Depois da vitória por 6 a 3 no Supremo Tribunal Federal, uma
mais categórica ainda no Conselho Nacional de Imigração: por 14 a 2, o
colegiado, vinculado ao Ministério do Trabalho, concedeu nesta
quarta-feira (22) autorização de permanência para o escritor italiano
Cesare Battisti, que poderá residir e trabalhar no Brasil, como
imigrante legal, por tempo indeterminado.
Por Celso Lungaretti, em seu blog
Em termos jurídicos, é o ponto final
dos apuros de Battisti, depois de debater-se durante sete anos num
pesadelo kafkiano. Ele deixara as fileiras da ultraesquerda italiana em
1979 e reconstruíra a vida no exílio, acabando por tornar-se um
respeitado novelista na França, ao abrigo da Lei Mitterrand.
Em 2004, contudo, a Itália o escolheu como alvo de uma cruzada vingativa, aproveitando a histeria que grassava nos países do Primeiro Mundo desde o atentado ao WTC, insuflada ad nauseam pela indústria cultural.
Para os estadunidenses, foi uma chance de, sob falsos pretextos, invadirem países soberanos e submetê-los à sua vontade. Os italianos, mais modestos, contentaram-se em desencadear uma perseguição tão espetaculosa quanto inútil, impingindo a lorota de que um personagem secundário dos anos de chumbo seria terrível terrorista – tal qual, séculos atrás, queimavam mulheres fogosas como bruxas e judeus como infiéis.
Depois da bilionária campanha para fazer com que a França desonrasse o compromisso solene que assumira com os perseguidos políticos italianos, os linchadores peninsulares se transferiram com armas e bagagens para o Brasil, onde, ao lado dos quinta-colunas tupiniquins que lhes serviram de escudeiros, acabam de sofrer uma acachapante derrota.
A qual, vale repetir, é definitiva: as escaramuças legais anunciadas pela Itália não têm a mais ínfima possibilidade de alterarem o resultado do jogo após o apito final do árbitro. Servem apenas para alimentar, entre os direitistas e os videotas de lá, uma ilusão que talvez ajude a salvar o premiê Silvio Berlusconi da degola. Espero que não.
Tradição de família
Neto, filho e irmão mais novo de comunistas, engajou-se naturalmente na Juventude do PCI e, aos 13 anos, já participava dos protestos estudantis que marcaram o 1968 europeu.
Depois, no cenário radicalizado do pós-1968, o ardor da idade, também naturalmente, o foi conduzindo cada vez mais para a esquerda: do PCI à Lotta Continua, desta à Autonomia Operária, até desembocar no Proletários Armados para o Comunismo, pequena organização regional com cerca de 60 integrantes.
Participou de assaltos para sustentar o movimento – as expropriações de capitalistas – e não nega. Mas, assustado com a escalada de violência desatinada – cujo ápice foi a execução do sequestrado premiê Aldo Moro pelas Brigadas Vermelhas – desligou-se em 1978, logo após o primeiro assassinato reivindicado por um núcleo dos PAC, do qual só tomou conhecimento a posteriori, recebendo-o com indignação.
Já era um mero foragido sem partido quando os PAC vitimaram outras três pessoas, no ano seguinte.
Detido, foi condenado em 1981 pelo que realmente fez (participação em grupo armado, assalto e receptação de armas), mas a uma pena rigorosa demais (12 anos), característica dos anos de chumbo na Itália, quando se admitia até a permanência de um suspeito em prisão preventiva por mais de dez anos.
Resgatado em outubro de 1981, por uma operação comandada pelo líder dos PAC, Pietro Mutti, abandonou a Itália, a luta armada e a própria participação política, ocultando-se na França, depois no México, onde iniciou sua carreira literária.
Aceitando a oferta do presidente François Mitterrand – abrigo permanente para os perseguidos políticos italianos que se comprometessem a não desenvolver atividades revolucionárias em solo francês –, levava existência pacata e laboriosa há 14 anos, quando, em 2004, a Itália o escolheu como alvo.
Tinha sido figura obscura e irrelevante nos anos de chumbo, quando cerca de 600 grupos e grupúsculos de ultraesquerda se constituíram na Itália. O fenômeno ganhou maiores proporções porque muitos militantes sinceros de esquerda foram levados ao desespero pela traição histórica do PCI, que tornou a revolução inviável num horizonte visível ao mancomunar-se com a reacionária, corrupta e mafiosa Democracia Cristã.
Destes 600, um terço esteve envolvido em ações armadas.
Por quê eu?
Nem os PAC tinham posição de destaque na ultraesquerda, nem Battisti era personagem destacado dos PAC. Foi apenas a válvula de escape de que o delator premiado Pietro Mutti e outros arrependidos, em depoimentos escandalosamente orquestrados, serviram-se para obter reduções de pena: estava a salvo no exterior, então poderiam descarregar sobre ele, sem dano, as próprias culpas.
