimas os prisioneiros do Exército de liberação do Kosovo (UCK) 1. As alegações contidas no documento não são novas: esse tráfico já foi evocado nas memórias publicadas, em 2008, pela antiga Procuradora Geral do Tribunal penal internacional da ex- Iugoslávia (TPIY), Carla Del Ponte2. E em Kosovo, a hipótese de tal tráfico é um “boato” que circula há muito tempo. Da mesma maneira, a investigaçãopublicada em 2009 pelos jornalistas Altin Raxhimi, Michael Montgomery e Vladimir Karaj confirmou a existência de um verdadeiro “arquipélago” de centros secretos de detenção da UCK na Albânia3.
O relatório de Marty traz, no entanto, várias informações novas, permitindo compreender melhor os mecanismos desse tráfico. Centenas de prisioneiros capturados pelo UCK – principalmente sérvios do Kosovo e provavelmente romenos e albaneses acusados de “colaboração” – teriam sido deportados para a Albânia, em 1998 e 1999. Aprisionados em vários pequenos centros de detenção – entre eles a famosa “casa amarela” da pequena cidade de Rripë, perto de Burrel, visitada pelos inspetores do TPIY –, alguns deles teriam alimentado o tráfico de órgãos. Os prisioneiros eram conduzidos para uma pequena clínica situada em Fushë Kruja, a 15 km do aeroporto internacional de Tirana, assim que alguns clientes demonstravam interesse em receber órgãos. Eles eram, então, abatidos com um tiro na cabeça antes que os órgãos, principalmente, os rins, fossem retirados. Esse tráfico era dirigido pelo “grupo da Drenica”, um pequeno núcleo de combatentes da UCK reunidos em torno de duas figuras chaves: Hashim Traçi, atual primeiro-ministro de Kosovo e Shaip Muja, então responsável pela brigada médica do UCK e, hoje, conselheiro da saúde do mesmo Hashim Thaçi.
O relatório deixa muitas perguntas sem respostas, principalmente o número exato de prisioneiros vítimas desse tráfico. A justiça sérvia, por sua vez, fala de 500 pessoas deportadas à Albânia. Também não se sabe quais foram os parceiros estrangeiros desse tráfico e, sobretudo, quem foi beneficiado. O relatório revela, no entanto, que 60 pacientes do hospital universitário de Jerusalém teriam se beneficiado de um transplante renal em 2001, número  excepcionalmente elevado.
É importante dar ao suposto crime seu devido valor. Se o tráfico é comprovado, trata-se de um crime medonho contra a humanidade, que se situa, na ordem do horror, do mesmo nível do massacre genocida de Srebrenica. Outro ponto determinante é o fato de que o tráfico estaria ocorrendo até 2001, ou seja, até dois anos depois da entrada das tropas da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte) no Kosovo e da instauração do protetorado das Nações Unidas sobre o território. O relatório nota, aliás, que a partir de junho de 1999, a fronteira entre a Albânia e o Kosovo não estava submetida a nenhum controle real.
O relatório suscitou um clamor de protestos e de desmentidos. Alguns quiseram desqualificar Marty, apresentando o autor como um “adversário da independência do Kosovo” e até mesmo como um “inimigo do povo albanês”. O primeiro-ministro da Albânia, Sali Berisha, o rotulou abertamente de “racista”. Como suporte para essas afirmações, é frequentemente citada uma entrevista dada por Marty, em março de 2008, para o site da Rede Voluntária, na qual ele critica, sob o ponto de vista da legalidade internacional, a proclamação da independência do Kosovo4. Essa tomada de posição não traduz de maneira nenhuma uma “aversão” em relação ao povo albanês, nem ao povo do Kosovo, e o relatório de Marty não seria nem mais, nem menos legítimo se seu autor estivesse de acordo com a proclamação da independência, sob esse mesmo ponto de vista jurídico. Nota-se, enfim, que a imprensa da Albânia critica explicitamente o discurso “antiamericanista” de Marty, uma vez que este já revelou, em 2006, o escândalo das prisões secretas da CIA na Europa. Algumas declarações oficiais de Tirana, nesses últimos dias, associam o suposto “antiamericanismo” do relator e seu preconceito “antialbanês”.
