domingo, 29 de abril de 2012

Incompreensível para as massas - Maiskóvski

Do blog CINEFUSÃO

Entre escritor                            
                        e leitor
                                        posta-se o intermediário,
e o gosto
                            do intermediário
                                                         é bastante intermédio.

Medíocre
                  mesnada
                                    de medianeiros médios
pulula
         na crítica
                        e nos hebdomadários.

Aonde
            galopando
                               chega teu pensamento,
um deles
                  considera tudo
                                            sonolento:
- Sou homem
                        de outra têmpera! Perdão,
lembra-me agora
                             um verso
                                              de Nadson...
O operário
                   não tolera
                                    linhas breves.
(E com tal
               mediador
                               ainda se entende Assiéiev!)

Sinais de pontuação?
                                   São marcas de nascença!
O senhor
                corta os versos
                                         toma muitas licenças.

Továrich Maiacóvski,
                                            porque não escreve iambos?
Vinte copeques
                          por linha
                                         eu lhe garanto, a mais.
E narra
              não sei quantas
                                        lendas medievais,
e fala quatro horas
                                longas como anos.
O mestre lamentável
                                  repete
                                             um só refrão:
- Camponês
                     e operário
                                       não vos compreenderão.
O peso da consciência
                                     pulveriza
                                                     o autor.
Mas voltemos agora
                                  ao conspícuo censor:
Campones só viu
                            há tempo
antes da guerra,
na datcha,
                  ao comprar
                                     mocotós de vitela.

Operários?
                  Viu menos.
Deu com dois
                       uma vez
                                    por ocasião da cheia,
dois pontos
                   numa ponte
                                      contemplando o terreno,
vendo a água subir
                              e a fusão das geleiras.

Em muitos milhões
                               para servir de lastro
colheu dois exemplares
                               o nosso criticastro.
Isto não lhe faz mossa -
                                      é tudo a mesma massa...
Gente - de carne e osso!!

E à hora do chá
                         expende
                                       sua sentença:
- A classe
               operária?
                             Conheço-a como a palma!
Por trás
            do seu silêncio,
                                     posso ler-lhe na alma -
Nem dor
               nem decadência.
Que autores
                     então
                               há de ler essa classe?
Só Gógol,
                 só os clássicos.
Camponeses?
                        Também.
                                         O quadro não se altera.
Lembra-me e agora -
                                    a datcha, a primavera...
Este palrar
                 de literatos
                                    muitas vezes passa
entre nós
                por convívio com a massa.

E impige
               modelos
                              pré-revolucionários
da arte do pincel,
                             do cinzel,
                                              do vocábulo.

E para a massa
                         flutuam
                                      dádivas de letrados -
lírios,
            delírios,
                          trinos dulcificados.

Aos pávidos
                    poetas
                              aqui vai meu aparte:
Chega
          de chuchotar
                               versos para os pobres.
A classe condutora,
                                 também ela pode
compreender a arte.
Logo:
           que se eleve
                                a cultura do povo!
Uma só,
              para todos.
O livro bom
                      é claro
                                   e necessário

a mim,  
              a vocês
                           ao camponês
                                                 e ao operário.

Musica das buenas

Jamelão – Aqui Mora O Ritmo (1962)

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Créditos: UmQueTenha














Elenco do Teatro da PUC de São Paulo – Morte e Vida Severina (1966)

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Beth Carvalho – Coração Feliz (1984)

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Revolução de Abril (II)
Processo Revolucionário e Contra-Revolucionário

Ana Saldanha
Quando passam 38 anos sobre o 25 de Abril de 1974, iniciamos a publicação de três artigos sobre esse momento fundamental da nossa história. Que continua bem presente, por muito que isso doa aos que continuam a sonhar com o que chamam “regime anterior”.

Carregue aqui para ver o artigo (PDF)

sábado, 28 de abril de 2012

Moçambique em versos



Escritores africanos de expressão portuguesa
Os escritores moçambicanos Craveirinha e Knopfli; entre eles, o angolano Pepetela

Editora da UFMG lança coleção com os principais poetas de Moçambique; os três primeiros volumes trazem José Craveirinha, Rui Knopfli e Luís Carlos Patraquim

Por Henrique Marques-Samyn ((*)
via PORTAL VERMELHO


Os três autores são alguns dos nomes mais representativos da poesia moçambicana de expressão portuguesa, que conta ainda com nomes como Rui de Noronha (1909-1943), considerado precursor; Noémia de Sousa (1926-2003) e Eduardo White (1963), entre outros. Dirigida por Ana Mafalda Leite, a coleção Poetas de Moçambique pretende apresentar ao público brasileiro a moderna poesia moçambicana

Em tempos de guerra, a poesia, mais que possível, é necessária. Que tematize o próprio conflito não é algo essencial; fundamental é que trate do assunto fulcral da literatura de todos os tempos: a experiência humana, assim resgatando os sentidos solapados pela força das armas.

A Catulo não interessava a guerra civil, mas aquela que cinde o homem enamorado; embora na obra de Dante haja referências aos conflitos que dividiam Florença, associá-la unicamente a isso encerraria um imperdoável reducionismo; e, se Camões figurou a si mesmo portando a espada em uma das mãos e, na outra, a pena, o que esta registrava podiam ser tanto feitos bélicos (como em tantas passagens d’Os Lusíadas, porventura espelhados em suas próprias vivências) quanto o lirismo amoroso dos sonetos.

Em 25 de setembro de 1964, tinha início (nos registros oficiais, ao menos) a Guerra da Independência de Moçambique — mesmo ano em que José Craveirinha publicava Xigubo, seu primeiro poemário; não obstante, já na década de 1950 a resistência se havia organizado em grupos orientados por ideais nacionalistas — decênio em cujo ano derradeiro estreava literariamente Rui Knopfli, com O país dos outros. Se muito insinuam já os títulos das obras (Xigubo é uma dança tradicional que veio a representar a resistência colonial moçambicana), os poemas que delas constam não frustram essas expectativas.

Knopfli e Craveirinha nasceram literariamente como cronistas poéticos de uma nação apenas sonhada, cuja construção suas trajetórias líricas acompanharam, indagando insistentemente sobre sua identidade. Dessa tarefa participaria também Luís Carlos Patraquim, cujo poemário de estréia, Monção (1980), renovaria esteticamente a literatura moçambicana sem recusar a dimensão política da palavra poética.

A esses três autores são dedicados os primeiros volumes da coleção Poetas de Moçambique, série publicada pela editora UFMG e dirigida por Ana Mafalda Leite, professora na Universidade de Lisboa que viveu a infância e parte da juventude em Moçambique, chegando a iniciar estudos universitários em Maputo. Ana Mafalda conhece de perto as literaturas africanas: lecionou em diversos países do continente (Cabo Verde e Senegal, entre outros, inclusive Moçambique); é autora de estudos fundamentais sobre o assunto — A poética de José Craveirinha (1990), Modalização épica nas literaturas africanas (1996) e Oralidades & escritas nas literaturas africanas (1998) são alguns dos títulos que constam de sua produção bibliográfica, recentemente complementada com Literaturas africanas e formulações pós-coloniais (2003).