Num tribunal que só faltou ser presidido por Tomás de Torquemada, Battisti acabou sendo novamente julgado na Itália e condenado à prisão perpétua em 1987.
A sentença se lastreou unicamente no depoimento desses prisioneiros que aspiravam a obter favores da Justiça italiana – cujas grotescas mentiras se evidenciaram, p. ex., na atribuição da autoria direta de dois homicídios quase simultâneos a Battisti, tendo a acusação de ser reescrita quando se percebeu a impossibilidade material de ele estar de corpo presente em ambas as cidades.
Depois, provou-se de forma cabal que Battisti não só fora representado por advogados hostis (pois defendiam os arrependidos cujos interesses conflitavam com os dele), como também falsários (pois forjaram as procurações que os davam como seus patronos).
Battisti escapara das garras da Justiça italiana, então valia tudo contra ele. Mas, ainda, como vilão menor.
Passou a ser encarado como um vilão maior quando alcançou o sucesso literário. Tinha muito a revelar sobre o macartismo à italiana dos anos de chumbo, tantas vezes denunciado pela Anistia Internacional e outros defensores dos direitos humanos.
Foi aí, em 2004, que a Itália direcionou suas baterias contra Battisti, investindo pesado em persuasões e pressões para que a França esquecesse a palavra empenhada por um presidente de verdade, François Mitterrand.
Ao mesmo tempo que concedia a extradição antes negada, a França, por meio do seu serviço secreto, facilitou a evasão de Battisti. A habitual duplicidade francesa.
Vítima de dois sequestros no Brasil
E o pesadelo se transferiu para o Brasil, onde o escritor teve a infelicidade de encontrar, no STF, dois inquisidores dispostos a tudo para entregarem o troféu a Silvio Berlusconi.
Preso em março de 2007, seu caso deveria ter sido encerrado em janeiro de 2009, quando o então ministro da Justiça Tarso Genro lhe concedeu refúgio.
Mas, ao contrário do que estabelecia a Lei do Refúgio, bem como a jurisprudência consolidada em episódios anteriores, o relator Cezar Peluso manteve Battisti sequestrado, na esperança de convencer o STF a revogar (na prática) a Lei e jogar no lixo a jurisprudência.
Apostando numa hipótese coerente com suas convicções pessoais (conservadoras, medievalistas e reacionárias), Peluso manteve encarcerado quem deveria libertar.
Ele e o então presidente Gilmar Mendes atraíram mais três ministros para sua aventura que, em última análise, visava erigir o Supremo em alternativa ao Poder Executivo, esvaziando-o ao assumir suas prerrogativas inerentes. A criminalização dos movimentos sociais também fazia, obviamente, parte do pacote.
Foram juridicamente aberrantes as duas primeiras votações, em que o STF, por 5x4, derrubou uma decisão legítima do ministro da Justiça e autorizou a extradição de um condenado por delitos políticos, ao arrepio das leis e tradições brasileiras.
Como na nossa ditadura militar, delitos políticos foram falciosamente metamorfoseados em crimes comuns – a despeito da sentença italiana, dezenas de vezes, imputar a Battisti a subversão contra o Estado italiano e enquadrá-lo numa lei instituída exatamente para combater tal subversão!
A blitzkrieg direitista foi detida na terceira votação, quando Peluso e Mendes tentavam automatizar a extradição, cassando também uma prerrogativa do presidente da República, condutor das relações internacionais do Brasil.
Contra este acinte à Constituição insurgiu-se um ministro legalista, Carlos Ayres Britto. Também por 5x4, ficou definido que a decisão final continuava sendo do presidente da República, como sempre foi.
Sabendo que Luiz Inácio Lula da Silva não cederia às afrontosas pressões italianas, o premiê Silvio Berlusconi já se conformava com a derrota em fevereiro de 2010, pedindo apenas que a pílula fosse dourada para não o deixar muito mal com o eleitorado do seu país.
Mesmo assim, quando Lula encerrou de vez o caso, Peluso apostou numa nova tentativa de virada de mesa. Ao invés de libertar Battisti no próprio dia 31 de dezembro de 2010, que era o que lhe restava fazer segundo o ministro Marco Aurélio de Mello e o grande jurista Dalmo de Abreu Dallari, manteve-o, ainda, sequestrado.
E o sequestro, desta vez, saltou aos olhos e clamou aos céus. Só não viu quem não quis.
O próprio STF acabou decidindo, por dois terços dos votos (só Ellen Gracie embarcou na canoa furada de Peluso e Mendes), que não havia mais motivo nenhum para o processo prosseguir nem para Battisti ser mantido preso.