Alguns acusam igualmente Marty de “preconceitos políticos”, pois ele publicou seu relatório alguns dias depois das eleições parlamentares organizadas em Kosovo, em 12 de dezembro, que foram manchadas por fraudes grosseiras cometidas, principalmente, ao que parece, pelo Partido Democrático do Kosovo (PDK), do qual Thaçi faz parte. Esse argumento é fácil de ser rejeitado, pois a concomitância das datas é apenas uma coincidência. As eleições foram antecipadas e a data fixada somente no início de novembro.
Por sua vez, diretamente acusado, Thaçi usou de artilharia pesada para responder a Marty. Em uma entrevista publicada em 30 de dezembro no Tages Anzeiger, de Zurique, ele retoma as acusações de racismo e chega até comparar o relatório à “propaganda de Goebbels”5. Do lado oposto, o assunto foi igualmente superexplorado no contexto político suíço, algumas semanas depois da adoção pelo referendum de uma lei que prevê a expulsão dos “estrangeiros delinquentes”. A presidente da Confederação, Micheline Calmy-Rey, preferiu então “adiar” o recebimento do “prêmio da diáspora” que deveria lhe ser atribuído, no fim de dezembro, pela embaixada do Kosovo, em Berna. Os albaneses, além de alimentarem os números de crimes na Suíça, seriam também “traficantes de órgãos”. Entende-se que alguns não querem reconhecer essa incriminação coletiva. 
Vários comentaristas estimam que seria “impossível” atribuir tal crime aos albaneses e tentam “relativizar” a importância do relatório lembrando a amplitude dos crimes cometidos pelos sérvios, no Kosovo e em outros lugares dos Balcãns. É surpreendente a mudança de muitos, que apresentaram Del Ponte como uma heroína da justiça internacional, quando ela perseguia os criminosos de guerra sérvios e passaram ao ponto de colocar em dúvida sua saúde mental, desde o momento em que ela evocou esse tráfico. Florence Hartman, antiga porta voz de Del Ponte, a criticou em várias entrevistas como irresponsável por ter apresentado “como fatos reconhecidos, simples hipóteses”, ressaltando que as investigações conduzidas pelo TPIY não tinham encontrado provas conclusivas. Contudo, essas investigações, especialmente na famosa “casa amarela” de Rripë, nunca puderam ser levadas a termo, em parte por causa da recusa de colaboração das autoridades albaneses6.
Mesmo esperando uma investigação séria e sistemática que possa trazer à tona a realidade do tráfico de órgãos e que acusações sejam eventualmente pronunciadas pelo tribunal competente, se pode considerar como verídicos vários fatos. A princípio, os corpos de centenas de sérvios e de outros prisioneiros do UCK nunca foram encontrados e é pouco provável que estejam sob o pequeno território do Kosovo, onde todos os eventuais lugares de chacinas e valas comuns já foram identificados e revirados. Também é certo que um número importante desses prisioneiros foi deportado para a Albânia, onde o UCK tinha uma rede de centros de detenção. Devemos admitir também que mais de dez anos depois dos fatos, é muito provável que esses prisioneiros estejam hoje, na maioria, mortos. Seus corpos tampouco foram descobertos na Albânia7.
Por outro lado, a existência de um tráfico de órgãos em Kosovo, alimentado por “voluntários” que vão vender seus rins já foi comprovado. Pacientes, principalmente israelenses, vão à clínica Medicus de Prístina para receber os órgãos saudáveis. Esse tráfico implica um personagem muito inquietante, um cirurgião turco chamado Yusuf Erçin Sönmez, conhecido por “Doutor Abutre”, atualmente foragido.  O caso da clínica Medicus, cujo processo acaba de ser aberto em Prístina, não está obrigatoriamente ligado ao eventual tráfico de órgãos praticado, dez anos antes, com prisioneiros do UCK, mas as coincidências chamam atenção8.
