por Miguel Urbano Rodrigues
O
fim da atual crise de civilização é imprevisível. Inevitável, conduzirá
ao desmoronar do capitalismo ou a uma era de barbárie.
Prever datas para o desfecho seria, porém, um exercício de futurologia.
Os EUA estão
atolados em guerras perdidas no Afeganistão e no Iraque e a sua aliança
com o Estado neofascista de Israel é um fator de tensão permanente no
Médio Oriente. As estratégias agressivas que desenvolvem na América
Latina, na África e na Ásia Oriental são também incompatíveis com as
aspirações dos povos ameaçados, contribuindo para o subir da maré
anti-americana.
Nesta fase,
iniciada com as agressões no Médio Oriente e Ásia Central, o
imperialismo estadounidense encontrou situações históricas muito
diferentes da que precedeu o seu envolvimento no Vietname e a humilhante
derrota que ali sofreu. Nos EUA somente uma minoria percebeu que a
guerra estava perdida quando Giap desfechou a ofensiva do Tet. A
resposta de Johnson e Kissinger, cedendo aos generais do Pentágono, foi a
ampliação da escalada. A agressão alastrou para o Laos e Washington
enviou mais tropas para a fornalha vietnamita, semeando a morte e a
devastação no Sudeste Asiático.
Transcorreram anos
até à retirada dos EUA. Os povos foram lentos a compreender que o
desfecho da trágica agressão ao Vietname era o prólogo de uma crise que
significou a perda da hegemonia que Washington exercia sobre a economia
do Ocidente desde o final da II Guerra. Nada foi igual desde então.
Mas o establishment
norte-americano não extraiu as lições implícitas no fracasso das
guerras da Coreia e do Vietnan. A estratégia foi reformulada, mas a
ambição imperial permaneceu, assumindo novas formas.
O cenário das agressões adquiriu proporções planetárias a partir do desaparecimento da União Soviética.
A primeira guerra
do Golfo foi decidida no final da presidência de George Bush pai perante
a passividade da URSS, prestes a desintegrar-se. Washington proclamou
então que a humanidade havia entrado numa era de paz permanente, sob a
égide dos EUA, garantes da Nova Ordem Mundial. Um obscuro epígono do
capitalismo, Francis Fukuyama, saudou a morte do comunismo e anunciou o
"Fim da História", apontando o neoliberalismo como a ideologia para a
eternidade.
O desmentido aos profetas imperiais não tardou.
Quando as torres do
Word Trade Center desabaram, o mundo entrou numa fase de turbulências
anunciatorias de uma profunda crise de civilização. Após o 11 de
Setembro de 2001, Bush filho, alegando necessidade de uma "cruzada
contra o terrorismo", e afirmando que Deus estava com os EUA, invadiu o
Afeganistão, semeando a morte a destruição naquele remoto país da Ásia
Central.
Depois chegou a
segunda guerra iraquiana, iniciada à revelia do Conselho de Segurança
das Nações Unidas. A terra milenária da Mesopotâmia foi ocupada, os seus
museus saqueados, o seu petróleo e gás entregues às petrolíferas dos
EUA, dezenas de milhares de iraquianos chacinados.
Autoproclamando-se
nação predestinada, com vocação para redimir a humanidade dos seus
pecados, os EUA, sob a batuta da extrema-direita republicana, passaram a
actuar como um Estado terrorista, disseminando o terrorismo pelo
planeta.
Essa trágica
situação somente foi possível pela cumplicidade da União Européia, do
Japão e do Canadá, estados ditos civilizados. Com o seu aval ao
establishment bushiano abriram as portas à barbárie.
A eleição de um
negro para a Presidência dos EUA gerou a ilusão de que o pesadelo iria
findar. Mas Barack Obama, que chegou à Casa Branca com o apoio
entusiástico do grande capital, mudou o discurso, mas manteve a politica
imperialista. Pior, agravou-a.
O PÂNTANO AFEGÃO
Admiradores do
Presidente norte-americano afirmam que ele é um humanista, vítima de uma
engrenagem que o instrumentaliza. Mas a defesa que dele fazem não
convence.
