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Um blog de informações culturais, políticas e sociais, fazendo o contra ponto à mídia de esgoto.
sábado, 7 de abril de 2012
Os movimentos sociais e os processos revolucionários na AL: uma crítica aos pós-modernistas
sexta-feira, 6 de abril de 2012
Andrei Tarkovski, 80 anos: O poeta do cinema foi também um pensador da arte
Por Josias Teófilo*no SUL21
Há 80 anos nascia o cineasta soviético Andrei Tarkovsky (1932-1986).
Chegou ao mundo depois das revoluções vanguardistas que repensaram o
papel do artista na sociedade. Na década de 1960, quando ele realizou
seus dois primeiros longas-metragens, as concepções sobre a arte já
estavam num processo de transformação profunda. Os pensadores da arte
contemporânea idealizaram o artista num lugar totalmente diverso do
concebido anteriormente, desmistificando a sua atuação na sociedade e
ressaltando o seu aspecto intelectual e político.
Tarkovsky não compartilhava dessas visões advindas da arte
contemporânea, seus filmes inicialmente e seus escritos, em especial o
livro Esculpir o Tempo, documentaram isso. Com relação à vanguarda
russa, inclusive o cinema de Sergei Eiseinstein, a obra de Tarkovsky e
sua concepção artística parecem não só se diferenciar mas por vezes se
opor diametralmente – como no debate sobre a montagem. Suas referências
mais profundas no seu país são a literatura de Tolstoi e Doistoiévski,
do século anterior. O cinema ele naturalmente defende como obra autoral.
Esta defesa não é exclusividade de Tarkovsky, porém nele essa autoria
tem um componente bastante diverso: ela se apresenta como um dom
espiritual. Para ele, o artista é como um demiurgo: “O poeta não usa
‘descrições do mundo’; ele próprio participa da sua criação”, diz ele no
seu livro Esculpir o tempo, escrito nos longos espaços de tempo entre a
realização dos seus filmes. Foram apenas 7 longas-metragens em toda a
sua vida. Ter feito tão poucos filmes – comparado a outros grandes
cineastas – não foi uma escolha. A causa foi, principalmente, a
dificuldade em realizar o tipo de filme que ele fazia, de caráter
profundamente religioso, na União Soviética.
Os longos espaços de tempo entre um filme e outro – em média 5 anos –
parecem ter colaborado na densidade dos seus filmes e no grau de
reflexão que eles suscintam. Todos os 7 filmes se relacionam
profundamente na temática, na forma e nas amplas referências à pintura,
literatura, filosofia, etc. Porém, em toda a sua obra, tanto fílmica
quanto escrita, um tema é recorrente e crucial: o Sacrifício.
Para ele, a criação artística é um ato de Sacrifício: trata-se de uma
doação, que certamente não é material, intelectual ou mesmo emocional. O
Sacrifício configura-se como algo espiritual – palavra que ele usa
constantemente nos seus escritos. Essa espiritualidade, entretanto, não é
religiosa no sentido corrente. Tarkovsky diz que as religiões, tal como
se apresentam hoje, “não são capazes de saciar a sede de Absoluto que
caracteriza o homem”.
A espiritualidade para ele se concretiza na idéia de Amor, a absoluta
antítese de pragmatismo e fundamento do Sacrifício. Talvez sejam essas
duas idéis complementares, o Sacrifício e o Amor, que diferenciam o
pensamento e a obra de Tarkovsky do seus contemporâneos, tornando sua
mensagem ao mesmo tempo atual e profundamente relacionada com a grande
arte do passado – o que nos faz refletir sobre a possibilidade de
existirem características perenes no fenômeno artístico ao longo dos
tempos.
* Josias Teófilo é mestrando em Filosofia pela Universidade de Brasília com o tema A cumplicidade espiritual: o papel social do artista segundo Andrei Tarkovski no filme Andrei Rublev.
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Enquanto isso, os Tuaregues...
Em parte o que está acontecendo no Mali é uma consequência da guerra da Líbia. Os tuaregues eram, em grande parte, aliados de Kadafi. Depois da queda do líder líbio, muitos decidiram deixar a Líbia, temendo represálias por parte do novo governo ou de outros segmentos da população. E levaram consigo suas armas.
Flávio Aguiar no CARTA MAIOR
Quem não se lembra dos tuaregues? Os da
minha geração lembram. Eles estavam no filme Beau Geste (1939), direção
de William Wyler, com Gary Cooper, Ray Milland, Susan Hayward, Robert
Preston e grande elenco. Neste filme, que, na verdade, foi filmado não
no Saara, mas nas dunas do sul da Califórnia, os tuaregues, cavalgando
loucamente como índios norte-americanos (os da tribo de Hollywood),
tentavam tomar o forte de Zinderneuf, sem resultado. Gary Cooper, Ray
Milland e os demais resistiam bravamente até o último homem, mas sem
entregar o forte. Só Ray Milland sobrava, para voltar melancólica, mas
gloriosamente, para casar com Susan Hayward, que ficara o tempo todo à
sua espera, tocando piano no salão de Brandon Abbas, na Inglaterra.
Pois agora os tuaregues saíram a fazer estrepolias novamente, mas não nas telas de cinema, nem no sul da Califórnia, mas no Saara mesmo. Nem cavalgam loucamente, mas agem com método e determinação. Já dominam dois terços do território da República do Mali, onde recentemente houve um golpe de estado na capital, Bamako.
Uma revolta de soldados no quartel de Kati, a 10 km. do palácio presidencial, evoluiu em derrubada do governo. O capitão Amadou Sanogo assumiu a liderança da revolta e o controle do governo. O presidente constitucional, Amadou Toumani Touré, está na clandestinidade. Os países vizinhos, do Oeste Africano, exigem que o novo governo – que parece não saber muito bem o que fazer – devolva o poder aos civis. O capitão subitamente promovido a presidente até o momento só fez ganhar tempo: prometeu eleições, mas não mencionou prazo. Diz querer de volta a constituição de 1992 – o que é uma contradição, pois por ela o presidente legal e legítimo é o deposto.
O golpe parece ser decorrência da atuação dos tuaregues, reunidos sob um Movimento Nacional de Libertação do Azawad – nome da região habitada por suas tribos. Essa região transborda o Mali, se espraiando pela Argélia, Líbia, Mauritânia, Líbia, onde vivem os quase 6 milhões de tuaregues que reivindicam um país para si. Ainda não está claro se eles pretendem proclamar a independência do território que já dominam, dois terços do Mali, ao norte, ou se pretendem avançar para a capital e derrubar o(s) governo(s).
O Mali é um dos países mais pobres da África. Seu exército, de 7 mil homens, também é pobre, e essa parece ser uma das razões da revolta. Em parte o que está acontecendo no Mali é uma consequência da guerra da Líbia. Os tuaregues eram, em grande parte, aliados de Muammar Kadafi. Depois da queda e assassinato do líder líbio, muitos decidiram deixar a Líbia, temendo represálias por parte do novo governo ou parte de outros segmentos da população. Levaram consigo suas armas. Acostumados a viver e a lutar no deserto, onde já protagonizaram várias revoltas, passaram a superar o exército em poder de fogo, mobilidade e capacidade militar.
Desde então ocuparam as principais cidades da região: Gao, Kidal e a legendária Timbuktu, a 700 km. da capital.
Por ora as potências ocidentais – a França, em particular, que se envolveu na guerra civil da vizinha Costa do Marfim, derrubando o governo e pondo um de seu agrado na capital, e vive delicado momento eleitoral – não sabem ainda o que fazer. Certamente não vão apoiar os tuaregues; ao mesmo tempo, não podem apoiar do governo “revolucionário” do capitão revoltado; também não se sabe ainda sua avaliação do governo deposto, tido como fraco para liderar suas próprias tropas e enfrentar o inimigo tuaregue ao norte.
De momento, a situação é a de um beco com muitas entradas e nenhuma saída. Uma situação nada incomum nesta África cuja reocupação pelas potências internacionais está em andamento, tanto na prática quanto nos mapas de planejamento.
Pois agora os tuaregues saíram a fazer estrepolias novamente, mas não nas telas de cinema, nem no sul da Califórnia, mas no Saara mesmo. Nem cavalgam loucamente, mas agem com método e determinação. Já dominam dois terços do território da República do Mali, onde recentemente houve um golpe de estado na capital, Bamako.
