Elaine Tavares
O velho Marx já ensinou a muitos anos
sobre o que é a ideologia. É o encobrimento da verdade. Assim, tudo
aquilo que esconde, vela, obscurece, tapa, encobre, engana, é ideologia.
É dentro deste espectro que podemos colocar o debate que se faz hoje no
Brasil, na Venezuela, no Equador e na Bolívia sobre o binômio
“liberdade de expressão X censura”. Para discutir esse tema é preciso
antes de mais nada observar de onde partem os gritos de “censura,
censura”, porque na sociedade capitalista toda e qualquer questão
precisa ser analisada sob o aspecto de classe. A tal da “democracia”,
tão bendita por toda a gente, precisa ela mesma de um adjetivo, como bem
já ensinou Lênin. “Democracia para quem? Para que classe?”.
Na Venezuela a questão da liberdade
de expressão entrou com mais força no imaginário das gentes quando o
governo decidiu cassar a outorga de uma emissora de televisão, a RCTV,
por esta se negar terminantemente a cumprir a lei, discutida e votada
democraticamente pela população e pela Assembléia Nacional. “Censura,
cerceamento da liberdade de expressão” foram os conceitos usados pelos
donos da emissora para “denunciar” a ação governamental. Os empresários
eram entrevistados pela CNN e suas emissoras amigas, de toda América
Latina, iam reproduzindo a fala dos poderosos donos da RCTV.
Transformados em vítimas da censura, eles foram inclusive convidados
para palestras e outros quetais aqui nas terras tupiniquins.
Lá na Venezuela os organismos de
classe dos jornalistas, totalmente submetidos à razão empresarial,
também gritavam “censura, censura” e faziam coro com as entidades de
donos de empresas de comunicação internacionais sobre o “absurdo” de
haver um governo que fazia cumprir a lei. Claro que pouquíssimos jornais
e jornalistas conseguiram passar a informação correta sobre o caso,
explicando a lei, e mostrando que os que se faziam de vítima, na verdade
eram os que burlavam as regras e não respeitavam a vontade popular e
política. Ou seja, os arautos da “democracia liberal” não queriam
respeitar as instituições da sua democracia. O que significa que quando
a democracia que eles desenham se volta contra eles, já não é mais
democracia. Aí é ditadura e cerceamento da liberdade de expressão.
No Brasil, a questão da censura
voltou à baila agora com o debate sobre os Conselhos de Comunicação.
Mesma coisa. A “democracia liberal” consente que existam conselhos de
saúde, de educação, de segurança, etc... Mas, de comunicação não pode.
Por quê? Porque cerceia a liberdade de expressão. Cabe perguntar. De
quem? Os grandes meios de comunicação comercial no Brasil praticam a
censura, todos os dias, sistematicamente. Eles escondem os fatos
relacionados a movimentos sociais, lutas populares, povos indígenas,
enfim, as maiorias exploradas. Estas só aparecem nas páginas dos jornais
ou na TV na seção de polícia ou quando são vítimas de alguma tragédia.
No demais são esquecidas, escondidas, impedidas de dizerem a sua palavra
criadora. E quando a sociedade organizada quer discutir sobre o que sai
na TV, que é uma concessão pública, aí essa atitude “absurda” vira um
grande risco de censura e de acabar com a liberdade de expressão. Bueno,
ao povo que não consegue se informar pelos meios, porque estes censuram
as visões diferentes das suas, basta observar quem está falando, quem é
contra os conselhos. De que classe eles são. Do grupo dos dominantes,
ou dos dominados?
Agora, na Bolívia, ocorre a mesma
coisa com relação à recém aprovada lei anti-racista. Basta uma olhada
rápida nos grandes jornais de La Paz e lá está a elite branca a gritar:
“censura, censura”. A Sociedade Interamericana de Imprensa, que
representa os empresários, fala em cerceamento da liberdade de
expressão. Os grêmios de jornalistas, também alinhados com os patrões
falam a mesma coisa, assim como as entidades que representam o poder
branco, colonial e racista. Estes mesmos atores sociais que ao longo de
500 anos censuraram a voz e a realidade indígena e negra nos seus
veículos de comunicação, agora vem falar de censura. E clamam contra
suas próprias instituições. A lei anti-racista prevê que os meios de
comunicação que incentivarem pensamentos e ações racistas poderão ser
multados ou fechados. Onde está o “absurdo” aí? Qual é o cerceamento da
liberdade de expressão se a própria idéia de liberdade, tão cara aos
liberais, se remete à máxima: “a minha liberdade vai até onde começa a
do outro”? Então, como podem achar que é cerceamento da liberdade de
expressão usar do famoso “contrato social” que garante respeito às
diferenças?