Valioso adendo para essa trajetória é o fato de Ana Mafalda ser também escritora, autora de uma obra poética que não se esquiva à tarefa de reelaborar as vivências moçambicanas; trata-se, portanto, de alguém que conhece a literatura em suas múltiplas dimensões como poucos apta a eleger os nomes certos para colaborar nessa empreitada editorial. Com efeito, os responsáveis pelos volumes que abrem a coleção elaboraram obras de valor impecável.

José Craveirinha

À própria Ana Mafalda Leite coube a organização do volume dedicado a José Craveirinha. Nascido em 1922, falecido em 2003, Craveirinha publicou cinco livros em vida; sua obra é constituída também por volumes póstumos, poemas dispersos e por um numeroso espólio que permanece inédito. O já mencionado Xigubo (1964), obra com a qual estreou o poeta e que abre a compilação, é adequadamente qualificado como uma “rapsódia anticolonialista” por Emílio Maciel, autor da biobibliografia inclusa no volume.

“Xibugo estremece terra do mato
e negros fundem-se ao sopro da xipalapala
e negrinhos de peitos nus na sua cadência levantam os braços para o lume da irmã Lua

e dançam as danças do tempo da guerra
das velhas tribos na margem do rio”,

 
escreve o poeta, na lírica imagem sintetizando o ímpeto que percorre toda a obra: a síntese de uma pluralidade de vozes e identidades que se reconhecem como pertencentes a uma nação por haver.


“Vim de qualquer parte

de uma nação que ainda não existe”,

afirmam os primeiros versos de Poema do futuro cidadão. Poesia panfletária, diriam alguns; a poesia possível, diriam outros, estes mais cientes da missão a que se dedicava, na hora de urgência, um poeta que, nas últimas obras, construiria textos de impecável lirismo.

As modulações da obra de Craveirinha talvez possam ser qualificadas como as múltiplas vozes de um homem que jamais se fechou ao mundo. O discurso dilatado de Xigubo representa a primeira irrupção de uma fala há muito silenciada — e que não expressa a vontade de um, mas a de muitos homens, ainda soantes em Karingana ua Karingana (1974). Depois do grito, o silêncio: a contenção lírica do poeta que cantou o futuro, mas que percebe um presente feito de perdas. A maior delas: Maria, a esposa falecida em 1979, cujo nome intitula o pungente livro em que lemos um poema como Memória dos dois

“Ambos

juntos na mesma memória.

Eu

o Zé que não te esquece.

Tu

a Maria sempre lembrada”.


 
O tom afirmativo dos primeiros livros cede espaço a uma poética de indagações, enquanto variações da escrita de um poeta que permanece fiel a si mesmo.

 
“Cada homem é sofisma

Bem engendrado”,


 
afirma um dos Poemas eróticos (2004), derradeiras páginas de uma obra que jamais recusou cantar o homem em sua grandeza e em sua miséria, em seu amor e em seus vícios — e que, por isso mesmo, acolhe em si as contradições da condição humana.


Rui Knopfli

Rui Knopfli, dez anos mais jovem que Craveirinha, morreu mais cedo, em 1997. Deixou oito livros, todos representados na coletânea organizada por Eugénio Lisboa, que nela incluiu um posfácio assinado por Roberto Said.

Juízos apressados não tardaram a ver em Knopfli uma espécie de antípoda de Craveirinha. Filho da burguesia, descendente de suíços e portugueses, estreava com um livro em cujo título — O país dos outros (1959) — não seria difícil sentir uma provocação, agudizada pelos poemas que o compunham: onde os cânticos de guerra, os discursos inflamados, a convocação aos heróis? Em vez disso, Knopfli apresentava uma poesia de tom reflexivo, composta com impecável rigor formal, que dialogava explicitamente com a tradição literária ocidental. Injustas, no entanto, as acusações de que o poeta voltava as costas para Moçambique; a par dos diálogos com Fernando Pessoa e Manuel Bandeira, Rui Knopfli publicava poemas de teor francamente político. Leia-se A melhor das distracções, que encena a fala de um grão-senhor

“marajá, bey, khan,

um nababo qualquer desses com poderes

de Vida e Morte”


 
que, sem pudor, afirma:


“Afastei enfadado

as inomináveis iguarias que me foram servidas

e nem sequer me dignei

olhar as dezasseis virgens sortidas,

fruto do último saque.

Onde me diverti a valer,

foi com as línguas que mandei cortar”.

 

Leia-se Casamento de conveniência, em que assoma a crítica
aos costumes:

“Meus pais não querem que ame

a quem amo.

Pretendem que me case contigo,

Juventina.

[...]

Dão-me um automóvel e uma casa

pra que case contigo,

Juventina.

Tens um nome que te quadra à figura,

rapariga,

e trazes intacto o selo necessário.

[...]

Aceitarás com submissão

que te mande à merda de quando em vez

e não farás muitas ondas.

Sei que não pedes mais,

É pegar ou largar,

Juventina!”.

 

Visitando a tradição literária, porque sempre falou de si, Rui Knopfli sempre falou de Moçambique, embora nele tantas vezes a nação não se reconhecesse. Ressalte-se que, da obra de estréia ao derradeiro O monhé das cobras (1997), seus livros mantêm uma elevadíssima qualidade estética; não há altos e baixos, mas irrupções que se podem igualar às grandes obras da poesia de todos os tempos — como o magistral O deserto, de Mangas verdes com sal (1969), poema que sintetiza, com singular força lírica, os perenes questionamentos existenciais humanos.

Luís Carlos Patraquim

A obra fundacional de Craveirinha e Knopfli tem prosseguimento com a poética renovadora de Luís Carlos Patraquim (nascido em 1953), cuja obra foi antologiada para a coleção por Carmen Lucia Tindó Secco. Como Craveirinha, Patraquim se debruça sobre a terra e as tradições moçambicanas; como Knopfli, engendra um diálogo franco com múltiplas vozes da literatura ocidental. Não obstante, sua obra não se reduz à assimilação dos que o precederam: Patraquim não se esquiva à tarefa primordial do poeta, que é desvelar para o lirismo novas sendas. No posfácio ao volume, observa Cíntia Machado de Campos Almeida tratar-se de uma poesia construída em torno de uma tríade temática: “a memória, o erotismo e a reflexão metapoética”; percebe-se, assim, como a trajetória inaugurada por Monção (1980) já dispensa o dever de poetizar a terra, em vez disso assumindo como pressuposto uma força lírica que é reelaborada pela subjetividade poética para a construção de uma dicção nova.