Uma revolta de soldados no quartel de Kati, a 10 km. do palácio presidencial, evoluiu em derrubada do governo. O capitão Amadou Sanogo assumiu a liderança da revolta e o controle do governo. O presidente constitucional, Amadou Toumani Touré, está na clandestinidade. Os países vizinhos, do Oeste Africano, exigem que o novo governo – que parece não saber muito bem o que fazer – devolva o poder aos civis. O capitão subitamente promovido a presidente até o momento só fez ganhar tempo: prometeu eleições, mas não mencionou prazo. Diz querer de volta a constituição de 1992 – o que é uma contradição, pois por ela o presidente legal e legítimo é o deposto.
O golpe parece ser decorrência da atuação dos tuaregues, reunidos sob um Movimento Nacional de Libertação do Azawad – nome da região habitada por suas tribos. Essa região transborda o Mali, se espraiando pela Argélia, Líbia, Mauritânia, Líbia, onde vivem os quase 6 milhões de tuaregues que reivindicam um país para si. Ainda não está claro se eles pretendem proclamar a independência do território que já dominam, dois terços do Mali, ao norte, ou se pretendem avançar para a capital e derrubar o(s) governo(s).
O Mali é um dos países mais pobres da África. Seu exército, de 7 mil homens, também é pobre, e essa parece ser uma das razões da revolta. Em parte o que está acontecendo no Mali é uma consequência da guerra da Líbia. Os tuaregues eram, em grande parte, aliados de Muammar Kadafi. Depois da queda e assassinato do líder líbio, muitos decidiram deixar a Líbia, temendo represálias por parte do novo governo ou parte de outros segmentos da população. Levaram consigo suas armas. Acostumados a viver e a lutar no deserto, onde já protagonizaram várias revoltas, passaram a superar o exército em poder de fogo, mobilidade e capacidade militar.
Desde então ocuparam as principais cidades da região: Gao, Kidal e a legendária Timbuktu, a 700 km. da capital.
Por ora as potências ocidentais – a França, em particular, que se envolveu na guerra civil da vizinha Costa do Marfim, derrubando o governo e pondo um de seu agrado na capital, e vive delicado momento eleitoral – não sabem ainda o que fazer. Certamente não vão apoiar os tuaregues; ao mesmo tempo, não podem apoiar do governo “revolucionário” do capitão revoltado; também não se sabe ainda sua avaliação do governo deposto, tido como fraco para liderar suas próprias tropas e enfrentar o inimigo tuaregue ao norte.
De momento, a situação é a de um beco com muitas entradas e nenhuma saída. Uma situação nada incomum nesta África cuja reocupação pelas potências internacionais está em andamento, tanto na prática quanto nos mapas de planejamento.
Flávio Aguiar é correspondente internacional da Carta Maior em Berlim.
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Timor Leste: porque o mais pobre é ameaça para o poderoso
por John Pilger
O truísmo de Milan Kundera, "a luta do povo contra o poder é
a luta da memória contra o esquecimento", descreve Timor Leste. No
dia em que decidi filmar ali clandestinamente, em 1993, fui à loja de
mapas Stanfords, no Covent Garden de Londres. "Timor?", disse um
assistente de vendas hesitante. Pusemo-nos a examinar prateleiras marcadas
Sudeste Asiático. "Desculpe-me, onde é exactamente?"
Após uma pesquisa ele encontrou um velho mapa aeronáutico com áreas em branco assinaladas: "Dados de auxílio incompletos". Nunca lhe fora pedido Timor-Leste, o qual está a Norte da Austrália. Tal era o silêncio que envolvia a colónia portuguesa a seguir à sua invasão e ocupação pela Indonésia, em 1975. Mas nem mesmo Pol Pot conseguiu, proporcionalmente, matar tantos cambodgianos quanto o ditador Suharto, da Indonésia, matou em Timor-Leste.
No meu filme, Morte de uma nação , há a cena de um brinde a bordo de um avião australiano a voar sobre a ilha de Timor. Decorre numa festa e dois homens de fato estão a brindar-se com champanhe. "Isto é um momento histórico único", balbucia um deles, "é verdadeiramente histórico e único". Trata-se de Gareth Evans, ministro dos Negócios Estrangeiros da Austrália. O outro homem é Ali Alatas, o porta-voz principal de Suharto. Passa-se em 1989 e eles estão a fazer um voo simbólico para celebrar a assinatura de um tratado pirata que permitiu à Austrália e às companhias internacionais de petróleo e gás explorarem o fundo do mar ao largo de Timor-Leste. Por baixo deles há vales crivados de cruzes negras onde aviões caça fornecidos por britânicos e americanos estraçalharam pessoas em bocados. Em 1993, o Comité de Assuntos Estrangeiros do Parlamento australiano relatou que "pelo menos 200 mil", um terço da população, havia perecido sob Suharto. Graças a Evans, em grande parte, a Austrália foi o único país ocidental a reconhecer formalmente a conquista genocida de Suharto. As forças especiais assassinas da Indonésia, conhecidas como Kopassus, foram treinadas na Austrália. O prémio, disse Evans, eram "ziliões" de dólares.
Ao contrário de Muammar al-Kaddafi e Saddam Hussein, Suharto morreu pacificamente em 2008 cercado pela melhor ajuda médica que os seus milhares de milhões podiam comprar. Ele nunca correu o risco de ser processado pela "comunidade internacional". Margaret Thatcher disse-lhe: "Você é um dos nossos melhores e mais válidos amigos". O primeiro-ministro australiano Paul Keating encarava-o como uma figura paternal. Um grupo australiano de editores de jornais, conduzido pelo veterano servidor de Rupert Murdoch, Paul Kelly, voou a Djacarta para prestar homenagem ao ditador; há uma foto de um deles a fazer uma reverência.
Em 1991, Evans descreveu o massacre de mais de 200 pessoas por tropas indonésias, no cemitério de Santa Curz, em Dili, capital do Timor-Leste, como uma "aberração". Quando manifestantes colocaram cruzes do lado de fora da embaixada da Indonésia em Canberra, Evans ordenou a sua retirada.
Em 17 de Março, Evans estava em Melbourne para falar num seminário sobre o Médio Oriente e a Primavera Árabe. Mergulhado agora no ocupado mundo dos "think tanks", ele explana acerca de estratégias de grandes potências, nomeadamente a elegante "Responsabilidade de proteger", a qual é utilizada pela NATO para atacar ou ameaçar ditadores arrogantes ou desfavorecidos sob o falso pretexto de libertar seus povos. A Líbia é um exemplo recente. No seminário também estava presente Stephen Zunes, professor de política na San Francisco University, que recordou à audiência o longo e crítico apoio de Evans a Suharto.
Quanto acabou a sessão, Evans, um homem de fusível limitado, atacou Zumes e gritou: "Quem raios é você? De onde raios você saiu?" Disseram a Zumes, confirmou Evans posteriormente, que tais observações críticas mereciam "um soco no nariz". O episódio foi oportuno. A celebrar o décimo aniversário de uma independência que Evans outrora negava, Timor-Leste está nas convulsões da eleição de um novo presidente; a segunda volta da votação é em 21 de Abril, seguida pelas eleições parlamentares.
Para muitos timorenses, com seus filhos malnutridos e atrofiados, a democracia é uma noção. Anos de ocupação sangrenta, apoiada pela Austrália, Grã-Bretanha e EUA, foram seguidos por uma campanha implacável de intimidação por parte do governo australiano para afastar a pequena nova nação da fatia a que tem direito das receitas de petróleo e gás do seu leito marítimo. Tendo recusado reconhecer a jurisdição do Tribunal Internacional de Justiça e a Lei do Mar, a Austrália mudou unilateralmente a fronteira marítima.
Em 2006 foi finalmente assinado um acordo, em grande medida nos termos da Austrália. Logo após, o primeiro-ministro Mari Alkatiri, um nacionalista que enfrentou Canberra e opôs-se à interferência estrangeira e ao endividamento ao Banco Mundial, foi efectivamente deposto naquilo a que chamou uma "tentativa de golpe" por "elementos externos". A Austrália tem tropas de "manutenção da paz" em Timor-Leste e treinou seus opositores. Segundo um documento escapado do Departamento da Defesa australiano, o "primeiro objectivo" da Austrália em Timor-Leste é que os seus militares "tenham acesso" de modo a que possa exercer "influência sobre a tomada de decisões em Timor-Leste". Dos dois actuais candidatos presidenciais, um é Taur Matan Rauk, um general e o homem de Canberra que ajudou a afastar o incómodo Alkitiri.