As reações da mídia, da classe política e mais amplamente da sociedade albanesa, especialmente na diáspora9, lembram a negação, há muito tempo demonstrada por grandes setores da opinião sérvia face aos crimes cometidos por seu próprio exército. Os dois argumentos centrais são os mesmos: “nosso povo não pode ter cometido tal atrocidade”, e “nosso povo foi vítima de crimes ainda piores do que esses que lhes são imputados”. A realidade dos crimes cometidos pelas forças sérvias no Kosovo não invalida, no entanto, a hipótese de que alguns albaneses tenham cometido outro crime, particularmente infame.
O problema é que “o povo albanês” não é de forma alguma culpado desse eventual tráfico, assim como “o povo sérvio” não tem que suportar a responsabilidade pelo massacre genocida de Srebrenica: esses crimes têm seus culpados e cabe à justiça definir a responsabilidade pessoal. Essa é a única forma de evitar que povos inteiros, e as gerações futuras, carreguem o fardo penoso de uma responsabilidade coletiva. No Kosovo, somente Albin Kurti, o governante do movimento Vetëvendosja (“Autodeterminação”) parece ter compreendido o verdadeiro significado do que está em jogo. Ele pediu oficialmente que a Justiça se ocupe do dossiê de Thaçi, estimando que essa seria a única forma de limpar a honra da totalidade dos combatentes e de simpatizantes do UCK da suspeita de uma responsabilidade coletiva10.
Na Albânia, uma das raras vozes críticas que se levantou foi a do ensaísta Fatos Lubonja, antigo prisioneiro político do regime stalinista e grande figura de esquerda. Em uma matéria publicada pelo jornal Panorama, Lubonja ousa estabelecer um paralelo entre esse suposto crime e o ocorrido em Srebrenica, enfatizando que os albaneses correm o risco, de agora em diante, de suportar o peso arrasador em seu consciente coletivo. Denunciando a “frente patriótica”, que se forma de Tirana à Prístina, para recusar que seja feita uma investigação, ele escreve: “a acusação é certamente pesada, mas recusar a investigação que a confirmaria ou a desmentiria é ainda pior. Essa recusa faz de todos nós culpados e creio que a maioria dos albaneses não gostaria de se sentir envolvido nesse tipo de crime”11.
As criticas de Marty apontam a ausência de provas fornecidas para seu relatório. A resolução adotada por unanimidade pela Comissão da assembleia parlamentar do Conselho da Europa pede justamente que as investigações sejam diligentes para encontrar essas provas. Na voz da sua representante de política externa, Catherine Ashton, a União Europeia avaliou que essa investigação deveria ser dirigida pela missão europeia Eulex, encarregada de ajudar as instituições do Kosovo na construção do Estado de direito. Sempre repetindo suas críticas, o governo albanês comunicou que não se oporia. Por sua vez, Del Ponte levantou o problema da jurisdição competente para julgar tal assunto: o TPIY não poderia mais abrir novos dossiês e seria necessário criar um tribunal ad hoc, ou transmitir o dossiê a Corte Penal internacional (CPI)12.
Enfim, as responsabilidades que apontam o relatório não concernem somente a Thaçi e os antigos dirigentes da guerrilha albanesa. No seu livro, Del Ponte explica o muro no qual ela se chocou, quando tentou, a partir de 2000, conduzir investigações sobre os supostos crimes do UCK, citando nomeadamente o chefe da missão da ONU, Bernard Kouchner, assim como o general francês Valentin, então comandante-chefe da KFOR. Para tentar explicar esse bloqueio, ela escreve: “Estou certa de que os responsáveis da MINUK e mesmo da KFOR temem por suas vidas e pela vida dos membros de suas missões”. Indo mais longe, ela acrescenta: “no espírito da MINUK e da KFOR, [Hashim] Thaçi e [o antigo chefe militar da UCK, Agim]. Ceku não representava unicamente um perigo para segurança de seu pessoal e o cumprimento das suas missões: eles colocariam em perigo toda a construção do processo de paz nos Bálcãs”13.