Agora, com sua situação de imigrante legal regularizada, Battisti finalmente encontrará a paz que veio buscar entre nós, acreditando que fôssemos todos brasileiros cordiais. Para sorte dele e em benefício da imagem do país junto a quem não usa antolhos, alguns ainda somos...
Fonte: Blog Náufragos da Utopia
Em 2004, contudo, a Itália o escolheu como alvo de uma cruzada vingativa, aproveitando a histeria que grassava nos países do Primeiro Mundo desde o atentado ao WTC, insuflada ad nauseam pela indústria cultural.
Para os estadunidenses, foi uma chance de, sob falsos pretextos, invadirem países soberanos e submetê-los à sua vontade. Os italianos, mais modestos, contentaram-se em desencadear uma perseguição tão espetaculosa quanto inútil, impingindo a lorota de que um personagem secundário dos anos de chumbo seria terrível terrorista – tal qual, séculos atrás, queimavam mulheres fogosas como bruxas e judeus como infiéis.
Depois da bilionária campanha para fazer com que a França desonrasse o compromisso solene que assumira com os perseguidos políticos italianos, os linchadores peninsulares se transferiram com armas e bagagens para o Brasil, onde, ao lado dos quinta-colunas tupiniquins que lhes serviram de escudeiros, acabam de sofrer uma acachapante derrota.
A qual, vale repetir, é definitiva: as escaramuças legais anunciadas pela Itália não têm a mais ínfima possibilidade de alterarem o resultado do jogo após o apito final do árbitro. Servem apenas para alimentar, entre os direitistas e os videotas de lá, uma ilusão que talvez ajude a salvar o premiê Silvio Berlusconi da degola. Espero que não.
Tradição de família
Neto, filho e irmão mais novo de comunistas, engajou-se naturalmente na Juventude do PCI e, aos 13 anos, já participava dos protestos estudantis que marcaram o 1968 europeu.
Depois, no cenário radicalizado do pós-1968, o ardor da idade, também naturalmente, o foi conduzindo cada vez mais para a esquerda: do PCI à Lotta Continua, desta à Autonomia Operária, até desembocar no Proletários Armados para o Comunismo, pequena organização regional com cerca de 60 integrantes.
Participou de assaltos para sustentar o movimento – as expropriações de capitalistas – e não nega. Mas, assustado com a escalada de violência desatinada – cujo ápice foi a execução do sequestrado premiê Aldo Moro pelas Brigadas Vermelhas – desligou-se em 1978, logo após o primeiro assassinato reivindicado por um núcleo dos PAC, do qual só tomou conhecimento a posteriori, recebendo-o com indignação.
Já era um mero foragido sem partido quando os PAC vitimaram outras três pessoas, no ano seguinte.
Detido, foi condenado em 1981 pelo que realmente fez (participação em grupo armado, assalto e receptação de armas), mas a uma pena rigorosa demais (12 anos), característica dos anos de chumbo na Itália, quando se admitia até a permanência de um suspeito em prisão preventiva por mais de dez anos.
Resgatado em outubro de 1981, por uma operação comandada pelo líder dos PAC, Pietro Mutti, abandonou a Itália, a luta armada e a própria participação política, ocultando-se na França, depois no México, onde iniciou sua carreira literária.
Aceitando a oferta do presidente François Mitterrand – abrigo permanente para os perseguidos políticos italianos que se comprometessem a não desenvolver atividades revolucionárias em solo francês –, levava existência pacata e laboriosa há 14 anos, quando, em 2004, a Itália o escolheu como alvo.
Tinha sido figura obscura e irrelevante nos anos de chumbo, quando cerca de 600 grupos e grupúsculos de ultraesquerda se constituíram na Itália. O fenômeno ganhou maiores proporções porque muitos militantes sinceros de esquerda foram levados ao desespero pela traição histórica do PCI, que tornou a revolução inviável num horizonte visível ao mancomunar-se com a reacionária, corrupta e mafiosa Democracia Cristã.
Destes 600, um terço esteve envolvido em ações armadas.
Por quê eu?
Nem os PAC tinham posição de destaque na ultraesquerda, nem Battisti era personagem destacado dos PAC. Foi apenas a válvula de escape de que o delator premiado Pietro Mutti e outros arrependidos, em depoimentos escandalosamente orquestrados, serviram-se para obter reduções de pena: estava a salvo no exterior, então poderiam descarregar sobre ele, sem dano, as próprias culpas.
Num tribunal que só faltou ser presidido por Tomás de Torquemada, Battisti acabou sendo novamente julgado na Itália e condenado à prisão perpétua em 1987.