Um pequeno país independente montado sobre recursos naturais lucrativos e caminhos marítimos estratégicos é objecto de preocupação séria para os Estados Unidos e o seu "vice xerife" em Canberra. (O presidente George W. Bush promoveu realmente a Austrália a xerife pleno). Isso explica em grande medida porque o regime Suharto exigiu tanta devoção dos seus patrocinadores ocidentais. A obsessão permanente de Washington na Ásia é a China, a qual hoje oferece a países em desenvolvimento investimento, qualificação e infraestrutura em troca de recursos.
Ao visitar a Austrália em Novembro, o presidente Barack Obama emitiu outra das suas ameaças veladas à China e anunciou o estabelecimento de uma base dos US Marines em Darwin, bem em frente às águas de Timor-Leste. Ele entende que países pequenos e empobrecidos podem muitas vez apresentar a maior ameaça à potência predatória, porque se eles não puderem ser intimidados e controlados, quem poderá?
O original encontra-se em
www.johnpilger.com/...
Após uma pesquisa ele encontrou um velho mapa aeronáutico com áreas em branco assinaladas: "Dados de auxílio incompletos". Nunca lhe fora pedido Timor-Leste, o qual está a Norte da Austrália. Tal era o silêncio que envolvia a colónia portuguesa a seguir à sua invasão e ocupação pela Indonésia, em 1975. Mas nem mesmo Pol Pot conseguiu, proporcionalmente, matar tantos cambodgianos quanto o ditador Suharto, da Indonésia, matou em Timor-Leste.
No meu filme, Morte de uma nação , há a cena de um brinde a bordo de um avião australiano a voar sobre a ilha de Timor. Decorre numa festa e dois homens de fato estão a brindar-se com champanhe. "Isto é um momento histórico único", balbucia um deles, "é verdadeiramente histórico e único". Trata-se de Gareth Evans, ministro dos Negócios Estrangeiros da Austrália. O outro homem é Ali Alatas, o porta-voz principal de Suharto. Passa-se em 1989 e eles estão a fazer um voo simbólico para celebrar a assinatura de um tratado pirata que permitiu à Austrália e às companhias internacionais de petróleo e gás explorarem o fundo do mar ao largo de Timor-Leste. Por baixo deles há vales crivados de cruzes negras onde aviões caça fornecidos por britânicos e americanos estraçalharam pessoas em bocados. Em 1993, o Comité de Assuntos Estrangeiros do Parlamento australiano relatou que "pelo menos 200 mil", um terço da população, havia perecido sob Suharto. Graças a Evans, em grande parte, a Austrália foi o único país ocidental a reconhecer formalmente a conquista genocida de Suharto. As forças especiais assassinas da Indonésia, conhecidas como Kopassus, foram treinadas na Austrália. O prémio, disse Evans, eram "ziliões" de dólares.
Ao contrário de Muammar al-Kaddafi e Saddam Hussein, Suharto morreu pacificamente em 2008 cercado pela melhor ajuda médica que os seus milhares de milhões podiam comprar. Ele nunca correu o risco de ser processado pela "comunidade internacional". Margaret Thatcher disse-lhe: "Você é um dos nossos melhores e mais válidos amigos". O primeiro-ministro australiano Paul Keating encarava-o como uma figura paternal. Um grupo australiano de editores de jornais, conduzido pelo veterano servidor de Rupert Murdoch, Paul Kelly, voou a Djacarta para prestar homenagem ao ditador; há uma foto de um deles a fazer uma reverência.
Em 1991, Evans descreveu o massacre de mais de 200 pessoas por tropas indonésias, no cemitério de Santa Curz, em Dili, capital do Timor-Leste, como uma "aberração". Quando manifestantes colocaram cruzes do lado de fora da embaixada da Indonésia em Canberra, Evans ordenou a sua retirada.
Em 17 de Março, Evans estava em Melbourne para falar num seminário sobre o Médio Oriente e a Primavera Árabe. Mergulhado agora no ocupado mundo dos "think tanks", ele explana acerca de estratégias de grandes potências, nomeadamente a elegante "Responsabilidade de proteger", a qual é utilizada pela NATO para atacar ou ameaçar ditadores arrogantes ou desfavorecidos sob o falso pretexto de libertar seus povos. A Líbia é um exemplo recente. No seminário também estava presente Stephen Zunes, professor de política na San Francisco University, que recordou à audiência o longo e crítico apoio de Evans a Suharto.
Quanto acabou a sessão, Evans, um homem de fusível limitado, atacou Zumes e gritou: "Quem raios é você? De onde raios você saiu?" Disseram a Zumes, confirmou Evans posteriormente, que tais observações críticas mereciam "um soco no nariz". O episódio foi oportuno. A celebrar o décimo aniversário de uma independência que Evans outrora negava, Timor-Leste está nas convulsões da eleição de um novo presidente; a segunda volta da votação é em 21 de Abril, seguida pelas eleições parlamentares.
Para muitos timorenses, com seus filhos malnutridos e atrofiados, a democracia é uma noção. Anos de ocupação sangrenta, apoiada pela Austrália, Grã-Bretanha e EUA, foram seguidos por uma campanha implacável de intimidação por parte do governo australiano para afastar a pequena nova nação da fatia a que tem direito das receitas de petróleo e gás do seu leito marítimo. Tendo recusado reconhecer a jurisdição do Tribunal Internacional de Justiça e a Lei do Mar, a Austrália mudou unilateralmente a fronteira marítima.
Em 2006 foi finalmente assinado um acordo, em grande medida nos termos da Austrália. Logo após, o primeiro-ministro Mari Alkatiri, um nacionalista que enfrentou Canberra e opôs-se à interferência estrangeira e ao endividamento ao Banco Mundial, foi efectivamente deposto naquilo a que chamou uma "tentativa de golpe" por "elementos externos". A Austrália tem tropas de "manutenção da paz" em Timor-Leste e treinou seus opositores. Segundo um documento escapado do Departamento da Defesa australiano, o "primeiro objectivo" da Austrália em Timor-Leste é que os seus militares "tenham acesso" de modo a que possa exercer "influência sobre a tomada de decisões em Timor-Leste". Dos dois actuais candidatos presidenciais, um é Taur Matan Rauk, um general e o homem de Canberra que ajudou a afastar o incómodo Alkitiri.
Um pequeno país independente montado sobre recursos naturais lucrativos e caminhos marítimos estratégicos é objecto de preocupação séria para os Estados Unidos e o seu "vice xerife" em Canberra. (O presidente George W. Bush promoveu realmente a Austrália a xerife pleno). Isso explica em grande medida porque o regime Suharto exigiu tanta devoção dos seus patrocinadores ocidentais. A obsessão permanente de Washington na Ásia é a China, a qual hoje oferece a países em desenvolvimento investimento, qualificação e infraestrutura em troca de recursos.
Ao visitar a Austrália em Novembro, o presidente Barack Obama emitiu outra das suas ameaças veladas à China e anunciou o estabelecimento de uma base dos US Marines em Darwin, bem em frente às águas de Timor-Leste. Ele entende que países pequenos e empobrecidos podem muitas vez apresentar a maior ameaça à potência predatória, porque se eles não puderem ser intimidados e controlados, quem poderá?
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quinta-feira, 5 de abril de 2012
A heresia comunista de Daniel Bensaïd
Entre
todas as “heresias” de Daniel Bensaïd, quer dizer, suas contribuições
para a renovação do marxismo, a mais importante, a meus olhos, é a sua
ruptura radical com o cientificismo, o positivismo e o determinismo que
se impregnaram tão profundamente no marxismo “ortodoxo”,
principalmente na França. Por Michael Löwy no COMBATE
“Auguste Blanqui, comunista herético” é o
título de um artigo que Daniel Bensaïd e eu redigimos juntos em 2006
(para um livro sobre os socialistas do século XIX na França, organizado
por nossos amigos Philipe Corcuff e Alain Maillard) [no Brasil, o
artigo foi publicado na revista Margem Esquerda, nº 10]. Esse conceito
se aplica perfeitamente a seu próprio pensamento, obstinadamente fiel à
causa dos oprimidos, mas alérgico a qualquer ortodoxia.