Em entrevista publicada em 21 de dezembro pelo jornal sérvio Politka, o capitão canadense Stu Kellock, antigo chefe do departamento de polícia de Minuk, declara: “Não posso afirmar que Kouchner conhecia o tráfico de órgãos, mas é impossível que não tenha tido informações sobre o crime organizado no Kosovo.” De fato, a luta contra o crime organizado representava uma das prioridades das missões internacionais. O capitão Kellock explica igualmente que “toda crítica contra Hashim Thaçi e os seus” era imediatamente rejeitada nos “círculos onde [ele] trabalhava”14.
Por “realismo político”, vários países ocidentais optaram por jogar a “carta” política que representava Thaçi. É sabido que este último era aconselhado, já durante a guerra, por agentes de certos serviços de informação, especialmente a DGSE francesa. A implicação direta de Thaçi em várias atividades ilegais (extorção, lavagem de dinheiro etc.) está igualmente comprovada. Por causa da preocupação de não “queimar” um precioso aliado político, os “protetores” ocidentais de Thaçi escolheram passar uma esponja em seus “pecados veniais”. Se uma investigação confirma a implicação de Thaçi em um abjeto tráfico de órgãos, seus “protetores” ocidentais correm o risco de serem prejudicados.
Interrogado por um jornalista sérvio sobre o tráfico de órgãos em 27 de fevereiro, quando estava fazendo uma viagem oficial ao Kosovo, Kouchner, então ministro dos Negócios Estrangeiros, explodiu de rir, antes de exclamar: “eu tenho cara de quem vende órgãos?”, e de sugerir ao jornalista “para ir se tratar”15. O riso de Kouchner ecoa hoje de maneira sinistra.
Jean-Arnault Dérens redator-chefe do Courrier des Balkans.

1 O relatório está disponível no site do Conselho Europeu.
2 Tradução francesa: Carla Del Ponte, A caçada. Os criminosos de guerra e eu, Paris, Heloïse d`Ormesson, 2009.
3 Ler Altin Raxhimi, Michael Montgomery e Vladimir Karaj, “ Albânia e Kosovo: os campos da morte do UCK”, O Correio dos Bálcãs, 10 de abril de 2009.
4 “Dick Marty: “A independência do Kosovo nao foi decidida na Prístina”, voltairenet.org, 12 de março de 2008.
5 “Martys Vorgehen erinnert mich an Goebbels”, Tages Anzeiger, 30 de dezembro de 2010.
6 Ler Ben Andoni, “Tráfico de órgãos na Albânia: na “clínica fantasma” de Carla Del Ponte”, O Correio dos Bálcãs, 19 de maio de 2008.
7 Lembremos que as autoridades albanesas tinham se recusado de acessar, em 2003, os pedidos dos investigadores do TPIY, que  gostariam de fazer as exumações no cemitério de Rrïpe. Essa recusa foi oficialmente justificada por “razões culturais”.
8 Ler Tráfico de órgãos: a vasta rede do “Doutor Abutre”, cirurgião turco” O Correio dos bálcãs, 21 de dezembro de 2010.
9 Ler Blerim  Shabani & Sevdail Tahiri, “O relatório de Dick Marty sacode a diáspora albanofone na suíça”,  albinfo.ch, 20 de dezembro de 2010.
10 Ler “Kosovo: Vetëvendosje pede que Thaçi seja apresentado a justiça”,      O Correio dos Bálcãs, 18 de dezembro de 2010.