A sentença se lastreou unicamente no depoimento desses prisioneiros que aspiravam a obter favores da Justiça italiana – cujas grotescas mentiras se evidenciaram, p. ex., na atribuição da autoria direta de dois homicídios quase simultâneos a Battisti, tendo a acusação de ser reescrita quando se percebeu a impossibilidade material de ele estar de corpo presente em ambas as cidades.
Depois, provou-se de forma cabal que Battisti não só fora representado por advogados hostis (pois defendiam os arrependidos cujos interesses conflitavam com os dele), como também falsários (pois forjaram as procurações que os davam como seus patronos).
Battisti escapara das garras da Justiça italiana, então valia tudo contra ele. Mas, ainda, como vilão menor.
Passou a ser encarado como um vilão maior quando alcançou o sucesso literário. Tinha muito a revelar sobre o macartismo à italiana dos anos de chumbo, tantas vezes denunciado pela Anistia Internacional e outros defensores dos direitos humanos.
Foi aí, em 2004, que a Itália direcionou suas baterias contra Battisti, investindo pesado em persuasões e pressões para que a França esquecesse a palavra empenhada por um presidente de verdade, François Mitterrand.
Ao mesmo tempo que concedia a extradição antes negada, a França, por meio do seu serviço secreto, facilitou a evasão de Battisti. A habitual duplicidade francesa.
Vítima de dois sequestros no Brasil
E o pesadelo se transferiu para o Brasil, onde o escritor teve a infelicidade de encontrar, no STF, dois inquisidores dispostos a tudo para entregarem o troféu a Silvio Berlusconi.
Preso em março de 2007, seu caso deveria ter sido encerrado em janeiro de 2009, quando o então ministro da Justiça Tarso Genro lhe concedeu refúgio.
Mas, ao contrário do que estabelecia a Lei do Refúgio, bem como a jurisprudência consolidada em episódios anteriores, o relator Cezar Peluso manteve Battisti sequestrado, na esperança de convencer o STF a revogar (na prática) a Lei e jogar no lixo a jurisprudência.
Apostando numa hipótese coerente com suas convicções pessoais (conservadoras, medievalistas e reacionárias), Peluso manteve encarcerado quem deveria libertar.
Ele e o então presidente Gilmar Mendes atraíram mais três ministros para sua aventura que, em última análise, visava erigir o Supremo em alternativa ao Poder Executivo, esvaziando-o ao assumir suas prerrogativas inerentes. A criminalização dos movimentos sociais também fazia, obviamente, parte do pacote.
Foram juridicamente aberrantes as duas primeiras votações, em que o STF, por 5x4, derrubou uma decisão legítima do ministro da Justiça e autorizou a extradição de um condenado por delitos políticos, ao arrepio das leis e tradições brasileiras.
Como na nossa ditadura militar, delitos políticos foram falciosamente metamorfoseados em crimes comuns – a despeito da sentença italiana, dezenas de vezes, imputar a Battisti a subversão contra o Estado italiano e enquadrá-lo numa lei instituída exatamente para combater tal subversão!
A blitzkrieg direitista foi detida na terceira votação, quando Peluso e Mendes tentavam automatizar a extradição, cassando também uma prerrogativa do presidente da República, condutor das relações internacionais do Brasil.
Contra este acinte à Constituição insurgiu-se um ministro legalista, Carlos Ayres Britto. Também por 5x4, ficou definido que a decisão final continuava sendo do presidente da República, como sempre foi.
Sabendo que Luiz Inácio Lula da Silva não cederia às afrontosas pressões italianas, o premiê Silvio Berlusconi já se conformava com a derrota em fevereiro de 2010, pedindo apenas que a pílula fosse dourada para não o deixar muito mal com o eleitorado do seu país.
Mesmo assim, quando Lula encerrou de vez o caso, Peluso apostou numa nova tentativa de virada de mesa. Ao invés de libertar Battisti no próprio dia 31 de dezembro de 2010, que era o que lhe restava fazer segundo o ministro Marco Aurélio de Mello e o grande jurista Dalmo de Abreu Dallari, manteve-o, ainda, sequestrado.
E o sequestro, desta vez, saltou aos olhos e clamou aos céus. Só não viu quem não quis.
O próprio STF acabou decidindo, por dois terços dos votos (só Ellen Gracie embarcou na canoa furada de Peluso e Mendes), que não havia mais motivo nenhum para o processo prosseguir nem para Battisti ser mantido preso.
Agora, com sua situação de imigrante legal regularizada, Battisti finalmente encontrará a paz que veio buscar entre nós, acreditando que fôssemos todos brasileiros cordiais. Para sorte dele e em benefício da imagem do país junto a quem não usa antolhos, alguns ainda somos...
Fonte: Blog Náufragos da Utopia