Daniel havia escrito alguns livros importantes antes de 1989, mas a partir daquele ano, com a publicação de Moi la Révolution : Remembrances d’un bicentenaire indigne [Eu, a revolução: Remembranças de um bicentenário indigno] (Gallimard, 1989) e Walter Benjamin, sentinelle messianique
[Walter Benjamin, sentinela messiânico] (Plon, 1990), começa um novo
período, que se caracteriza não apenas por uma enorme produtividade –
dezenas de obras, dentre as quais várias consagradas a Marx – mas também
por uma nova qualidade de escrita, uma fantástica efervescência de
ideias, uma surpreendente
inventividade. Apesar de sua grande diversidade, esses escritos não
deixam de ser tecidos com fios vermelhos comuns: a memória das lutas – e
suas derrotas – do passado, o interesse pelas novas formas de
anticapitalismo e a preocupação com os novos problemas que se colocam à
estratégia revolucionária. Sua reflexão teórica era inseparável de sua
militância, quer ele escreva sobre Joana D’arc – Jeanne de guerre lasse [Joana D’arc de guerra cansada] (Gallimard, 1991) – ou sobre a fundação do NPA (Prendre parti
[Tomar partido], com Olvier Besancenot, 2009). Seus escritos têm,
consequentemente, uma forte carga pessoal emocional, ética e política,
que lhes dá uma qualidade humana pouco comum. A multiplicidade de suas
referências pode tomar desvios: Marx, Lenin e Trotsky, com certeza, mas
também Auguste Blanqui, Charles Péguy, Hannah Arendt, Walter Benjamin,
sem esquecer Blaise Pascal, Chateaubriand, Kant, Nietzsche e muitos
outros. Apesar de toda essa surpreendente variedade, aparentemente
eclética, seu discurso não deixa de ter uma notável coerência.
“Eu leio seus livros sem parar como
remédios contra a burrice e o egoísmo”, escreveu recentemente seu amigo,
o poeta Serge Pey. Se os livros de Daniel são lidos com tanto prazer, é
porque eles foram escritos com a pena afiada de um verdadeiro
escritor, que tem o dom da fórmula: uma fórmula que pode ser assassina,
irônica, nervosa ou poética, mas que vai sempre direto ao ponto. Esse
estilo literário, próprio ao autor e inimitável, não é gratuito, mas
vem a serviço de uma ideia, de uma mensagem, de um apelo: não se
dobrar, não se resignar, não se reconciliar com os vencedores.
Esta ideia se chama comunismo. Ela
não poderia ser identificada com os crimes burocráticos cometidos em
seu nome, assim como o cristianismo não pode ser reduzido à Inquisição e
às dragonnades [espécie de polícia religiosa criada durante o reinado
de Luis XIV para perseguir protestantes e reconvertê-los ao
catolicismo]. O comunismo, em última análise, é apenas a esperança de
suprimir a ordem existente, o nome secreto da resistência e da
sublevação, a expressão da grande
cólera negra e vermelha dos oprimidos. É o sorriso dos explorados que
esperam ao longe os tiros de fuzil dos insurgentes em junho de 1848 –
episódio contado com inquietude por Alexis de Tocqueville e
reinterpretado por Toni Negri. Seu espírito sobreviverá ao triunfo
atual da mundialização capitalista, tal como o espírito do judaísmo
durante a destruição do Templo e a expulsão da Espanha (gosto dessa
comparação insólita e um pouco provocadora).
O comunismo não é o resultado do
“Progresso” ou das leis da História (com P e H maiúsculos): trata-se de
uma eterna luta, incerta e anunciada. A política, que é a arte
estratégica do conflito, da conjuntura e do contratempo, implica numa
responsabilidade humanamente falível, e deve ser confrontada com as
incertezas de uma história aberta.
O comunismo do século XXI era, para
Daniel, o herdeiro das lutas do passado, da Comuna de Paris, da
Revolução de Outubro, das ideias de Marx e Lenin, e dos grandes vencidos
que foram Trotsky, Rosa Luxemburgo, Che Guevara. Mas também algo de
novo, a altura das questões do presente: um eco-comunismo (termo que ele
inventou), integrando centralmente o combate ecológico contra o
capital.
Para Daniel, o espírito do comunismo não
podia ser reduzido às suas falsificações burocráticas. Se ele era, com
suas últimas energias, contra a tentativa da Contra-Reforma liberal de
dissolver o comunismo no stalinismo, ele não reconhecia tampouco que
pode-se fazer a economia de um balanço crítico dos erros que desarmaram
os revolucionários de Outubro em face das provas da história,
favorecendo a contra-revolução termidoriana: confusão entre povo,
partido e Estado, cega em relação ao perigo burocrático. É preciso
retirar disto certas lições históricas já esboçadas por Rosa Luxemburgo
em 1918: a importância da democracia socialista, do pluralismo
político, da separação dos poderes, da autonomia dos movimentos
sociaisem relação ao Estado.
A fidelidade ao espectro do comunismo
não impede que Daniel advogue em favorde uma renovaçãoprofunda do
pensamento marxista, especialmente sobre dois terrenos onde a tradição
falha em particular: o feminismo e a ecologia. As feministas – como
Christine Delphy – por criticar a abordagem de Engels, que definia a
opressão doméstica como um arcaísmo pré-capitalista que em breve se
apagaria com a salarização das mulheres. No movimento operário, ele
forneceu muitas vezes um sexismo grosseiro, principalmente ao retomar a
seu favor a noção burguesa de salário mínimo. A necessária aliança
entre a consciência de gênero e a consciência de classe não pode ser
feita sem um retorno crítico dos marxistas sobre sua teoria e sua
prática.
O mesmo vale para a questão do meio
ambiente: habitualmente ligado ao compromisso fordista e à lógica
produtiva do capitalismo, o movimento operário era indiferente ou hostil
para com a ecologia. Por seu lado, os partidos Verdes têm a tendência
de se contentar com uma ecologia de mercado e com um reformismo
social-liberal. Ora, o antiprodutivismo de nosso tempo deve
necessariamente ser um anticapitalismo: o paradigma ecológico é
inseparável do paradigma social. Diante dos danos catastróficos
provocados no meio ambiente pela lógica do valor de mercado, é preciso
propor a necessidade de uma mudança radical do modelo de consumo, de
civilização e de vida.
——————-
A filosofia de Daniel Bensaïd não era um
exercício acadêmico, mas estava atravessada, de um lado a outro, pelo
fogo da indignação, um fogo que, segundo ele, não pode ser apagado nos
mornos da resignação consensual. Daí o seu desprezo pelo “homo resignatus”,
político ou intelectual que é reconhecido à distância por sua
impassibilidade batraquiana perante a ordem impiedosa das coisas. Para
além da modernidade e da pós-modernidade, nos resta, dizia Daniel, a
força irredutível da indignação, a incondicional recusa da injustiça,
que são o contrário exato do costume e da resignação. “A indignação é um
começo. Uma maneira de se erguer e de se colocar em movimento.
Primeiro a gente se indigna, se insurge e depois vê”.
Seu hino poético-filosófico à glória da
resistência – esta “paixão messiânica de um mundo justo que não aceita
sacrificar o “cintilar do possível diante da terna fatalidade do real” –
se inspira ao mesmo tempo na paciência do marrano e na impaciência
messiânica de Franz Rosenzweig e Walter Benjamin. É também inspirado na
profecia do Antigo Testamento, que não se propõe predizer, como a
adivinhação antiga o futuro, mas, ao contrário, soar o alerta da
catástrofe possível. O profeta bíblico, como já o havia sugerido Max
Weber em seu trabalho sobre o judaísmo antigo, não procede com ritos
mágicos, mas convida a agir. Contrariamente ao esperar e ver
apocalíptico e aos oráculos de um destino inexorável, a profecia é uma
antecipação condicional, significada pelo oulai (“se”)
hebraico. Ela busca desviar a trajetória catastrófica, conjurar o pior,
manter aberto o feixe dos possíveis, logo ela é um apelo estratégico à
ação. Segundo Daniel, há profecia em toda grande aventura humana,
amorosa, estética ou revolucionária.
—————
Entre todas as “heresias” de Daniel
Bensaïd, quer dizer, suas contribuições para a renovação do marxismo, a
mais importante, a meus olhos, é a sua ruptura radical com o
cientificismo, o positivismo e o determinismo que se impregnaram tão
profundamente no marxismo “ortodoxo”, principalmente na França.