11 Fatos Lubonja, “Pse refusohet raporti i Dick Marti?”, Panorama, 22 de dezembro de 2010.
12 Ler “ Tráfico de órgãos de UCK: Carla Del Ponte pela transmissão do dossiê a CPI” , O Correio dos bálcãs, 23 de dezembro de 2010.
13 Carla Del Ponte, A Caçada, op.cit., pp.460-461.
14 Ler Rade Maroevic, “Kusner je morao da zna”, Politika, 21 de dezembro de 2010, e R.S.V., “Tráfico de órgãos: kouchner sabia”, O Correio dos Balcãs, 29 de dezembro de 2010      
15 O vídeo desse encontro circula muito na internet. Podemos consultar no Dailymoton.

San Vicente-raríssimo-Milton Nascimento

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

"Tropas" italianas ocupam a mídia, parte do STF e do Congresso

120111_berlusca [Laerte Braga] 
 
As “tropas” do Duce Sílvio Berlusconi ocuparam parte do STF – Supremo Tribunal Federal –, do Congresso Nacional e designaram orientadores para as chamadas quintas colunas, a mídia privada no Brasil.
Os “soldados” italianos, ao contrário do que acontece em qualquer guerra, não chegam ao Brasil fardados e armados, mas com malas coloridas carregadas de democracia verde e com liquidez em qualquer canto do mundo. São todas as malas e fardas da grife Armani.
No STF ocuparam e montaram o seu quartel general no gabinete do ministro presidente César Peluzo. O gabinete do ministro Gilmar Mendes serve ao setor de “inteligência” – não confundir com a outra –.
Já a mídia recebeu orientadores para definir a melhor estratégia com vistas à extradição de Cesare Battisti. A mídia privada no Brasil atua ligada a grupos estrangeiros, lembra aquelas “empresas de exportação” que a CIA – Agência Central de Inteligência – monta para justificar operações de sequestro, tortura, assassinatos, etc, tudo revelado pelo site WikiLeaks.
Em contrapartida e em relação ao Uruguai, o governo de Sílvio Calígula Berlusconi negou a extradição do capitão Jorge Troccoli, responsável por prisões, tortura, estupros, sequestros e assassinatos durante a ditadura militar naquele país e um dos principais operadores da Operação Condor (ação conjunta dos serviços de tortura das ditaduras militares envolvendo Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai e Chile, sob supervisão direta dos EUA).
A alegação do governo de Sílvio Calígula Berlusconi é que o torturador tem dupla nacionalidade. Em anos anteriores o mesmo aconteceu em relação ao Brasil, no caso do banqueiro Salvatore Cacciola (preso em Mônaco).
Há notícias, ainda não confirmadas dadas as dificuldades de obter informações junto aos “militares” italianos que ocupam partes de setores públicos do Brasil, que entendimentos estão sendo mantidos entre esse invasores e deputados do DEM e do PSDB – favoráveis à extradição de Battisti –, além de grupos e deputados de outros partidos. Sabe-se que a Monsanto interessada em aumentar seus privilégios no Brasil está tentando o apoio do deputado Cláudio Vacarezza e os latifundiários mantêm entendimentos diretos com Aldo Rebelo, aquisição recente do plantel transgênico e do desmatamento.
O governo da Itália em nota oficial disse que a invasão desses setores se deve ao fato que “o melhor produto de exportação do Brasil são as mulatas e não propriamente os nossos juristas”.
A decisão visa garantir a “lei” e Sílvio Calígula Berlusconi está reformando o Coliseu para o combate Battisti versus leões especialmente adquiridos pela justiça italiana para justiçar o jornalista e escritor que ganhou o status de refugiado numa das últimas decisões do ex-presidente Lula, antes de deixar o governo.
Com relação à mídia privada “brasileira”, os orientadores italianos vão apenas orientar os agentes tipo William Bonner, William Waack, Alexandre Garcia, Eraldo Pereira (funcionário de Gilmar Mendes), jornais como Folha de S. Paulo, Estado de S. Paulo, Estado de Minas, redes menores, revistas como Veja, para manter o fogo de artilharia sobre a decisão do presidente Lula e reforçar a expressão “terrorista” sobre Cesare Battisti.