Notável em sua escrita é, particularmente, a relação com o espaço, ora enquanto referencial geográfico que expande os limites do exercício poético — ressalte-se, a esse respeito, o sentido fundacional de Noções de geografia, espécie de escorço cartográfico do lirismo:

“a sul

implanto uma cartografia sem limites

traço e compasso

depois da madrugada

de ti

um rosto iridescente

alastra o voo claro

das mãos

ao sul

descobrimos

vozes abertas

sem oclusão

e mastigamos água”

 

ora enquanto âmbito imagético que enseja a eclosão mesma da poesia; vejam-se as Quatro meditações na margem ao longo do Zambeze, do recente Pneuma (2009), em cuja segunda parte lemos:

“Senhora, eu não vi os três jacarés

imóveis na margem,

A luz, espelho da carne branca

E a boca metafísica,

Sua canoa vogando o desenho do som

E a elipse das asas;

Vi o rio que rilhava e seus dentes,

O canavial do Tempo,

nodoso e debruçado sobre o impulso líquido

Como o primeiro timbre evolando a cor,

O Sangue do início e a bolsa rompida

Para a convulsão do mundo”.


 
Não se limitando a falar sobre Moçambique, Patraquim cede a voz à terra: “concebe as paisagens como exímias contadoras de (suas próprias) histórias”, observa Cíntia Almeida. E, esse modo, contribui para a construção de uma tradição poética que, conquanto jovem, já se revela inegavelmente pujante.

(*) Henrique Marques-Samyn é escritor e pesquisador da UERJ

Os livros

José Craveirinha, Antologia poética. Org.: Ana Mafalda Leite, Editora UFMG

Rui Knopfli, Antologia poética. Org.: Eugénio Lisboa, Editora UFMG

Luís Carlos Patraquim, Antologia poética, Org.: Carmen Lucia Tindó Secco, Editora UFMG


Fonte: Rascunho, o jornal de literatura do Brasil, fevereiro de 2012

Primavera Árabe: ameaça aos direitos da mulher?

120428 mulher arabeRNW - “A Primavera Árabe é uma grande chance para os direitos das mulheres. Mas também existe o risco real de que conquistas do passado sejam revertidas.” Em que direção irá, segundo Liesl Gernholtz, diretora de direitos da mulher da Human Rights Watch, é imprevisível.


Ainda é muito cedo para fazer comentários fundamentados, acredita Gerntholz, que é advogada especialista em direitos da mulher, mas há vários indícios. “Existe a chance de que as mulheres não possam colher os frutos da democracia que substituirá os regimes derrubados.”
O motivo para isso é que os partidos islâmicos conservadores tiveram vitória substancial nas eleições no Egito e na Tunísia. “Eles defendem tradições que nem sempre apoiam os direitos da mulher. Há preocupação e mesmo medo de que estas forças conservadoras queiram voltar atrás nos limitados progressos que as mulheres conseguiram fazer nesses países.”

Clima desfavorável
 
Um outro ponto é que nem todos os países têm um forte movimento feminino. “Na Líbia os movimentos sociais foram proibidos por 42 anos. Agora têm que ser construídos do zero. Não há nenhuma experiência na luta pelos direitos da mulher. As mulheres ainda não têm habilidades para estabelecer organizações, tomar parte no debate público ou para serem eleitas para o parlamento. É difícil encontrar confiança e coragem para enfrentar essa aventura. Tradicionalmente, elas sempre foram mantidas fora do debate social e da política.”
Gerntholz constata que em muitos países falta um clima favorável para as mulheres, que têm grande dificuldade em exercer seus direitos.
“No dia 8 de março mulheres egípcias fizeram uma marcha na praça Tahrir, no Cairo, para celebrar o Dia Internacional da Mulher. Elas foram atacadas, insultadas e intimidadas. Lhes disseram que não tinham nada que procurar na rua e que deveriam ficar em casa. A revolução tinha acabado. E isso foi só um mês depois dos protestos populares, nos quais se pedia mais liberdade, e não muito depois da queda de Mubarak. Mas quando as mulheres pedem a mesma liberdade, são mandadas para casa.”

Emancipação feminina
 
Apesar disso, Gerntholz também vê sinais que dão esperança. As mulheres estão tentando mudar a maré. Egito e Tunísia têm movimentos fortes de emancipação feminina. “É possível que elas se fortaleçam com a transição para a democracia. Na Tunísia, pelo menos, já foi estabelecido um sistema de quotas. Metade das cadeiras no parlamento são ocupadas por mulheres. Elas também estão participando da elaboração da nova constituição.”
Mas Gerntholz está principalmente impressionada com as mulheres na Líbia. Um mês depois da queda de Kadhafi elas já haviam organizado uma conferência sobre direitos da mulher, da qual Gerntholz participou. “Elas discutiram sobre o que querem conquistar, quais são suas expectativas e principais desafios. Portanto, as mulheres com certeza vão lutar por seus direitos e estão se organizando. Embora não seja fácil, porque elas não têm acesso fácil ao poder e aos tomadores de decisão.”

Sharia
 
É certo, constatou Gerntholz durante sua visita à Líbia, que muitas mulheres lá optam por direitos compatíveis com a sharia, a legislação islâmica. “Elas acreditam que a sharia deve ser a base para a constituição. São em primeiro lugar muçulmanas. Sua religião deve ser determinante para a maneira como vivem. Este é um sentimento generalizado de um grupo de mulheres que certamente não é homogêneo. São mulheres de diferentes camadas da população, com pouca ou muita escolaridade, e de todas as idades.”
As mulheres líbias acham que a sharia não vai contra os direitos da mulher. Se as leis islâmicas forem interpretadas da maneira correta, elas apoiam estes direitos. “Segundo elas, a sharia não trata do apedrejamento de mulheres e de poligamia. Nem sobre o casamento de crianças. Para elas, estas não são leis islâmicas, mas atos ligados à tradição e à cultura.”

Direitos humanos
 
De acordo com Gerntholz, não há nada errado com este feminismo islâmico. Ele apenas é interpretado de um ângulo religioso, assim como também acontece com feministas católicas. “Se você é capaz de aplicar coisas como religião, cultura e tradição de uma maneira positiva e não discriminatória, acho que não é mau. Mas se isso for usado para excluir pessoas e reprimir, aí é realmente ruim.”
A introdução da sharia não traz necessariamente problemas, acredita Gerntholz. Desde que atenda aos princípios dos direitos humanos universais, nos quais as mulheres são iguais aos homens. Para isso é preciso assegurar que países como a Líbia, que assinaram estes direitos, também cumpram estes princípios.
Mas só o tempo dirá que influência a eventual introdução da sharia terá sobre os direitos das mulheres.