Um de seus últimos escritos foi uma
longa introdução aos escritos de Marx sobre a Comuna – uma brilhante e
enérgica defesa e ilustração do político enquanto pensamento
estratégico revolucionário. A doutrina oficial pretende que não há
pensamento político em Marx, já que a sua teoria se resume ao
determinismo econômico. Ora, a leitura de seus escritos políticos,
principalmente a sequência Lutas de classe na França, O 18 de brumário de Luís Bonaparte e A guerra civil na França (os
dois últimos publicado no Brasil pela Boitempo em 2011) mostra, muito
pelo contrário, uma leitura estratégica dos acontecimentos, levando em
consideração a temporalidade própria do político, os antípodas do tempo
mecânico do relógio e do calendário. O tempo não-linear e sincopado
das revoluções no qual se cavalgam as tarefas do passado, do presente e
do futuro é sempre aberto à contingência. A interpretação de Marx por
DB é, certamente, influenciada por Walter Benjamin e pelas polêmicas
antipositivistas de Blanqui, dois pensadores revolucionários aos quais
ele rende uma homenagem apoiada.
Auguste Blanqui é uma referência
importante nesta abordagem crítica. No artigo de 2006, mencionado mais
acima, ele lembra a polêmica de Blanqui contra o positivismo, esse
pensamento de progresso em boa ordem, de progresso sem revolução, esta
“doutrina execrável do fatalismo histórico” erigida na religião. Contra a
ditadura do fato consumado, acrescentava Bensaïd, Blanqui proclamava
que o capítulo das bifurcações ficava aberto à esperança. Contra “a
mania do progresso e do desenvolvimento contínuo”, a irrupção eventual
do possível no real se chamava revolução. A política que prevalece sobre
a história. E propunha as condições de uma temporalidade estratégica e
não mais mecânica, “homogênea e vazia”. Logo, para Blanqui, “a
engrenagem das coisas humanas não é fatal como a do universo, ela é
modificável em cada minuto”. Daniel Bensaïd comparava esta fórmula com
ade Walter Benjamin: cada segundo é a porta estreita por onde pode
surgir o Messias, quer dizer, a revolução, esta irrupção eventual do
possível no real.
Sua releitura de Marx, à luz de Blanqui,
de Walter Benjamine de Charles Péguy, o conduz a conceber a história
como uma série de ramificações e bifurcações, um campo de possíveis onde
a luta de classes ocupa um lugar decisivo, mas cujo resultado é
“imprevisível”. Em Le pari mélancolique [A aposta melancólica]
(Fayard, 1997), talvez seu mais belo livro, o mais “inspirado”, ele
retoma uma fórmula de Pascal para afirmar que a ação emancipadora é “um
trabalho para o incerto”, implicando numa aposta no futuro: uma
esperança que não é demonstrável cientificamente, mas sobre a qual
envolve-se a existência por inteiro. Redescobrindo a interpretação
marxista de Pascal de Lucien Goldmann, ele define o envolvimento
político como uma aposta pensada sobre o devir histórico, “com o risco
de perder tudo ou de se perder”. A aposta é inelutável, num sentido ou
no outro: como escrevia Pascal, “embarcamos”. Na religião do deus oculto
(Pascal) como na política revolucionária (Marx), a obrigação da aposta
define a condição trágica do homem moderno.
A revolução deixa, portanto, de ser o
produto necessário das leis da história, ou das contradições econômicas
do capital para se transformar numa hipótese estratégica, um horizonte
ético, “sem o qual a vontade renuncia, o espírito da resistência
capitula, a fidelidade falha, a tradição se perde”. A ideia de revolução
se opõe à sequência mecânica de uma temporalidade implacável.
Refratária à conduta causal dos fatos ordinários, ela é interrupção.
Momento mágico, a revolução leva ao enigma da emancipação em ruptura com
o tempo linear do progresso, esta ideologia da caixa de poupança tão
violentamente denunciada por Péguy, onde a cada minuto, a cada hora que
passa supõe-se trazer algum crescimento à sua pequena poupança através
de aumentos nos juros.
Em consequência, como ele explica em Fragments mécréants
[Fragmentos canalhas] (Lignes, 2005), o homem revolucionário é o da
dúvida em oposição ao homem de fé, um indivíduo que aposta nas
incertezas do século, e que põe uma energia absoluta a serviço de
certezas relativas. Logo, alguém que tenta, incansavelmente, praticar
esse imperativo exigido por Walter Benjamin em seu último escrito, as
Teses “Sobre o conceito de história” (1940): escovar a história a
contrapelo.
—————
Daniel fará falta. Já o faz, cruelmente.
Mas pensamos que ele gostaria que nos lembrássemos da famosa mensagem
de Joe Hill, o I.W.W., o poeta e músico do sindicalismo revolucionário
norte-americano, a seus camaradas, às vésperas de ser fuzilado pelas
autoridades (sob falsas acusações) em 1915: “Don’t mourn, organize!”.
Não lamentem, organizem (a luta)!
(escrito quando do falecimento de Daniel Bensaïd, em 2010). Traduzido do francês por Leonardo Gonçalves e publicado no blog da Boitempo.
***
Daniel Bensaïd (1946-2010),
filósofo e dirigente da Liga Comunista Revolucionária, foi um dos
militantes mais destacados dos movimentos de Maio de 1968. Foi professor
de Filosofia da Universidade de Paris VIII. Autor de muitas obras,
tem, entre as publicadas em português, Os irredutíveis (Boitempo, 2008), Marx, o intempestivo (1999) e, em co-autoria com Michael Löwy, Marxismo, modernidade e utopia (2000).
***
Michael Löwy,
sociólogo, é nascido no Brasil, formado em Ciências Sociais na
Universidade de São Paulo, e vive em Paris desde 1969. Diretor emérito
de pesquisas do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS).
Homenageado, em 1994, com a medalha de prata do CNRS em Ciências
Sociais, é autor de Walter Benjamin: aviso de incêndio (Boitempo, 2005) e Lucien Goldmann ou a dialética da totalidade (Boitempo, 2009) e organizador de Revoluções (2009), dentre outras publicações. Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente, às sextas-feiras.
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Militares ameaçam jovens que protestaram contra comemoração do golpe de 1964
Samir Oliveira no SUL21
Cinco jovens do Rio de Janeiro que protestaram contra a comemoração
do golpe de 1964 feita por militares da reserva no dia 29 de março estão
sendo ameaçados e tendo suas vidas expostas. O site A Verdade Sufocada, mantido pelo coronel da reserva Carlos Alberto Brilhante
Ustra, publicou fotos com o nome de cinco manifestantes e os locais
onde eles trabalham. A ira da caserna recaiu com mais força sobre Luiz
Felipe Garcez, que foi flagrado numa fotografia cuspindo no
coronel-aviador Juarez Gomes enquanto ele deixava o Clube Militar no Rio
de Janeiro.
O site de Ustra, ex-comandante do DOI-CODI de São Paulo e torturador
reconhecido pela Justiça, informa o e-mail e os perfis no Twitter e no
Facebook de Luiz Felipe. Os dados se espalharam por sites e blogs
mantidos por militares, que estão postando diversas ameaças aos cinco
jovens pela internet.
No blog
do coronel da reserva Lício Maciel – que participou da repressão à
Guerrilha do Araguaia – há um vídeo de 3 minutos, que já foi retirado do
YouTube, com o título de “maloqueiros alucinados”, em referência aos
manifestantes. Os jovens são tratados o tempo inteiro como criminosos e
agressores de idosos e os militares fazem questão de expor informações
sobre eles.
No post que exibe o vídeo, o comentário de um sujeito identificado
como Eduardo Cruz demonstra que a vida desses cinco jovens –
especialmente a de Luiz Felipe – foi investigada. “Após um levantamento
preliminar, obtive algumas informações importantes sobre o covarde que
agrediu aquele senhor idoso no dia 29. O nome completo do meliante é
Luiz Felipe Monteiro Garcez, vulgarmente conhecido como Pato, estudante
do curso de Produção Cultural do IFRJ (Instituto Federal do Rio de
Janeiro) desde 2010. Tem 25 anos de idade, frequenta o Diretório
Estadual do PT no Rio de Janeiro e não trabalha”, escreveu o
comentarista, que fornece informações dos empregos que o jovem já teve.
Eduardo Cruz vai além em seu comentário no blog de Lício Maciel. Ele
dá informações sobre a família de Luiz Felipe e ainda faz juízo de valor
sobre sua criação. O comentarista cita o nome da “namoradinha” de Luiz
Felipe, informa que ele tem uma filha, publica o nome dos pais do jovem e
ainda comenta que eles “visivelmente falharam na educação do moleque”.
Eduardo Cruz finaliza o comentário dizendo que “por enquanto é isso” e
assegurando que irá prosseguir com a “averiguação” e que voltará “em
breve com informações sobre os outros agressores presentes naquele
episódio”.