A orientação é ignorar que o julgamento de Battisti foi à revelia, com base em provas inconclusivas e um acordo entre o governo do Duce Sílvio Calígula Berlusconi e dois delatores (delação premiada), reforçando a dor e o sofrimento de eventuais vítimas da luta armada naquele país.
Já a dor das vítimas da repressão aqui no Brasil, ou o caso do capitão estuprador dos fuzileiros navais do Uruguai, essa é para deixar de lado.
Não está confirmado, dado ao quadro confuso e ao cerco que as “tropas” italianas mantêm sobre a parte do território brasileiro ocupado, mas fontes extra oficiais garantem que é fato, que os italianos querem um horário especial para adentrar – isso mesmo, adentrar – à célebre casa do BBB-11 e lá restaurarem suas energias para futuros combates.
Ao que se saiba não há vetos nem de Boninho, diminutivo de Nero e nem da direção da Globo, braço dos serviços de inteligência da colônia norte-americana que ainda teimam em chamar de Itália.
Ao certo se sabe que o capitão uruguaio Jorge Troccoli será nomeado diretor geral do novo Coliseu. Caberá a ele, entre outras coisas, afiar os dentes dos leões antes de entrarem na arena e aplicar as chibatadas, choques elétricos, pau de arara, etc, estupro, nos presos e presas a serem justiçados.
Em troca será declarado herói nacional da Itália e terá direito a um monumento à direita de Mussolini (Berlusconi pretende introduzi-lo no Coliseu, ao lado do seu).
O governo brasileiro até agora se mantém em silêncio. Espera que haja reações por parte de ministros do STF cujos gabinetes ainda não foram ocupados por “tropas” italianas. O grande temor de alguns setores é que o norte-americano Nelson Jobim, disfarçado de ministro da Defesa do Brasil, possa querer interferir no processo e garantir a invasão com um arremedo do IV Frota norte-americana.
Obama viria – a informação não é oficial, mas veio da Casa Branca – com a missão de assumir o comando das cervejarias brasileiras. Hillary Clinton seria recebida por Susana Vieira e seu namorado e para despistar e não despertar indignação dos brasileiros, ambas passeariam com cobertura total da Globo, em shoppings do Rio acompanhadas de suas respectivas cachorrinhas.
Tudo deve ser gravado para um programa exclusivo de Fausto Silva e cogita-se de uma despedida especial do Casseta e Planeta.
Eliane Catanhêde e colunistas da Veja, Estado de S. Paulo, ficarão encarregados de fornecer análises fajutas, mas recheadas de “fundamentos” oriundos das malas dos invasores, assegurando que está tudo na mais perfeita ordem.
Se a situação apertar, o transexual do BBB-11 mostra ao vivo, a cores e sem cortes, sua condição, assegurando os custos de toda a operação com telefonemas para responder sobre se é vero ou não.
As medalhas de “meus heróis” serão entregues por Pedro Bial.
Em homenagem a Plínio Salgado e a Plínio Oliveira, dois “mártires” da luta fascista no Brasil, ao final todos se reunirão no Projac para gritar ANAUÊ.
O general José Elito que quer que seja esquecida toda a barbárie da ditadura militar brasileira será homenageado e prestará continência, simultaneamente, às bandeiras da colônia Itália e da corte, EUA.
Agentes do Mossad farão a segurança.
Se a coisa apertar vão transferir o quartel general para a sede da Opus Dei no Brasil, o palácio do governo de São Paulo e instalar os serviços de inteligência no esquema FIESP/DASLU, com a contrapartida do contrabando e sonegação.
Aécio Neves vai ficar de plantão para qualquer emergência. Haverá uma ambulância superequipada para qualquer contratempo.