Ora, toda essa gritaria dos grandes
empresários da comunicação e seus capachos nada mais é do que o profundo
medo que todos têm da opinião pública esclarecida. Eles querem o
direito de continuar a vomitar ideologia nos seus veículos, escondendo a
voz das maiorias, obscurecendo a realidade, tapando a verdade. Eles
querem ter o exclusivo direito de decidir quem aparece na televisão e
qual o discurso é válido. Eles querem manter intacto seu poder
escravista, racista e colonial que continua se expressando como se não
tivessem passado 500 anos e a democracia avançado nas suas adjetivações.
Hoje, na América Latina, já não há apenas a democracia liberal, há a
democracia participativa, protagônica, o nacionalismo popular. As coisas
estão mudando e as elites necrosadas se recusam a ver.
O racismo é construção de quem domina
Discursos como esses, das elites
latino-americanas e seus capachos, podem muito bem ser explicados pela
história. Os componentes de racismo, discriminação e medo da opinião
pública esclarecida têm suas raízes na dominação de classe. Para pensar
essa nossa América Latina um bom trabalho é o do escritor Eric Williams,
nascido e criado na ilha caribenha de Trinidad Tobago, epicentro da
escravidão desde a invasão destas terras orientais pelos europeus. No
seu livro Capitalismo e Escravidão, ele mostra claramente que o processo
de escravidão não esteve restrito apenas ao negro. Tão logo os europeus
chegaram ao que chamaram de Índias Orientais, os primeiros braços que
trataram de escravizar foram os dos índios.
Os europeus buscavam as Índias e
encontraram uma terra nova. Não entendiam a língua, não queriam saber de
colonização. Tudo o que buscavam era o ouro. Foi fácil então usar da
legitimação filosófica do velho conceito grego que ensinava ser apenas
“o igual”, “o mesmo”, aquele que devia ser respeitado. Se a gente
originária não era igual à européia, logo, não tinha alma, era uma
coisa, e podia ser usada como mão de obra escrava para encontrar as
riquezas com as quais sonhavam. Simples assim. Essa foi a ideologia que
comandou a invasão e seguiu se sustentando ao longo destes 500 anos. Por
isso é tão difícil ao branco boliviano aceitar que os povos originários
possam ter direitos. Daí essa perplexidade diante do fato de que,
agora, por conta de uma lei, eles não poderão mais expressar sua
ideologia racista, que nada mais fez e ainda faz, que sustentar um
sistema de produção baseado na exploração daquele que não é igual.
Eric Williams vai contar ainda como a
Inglaterra construiu sua riqueza a partir do tráfico de gente branca e
negra, para as novas terras, a serem usadas como braço forte na produção
do açúcar, do tabaco, do algodão e do café. Como o índio não se prestou
ao jogo da escravidão, lutando, fugindo, morrendo por conta das doenças
e até se matando, o sistema capitalista emergente precisava inventar
uma saída para a exploração da vastidão que havia encontrado. A
escravidão foi uma instituição econômica criada para produzir a riqueza
da Inglaterra e, de quebra, dos demais países coloniais. Só ela seria
capaz de dar conta da produção em grande escala, em grandes extensões de
terra. Não estava em questão se o negro era inferior ou superior. Eram
braços, e não eram iguais, logo, passíveis de dominação. Eles foram
roubados da África para trabalhar a terra roubada dos originários de
Abya Yala.
Também os brancos pobres dos países
europeus vieram para as Américas como servos sob contrato, o que era, na
prática, escravidão. Segundo Williams, de 1654 a 1685, mais de 10 mil
pessoas nestas condições partiram somente da cidade de Bristol, na
Inglaterra, para servir a algum senhor no Caribe. Conta ainda que na
civilizada terra dos lordes também eram comuns os raptos de mulheres,
crianças e jovens, depois vendidos como servos. Uma fonte segura de
dinheiro. De qualquer forma, estas ações não davam conta do trabalho
gigantesco que estava por ser feito no novo mundo, e é aí que entra a
África. Para os negociantes de gente, a África era terra sem lei e lá
haveria de ter milhões de braços para serem roubados sem que alguém se
importasse. E assim foi. Milhões vieram para a América Latina e foram
esses, juntamente com os índios e os brancos pobres, que ergueram o modo
de produção capitalista, garantiram a acumulação do capital e
produziram a riqueza dos que hoje são chamados de “países ricos”.