Nesse mesmo post do blog do coronel Lício Maciel há um link para uma
pasta no site de compartilhamentos 4Shared com informações sobre a vida
de Luiz Felipe Garcez. São exibidas fotos dele, de sua mulher e até de sua filha. Uma das imagens mostra o jovem com a filha recém-nascida no colo, com as devidas identificações.
“Não podemos nos permitir ter medo”, diz jovem ameaçado
Em conversa por telefone com o Sul21, Luiz Felipe
Garcez conta que já recebeu mais de 150 ameaças por Facebook e por
e-mail. Ele assegura que o vídeo feito com informações sobre sua vida,
de seus amigos e de sua família – que chegou a ter mais de 11 mil
acessos até ser retirado do ar – foi produzido por um jovem “infiltrado”
no protesto do dia 29 de março e diz que vai entrar
com processos judiciais contra as pessoas que estão expondo sua vida.
“Estamos tomando medidas preventivas, documentando as ameaças e vamos
entrar com um processo por incitação ao ódio. Não podemos ter medo,
senão vão entender que esse tipo de intimidação funciona”, comenta.
Ele acredita que os ataques venham de grupos organizados de extrema
direita – com a presença ou não de militares. “São grupos organizados
politicamente que podem ter militares da ativa. Mas não é a instituição
Exército que está nos atacando, são fascistas que se organizam
internamente”, explica.
Luiz Felipe garante que continuará denunciando os abusos e não se
intimidará com as ameaças. “Sabemos que é isso que eles fazem, não
podemos esperar nenhum tipo de reação diferente. São filhotes de uma
ditadura que matou, perseguiu e torturou, ainda tem muita gente que
acredita nisso. Muitos dos que eles mataram deram a vida para que
pudéssemos estar hoje protestando. Não podemos nos permitir ter medo”,
defende.
Outro manifestante exposto por Ustra, Rodrigo Mondego, também conversou por telefone com o Sul21
e disse que também vem sofrendo ameaças. “Se identificam como militares
e nos ameaçam de morte. Entramos em contato com o ouvidor da Secretaria
de Direitos Humanos da Presidência da República, com a Defensoria
Pública do Rio de Janeiro, com a OAB-RJ e vamos conversar também com
Ministério Público Federal”, avisa.
Rodrigo explica que o principal objetivo é retirar a exposição de
seus dados e dos seus amigos dos sites dos militares. “Podemos ver que
vários blogs de militares nos citam, basta colocar nossos nomes no
Google”, lamenta.
Ele acredita que há policiais da PM do Rio de Janeiro atuando para
ajudar na apuração de informações sobre sua vida e a dos outros jovens
expostos. E lembra que havia diversos agentes disfarçados da P2 – o
setor de investigações da Polícia Militar carioca – durante a
manifestação contra a comemoração do golpe no dia 29 de março. “Eles são
organizados e muita gente simpatiza com a lógica da ditadura. As
ameaças são virtuais, mas vindo de onde estão vindo, tememos que se
transformem em realidade”, considera.
Rodrigo diz que está tomando precauções quanto à sua segurança e
admite que as ameaças afetam o seu cotidiano. “A tortura psicológica
está funcionando”, desabafa.
Dentre as centenas de pessoas que participaram do protesto no dia 29
de março, apenas cinco jovens foram expostos por Ustra. Rodrigo Mondego
acredita que foram escolhidos por estarem envolvidos na organização do
ato, além de serem todos amigos de Luiz Felipe Garcez. Além disso, todos
militam na juventude do PT do Rio de Janeiro.
Resistência civil, a nova estratégia palestina
Escrito por Luiz Eça no CORREIO DA CIDADANIA |
Do fundo de sua cela numa prisão israelense, onde cumpre pena de
prisão perpétua, Marwan Barghouti apresentou a nova estratégia dos
movimentos palestinos. Depois de afirmar que o processo de paz estava
morto, ele conclamou seu povo à resistência civil.
A estratégia militar, através de atentados e lançamento de mísseis
contra o território israelense, também fracassara. E não só pela imensa
superioridade militar israelense, mas também por repercutir mal na
opinião pública externa.
Os atentados, sempre divulgados com o maior destaque pela imprensa
internacional, abalavam a imagem pública dos movimentos de libertação. E
os duelos entre os mísseis lançados de Gaza e a aviação israelense não
só resultavam em perdas muito maiores para os palestinos como também,
ainda pela ação da imprensa, pareciam ter sido provocados por eles.
O processo de paz, através de negociações com Israel, sob patrocínio
dos EUA e da Europa Unida, já tinha se mostrado incapaz de chegar à
parte alguma, depois de 19 anos inúteis.
Como diz o ditado inglês, “it takes two to tango” (é preciso dois
para dançar o tango), ficou mais do que claro que os líderes de Israel,
especialmente o atual, Bibi Netanyahu, não estavam nem um pouco
interessados numa paz justa com os árabes. Seu objetivo, especialmente
agora, nunca foi atender aos desejos dos árabes palestinos.
Se os governos israelenses anteriores ainda faziam concessões, embora
insuficientes, o atual não faz nenhuma. A política de Netanyahu sempre
foi adiar ao máximo o início das negociações, ganhando tempo para
aumentar constantemente o número de assentamentos na Margem Oeste e em
Jerusalém, tornando sua ocupação um fait accompli.
Com isso vai ficando cada vez mais difícil a formação de um Estado palestino independente. Até tornar-se inviável.
As esperanças depositadas em Obama após o “histórico” discurso do
Cairo, no qual defendeu a independência da Palestina, já foram
desfeitas.
Se ainda restavam algumas, sumiram de vez diante do discurso do
presidente dos EUA na reunião da AIPAC (maior lobby judeu-americano).
Nessa ocasião, ele declarou que fizera de tudo em defesa de Israel. E
citou muitas medidas nesse sentido, a maioria delas contrárias às leis
internacionais e aos justos interesses palestinos.
Mais ultimamente, o governo Obama mostrou sua total parcialidade, que
o incapacita a ser um árbitro no conflito da Palestina: foi o único
voto contrário à criação de uma comissão de investigação dos problemas
dos assentamentos, aprovada por 36 votos na Comissão de Direitos Humanos
da ONU.
Fato chocante, pois Obama passou todo o seu primeiro ano de governo
pedindo que Israel interrompesse a fundação de novos assentamentos para
permitir o início das negociações.
Sem ter força militar capaz de enfrentar Israel, sem o interesse
israelense numa Palestina independente, sem o apoio de Obama para
garantir as negociações de paz, a resistência civil era mesmo a única
saída que restava.
Em mensagem escrita, enviada através de um portador, Barghouti
declarou: “Parem de fazer marketing com a ilusão de que há alguma
possibilidade de terminarmos a ocupação e conseguirmos um Estado livre
através de negociações, quando isso falhou miseravelmente”.
E apontou sua solução: “O lançamento da resistência popular em larga
escala neste estágio é o que interessa à causa do nosso povo.”
Barghouti faz um apelo à não-violência, deixando claro que a
resistência civil é mais do que isso. Consiste em usar todos os meios
possíveis para protestar e denunciar a violência da ocupação e cortar
toda a cooperação com os israelenses em segurança e assuntos econômicos.
A investigação a ser feita pela ONU, através de enviados da Comissão
de Direitos Humanos, permitirá que se revele ao mundo as barbaridades
sofridas pelo povo da Palestina, sob a ocupação israelense. E, o que é
muito importante, terá sua veracidade comprovada por uma entidade
respeitada internacionalmente.
Por isso mesmo, Netanyahu, ajudado pelos prestimosos amigos
estadunidenses, está acusando de faccioso o setor de Direitos Humanos da
ONU. Seu argumento principal é que das 91 decisões de investigação, 39
foram sobre Israel. O que na verdade depõe contra seu país. Se é alvo de
tantas comissões de investigação é porque nele se praticam as maiores
violências contra os direitos humanos.
Bargouthi tem grande prestígio junto aos palestinos de todas as facções. Acredita-se que suas propostas serão aceitas.
Muitos líderes do Hamas e do Fatah querem que ele suceda a Abbas na
presidência da Autoridade Palestina. No entanto, a resistência civil
poderá implicar no fim da Autoridade Palestina, já que faz parte de suas
funções colaborar com o governo israelense.
Com isso, os EUA e a Europa Unida serão também responsabilizados pelo fracasso das negociações de paz.
Vale lembrar que Tony Blair foi escolhido como enviado especial desse
conjunto de nações para promover as negociações entre as partes. Pelo
nenhum resultado dessa missão, faz-se pesar que ele se limitou a fazer
turismo.
