Check-up da próstata, fazer ou não?
por Conceição Lemes
O câncer de próstata é o segundo mais comum entre os brasileiros. A
estimativa do Instituto Nacional de Câncer (Inca), do Ministério da
Saúde, era de que, em 2002, ocorressem no país 25.600 novos casos da
doença. Para 2010, calcula 52.350.
Um salto de 104% em nove anos devido especialmente ao aumento de
diagnósticos. Nisso, a mídia tem ajudado, estimulando a detecção
precoce. Há duas estratégias. Uma, para indivíduos que apresentam
sintomas ou sinais iniciais da doença. É o diagnóstico precoce. Outra,
àqueles aparentemente saudáveis, sem qualquer sinal ou sintoma. É o que
os médicos denominam rastreamento.
O diagnóstico precoce é inquestionável. É consenso no mundo inteiro. O
mesmo não acontece com rastreamento destinado à população masculina em
geral.
“Eu não tenho dúvida de que é preciso rastrear, detectar e tratar o
câncer de próstata em homens saudáveis, assintomáticos”, afirma
urologista Sidney Glina, professor livre-docente da Faculdade de
Medicina da Universidade Federal do ABC. “O câncer de próstata só mata
menos do que o de pulmão. O óbito ocorre, em média, 12 anos após o seu
início. Se aos 50 anos o indivíduo tem câncer de próstata e não se
tratar vai morrer com 62. Portanto, o rastreamento tem impacto positivo
na vida.”
“Não se tem ainda grandes evidências de que diminua a mortalidade se o
câncer de próstata for tratado antes de os sintomas aparecerem, fazendo
o paciente viver mais e melhor”, diverge o clínico geral Arnaldo
Lichtenstein, do Hospital das Clínicas de São Paulo e professor
colaborador do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina
da USP. “Além disso, o tratamento tem efeitos colaterais importantes.”
Essa discordância no meio acadêmico retrata um grande debate que
ocorre no mundo inteiro.
Sociedades de especialistas, como a American Cancer Society, American
Urology Association e Sociedade Brasileira de Urologia, são a favor do
rastreamento. Recomendam anualmente o toque retal e do PSA em homens
saudáveis, sem sintomas, a partir dos 50 anos. Caso exista história
familiar de câncer de próstata, a partir dos 40.
Já a US Preventive Services Task Force e a Canadian Task Force,
respeitados organismos multidisciplinares independentes, e o National
Institute of Cancer, dos EUA, contra-indicam o check-up anual em homens
assintomáticos, sem histórico familiar. No Brasil, o Inca e o Centro de
Promoção de Saúde do Hospital das Clínicas de São Paulo também.
TEM ALGUMA DIFICULDADE PARA URINAR?
Estranhou? Ficou confuso, por que não é o que normalmente aparece na
mídia?
Calma. Antes de avançarmos, atente aos sintomas abaixo e responda:
* É comum a sensação de não esvaziar completamente a bexiga aós
terminar de urinar?
* Tem vontade urinar menos de 2 horas após ter urinado?
* Ao urinar, parou e recomeçou várias vezes?
* O jato de urina anda fraco?
* Tem de fazer força para começar a urinar?
* Tem de se levantar duas, três, quatro vezes à noite para urinar?
Quanto mais sim, maior a intensidade dos sintomas. Mas eles –
atenção! – não significam que a doença seja maligna ou benigna. É
apenas o que o homem está sentindo em decorrência de prováveis
alterações na próstata. Vá ao médico.
O que tem a ver dificuldade de urinar com próstata? Muito. A razão é a
posição dela. Situada logo abaixo da bexiga e em frente ao reto, ela
fica em volta da uretra.
A próstata é uma glândula, seu formato e tamanho assemelham-se ao de
uma castanha portuguesa e pesa cerca de 20 gramas. É órgão fundamental
do aparelho reprodutor masculino. Sua função principal é produzir a
secreção que participa do esperma, o líquido expelido pelos homens
durante a ejaculação. A secreção prostática representa 30% do volume
ejaculado. Serve como meio de transporte, alimento e proteção para os
espermatozóides durante o seu percurso na vagina rumo à fertilização. E,
ao contrário do que muitos imaginam, não tem nenhum papel na ereção
peniana.
“Três enfermidades podem afetar a próstata”, explica Glina. “A
prostatite [infecção], a hiperplasia benigna [crescimento benigno da
glândula] e o câncer.”
Imagine uma maçã. A casca equivale à região periférica da glândula: é
onde nasce a maioria dos cânceres. O miolo, onde ficam os caroços, é a
zona central: local onde mais freqüentemente ocorrem as prostatites. A
parte maior, que é a polpa, equivale à região de transição: é onde surge
a hiperplasia benigna da próstata, disparado a mais freqüente das
enfermidades da glândula.