A nova Guerra Fria, agora na internet


Por Carlos Castilho no OBSERVATÓRIO DA IMPRENSA

Os Estados Unidos ganharam a Guerra Fria nuclear sem disparar um tiro, mas podem estar perdendo a versão cibernética do conflito pela supremacia mundial. E acredite quem quiser: a nova superpotência virtual  é a China, apontada pelos especialistas ocidentais em segurança cibernética como a maior incógnita contemporânea no que se refere a políticas de uso da internet.
Os norte-americanos não admitem publicamente, mas o jornal inglês The Guardian afirmou na série "Batalha pela Internet" que o número de chineses especialistas em crackear [1] computadores e redes virtuais é maior do que o dos engenheiros norte-americanos dedicados ao desenvolvimento de novos programas e equipamentos para computação. Os crackers chineses são conhecidos também como cyber jedis (guerreiros cibernéticos), numa analogia com os guerreiros do bem na série Guerra nas Estrelas.
No fundamental, a nova versão da Guerra  Fria é essencialmente uma guerra por informações onde as armas convencionais passaram a um segundo plano, para desespero de toda a multimilionária indústria bélica mundial. Os jedis chineses, em sua esmagadora maioria protegidos pelo governo de Beijing, vasculham o sistema financeiro ocidental, as redes de comunicações privadas e governamentais, descobrem vulnerabilidades em bancos de dados, em complexos de energia e transporte, bem como, é óbvio, nos serviços de inteligência militar.
A grande diferença em relação à Guerra Fria nuclear é que agora a busca por informações não está voltada para o botão vermelho da retaliação atômica, mas a um complexo e ainda pouco estudado sistema de tomada de decisões no qual os indivíduos estão sendo substituídos por processos  impessoais, como as bolsas de valores.  A balança do poder mundial não depende mais exclusivamente de decisões tomadas na Casa Branca ou no Palácio do Povo, em Beijing.
A descoberta do poder chinês na internet assustou os governos ocidentais, em especial os Estados Unidos e a Inglaterra, onde os seguidores da velha Guerra Fria ainda são muito influentes. Se até a queda do Muro de Berlim (1989) , os espiões e cientistas nucleares eram os grandes alvos dos estrategistas soviéticos e norte-americanos, agora todas as atenções se voltam para jovens entre 17 e 30 anos, a faixa etária dos modernos guerreiros cibernéticos, um ramo dos nerds (jovens fanáticos por computação).
Em 2011 foi criado na Inglaterra um projeto chamado Cyber Security Challange (Concurso sobre Segurança Cibernética)  destinado a atrair nerds  para o campo da Guerra  Fria cibernética.  Logo na primeira edição, no ano passado, quatro mil jovens de ambos os sexos se inscreveram para a competição, que não chegou a ser divulgada na imprensa. No ano passado, o vencedor foi Jonathan Millican, estudante do primeiro ano de engenharia eletrônica, com 19 anos incompletos.
O julgamento final da versão 2012 Cyber Security Challange deveria ter ocorrido em março, mas teve que ser adiado porque o site do concurso foi crackeado, segundo os britânicos, por cyber jedis chineses. Os prêmios previstos no concurso variam desde bolsas de estudo até inscrição grátis em eventos ligados à segurança cibernética. Não há prêmios em dinheiro, mas segundo o jornal The Guardian, o emprego em empresas do setor é imediato.
São garotos como Jonathan que passaram a ser observados de perto por estrategistas mililtares que acabam de receber plenos poderes do presidente Barack Obama e do governo inglês para desenvolver uma estratégia antichinesa na guerra pelo controle da internet. Segundo a Casa Branca, cerca de 60% das empresas norte-americanas que tiveram seus sites invadidos por crackers acabaram pedindo falência.  
Até agora a principal estratégia do Pentágono era criar muros virtuais (firewall) contra invasões de redes de computadores, mas os especialistas já se deram conta que a defesa passiva é inútil, porque a criatividade dos cyber jedis é quase infinita. Para cada muro criado surgem imediatamente dezenas de opções sobre como derrubá-lo. Por isso a tendência é investir nas ações ofensivas, atacando os centros onde se aglutinam os guerreiros virtuais.
O problema é que a dispersão é enorme nessa área, da mesma forma que o altíssimo índice de privatização das empresas ligadas ao gerenciamento de informações na web  complica a ação dos militares, cuja cultura operacional é tradicionalmente centralizadora e vertical. Nos Estados Unidos, de 80% a 90% dos bancos de dados estão em mãos privadas, o que torna extremamente relevante o papel da Google, a megacorporação no setor de informações e a terceira maior empresa privada do mundo no ramo das comunicações.  
A estratégia da Google na Guerra Fria cibernética é fundamental para a balança do poder entre os Estados Unidos e a China, mas também transcendental para nós, que usamos gratuitamente os mecanismos de busca, correio eletrônico, YouTube e dezenas de outros aplicativos desenvolvidos pela empresa para captar nossas preferências e dados pessoais.


[1]Neologismo criado para expressar o ato de identificar códigos, senhas e arquivos protegidos em computadores ou redes de computadores. Os crackers são o oposto dos hackers, que desenvolvem novos softwares.

Revolução dos Cravos: primavera após uma noite de 48 anos


Milton Ribeiro no SUL21

Durou décadas a ditadura em Portugal. A rigor, foram 48 anos entre os anos de 1926 e 1974. Só Antônio de Oliveira Salazar governou por 36 anos, entre 1932 e 1968, e a Constituição de 1933, que implantou o Estado Novo nos moldes do fascismo italiano com seu Partido Único, permaneceu até 1974, por 41 anos.
Capa do jornal república de 25 de abril de 1974 (Clique para ampliar)
Acabou em 25 de abril de 1974 numa revolução quase sem tiros. Morreram apenas quatro pessoas pela ação da DGS (ex-PIDE). A adesão aos militares que protagonizaram o golpe na ditadura foi tão grande que as cinco mortes mais pareceram um desatino final. O nome de “Revolução dos Cravos” foi devido a um ato simbólico tomado por uma simples florista. Ela iniciou uma distribuição de cravos vermelhos a populares e estes os ofereceram aos soldados, que os colocaram nos canos das espingardas.
Tudo fora bem planejado. A ação começou em 24 de abril de forma muito musical. Um grupo militar instalou secretamente um posto no quartel da Pontinha, em Lisboa. Às 22h55 foi transmitida por uma estação de rádio a canção E depois do adeus, de Paulo de Carvalho. Este era o sinal para todos tomarem seus postos. Aos 20 minutos do dia 25, outra emissora apresentou Grândola, Via Morena, de José Alfonso. Ao contrário da primeira canção, a qual era bastante popular, Grândola estava proibida, pois, segundo o governo, fazia clara alusão ao comunismo.
Passados 38 anos, todos reclamam em Portugal. Tendo no centro do cenário a atual crise econômica, a esquerda considera que o espírito da revolução se perdeu, assim como várias das conquistas dos primeiros anos, enquanto a direita chora as estatizações do período pós-revolucionário, afirmando que esta postura prejudicou o crescimento da economia. O ex-presidente Mário Soares afirma  que tudo o que ocorreu nos últimos 38 anos pode ser discutido e reavaliado, mas que a comparação entre o passado e o que há hoje é comparar “um passado de miséria, de guerra e de ditadura” com um país onde há “respeito pela dignidade do trabalho, pelos sindicatos e pela democracia pluralista”.
Deus, Pátria e Família (Clique para ampliar)
 
