Em meio a falência de clubes, ganância de emissoras e um
mercado voraz, desaparece a possibilidade do pobre torcedor de assistir
ao esporte que adora
Por: Redação da Rede Brasil Atual
Alma Ferida: A reforma do Maracanã vai encolher o estádio,
que na reabertura terá ingressos mais caros. Paulo Roberto lembra
saudoso, com o ingresso na mão, os tempos da popular geral, extinta em
2005. (Foto:Rodrigo Queiroz/Revista do Brasil)
Com a aparente "volta por cima" da Globo nas negociações sobre a transmissão dos campeonatos brasileiros de 2012 a 2014, as esperanças de transmissão de jogos na TV aberta em horários civilizados, para espectadores e atletas, se esvaem. Os clubes, atolados em dívidas, menosprezam a negociação coletiva. Também passam ao largo preocupações com o que o torcedor mortal terá de pagar por ingressos em estádios ou pacotes televisivos para ver seu time ou secar os demais. O esporte mais popular do país é cada dia mais impagável para a maioria da galera. O professor Flávio de Campos, do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP), compara a situação a uma briga oligárquica. "Essa cartolagem é muito parecida com determinadas raposas da política brasileira, e às vezes se confundem mesmo", diz.
A realização da Copa de 2014 no Brasil reforça a mudança de foco do
futebol e potencializa a cobiça. Construídos ou reformados, às vezes com
necessidade duvidosa, os estádios serão em tese mais bem aparelhados,
terão capacidade menor e ingressos mais caros, o que evidencia essa
busca pelo público de maior poder aquisitivo. "A questão da transmissão é
um complemento da exclusão que vem sendo feita há anos nos estádios. Em
nome da segurança, um padrão de modernidade se impõe e remove os
setores populares. Como se a violência fosse um atributo desses setores,
o que é uma falácia", acrescenta Campos.
No Maracanã, a geral, conhecida pelo grande número de populares
fantasiados que ali acompanhavam os jogos, foi destruída em 2005 e deu
lugar às cadeiras - setor nobre. Foi o fim dos geraldinos, como eram
conhecidos os frequentadores. E os arquibaldos, a turma da arquibancada,
também não tem vida fácil. Ambos os tipos foram cunhados pelo escritor
Nelson Rodrigues, frequentador do velho Maracanã.
Aperto
O
funcionário público Paulo Roberto Evaristo estava lá no último dia da
geral, em 24 de abril de 2005, no jogo entre Fluminense e São Paulo - e
até guardou o ingresso. "Estudava e trabalhava, o salário era pequeno,
era a opção mais em conta. Além disso, era legal ficar mais perto do
campo. A visão era ruim, mas compensava. Dava para chamar e xingar os
jogadores. Pelo menos ficava a impressão de que podiam ouvir", brinca.
Na despedida, Paulo e alguns amigos foram os últimos a deixar o
estádio. Aos 39 anos, realizou o sonho de muitos meninos: conseguiu
entrar no campo, cobrar pênaltis imaginários e fingir que estava ligando
do orelhão, como alguns jogadores costumavam comemorar seus gols, em
vez de correr para diante da câmera mais próxima. Segundo ele, o
ingresso custava um quarto do da arquibancada, que por sua vez era
metade do preço das cadeiras.
Em 2010, o Maracanã foi fechado. A reforma mira a Copa. Na última, a
capacidade caiu de 120 mil para 86 mil pessoas - que passaram a pagar
mais. Em 1969, o estádio chegou a receber 180 mil torcedores. Com a
reabertura, provavelmente em 2013, caberão apenas 76 mil e esperam-se
preços ainda mais elevados.
Às vezes, alguém reclama. Como na partida entre Santos e Cerro
Porteño, pela Taça Libertadores, em março. O time paulista aproveitou o
jogo contra o rival paraguaio para cobrar R$ 100 pelo ingresso.
Resultado: protestos e pouca gente no estádio.
Em Salvador, o gerente financeiro Marcus Vinícius Vilas Boas, o Kiko,
torcedor do Bahia e fã de carteirinha do estádio da Fonte Nova conta
que os preços não esperam reformas para subir. "Já está tudo mais caro.
No Pituaçu (que vem sendo utilizado para jogos maiores), os ingressos
para o campeonato baiano estão R$ 50, R$ 40 no mínimo, dependendo do
jogo. Na Fonte Nova custavam R$ 10, R$ 20, R$ 30 no máximo."
O palco da Fonte Nova foi fechado em 2007, após a queda de um pedaço
da arquibancada que matou sete pessoas. Kiko estava a poucos metros.