“Geralmente no início, o câncer de próstata é silencioso, não dá
sintomas”, previne Lichtenstein. “Independentemente disso, ao sentir dor
ou desconforto na micção ou notar alguma mudança no fluxo da urina, não
empurre com a barriga, busque ajuda médica, pois alguma alteração há.”
OPERAÇÃO ÀS VEZES DESNECESSÁRIA E MUTILANTE
Especificamente em relação ao câncer de próstata, sabe-se que:
1) A genética é fator importante. Homem cujo pai ou irmão teve câncer
de próstata antes dos 60 anos tem 3 a 10 vezes mais risco de
desenvolver a doença do que a população em geral.
2) Obesidade e alimentação parecem favorecer a doença. Na Ásia, é
baixa a incidência . Porém, quando os asiáticos migram para os países
ocidentais, a geração seguinte tem a mesma prevalência que a população
branca.
3) A sua incidência aumenta após os 50 anos. É considerado um câncer
da terceira idade, já que 75% dos casos no mundo ocorrem a partir dos 65
anos.
4) Estudos demonstram a presença de câncer de próstata em 30% das
necropsias feitas em homens acima de 80 anos. Porém, menos de 5% desses
óbitos são devido ao tumor. Ou seja, em um grande contingente de homens a
doença jamais evoluirá.
5) Há dois tipos de tumores de próstata. Os que crescem rapidamente e
se espalham para outros órgãos (metástases), podendo levar à morte em
alguns meses, se não diagnosticados e tratados bem cedo. E os que se
desenvolvem lentamente – demoram aproximadamente 15 anos para atingir 1
centímetro cúbico –, e não chegam a dar sinais durante a vida e nem
ameaçar a saúde do homem. Esse segundo tipo corresponde à maioria dos
casos.
“A questão é que não existe exame que nos permita saber se o tumor é
do primeiro ou do segundo tipo”, adverte Lichtenstein. “Operam-se então
homens sem necessidade, e a cirurgia pode causar disfunção erétil [antes
denominada impotência sexual] e incontinência urinária.”
“Provavelmente tratamos mais do que seria preciso”, reconhece Glina,
“e o tratamento é mutilador, e o pós-operatório, chato. Esse é o
problema”.
A cirurgia chama-se prostatectomia radical. Feita com anestesia
geral, remove a glândula inteira e os tecidos ao redor. Incontinência
urinária é um dos riscos. A operação pode lesar a musculatura que segura
a urina na bexiga. Em conseqüência, 2% a 5% perdem totalmente a
capacidade de conter a urina e têm de usar fralda o tempo todo. Cerca de
10% deixam escapar um pouco quando riem, tossem ou fazem esforço e
precisam usar um pequeno absorvente.
Outro risco é a disfunção erétil. Inicialmente, todos ficam
impotentes. Com o tempo, 30% a 50% recuperam naturalmente a ereção. Mas
em 50% a 70% a cirurgia causa disfunção erétil, já que os nervos da
ereção passam ao lado da próstata e muitas vezes não dá para
preservá-los. A disfunção erétil pode ser tratada com medicamentos
orais, injeções no pênis e prótese peniana.
“Em alguns casos, pode ser feita radioterapia em vez da cirurgia”,
avisa Glina. “A radioterapia provoca menos efeitos colaterais.”
PSA AUMENTADO NÃO SIGNIFICA SEMPRE TUMOR MALIGNO
E o PSA? E o toque retal?– muitos já devem estar cobrando.
O toque retal é o teste mais usado. Porém, como somente as porções
posterior e lateral da próstata podem ser palpadas, 40% a 50% dos
tumores ficam fora do seu alcance. Daí ser usado em combinação com a
dosagem do PSA no sangue.
O antígeno prostático específico é produzido pelas células epiteliais
da próstata e não pela célula cancerosa, especificamente. Resultado: o
PSA altera-se não apenas quando há câncer, mas também prostatite e
hiperplasia benigna da próstata, assim como após a ejaculação e a
realização de citoscopia (endoscopia das vias urinárias).
PSA abaixo de 4 ng/ml é considerado normal. Porém, hoje se usa mais 3
a 3,5. Para alguns especialistas, resultado negativo só quando o PSA
for abaixo de 2,5 ng/ml. Ou seja, não há consenso.
“Como o PSA alterado não diferencia a doença, torna-se necessária a
biópsia da próstata, feita em 18 a 20 fragmentos”, afirma Glina. “Cerca
de 70% dos casos não são positivos para câncer, pois o PSA é um mau
marcador tumoral. Mas é o único que temos. Infelizmente, ainda não há um
método melhor para separar o tumor maligno das demais doenças.”