A ditadura iniciou em 1926 com o decreto que nomeou interinamente o general Carmona para a presidência da República. Após a dissolução do parlamento, os militares ocuparam todas as principais posições do governo. A ditadura teve o condão de unir todos os partidos que antes disputavam entre si. Eles enviaram uma declaração conjunta às embaixadas dos EUA, Inglaterra e França, informando que não reconheciam o governo. Em resposta, a repressão policial foi acentuada e todos os que assinaram a declaração foram presos em Cabo Verde, sem julgamento.
Todas as revoltas foram sufocadas enquanto os militares se viam às voltas com uma crise econômica. Havia duas correntes: uma representada pelo ministro das finanças, o general Sinel de Cordes, que desejava recorrer a um empréstimo externo e outra, de um professor de finanças da Universidade de Coimbra, Antônio de Oliveira Salazar, que pensava não ser necessário o empréstimo externo para resolver a difícil situação financeira do país. O empréstimo não foi feito em razão de que as condições exigidas eram inaceitáveis – quase as mesmas que a “troika” exigiu e levou atualmente. O resultado final do episódio foi o pedido de demissão de Sinel de Cordes e o convite a Salazar para a pasta das finanças.
O ditador solitário

Salazar impôs austeridade e rigoroso controle de contas. Obteve o equilíbrio das contas de Portugal em 1929. Na imprensa, controlada pela censura, Salazar era chamado de “o salvador da pátria”. O prestígio ganho junto ao setor monárquico e católico, além da propaganda, consolidavam pouco a pouco a posição de Salazar, abrindo espeço para sua ascensão. Ele se tornou o esteio dos militares, que o consultavam para tudo, principalmente para as reformas ministeriais. Enquanto a oposição era dizimada, Salazar recusava o retorno ao parlamentarismo e à democracia da Primeira República, criando a União Nacional em 1930, preparando a instalação de um regime de partido único.
Em 1932, foi discutida uma nova Constituição que seria aprovada no ano seguinte. Nela, é criado o Estado Novo, uma ditadura que dizia defender “Deus, a Pátria e a Autoridade”, principalmente a terceira, que depois foi alterada para Família. A ditadura portuguesa foi muitíssimo pessoal e revelava claramente o caráter de seu chefe. Salazar era uma estranha espécie de misantropo que governava um país ao mesmo tempo que amava a solidão e posava de inacessível. Suas palavras são surpreendentes, mesmo para um ditador. “Há várias maneiras de governar e, a minha, exige isolamento… O isolamento muito me ajudou a desempenhar minha tarefa e permitiu-me, no passado como hoje, concentrar-me, ser senhor do meu tempo e dos meus sentimentos, evitar que fosse influenciado ou atingido”. Muito católico, Salazar nunca casou e vivia entre padres. O cardeal de Lisboa, D. Manuel Gonçalves, disse dele: “é um celibatário austero que não bebe, não fuma, não conhece mulheres”, mas, a fim de afastar qualquer inclinação homossexual, ressaltou: “mas ele aprecia a companhia das mulheres e a sua beleza sem, no entanto, deixar de levar uma vida de frade”.
Salazar e Franco: colaboração e frieza
 
Tal como fazia na vida privada, Salazar criou uma curiosa política e um bordão não menos. Praticava uma política de isolacionismo internacional sob o lema Orgulhosamente sós. Atuava de forma tortuosa. Apoiou Franco na Guerra Civil de 1936, mas manteve com este uma relação fria e desconfiada. Durante a Segunda Guerra Mundial, agarrou-se à neutralidade como se disto dependesse sua vida. Talvez tivesse razão. Próximo ideologicamente do fascismo italiano, Portugal não hostilizou o eixo Roma-Berlim-Tóquio, apesar de ter tornado ilegais os movimentos fascistas, prendendo seus líderes. Comprou armas, mesmo durante a Guerra, tanto na Alemanha quanto da Inglaterra, evitando o confronto e a adesão. Acendendo uma vela para cada um dos lados, Salazar aceitava dar vistos a judeus em trânsito vindos da Alemanha e da França. Também concedeu aos Aliados uma base nos Açores.
O ditador foi homenageado por Fernando Pessoa.
Antonio de Oliveira Salazar
Antonio de Oliveira Salazar.
Três nomes em sequencia regular…
Antonio é Antonio.
Oliveira é uma árvore.
Salazar é só apelido.
Até aí está bem.
O que não faz sentido
É o sentido que tudo isto tem.
Este senhor Salazar
É feito de sal e azar.
Se um dia chove,
A água dissolve
O sal,
E sob o céu
Fica só azar, é natural.
Oh, c’os diabos!
Parece que já choveu…
Coitadinho
Do tiraninho!
Não bebe vinho.
Nem sequer sozinho…
Bebe a verdade
E a liberdade,
E com tal agrado
Que já começam
A escassear no mercado.
Coitadinho
Do tiraninho!
O meu vizinho
Está na Guiné,
E o meu padrinho
No Limoeiro
Aqui ao pé,
Mas ninguém sabe porquê.
Mas, enfim, é
Certo e certeiro
Que isto consola
E nos dá fé:
Que o coitadinho
Do tiraninho
Não bebe vinho,
Nem até
Café.
Após a Segunda Guerra Mundial, manteve a política do Orgulhosamente sós, mas nem tanto assim, pois Salazar desejava permanecer orgulhosamente só, porém, com suas colônias. Desde o final da Segunda Guerra Mundial, a comunidade internacional e a ONU passaram a defender políticas de autodeterminação dos povos em regiões colonizadas. Salazar ignorou o fato, levando o país a sofrer consequências negativas tanto do ponto de vista econômico como culturais.
Charge de 1957, publicada em jornal clandestino

Internamente, a violência da democracia de fachada de Salazar não ficava nada a dever a suas congêneres latino-americanas. O Estado Novo tinha sua polícia política, a PIDE (Polícia Internacional de Defesa do Estado), a qual era antes chamada de PVDE (Polícia de Vigilância e Defesa do Estado) e depois de DGS (Direção-Geral de Segurança). Em comum, a perseguição e morte aos opositores do regime. O regime autoritário, mas sem violência é uma fantasia que muitos católicos portugueses gostam de manter, pois a Igreja Católica sempre era citada por ele. Até hoje, alguns saudosos de Salazar misturam fascismo e catolicismo.
Em março de 1961, ocorreu uma chacina de colonos civis no norte de Angola. A resposta de Salazar foi uma Guerra Colonial chamada  Para Angola rapidamente e em força. Depois, novas guerras em Guiné e Moçambique, sempre com o propósito de permanecer orgulhosamente só, mas com as províncias ultramarinas sob sua bandeira. As Guerras Coloniais tiveram como consequências milhares de vítimas e forte impacto econômico sobre o país, tendo sido uma das causas da queda do regime.
Salazar foi afastado do governo em 27 de Setembro de 1968, após uma grave queda em casa, o que lhe causou uma trombose cerebral. Seu fim foi digno de opereta: naquele 1968, o então Presidente da República, Américo Tomás, chamou Marcello Caetano para substitui-lo. O curioso é que, até morrer, em 1970, Salazar continuou a receber “visitas oficiais” como se fosse ainda o presidente do país, nunca manifestando sequer a suspeita de que já o não era, no que não foi contrariado.
Negociações para a rendição da PIDE/DGS, no dia 26 de Abril de 1974. Fotografia de Joaquim Lobo.