O Premio Nobel da
Paz tomou decisões que contribuíram para aprofundar a crise mundial. No
plano interno a sua política tem sido, no fundamental, de capitulação
perante as exigências do grande capital. Significativamente, o seu
secretário do Tesouro, Geithner é um político que goza da confiança
total de Wall Street.
No terreno
internacional, o Presidente aumentou muito o orçamento do Pentágono,
pediu ao Congresso verbas colossais para as guerras asiáticas, enviou
mais 30.000 militares para o Afeganistão, e faz da vitória nessa guerra
uma prioridade da sua política exterior.
Entretanto, acumula derrotas no teatro afegão. A ofensiva no Helmand foi um fracasso; a de Kandahar foi sucessivamente adiada.
A divulgação dos
documentos secretos oferecidos pela WikiLeaks ao NY Times, ao Guardian e
ao Der Spiegel instalou o pânico na Casa Branca, e o inquérito do
Pentágono sobre a fuga de informações classificadas abalou fortemente a
confiança dos americanos no sistema de segurança do Departamento de
Defesa.
Em declarações
recentes, Julian Assange, o australiano que criou o WikiLeaks, revelou
que crimes cometidos pelo exército dos EUA excedem em horror os
massacres do Vietnan. A chamada Força Tarefa Conjunta 373 tem por missão
abater secretamente chefes talibãs e elementos suspeitos de pertencer à
Al Qaeda.
Grupos de matadores
especiais intitulados Kia são responsáveis pelo assassínio de centenas
de civis em ataques cujas vítimas são designadas nos relatórios como
"mortos em ações".
O rol dos crimes
das tropas de ocupação da NATO também ocuparia muitas páginas. A chacina
de Kunduz, da responsabilidade do contingente alemão, abalou o governo
da chanceler Merkel, mas foi apenas uma das muitas matanças de civis
cometidas pelas tropas de ocupação.
Julian Assange cita
como exemplo das atrocidades dos aliados o bombardeamento de uma aldeia
por uma força polaca. Dezenas de pessoas ali reunidas para festejar um
casamento morreram num ato de retaliação concebido com crueldade.
Rotineiramente, o
alto comando norte-americano promove inquéritos nesses casos para
"apurar responsabilidades". Mas ninguém é punido.
Hamid Karzai, o presidente fantoche, protesta e pede providências, mas a indignação é simulada.
Milhares de civis
nas aldeias da fronteira paquistanesa foram mortos pelos bombardeamentos
realizados pelos drones – os aviões sem piloto. O atual comandante
Supremo, o general Petraeus, define essas "missões" assassinas como
indispensáveis ao êxito da nova estratégia de luta "contra o terrorismo"
FARSA DRAMÁTICA
Hillary Clinton, o vice-presidente Joe Binden e James Baker, o secretário da Defesa, têm visitado frequentemente o Afeganistão.
A encenação pouco
varia. Deslocam-se para levantar o moral das tropas, dizer lhes que
estão a lutar pela pátria, pela liberdade e a democracia contra o
terrorismo, que a luta exige grandes sacrifícios, mas que a vitória na
guerra afegã é uma certeza.
Todos aproveitam
para pedir ao Presidente Karzai que "governe democraticamente", afaste
colaboradores que não merecem a confiança dos EUA, e ponha termo à
corrupção implantada no país.
Karzai faz
promessas, reúne assembleias tribais que lhe aprovam a política e repete
que é fundamental negociar com os "talibãs recuperáveis". É ele, chefe
da máfia, o primeiro responsável pelo sumiço de milhares de milhões de
dólares doados em conferências internacionais para o desenvolvimento e
reconstrução do país, destruído pela invasão americana. A realidade não
alterou o método. Em Kabul, a última dessas conferências acaba de
aprovar mais uns milhares de milhões para "ajudar" o Afeganistão.
Entretanto, a produção de ópio, insignificante à data da invasão, aumentou 90% na última década.
É do domínio público que familiares do presidente mantêm íntimas ligações com o negócio da droga.