Muita coisa pode acontecer agora. Bargouthi poderá não ser obedecido.
O Hamas continuará em pé de guerra e o Fatah fazendo de conta que
acredita nas negociações com Israel.
Até mesmo Barghouti poderá ser anistiado pelos israelenses, por ser
pragmático e aceitar o Estado de Israel, embora nos limites de 1967, com
uma Palestina independente tendo soberania sobre Jerusalém Oriental.
Não será por Netanyahu, é claro, mas por seu sucessor, que nunca poderá
ser tão duro quanto ele.
Adotando o caminho da resistência civil, a renúncia dos palestinos ao
processo de paz implicará provavelmente no fim da Autoridade Palestina,
que foi criada em função desse processo.
Livre ou preso, Barghouti é uma voz que os palestinos ouvem. É de se
acreditar que sua estratégia será posta em prática. Mas não se pode
pensar em resultados a curto prazo.
A resistência civil vai atrair uma repressão ainda mais violenta de
Israel. Que tornará cada vez mais negativa sua imagem internacional e
mais urgente uma solução. Serão necessários muitos anos. Muito tempo
para as pessoas da Europa se emocionarem o bastante e se associar aos
palestinos nos protestos. E mais tempo ainda para os estadunidenses e os
israelenses sentirem e agirem igual.
Bargouthi acredita que só quando isso acontecer haverá pressão
externa e até interna para o governo de Israel aceitar uma Palestina
independente e viável.
Luiz Eça é jornalista.
Website: www.olharomundo.com.br
|
Monólogos da Vagina
Os
Monólogos da Vagina foi criado e interpretado por Eve Ensler, que
debutou no off Broadway em 1996. Este controverso trabalho iniciou
rapidamente uma onda nacional de boas críticas e continuou a percorrer a
América do Norte e todo o mundo.O show foi chamado "um fenômeno real e
verdadeiro" pelo The New York Times. "Um trabalho de arte com um texto
inteligente" disse o Variety. "Simplesmente espetacular. Nota ´A´" disse
a Entertainment Weekly. Agora, a intimidade do show original de Eve
Ensler foi magnificamente trazida para a tela. Os Monólogos da Vagina
captura a performance única de Eve Ensler e viaja para além dos palcos à
medida que ela
explora o ímpeto criativo por trás dos monólogos, e conduz uma série de
novas e reveladoras entrevistas tão inspiradoras como aquelas que
motivaram o trabalho original.
Até onde vai a insubordinação militar
ESTIGMA
Luís Fernando Veríssimo no CONTEXTOLIVRE
É difícil acreditar que não exista, entre os militares, uma corrente, ou
talvez até uma maioria, que reprova a atitude dos clubes de reformados
das Forças Armadas em relação à Comissão da Verdade e ao esclarecimento
final do que houve nos anos de rebeldia e repressão.
Dos clubes militares só se pode esperar bravatas vazias mas ignora-se
até que nível vai a mesma insubordinação entre os da ativa.
Entende-se a resistência a remexer lama antiga mas é impossível que se
continue a sonegar à Nação uma parte tão importante da sua história. E é
impossível que ainda confundam a preservação da honra da instituição
militar com o silêncio, e prefiram o estigma das acusações nunca
investigadas ao esclarecimento.
LEGADO
Dizem que o legado mais importante de qualquer presidente americano não
são suas obras, suas escolhas econômicas ou sua herança política, são
suas nomeações de juízes para a Suprema Corte.
Os juízes supremos, com suas decisões e interpretações da lei, são os
que determinam os rumos do país, seja quem for o presidente — que é
apenas temporário, enquanto eles costumam ser longevos. A Suprema Corte
americana (muito mais marcadamente do que a nossa, onde há algumas
figuras intermediárias) se divide em conservadores e liberais, e nos
últimos anos tem sido dominada pelos conservadores. Que, apesar da
antipatia declarada da maioria por uma Corte muito “ativista”, tem se
metido bastante em política.
Foi a atual Corte, com duas ou três exceções, que literalmente doou a
reeleição ao Bush, quando houve aquele problema da recontagem dos votos
para ele e para o Gore na Flórida e havia a ameaça de que a recontagem
favoreceria o Gore. A Corte mandou parar a recontagem.
Estes mesmos juízes, quase todos nomeados por republicanos, estavam
infernizando a vida do Obama, que tenta criar um programa de saúde publica que só os Estados Unidos não têm, entre as potências industriais do mundo, e que os juízes retalharam.
CAÇA-NIQUEIS
A mesma Suprema Corte americana decidiu eliminar qualquer limite ao que
empresas e corporações podem doar aos candidatos a cargos públicos em
campanha. Antes, claro, já davam muito dinheiro escondido, ou você pensa
que a Caixa 2 foi inventada no Brasil?
Agora podem dar às claras, e o quanto quiserem. E os candidatos prometerem o melhor governo que o dinheiro pode comprar.
No Brasil deveríamos fazer o mesmo, uma espécie de leilão em que o
candidato se ofereceria abertamente ao maior patrocinador com o
compromisso de defender seus interesses no governo ou no Congresso. O
que nos pouparia de espetáculos melancólicos como o do Demóstenes —
claramente uma vítima do sistema atual de financiamento de campanhas —
negociando apoio clandestino com o rei dos caça-níqueis.
quarta-feira, 4 de abril de 2012
As eleições na França
Entusiasmo provocado por Jean-Luc Mélenchon deu uma nova esperança às classes trabalhadoras, aos militantes veteranos e a milhares de jovens indignados
Por Ignacio RamonetPublicado por Esquerda.net. Foto de R. Blang, retirado do blogue de Jean-Luc-Melenchon
Na França, a eleição presidencial é “a mãe de todas as votações” e o ponto incandescente do debate político. Ela
ocorre a cada cinco anos. É um sufrágio universal direto em dois
turnos. Em princípio, qualquer cidadão francês pode apresentar-se como
candidato no primeiro turno, que desta vez será no dia 22 de abril.
Deve, porém, cumprir uma série de requisitos. Entre eles, contar com o
apoio de 500 representantes eleitos de, pelo menos, 30 departamentos
distintos1.
Se nenhum candidato obtiver maioria absoluta (50% dos votos mais um),
um segundo turno será realizado duas semanas depois. Desde a inauguração
da Quinta República em 1958, houve sempre um segundo turno. Participam
dele somente os dois candidatos mais votados no primeiro turno. Ou seja,
será preciso esperar até ao dia 6 de maio para conhecer o resultado.
Neste período, toda a vida política do país gira em torno desse
acontecimento central.
No momento, ninguém pode considerar a disputa ganha. Segundo todas as
sondagens, a final será disputada entre dois candidatos: o atual
presidente conservador, Nicolas Sarkozy, e o líder socialista, François
Hollande. Mas restam ainda várias semanas de campanha e muita coisa pode
acontecer2. Além disso, cerca de um terço dos eleitores não decidiram ainda em quem votar.
Os debates desenvolvem-se num contexto marcado por dois fenômenos
principais: 1) a maior crise econômica e social que a França já conheceu
nas últimas décadas3; 2) uma crescente desconfiança sobre o funcionamento da democracia representativa.
A Constituição só autoriza dois mandatos consecutivos. O presidente
Sarkozy anunciou oficialmente, no dia 15 de fevereiro, a sua candidatura
à reeleição. Desde então, a poderosa máquina do seu partido, a União
por um Movimento Popular (UMP), foi colocada briosamente em
funcionamento e conseguiu que todos os demais candidatos de direita (com
exceção de Nicolas Dupont-Aignan) se retirassem da disputa, deixando
Sarkozy como único representante da corrente conservadora4.
A batalha, porém, não será fácil. Todas as sondagens apontam Sarkozy
como derrotado no segundo turno pelo candidato socialista François
Hollande.
Sarkozy tornou-se muito impopular. No exterior, muitas pessoas não
aceitam isso, unicamente porque privilegiam a sua imagem de líder
internacional enérgico, dirigindo, juntamente com Angela Merkel, as
cúpulas europeias ou as reuniões do G-20. Além disso, em 2011, ele
assumiu também uma postura de chefe militar e conseguiu ganhar duas
guerras, na Costa do Marfim e na Líbia
Por outro lado, no terreno do “glamour”, o seu casamento com a
célebre ex-modelo Carla Bruni, com quem acaba de ter uma filha,
contribuiu para fazer dele um ator permanente da imprensa de
celebridades. Daí a perplexidade de parte da opinião pública estrangeira
ante a sua eventual derrota eleitoral.