E justamente porque essa gente foi a
responsável pela acumulação de riqueza de alguns que era preciso
consolidar uma ideologia de discriminação, para que se mantivesse sob
controle a dominação. Daí o discurso – sistematicamente repetido na
escola, na família, nos meios de comunicação – de que o índio é
preguiçoso, o negro é inferior e o pobre é incapaz. Assim, se isso
começa a mudar, a elite opressora sabe que o seu mundo pode ruir.
Liberdade de expressão
É por conta da necessidade de manter
forte a ideologia que garante a dominação que as elites
latino-americanas tremem de medo quando a “liberdade de expressão” se
volta contra elas. Esse conceito liberal só tem valor se for exercido
pelos que mandam e aí voltamos àquilo que já escrevi lá em cima. Quando
aqueles que os dominadores consideram “não-seres” - os pobres, os
negros, os índios – começam a se unir e a construir outro conceito de
direito, de modo de organizar a vida, de comunicação, então se pode
ouvir os gritos de “censura, censura, censura” e a ladainha do risco de
se extinguir a liberdade de expressão.
O que precisa ficar bem claro a todas
as gentes é de que está em andamento na América Latina uma
transformação. Por aqui, os povos originários, os movimentos populares
organizados, estão constituindo outras formas de viver, para além dos
velhos conceitos europeus que dominaram as mentes até então. Depois de
500 anos amordaçados pela “censura” dos dominadores, os oprimidos
começam a conhecer sua própria história, descobrir seus heróis, destapar
sua caminhada de valentia e resistência. Nomes como Tupac Amaru, Juana
Azurduy, Zumbi dos Palmares, Guaicapuru, Bartolina Sisa, Tupac Catari,
Sepé Tiaraju, Dandara, Artigas, Chica Pelega, assomam, ocupam seu espaço
no imaginário popular e provocam a mudança necessária.
Conceitos como Sumak kawsay, dos
Quíchua equatorianos, ou o Teko Porã, dos Guarani, traduzem um jeito de
viver que é bem diferente do modo de produção capitalista baseado na
exploração, na competição, no individualismo. O chamado “bem viver”
pressupõe uma relação verdadeiramente harmônica e equilibrada com a
natureza, está sustentado na cooperação e na proposta coletiva de
organização da vida. Estes são conceitos poderosos e “perigosos”. Por
isso, os meios de comunicação não podem ficar à mercê dos desejos
populares. Essas idéias “perigosas” poderiam começar a aparecer num
espaço onde elas estão terminantemente proibidas. É esse modo de pensar
que tem sido sistematicamente censurado pelos meios de comunicação.
Porque as elites sabem que destruída e ideologia da discriminação contra
o diferente e esclarecida a opinião pública, o mundo que construíram
pode começar a ruir. A verdadeira liberdade de expressão é coisa que
precisa ficar bem escondida, por isso são tão altos os gritos que dizem
que ela pode se acabar se as gentes começarem a “meter o bedelho” neste
negócio que prospera há 500 anos.
Basta de bobagens
É neste contexto histórico, econômico
e político que deveriam ser analisados os fatos que ocorrem hoje na
Venezuela, no Equador, na Bolívia e na Argentina. O Brasil deveria, não
copiar o que lá as gentes construíram na sua caminhada histórica, mas
compreender e perceber que é possível estabelecer aqui também um
processo de mudança. Neste mês de novembro o Ministério das
Comunicações chamou um seminário para discutir uma possível lei de
regulamentação da mídia brasileira. Não foi sem razão que os convidados
eram de Portugal, Espanha e Estados Unidos. Exemplos de um mundo
distante, envelhecido, necrosado, representantes de um capitalismo
moribundo. As revolucionárias, criativas e inovadoras contribuições dos
países vizinhos não foram mencionadas. A Venezuela tem uma das leis mais
interessantes de regulamentação da rádio e TV, a Argentina deu um passo
adiante com a contribuição do movimento popular, a Bolívia avança
contra o racismo, o Equador inova na sua Constituição, e por aqui tudo é
silêncio. Censura?
Os governantes insistem em buscar luz
onde reina a obscuridade. E, ainda assim pode-se ouvir o grito dos
empresários a dizer: censura, censura, censura. O atraso brasileiro é
tão grande que mesmo as liberais regulamentações européias são avançadas
demais. Enquanto isso Abya Yala caminha, rasgando os véus...
- Elaine Tavares é jornalista
Existe vida no Jornalismo
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