O longo inferno foi finalizado pelo 25 de Abril, tal como o conhecem os portugueses. O Movimento das Forças Armadas (MFA) foi composto por oficiais intermediários da hierarquia militar, na sua maioria, eram capitães que tinham participado na Guerra Colonial e que foram apoiados por oficiais e estudantes universitários. Este movimento nasceu por volta de 1973, baseado inicialmente em reivindicações corporativistas das forças armadas envolvidas nas guerras coloniais, acabando por se estender a protestos contra a ditadura. Sem grande apoio e com a adesão em massa da população à Revolução dos Cravos, a resistência do regime foi praticamente inexistente, registrando-se apenas cinco mortos em Lisboa pelas balas da famigerada DGS.
Após o 25 de abril, foi criada a Junta de Salvação Nacional, responsável pela nomeação do presidente da República. Assim, em 15 de Maio de 1974, o general António de Spínola foi nomeado presidente.
Estabilizada a conjuntura política, prosseguiram os trabalhos da Assembleia Constituinte para a nova constituição democrática, que entrou em vigor no dia 25 de Abril de 1976, o mesmo dia das primeiras eleições legislativas da nova República.
Tanto Mar, de Chico Buarque
Sei que está em festa, pá
Fico contente
E enquanto estou ausente
Guarda um cravo para mim
Eu queria estar na festa, pá
Com a tua gente
E colher pessoalmente
Uma flor no teu jardim
Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar
Sei, também, que é preciso, pá
Navegar, navegar
Lá faz primavera, pá
Cá estou doente
Manda urgentemente
Algum cheirinho de alecrim
Foi bonita a festa, pá
Fiquei contente
Ainda guardo renitente
Um velho cravo para mim
Já murcharam tua festa, pá
Mas certamente
Esqueceram uma semente
Nalgum canto de jardim
Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar
Sei, também, quanto é preciso, pá
Navegar, navegar
Canta primavera, pá
Cá estou carente
Manda novamente
Algum cheirinho de alecrim

sexta-feira, 27 de abril de 2012

Noam Chomsky escreve – e fala – sobre o Occupy


Outubro de 2011: em Nova York, manifestantes do Occupy protestam fantasiados de zumbis, diante da Bolsa

Entrevistado ao lançar novo livro, ele debate perspectivas do movimento, Primavera Árabe, crise da democracia, internet e como os EUA produziram seu próprio declínio

Entrevista a Joshua Holland, do Alternet | Tradução: Daniela Frabasile

No ano passado o movimento Occupy espalhou-se espontaneamente por inúmeras cidades dos Estados Unidos. Mudou radicalmente o discurso e fustigou a elite econômica com sua desafiante defesa das maiorias. Foi, para Noam Chomsky, “a primeira grande resposta pública a trinta anos de guerra de classes”. Em seu livro mais recente,
Occupy, Chonsky debate os principais temas, questões e reivindicações que estão levando cidadãos comuns a protestar. Como se chegou a tal ponto? De que modo o 1% de mais ricos influencia as vidas dos outros 99%? Como se pode separar Política de Dinheiro? Que seria uma eleição genuinamente democrática?
Na semana passada, Chomsky foi entrevistado na web-rádio do site Alternet. Eis uma transcrição, levemente editada por motivos de clareza, de sua fala. A gravação original (em inglês) pode ser ouvida aqui.  

Joshua Holland:Eu queria perguntar sobre algumas tendências que moldam nosso discurso político. Eu li muitos de seus livros, e um que eu achei importante foi O consenso fabricado, do final dos anos 1980. Desde então, houve grandes mudanças. A mídia dominante está mais consolidada mas temos, ao mesmo tempo, uma proliferação de outras formas de mídia. Você acha que o alcance do que é considerado um discurso aceitável foi ampliado ou restringido?
Noam Chomsky: Na verdade, Ed Herman e eu lançamos uma segunda edição desse livro uns dez anos atrás, com uma nova (e longa) introdução. Na época, não víamos muitas mudanças, mas se fôssemos fazer de novo, certamente abordaríamos o que você mencionou. Lembro que estávamos falando sobre a mídia dominante. Em relação a isso, acho que praticamente a mesma análise se sustenta, apesar de meu sentimento ser de que, desde 1960, houve abertura no mainstream – como efeito do ativismo da década de 60, que mudou as percepções, atitudes, e civilizou o país de muitas maneiras. Assuntos que são discutidos abertamente hoje eram invisíveis, e, se visíveis, não eram mencionados há cinquenta anos.
Além disso, muitos jornalistas são, eles mesmo, gente cuja formação se deu no ativismo dos anos 60 ou nos seus desdobramentos. Essas mudanças estão se dando por um longo tempo. Com relação às mídias alternativas, elas certamente proporcionam uma grande variedade de opções que não existiam antes – o que inclui o acesso à mídia estrangeira. Por outro lado, a internet é, de certa forma, como entrar na Biblioteca do Congresso. Tudo está lá, mas você tem que saber o que esta procurando. Do contrário, você pode não ter acesso nenhum à biblioteca, porque daria no mesmo. Por exemplo, não é suficiente entrar na biblioteca de Biologia de Harvard para tornar-se biólogo. Você tem que ter as bases para o entendimento, uma concepção do que é importante e do que não é; do que faz sentido ou não faz. Não uma base rígida que nunca se modifica, mas você precisa ao menos ter algum tipo de base.
Infelizmente, isso é bem raro, quando faltam movimentos ativistas que atraiam uma parte substancial da população para interação, intercâmbio – o tipo de coisa que ocorria na comunidade do Occupy por exemplo. Na ausência disso, a maioria das pessoas fica meio à deriva, na internet. Sim, é possível encontrar coisas de valor, mas você tem que saber procurar por elas e ter as bases de análise e percepção que permitam separá-las do lixo.