Mas é preciso levar em conta, em primeiro lugar, um princípio
político quase universal: não se ganham eleições graças a um bom balanço
de política externa, por melhor que ele seja. O exemplo histórico mais
conhecido é o de Winston Churchill, o “velho leão” britânico vencedor da
Segunda Guerra Mundial e derrotado nas eleições de 1945. Outro exemplo é
o de Richard Nixon, o presidente norte-americano que colocou um fim à
Guerra do Vietnã e reconheceu a China Popular, mas viu-se obrigado a
renunciar para não ser substituído. É preciso considerar também que
outra lei parece ter-se estabelecido na Europa nestes últimos anos no
contexto da crise financeira: nenhum governo que disputou a reeleição
saiu vencedor.
Em segundo lugar, está o balanço do seu mandato, que é execrável.
Além dos numerosos escândalos em que esteve envolvido, Sarkozy foi o
“presidente dos ricos” a quem brindou com regalias fiscais inéditas,
enquanto sacrificava as classes médias e desmantelava o Estado de bem
estar. Essa atitude alimentou críticas de todos os cidadãos que, pouco a
pouco, foram sendo engolidos pelas dificuldades: perda de emprego,
redução do número de funcionários, ampliação da idade de reforma,
aumento do custo de vida. Não cumpriu as suas promessas e a deceção dos
franceses aumentou.
Sarkozy cometeu também gigantescos erros de comunicação. Já na noite
de sua eleição, em 2007, ele exibiu-se num célebre restaurante
parisiense na avenida Champs Elisées, festejando sem constrangimento na
companhia de um punhado de multimilionários. Aquela interminável farra
no Fouquet’s acabou por se tornar o símbolo da vulgaridade e ostentação
do seu mandato. Os franceses não se esqueceram dela e muitos dos seus
eleitores mais humildes jamais o perdoaram.
Com a sua hiperatividade, a sua vontade de estar presente em todas as
partes e de decidir tudo sozinho, Sarkozy esqueceu uma regra
fundamental da Quinta República: o presidente – que possui mais poder
que qualquer outro chefe de Executivo das grandes democracias mundiais –
deve saber ser reservado e dosar com prudência as suas intervenções
públicas. Deve ser o senhor da penumbra e não se queimar por excesso de
exposição. E foi o que acabou por acontecer. O excesso de visibilidade
acabou por desgastar a sua autoridade, convertendo-o numa caricatura de
si mesmo, a caricatura de um dirigente permanentemente empolgado,
impetuoso, excitado...
Nenhuma sondagem, até agora, aponta Sarkozy como vencedor destas
eleições. Mas ele é um guerreiro disposto a tudo. E também, às vezes, um
mentiroso sem escrúpulos, capaz de agir como um verdadeiro aventureiro.
Foi assim que, desde que se lançou na campanha no mês passado, com um
descaramento monumental não hesitou em apresentar-se - ele que foi o
“presidente dos ricos” – como o “candidato do povo”, esgrimindo
argumentos próximos da xenofobia para roubar votos à extrema-direita. O
movimento teve eficácia eleitoral. Imediatamente as sondagens de
intenção de voto disseram que ele ganhou vários pontos conseguindo
ultrapassar o candidato socialista no primeiro turno.
François Hollande é, no momento, o favorito, segundo as sondagens.
Todas, sem exceção o apontam como vencedor no próximo dia 6 de maio.
Pouco conhecido no exterior, Hollande é considerado pelos seus próprios
eleitores como um “burocrata” por ter sido durante mais de onze anos
(1997-2008) o primeiro secretário do Partido Socialista5.
Contrariamente à sua ex-companheira Segolène Royal, nunca foi ministro.
E a sua indicação como candidato dos socialistas não foi pacífica. Ele
só garantiu a nomeação após duríssimas eleições primárias no interior do
partido (nas quais, por razões fartamente conhecidas6, Dominique Strauss-Kahn, o preferido dos eleitores socialistas, não pode competir).
François Hollande é um social-liberal de centro, conhecido pelas suas
habilidades como negociador e a sua dificuldade em tomar decisões. Ele é
reprovado por ser demasiadamente tímido e manter-se permanentemente em
situações confusas. O seu programa econômico não se distingue
nitidamente, nas questões de fundo, do programa dos conservadores. Após
ter afirmado num discurso eleitoral que “o inimigo principal” era o
setor financeiro, ele apressou-se a ir a Londres para tranquilizar os
mercados lembrando-lhes que ninguém privatizou e liberalizou mais que os
socialistas franceses7.
No que diz respeito ao euro, à dívida soberana e aos déficits
orçamentais, Hollande – que afirma agora querer renegociar o Pacto
Fiscal8 –
segue a mesma linha de outros dirigentes social-democratas, como Yorgos
Papandreou (Grécia), José Sócrates (Portugal) e José Luis Zapatero
(Espanha), que depois de terem renegado seus princípios e aceitado a
forca de Bruxelas, foram eleitoralmente expulsos do poder.
A flacidez política de François Hollande aparece ainda mais flagrante
quando comparado com o candidato da Frente de Esquerda, Jean-Luc
Mélenchon. Com 14% das intenções de voto, ele é a grande revelação
destas eleições. Os seus comícios são os que reúnem o maior número de
pessoas e os seus discursos,
verdadeiros modelos de educação popular, são os que despertam maior
entusiasmo. No dia 18 de março, aniversário da revolução da Comuna de
Paris, conseguiu mobilizar cerca de 120 mil pessoas na Praça da
Bastilha, algo jamais visto nos últimos cinquenta anos. Tudo isso
deveria favorecer uma guinada à esquerda dos socialistas e de François
Hollande, ainda que as diferenças de propostas entre os dois sejam
abismais.
O programa de Jean-Luc Mélenchon, resumido num pequeno livro intitulado “L’Humain d’abord!” 9(O
humano em primeiro lugar!), que já vendeu centenas de milhares de
exemplares, propõe, entre outras medidas: repartir a riqueza e abolir a
insegurança social; retirar o poder dos bancos e dos mercados
financeiros; planificação ecológica; convocação de uma Assembleia
Constituinte para uma nova República; rompimento com o Tratado de Lisboa
e construção de outra Europa; iniciar a “desmundialização”.
O entusiasmo popular provocado por Jean-Luc Mélenchon dá uma nova
esperança às classes trabalhadoras, aos militantes veteranos e a
milhares de jovens indignados. É também uma resposta a uma democracia em
crise, na qual muitos cidadãos já não acreditam na política nem no
ritual das eleições.
Enquanto a extrema-direita diminui de tamanho e fracassa a tentativa
de revivê-la mediante a experimentação de Marine Le Pen, estas eleições
presidenciais francesas podem demonstrar que, numa Europa desorientada e
em crise, continua viva a esperança de construir um mundo melhor.
1 Esta exigência revelou-se insuperável para pelo menos dois pretendentes importantes: Dominique de Villepin, gaulista, ex-primeiro ministro, e Corinne Lepage, ecologista, ex-ministra, acabaram excluídos da competição.
2 Por
exemplo, o assassinato de três militares no sul da França e a odiosa
matança de crianças judias em Tolouse no dia 19 de março, cometidos por
um jovem jihadista relacionado com a Al Qaeda, impactaram com força a
campanha, dando naturalmente um protagonismo particular ao presidente
Nicolas Sarkozy.
3 Taxa de desemprego: 9,8%. Desemprego dos jovens com menos de 25 anos: 24%. Número total de desempregados: 4,5 milhões.
4 Retiraram-se
da disputa em favor de Sarkozy: Christine Boutin (Partido Democrata
Cristão), Hervé Morin (Novo Centro) e Frédéric Nihous (Caça, Pesca,
Natureza e Tradições). Pelo mesmo motivo, o centrista Jean-Louis Borloo
não apresentou a sua candidatura. E a eliminação de Dominique de
Villepin e de Corinne Lepage terá também como consequência a migração do
apoio da maioria de seus eleitores para a candidatura de Sarkozy.
6 Sobre esse tema ler: “Uma izquierda descarriada”,de Ignacio Ramonet, Le Monde Diplomatique em espanhol, junho de 2011.
6 Sobre esse tema ler: “Uma izquierda descarriada”,de Ignacio Ramonet, Le Monde Diplomatique em espanhol, junho de 2011.
7 The Guardian, Londres, 14 de fevereiro de 2012.
8 Sobre esse tema ler: “Nuevos protectorados”, de Ignacio Ramonet, Le Monde Diplomatique em espanhol, março de 2012.
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