Nas suas periódicas
visitas ao Paquistão, Hillary Clinton admoesta o presidente Asif
Zardari pela insuficiência do esforço de guerra nas áreas tribais do
Waziristão na fronteira do Afeganistão. Joe Binden repete-lhe o
discurso. Ambos insinuam cumplicidade do Exército com as chefias
talibãs.
O Primeiro-ministro
britânico Cameron ao visitar o país foi tão longe nas suas críticas que
o governo de Islamabad cancelou uma visita a Londres do chefe dos
serviços de inteligência paquistaneses convidado pelo Intelligence
Service.
Crónicas de
correspondente europeus em Kabul e declarações de soldados dos EUA
regressados da guerra afegã esclarecem que a moral das tropas de combate
caiu para um nível muito baixo.
A demissão do
general Stanley McChrystal, que criticara numa entrevista o presidente
Obama, contribuiu para acentuar o mal-estar no Alto Comando. O general
tem um currículo de criminoso, mas as suas opiniões sobre a condução da
guerra são partilhadas por muitos oficiais.
Assim vão as coisas na guerra podre do Afeganistão.
No Iraque, a
"pacificação" é um mito como demonstra o aumento de mortos em atentados
bombistas em Bagdad e na região Norte, controlada pelos kurdos. O
discurso de Obama aos veteranos deficientes, no dia 1 de Agosto, sobre a
retirada das tropas foi um exercício de hipocrisia, semeado de mentiras
e estatísticas falsas.
Na Palestina,
Israel continua a bloquear Gaza, bombardeada com frequência, e amplia a
construção de casas na Jerusalém árabe e em colonatos na Cisjordânia.
O Irão é atingido
por novas sanções, aprovadas pelo Conselho de Segurança, e a CIA promove
atentados terroristas no Kuzistão, fronteiro do Iraque, e na província
baluche, vizinha do Paquistão.
Na América Latina,
Uribe, nas vésperas de ceder a presidência a Juan Manuel Santos, seu
filhote político, criou uma crise com a Venezuela bolivariana ao forjar
acusações sobre a presença das FARC em território daquele país. Os EUA,
que vão instalar sete novas bases militares na Colômbia, aprovaram
imediatamente a provocação.
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Neste contexto de
escalada militar em múltiplas frentes, a crise interna prossegue. O
magro crescimento do PIB esconde a realidade.
O número de casas
vendidas é o mais baixo dos últimos anos. Milhares de empresas fecham
todos os meses. Em cidades outrora famosas pela riqueza, como Detroit e
Pittsburg, bairros inteiros estão hoje desabitados. O desemprego
alastra. Nas universidades aumenta o ensino elitista. A tão elogiada
reforma dos "cuidados de saúde" dificultou mais o acesso de milhões de
imigrantes ilegais aos hospitais (v.Fred Goldstein, odiario.info,
22/04/2010).
A Finança, essa
prospera. Os gestores dos grandes bancos continuam a receber reformas e
prémios fabulosos. Um desses gigantes, o Wells Fargo, acumulou lucros de
milhares de milhões de dólares com a lavagem do dinheiro da droga (v.
Cadima, Avante! , 29/07/2010).
O controlo
hegemónico do sistema mediático pelo grande capital impede, porém, a
humanidade de tomar consciência da profundidade da crise. Nos EUA, pólo
do sistema, o discurso do Presidente transmite um panorama optimista da
situação, anunciando melhores tempos e vitórias imaginárias.
Somente uma minoria
de cidadãos, nos EUA, na Europa, e nos demais continentes estão em
condições de descodificar o discurso da mentira irradiado pelo grande
capital.
Para as forças
progressistas ajudar os povos a compreender a complexidade e a extrema
gravidade da crise do sistema é, por isso mesmo, uma tarefa
revolucionária. Porque essa compreensão é fundamental para o incremento e
dinamização da luta dos trabalhadores em cada país contra o projeto de
dominação imposto pelo sistema que ameaça mergulhar a humanidade na
barbárie.
Vila Nova de Gaia, 02/Agosto/2010
O original encontra-se em http://www.odiario.info/?p=1698
Este artigo encontra-se em http://resistir.info