"Lembro o dia da tragédia, nunca teve só 65 mil torcedores ali", diz,
referindo-se ao público oficial informado. "No mínimo, uns 80 mil." O
tradicional estádio foi implodido. No local, será construído um novo,
com capacidade para pouco mais de 50 mil pessoas.
Elitização
Em artigo publicado em O Estado de S. Paulo no final de 2010, o
professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) Marcos Alvito cita a
Soccerex, feira internacional realizada no Rio com foco no futebol como
negócio, na qual "especialistas" decretaram que a modalidade no Brasil
terá a classe A como clientela-alvo, deixando as classes B e C para
trás. "Porque as D e E há muito não sentam em uma arquibancada. Hoje os
estádios viraram estúdios para um show televisivo chamado futebol",
observa o antropólogo, para quem está em curso um processo de elitização
perversa do esporte.
O docente foi um dos criadores, em 2010, da Associação Nacional dos
Torcedores. Incipiente, mas com reivindicações como maior transparência
no futebol, além de igualdade de acesso aos estádios. "Vai acabar com
toda e qualquer possibilidade de a população pobre ou de classe média
baixa frequentá-los. Claro que a gente aprova o conforto. O problema é
transformar o estádio num grande shopping center", diz o estudante
Matheus Serva, da ANT. "E tem o agravante da televisão. Quarta-feira às
10 da noite é impossível para um trabalhador assistir ao jogo."
O historiador Felipe Dias Carrilho vê na questão da TV um
aprofundamento da lógica empresarial, que não chega a ser novidade, mas
se torna mais visível à medida que a Copa se aproxima. "É a
capitalização máxima do esporte. Nossos cartolas são os coronéis dentro
do futebol." O jornalista Juca Kfouri fala em um país sui generis, em
que os capitalistas não gostam de praticar o capitalismo que apregoam.
"Por um lado, uma emissora (Record) capta recursos de forma 'espúria',
no 'mercado da fé'. De outro, a concorrente (Globo) não demonstra
interesse em seguir as regras da concorrência."
No mundo do consumo, os europeus estão muito à frente. Considerado
pela revista Forbes o time mais rico do mundo, o Manchester United, da
Inglaterra, acumula patrimônio de US$ 1,8 bilhão. Seu canal pago é
exibido em 192 milhões de residências. O segundo na lista, o Real
Madrid, da Espanha (US$ 1,3 bilhão), mostra equilíbrio nas fontes de
receitas: 30% vêm da bilheteria de seu estádio, 34% do comércio de
produtos e 36% de direitos da televisão - aqui, a dependência da TV
supera os 50%. Em meados de março, o site do clube tinha poucos
ingressos disponíveis a não sócios para um jogo do campeonato local que
seria realizado três semanas depois, contra o Sporting Gijon: € 225 (R$
530).
Arquibancada
O executivo e consultor espanhol Esteve Calzada calcula que um fã do
Real ou do rival Barcelona gastará aproximadamente € 3.000 (mais de R$
7.000) se acompanhar seu time por toda a temporada europeia. "Em tempo
de crise", lembra. Ele também prevê que, na temporada 2011-2012, o Barça
desbancará o Real e se tornará o clube com maior arrecadação no mundo. O
time catalão tem mais de 170 mil sócios-torcedores e mantém sempre
lotado seu estádio, o Camp Nou, com capacidade para 99 mil espectadores.
No Brasil, os clubes, endividados, as TVs e seus patrocinadores
caminham para consolidar a tipificação do torcedor de "arquibancada de
prédio", na definição do professor Flávio de Campos: aquele que assiste
ao jogo em casa e faz barulho para perturbar o vizinho simpático ao
adversário - que também não vai ao estádio.
O professor vê o país perder a oportunidade de fazer uma correção de
rota. Eventos como Copa do Mundo (2014), Jogos Militares (2011),
Olimpíada e Paraolimpíada (2016) deveriam ser determinantes para
formular políticas de investimentos na formação de atletas. "É incrível a
falta de interesse em vincular essa agenda esportiva à educação", diz.
"Se equipassem as escolas públicas, essa revalorização poderia
transformá-las em centros de difusão do esporte. Não seria muito difícil
pensar num projeto mais interessante e criativo, em vez de gastar
bilhões em estádios ultramodernos."
Autor, 30 anos atrás, do livro História Política do Futebol
Brasileiro, o professor Joel Rufino dos Santos, da Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ), considera que a chave para essa completa
mercantilização é a separação entre o esporte e o espetáculo. "Eu
gostava muito de ver jogos no campo do Palmeiras, da proximidade dos
jogadores. Não sei por que vão construir outro estádio. É para o
espetáculo", ironiza.
"Vai-se ao campo como se vai ao teatro", confirma Juca Kfouri. O
jornalista também detecta um aspecto inexorável de elitização e de
transformação dos estádios em estúdios para programas televisivos.