Separar o joio do trigo..
Chomsky: Sim – o que exige organização e ativismo. É o tipo de coisa que tem que ser feita com outras pessoas. Você tem que ser capaz de testar ideias e obter reações. Você tem que apurar suas percepções. Isso realmente não ocorre sem uma organização substantiva. Existe um intercâmbio na internet, mas ele tende a ser superficial.
Vamos voltar ao seu livro. Chama-se Occupy, é uma leitura boa e rápida. Você faz um ótimo trabalho explicando a guerra de classes promovida pela elite econômica nos últimos trina ou quarenta anos. Mas a pobreza é relativa: americanos vivendo na linha de pobreza ainda possuem uma riqueza maior que 80 ou 90 % da população mundial. Poucas pessoas passam fome nesse país, e a atual tendência [para a desigualdade] não é algo novo. Qual foi o ponto de virada? A gravidade da recessão? O que mais ajudou a abrir os olhos das pessoas?
Chomsky: Você está certo ao dizer que estamos melhor que a maior parte do mundo. Antes de falar com você, eu conversava com uma mulher da Índia, que vive e trabalha há muitos anos em vilas localizadas numa das áreas mais pobres do país. Ela descria suas atividades: seus sucessos e fracassos. É um mundo radicalmente diferente. As pessoas aqui não vivem em condições comparáveis às da idade da pedra. Eles se comparam com o que está disponível para uma vida decente na sociedade em que vivem. Esse é o país mais rico e poderoso de toda a história do mundo. Isso tem vantagens extraordinárias. Comparando com o que está disponível aqui, e, dadas as circunstâncias, com o que está disponível para a maioria da população – o imaginário dos 99% do movimento Occupy – existe um abismo enorme.
Por exemplo, não temos o tipo de sistema de saúde que outras sociedades comparáveis têm. Não temos infra-estrutura equivalente. Nos últimos trinta anos – mesmo sem contar com a última recessão – houve uma relativa estagnação da grande maioria da população. O que realmente aconteceu está muito bem contado em um pequeno livro que foi publicado depois do meu. E uma recente publicação do Economic Policy Institute, que tem sido a fonte principal de dados confiáveis nos últimos 30 ou 35 anos. Chama-se Failure by Design [“Fracasso Projetado”]. É uma leitura fácil e que vale a pena. O título é bastante preciso. Estamos [nos Estados Unidos] em meio a um fracasso, na medida que grande parte da população não viveu essencialmente progresso nenhum, ainda que uma riqueza substancial tenha sido produzida. A própria economia é muito menos produtiva do que deveria ser. A produção do tipo de bens de que as pessoas precisam é menos ainda. É claro que uma pequena parte da população – os 0,1% – obteve sucesso espetacular.
É um fracasso baseado na diferença de classes, e foi projetado. Esse é o fato crucial. Existiram e ainda existem outras opções disponíveis. As coisas não precisam acontecer assim. Por isso, acumulam-se tantos temores, raivas, frustrações. Tudo isso está visível nas pesquisas. Há ódio às instituições e desconfiança por todo o país, e isso tem aumentado há um bom tempo. O movimento Occupy conseguiu capturar o sentimento e cristalizá-lo. É assim que os movimentos populares crescem.
Tomemos como exemplo o movimento de direitos civis. Ele existiu por décadas, mas poucas coisas produziram desenvolvimento importantes. Por exemplo, a atitude Rosa Parks, ou estudantes negros sentando nas lanchonetes em Greensboro, na Carolina do Norte. As coisas acontecem de repente e, do nada, surge um movimento popular. O mesmo aconteceu no movimento contra a guerra, os movimentos feministas, os ambientalistas, ou o movimento por justiça global.
O Occupy eclodiu no momento em que era mais necessário, e acho sua estratégia brilhante. Se tivessem me perguntado, eu não a teria recomendado. Nunca pensei que fosse funcionar. Por sorte, eu estava errado. Funcionou muito bem. Dois grandes processos se deram, em minha opinião, e se puderem ser mantidos e ampliados, será extremamente importante. Um foi simplesmente mudar o discurso, colocando na agenda temas que estavam fervendo nos bastidores, mas nunca eram o foco principal – como a desigualdade, a corrupção financeira, a fragmentação do sistema democrático, o colapso da economia produtiva. Estes assuntos tornaram-se comuns. Isso foi muito importante.
Outro fenômeno que surgiu, e é difícil de medir, foi a criação de comunidades. As comunidades do Occupy foram extremamente valiosas. Formaram-se espontaneamente, com base no auxílio mútuo, intercâmbio público e outras coisas que fazem muita falta, em uma sociedade pulverizada como a nossa, onde as pessoas estão sozinhas. A unidade social por que o mundo dos negócios luta é apenas uma díade, um par. Você e sua televisão e seu computador. O Occupy quebrou isso de forma extremamente significante. A possibilidade de cooperação, solidariedade, apoio mútuo, discussão pública e participação democrática é um modelo que pode inspirar as pessoas. Muitas pessoas participaram disso, pelo menos de forma periférica.
Se estas duas conquistas puderem ser mantidas e expandidos, poderá haver um impacto de longo prazo. Não será fácil, há existem desafios imensos. As táticas terão que ser ajustadas, como sempre, mas o que aconteceu foi um ponto de virada. Se você pensar no que aconteceu em apenas alguns meses, é surpreendente.

Vamos mudar de assunto um pouco. Você falou e escreveu muito sobre a chamada Primavera Árabe. Parece que esse “despertar” tem sido desigual, assim como a reação do governo dos Estados Unidos a ele, nos vários países. O governo hesitou, mas de certa forma apoiou a revolução no Egito, usou a força na Líbia, e ao mesmo tempo fecha os olhos enquanto a Arábia Saudita e outras forças defenderam o regime no Bahrain – um movimento que estranhamente coloca os governos dos Estados Unidos e do Irã no mesmo campo. Como podemos entender essas contradições… ou desenvolvimentos desiguais?
Chomsky: Em primeiro lugar, acho que a política dos Estados Unidos tem sido bastante consistente, o que é verdade também em relação à Inglaterra e à França. A França é muito influente na parte ocidental da África e no norte do continente: a Tunísia era como um protetorado francês. As potências imperiais tradicionais têm uma posição muito consistente: elas opõem-se às tendências democratizantes em qualquer, lugar nessa região.
Você afirma que os Estados Unidos apoiaram, hesitantes, a derrubada da ditadura no Egito, mas isso é parcialmente verdade. O que vimos foi um padrão muito tradicional de atitude. O ditador preferido torna-se cada vez mais difícil de apoiar. No fim, o exército volta-se contra ele. Nesses casos, e existem dezenas deles, existe um tipo de conduta que é seguido rotineiramente. Apoia-se o ditador e o regime tanto quanto possível. Quando isso se torna impossível – por exemplo, se o exército volta-se contra o ditador, como no Egito – então, os EUA mandam-no embora, declaram seu amor à democracia e tentam restabelecer tanto do regime antigo quanto possível. Foi basicamente o que aconteceu.
O maior sucesso da Primavera Árabe é, até agora, a Tunísia. Os franceses apoiaram a ditadura, mesmo quando o levante popular era maciço. Continuaram a apoiá-la, até que finalmente se afastaram. Tem havido uma real participação popular na Tunísia, que muda muito as coisas. Há vários problemas, mas houve progressos consideráveis. No Egito, que é o país mais importante e onde coisas muito animadoras aconteceram, houve vários retrocessos. Muito do antigo regime está de volta. Os grupos islâmicos que se organizaram sob a ditadura, em favelas urbanas e nas áreas rurais, agora têm uma grande estrutura organizacional, que lhes permite – particularmente à Irmandade Muçulmana – manter influência dominante em qualquer espaço político formal existente hoje.
Os Estados Unidos podem viver com eles. A liderança da Irmandade Muçulmana é neoliberal. Ela basicamente aceita a estrutura das políticas globais estadunidenses. Os Estados Unidos não têm objeção ao domínio islâmico. A Arábia Saudita, que é um grande aliado, é o estado mais extremamente fundamentalista islâmico do mundo, e um dos mais opressivos. Os Estados Unidos não têm problemas com isso. Pode ser islâmico ou qualquer outra coisa, desde que aceite as estruturas do poder global dos Estados Unidos.
Não tenho tempo de ir de caso em caso, mas acho que, se você observar, irá concluir que todos os casos são essencialmente iguais neste padrão – os Estados Unidos e seus aliados temem um progresso democrático real, e tentam bloqueá-lo. Existe uma razão muito simples para tanto. Examine as pesquisas. Existem amplas sondagens de opinião pública, feitas pelos Estados Unidos e por organizações árabes confiáveis. Todas indicam que naquela região as sociedades veem, como maior ameaça, os Estados Unidos e Israel.
Eles não gostam do Irã, bastante impopular. Isso vem da tensão entre persas e árabes. As tensões entre sunitas e xiitas também vêm de longa data. O Irã é impopular, mas poucos o veem como uma ameaça. Na última pesquisa, há algumas semanas, eram 5%. A oposição à política dos Estados Unidos é tão forte que a maioria – e em alguns países, a grande maioria – pensa que a região estaria melhor se o Irã tivesse armas nucleares. Eles não gostariam que houvesse armas nucleares lá, mas querem compensar o poder dos Estados Unidos e de Israel. Uma recente pesquisa do Gallup mostra que mais de 80% dos egípcios querem rejeitar a ajuda dos Estados Unidos, porque se opõem ao país e têm medo de ameaças.
Essas não são posturas que os Estados Unidos e seus aliados desejam, obviamente. Se você tem uma democracia que funciona, a opinião pública influencia a política. Por isso, Washington se opõe à democracia. Você não lê isso na mídia e nos jornais. Fala-se sobre nosso amor à democracia e sobre nossa suposta inconsistência: por que aqui sim, e lá não? Na verdade, há muito pouca inconsistência. Aliás, isso é confirmado pelos estudiosos mais sérios, que reconhecem, meio que lastimosamente, o apoio dos Estados Unidos à democracia, apenas como estratégia e por objetivos econômicos. É verdade na América Latina, é verdade no Oriente Médio, é verdade em qualquer lugar. É verdade aqui em casa, também. É completamente inteligível, não deveríamos alimentar ilusões sobre isso. Pode não ser o que as pessoas nos Estados Unidos querem, mas aqui, e em outros países, há, entre a opinião pública e as políticas um grande hiato, um sinal de não funcionamento da democracia. É, aliás, uma das razões para o enorme um antagonismo da população para com o Congresso. A aprovação do Congresso está na casa em um dígito. Acho que nunca foi menor.