“O PSA elevado é apenas o início do processo que pode passar pela
biópsia e chegar à cirurgia”, salienta Lichtenstein. “A biópsia é
incômoda e gera muita ansiedade. Se for câncer, opera-se, correndo o
risco dos efeitos colaterais. Por isso, não vale a pena fazer check-up
prostático anual em homens saudáveis. Acaba-se operando demais.”
“Vale a pena, sim, ‘ir atrás’ do tumor de próstata em homens
saudáveis”, reafirma Glina. “O diagnóstico precoce terá impacto na
sobrevida, principalmente nos mais jovens. Já há dados no mundo todo,
inclusive do DataSUS de São Paulo, mostrando que a mortalidade pelo
câncer de próstata vem caindo. Isso se deve ao fato de rastrear o câncer
próstata entre os homens saudáveis após os 50 anos e a partir dos 40,
em quem tem história familiar desse tumor.”
“Mas se for do tipo que não mata e o indivíduo ficar apenas com os
ônus da cirurgia?”, Lichtenstein vai ao x da questão. “Só tem sentido o
rastreamento no dia em que houver um marcador para o tumor agressivo,
ou tratamento que não deixe seqüelas ou evidências científicas de que o
que tratar o câncer da próstata antes de os sintomas aparecerem faz o
indivíduo viver mais ou melhor. Enquanto isso, check-up anual de
próstata em homens saudáveis, sem antecedentes familiares , não deve ser
política de saúde pública.”
DISCUTATUDO ISSO COM SEU MÉDICO
Sidney e Arnaldo são médicos muito competentes, atualizados e éticos.
Além disso, amigos. Mas essa discussão é sem fim. É um Fla-Flu, mesmo,
pelo menos por enquanto. E não estão sozinhos.
No mundo inteiro, a comunidade científica busca uma resposta
consistente, definitiva, para esta pergunta: a procura de câncer de
próstata em homens saudáveis, sem histórico familiar da doença, traz
benefícios, reduzindo a mortalidade?
A expectativa era a de que dois grandes estudos – um europeu e outro
estadunidense – com milhares de homens, divulgados em 2009, responderiam
a questão. Mas não, ela continua em aberto.
O estudo estadunidense acompanhou 75 mil pacientes durante 11 anos.
Concluiu que não há diferença de mortalidade entre rastrear ou não
homens homens saudáveis, assintomáticos, acima dos 50 anos. Esse estudo
foi contestado no mundo inteiro, pois 58% dos participantes do grupo
controle fizeram o PSA por conta própria.
O estudo europeu envolveu 180 mil homens por 10 anos. Verificou que
para evitar uma morte foram necessários 1.400 PSA e 50 tratamentos, dos
quais 20 ou 30 ficaram impotentes. Para os epidemiologistas, é número
muito alto de diagnósticos e de disfunção erétil para salvar uma vida.
Daí a US Preventive Services Task Force, a Canadian Task Force, o
National Institute of Cancer, dos EUA, o Inca e o Centro de Promoção de
Saúde do Hospital das Clínicas de São Paulo continuarem não recomendando
a avaliação em homens aparentemente saudáveis, sem histórico familiar.
“Só se recomenda o rastreamento populacional, quando o exame é fácil
de fazer, detecta a doença no início, ela é frequente e o tratamento
precoce muda o curso dela”, esclarece Lichtenstein. “Isso está
comprovado para hipertensão, diabetes e câncer do colo do útero. Para o
câncer de próstata, ainda não.”
“Só que quando o câncer de próstata dá sintomas, a doença já se
disseminou”, alerta Glina. “Aí, o tratamento é paliativo, não há mais
chance de cura.”
Diante desses prós e contras, o que fazer?
Se você tem histórico familiar de câncer de próstata, não há o que
discutir. A recomendação é unânime: faça a avaliação anual a partir
dos 40 anos. Isso implica toque retal e PSA.
Tendo dor, desconforto ou sintomas urinários, procure ajuda médica
também, qualquer que seja a sua idade.
Se você tem 50 anos ou mais, está saudável, a decisão de fazer o
check-up anual de próstata é sua. Discuta com o seu médico. Questione-os
sobre os prós e contras.
O economista Carlos Vieira, 59 anos, faz desde os 50: “Fico mais
tranqüilo”.
O colega de trabalho Marcos Pacheco, 57, não: “Enquanto não estiver
comprovado que vale a pena em homens saudáveis, não farei. Pelo menos,
até os sintomas aparecerem – se aparecerem — vou ser feliz”.
Mas qualquer que seja a sua decisão, cuidado com os espertalhões.
“Tem médico que fala que opera com robô e garante 100% de potência no
pós-operatório”, alerta Glina. “Isso é mentira.”