Corintiano, ele lembra quando saboreava o show da torcida. "O lugar é
para sentir em cima da pedra, no degrau (da arquibancada). Se estivesse
lotado, ia para o alambrado." Juca conta a "sensação paradoxal" que
experimentou, no Allianz Arena, na Copa da Alemanha, em 2006. "Um lugar
suntuoso, limpíssimo e quase esterilizado. Não dá para xingar o juiz.
Você faria isso no Teatro Municipal?", brinca. "Cada vez mais a sensação
que tenho é de que os estádios não têm alma."
Na Argentina, a transmissão dos jogos é de graça
Enquanto no Brasil quem gosta de futebol praticamente fica à mercê de
um conglomerado televisivo, na vizinha Argentina o governo comprou a
briga com o Clarín, principal grupo de mídia do país, e assumiu as
transmissões, que passaram a ser gratuitas e exibidas pela TV pública,
com o lançamento do programa Futebol para Todos. A mudança faz parte da
substituição da antiga Ley de Radiodifusión pela Ley de Medios
Audiovisuales.
"Um capítulo importante dessa lei era precisamente garantir o direito
ao acesso ao esporte mais importante dos argentinos", afirmou a
presidenta Cristina Kirchner, na assinatura do convênio entre a AFA, a
associação de futebol argentina, e o Sistema Nacional de Medios Públicos
(SNMP), em agosto de 2009. Segundo ela, é obrigação do Estado "garantir
a todos, sobretudo àqueles que não podem pagar, o direito a ver seu
esporte predileto".
Para Gustavo Bulla, diretor da Autoridade Federal de Serviços de
Comunicação Audiovisual, órgão regulador argentino, a exclusividade de
direitos para televisionamento de futebol foi um dos fatores que levaram
à concentração no meio audiovisual. "Agora, aquele adolescente de 18,
19 anos está vendo pela primeira vez um jogo de futebol, porque muitas
cidades, devido ao sistema a cabo, não podiam transmitir", afirmou,
durante evento em Brasília no final de 2010.
O governo argentino ofereceu US$ 150 milhões por ano, até 2019, para
televisionar o campeonato. O valor é aproximadamente três vezes maior
que o da TV privada. O acordo foi aceito pelos clubes, todos em
dificuldade financeira, e intermediado pela AFA.
No Brasil, nas negociações pelo direito de transmissão do Campeonato
Brasileiro de 2012 a 2014, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica
(Cade), vinculado ao Ministério da Justiça, até conseguiu impor um
pouco de concorrência ao tema. A Globo ficou de fora do leilão elaborado
pelo Clube dos 13 e implodiu o órgão ao assediar individualmente os
clubes. Ofereceu bem mais do que pagou no contrato anterior a alguns dos
principais times do país. A Rede TV! entrou como única concorrente e
ganhou a licitação no atacado. A Record, da qual se esperava a maior
oferta, nem entrou no leilão depois dos movimentos da Globo "por fora" -
e, como a rival, partiu para as negociações individuais.
As dúvidas se multiplicam. Durante o programa Observatório da
Imprensa, o procurador-geral do Cade, Gilvandro Araújo, afirmou que a
autoridade antitruste poderá se manifestar novamente se acionada. "Isso
(as discussões entre TVs e clubes) talvez vá ensejar no futuro um outro
tipo de análise, não só do Cade, mas de todos os interessados nesse
setor."
No campeonato inglês, os clubes negociam juntos. Na Espanha,
separados, com grande parte do bolo destinada ao Barcelona e ao Real
Madrid. Enquanto na Inglaterra o troféu é disputado por várias equipes, a
Espanha criou "o melhor campeonato gaúcho do mundo", conforme expressão
do jornalista esportivo Paulo Vinicius Coelho, em referência ao
campeonato do Rio Grande do Sul, quase sempre vencido por Internacional
ou Grêmio.
A questão, no Brasil, passa também pela política. Parte dos clubes é
aliada de Ricardo Teixeira, presidente da Confederação Brasileira de
Futebol (CBF) há 22 anos, parceiro da Globo e candidatíssimo ao comando
da Fifa, a entidade maior da modalidade mundialmente. Antes de assistir
de camarote à implosão, Teixeira tentou sem sucesso emplacar na
presidência do Clube dos 13 seu aliado Kléber Leite, ex-presidente do
Flamengo.
Entre os cotados para substituí-lo na CBF, se o mundo não acabar até
lá, estão o presidente do Corinthians, Andrés Sanchez, companheiro de
primeira hora, e até Marcelo Campos Pinto, executivo da Globo e
principal articulador do atual imbróglio do futebol brasileiro - que não
está livre de acabar nos tribunais.