Numa pesquisa recente, 11%.

Chomsky: É praticamente invisível. O mesmo é verdade em relação a instituições que atuam no exterior. Grandes corporações, bancos, ciência, várias coisas.

Apenas o exército ainda aparece bem, em termos de confiança das pessoas nas instituições. Elas ainda confiam no exército.

Chomsky: Você tem razão. Nada disso é saudável – na verdade, tudo é muito perigoso. Reflete basicamente o desgaste do funcionamento da democracia, que vem de muito tempo. O fato de as eleições serem essencialmente compradas tornou-se tão evidente que é difícil de esquecer.

Falando sobre tendências internacionais, o que você acha da crescente visão de que os Estados Unidos são um império em declínio? De um lado, certamente parece que nosso chamado soft-power está diminuindo, mas é preciso contrastar isso com nosso crescente domínio militar na era pós-Guerra Fria e especialmente em seguida ao 11 de Setembro. Estamos realmente em declínio?

Chomsky: Sim, estamos. Os Estados Unidos estão em declínio desde 1945. No final da Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos estavam em uma posição de poder fenomenal. Tinham metade da riqueza do mundo. Tinham segurança total. Controlavam o hemisfério ocidental. Controlavam os dois oceanos e as margens opostas dos dois oceanos. Tinham objetivos muito ambiciosos de controlar a maior parte do mundo e assegurar que não houvesse objeções a esse domínio. Isso era muito explícito e amplamente implantado. O país entrou em declínio muito rápido.
Em 1949, houve um grande evento, que é chamado aqui de a “perda” da China. Significa que o país tornou-se independente. Isso é uma enorme fonte de controvérsias e conflitos nos Estados Unidos desde então – as pessoas perguntam quem é responsável pela “perda” da China… Logo depois disso, começaram a se preocupar com a “perda” da Indochina, que espalhou a preocupação de que haveria a “perda” do sudeste asiático. O conceito de “perda” é interessante. É uma pretensão tácita de que são basicamente… nossos.
A situação se desfez ao longo dos anos. Em 1970, o percentual da riqueza mundial nos Estados Unidos era aproximadamente 25% – o que ainda é colossal, mas não é 50%. O mundo já estava se tornando mais diverso. Na última década, a América do Sul adquiriu substancial independência. Vimos isso recentemente na Conferência de Cartagena, na Colômbia. Os EUA mantiveram-se em posição isolada em todos os grandes temas: drogas, Cuba e outros. É um sinal de significativa perda de poder e influência. Agora, ocorre no Oriente Médio. É outra razão pela qual os Estados Unidos e seus aliados estão tão preocupados com a ameaça da democracia e da independência. .
Você tem razão ao dizer que o poder militar não declinou. Na verdade, pode ter se ampliado, em comparação com o resto do mundo. Os Estados Unidos são responsáveis por quase metade dos gastos militares do mundo. O único país com centenas de bases e com a habilidade de se projetar em qualquer lugar. Novas tecnologias de destruição e assassinato – drones, por exemplo. Estão muito à frente do resto do mundo.
Você também citou o chamado soft-power. Isso é importante. A capacidade de influência continuou a cair, como tem acontecido desde 1945. Uma forma de ver isso são os vetos na ONU. Até meados da década de 1960, o mundo estava tão sob controle que os Estados Unidos não vetaram nenhuma resolução no Conselho de Segurança. Desde então os Estados Unidos são o líder em vetar resoluções. A Inglaterra, um estado-cliente dos EUA, fica em segundo. Nenhum outro país chega perto. Esse é um reflexo do declínio de capacidade e poder, o que significa a habilidade de influenciar e controlar.
Parte desse declínio é auto-infligida. O que o Economic Policy Institute chama de “fracasso projetado” enfraqueceu significantemente os Estados Unidos, e irá continuar – a não ser que aconteçam grandes mudanças. Mudanças que beneficiariam a população aqui e no mundo.
Há uma espécie de conclusão comum deste raciocínio que supõe uma futura hegemonia chinesa. Deveríamos ser cautelosos quanto a isso. O crescimento chinês tem sido espetacular, mas a China ainda é um país muito pobre – incomparavelmente mais pobre que os Estados Unidos. A China cresceu como um enorme centro industrial, mas principalmente para montagem. É principalmente uma plataforma de montagem para países de indústria sofisticada e multinacionais ocidentais como a Apple ou outras. Isso irá mudar com o tempo, mas é um percurso longo. A China enfrenta problemas reais: ecológicos, demográficos e muitos outros. É um desenvolvimento significativo, mas acredito que deveríamos olhá-lo com algum ceticismo.
Sim, esses processos estão sem dúvida ocorrendo. Eles são parcialmente projetados. Um setor da sociedade está incrivelmente bem – em especial, o ligado ao capital financeiro. Para o público em geral, a história é diferente. É por isso que você vê revoltas em toda a parte.