Novo documento elaborado por uma força tarefa do "Council on Foreign
Relations" voltou a gerar, em parte do debate nacional brasileiro,
principalmente nas esferas mais próximas às políticas de alinhamento com
os EUA, elevado otimismo. O texto considera que os norte-americanos
precisam aprofundar ainda mais os laços com o Brasil, baseado em uma
visão histórica de prévias alianças, mas, principalmente, de
necessidades futuras dos EUA, seja em termos de engajamento do poder
brasileiro, como de sua contenção e dos demais emergentes.
Nos últimos meses, o Brasil e outros países
emergentes como a China e a Índia foram foco de investidas
norte-americanas, criticando sua projeção de poder e ações autônomas no
sistema internacional. Contraposta à premissa da multipolaridade, a do
domínio hegemônico ocidental foi reafirmada em inúmeras oportunidades
pelo Presidente Obama e a Secretária de Estado Hillary Clinton,
refutando as teses de declínio. Da mesma forma, nações africanas foram
“alertadas” pelos Estados Unidos (EUA) sobre o “novo colonialismo”
praticado por estes emergentes.
Paralelamente, no embate interno, a administração democrata enfrenta
forte campanha midiática neoconservadora sobre a sua futura derrota
eleitoral em 2012, não importando a ausência de um candidato
republicando definido, e as pressões estruturais de uma economia em
crise quase que permanente, vide o recente debate sobre a elevação do
teto da dívida norte-americana. Diante deste cenário, prevalece a
imagem, e realidade, de uma sociedade fragmentada, pressionada por
grupos de interesse e dividida entre projetos polarizados.
Em meio a isso, porém, novo documento elaborado por uma força tarefa do
Council on Foreign Relations (CFR) intitulado “Global Brazil and
US-Brazil Relations” (disponível em
http://www.cfr.org/brazil/global-brazil-us-brazil-relations/p25407)
voltou a gerar, em parte do debate nacional brasileiro, principalmente
nas esferas mais próximas às políticas de alinhamento com os EUA,
elevado otimismo. Similar à expectativa causada pela visita do
Presidente Obama em março de 2011 ao país, inclusive por abordar de
forma “positiva e aberta” o reconhecimento do poder global do Brasil no
atual quadro das Relações Internacionais, o texto lançado neste mês de
Julho de 2011, já vem sendo muito comentado.
Todavia, estas manifestações, mais uma vez parecem descoladas da própria
contextualização do relatório, um estudo sustentado nos
desenvolvimentos dos últimos dez anos, e não uma reação imediatista
norte-americana à nova administração Dilma Rousseff que assumiu em
Janeiro de 2011. Novamente, no debate brasileiro, o arco que engloba os
dois últimos anos da administração Fernando Henrique Cardoso (1999/2002)
e a totalidade do governo Luis Inácio Lula da Silva (2003/2010), como
sustentáculos desta transformação, principalmente a fase Lula-Celso
Amorim, está obscurecida.
Igualmente, ignora-se, que este é um relatório específico, de um think
tank relevante, mas, também específico. Ligado a uma parcela do
establishment, o CFR é uma entidade altamente reconhecida dentro do
debate político norte-americano, tradicional na realização da ponte
entre setores acadêmicos, empresariais e governamentais de formulação de
política externa e tomada de decisão, que, contudo, não representa
consenso ou prevalece com tranqüilidade dentro da Casa Branca, do
Departamento de Estado ou de Defesa. Assim, recomendações como a de que
os EUA devem incluir o Brasil no Conselho de Segurança das Nações Unidas
(CSONU) como membro permanente, representam visões deste grupo, e não
necessariamente a totalidade das visões que competem politicamente nos
EUA.
Esta questão específica do assento no CSONU é inserida em uma proposta
abrangente de fortalecimento e amadurecimento da relação, em termos
discursivos e práticos, como a instalação de novas formas de contato
entre as diplomacias, e uma percepção norte-americana mais ampla sobre o
papel do Brasil, na região, no mundo e no sistema multilateral em geral
e não só na ONU. Ou seja, apesar das boas relações que os EUA têm com o
Brasil hoje, o texto considera que os norte-americanos precisam
aprofundar ainda mais estes laços, baseado em uma visão histórica de
prévias alianças, mas, principalmente, de necessidades futuras dos EUA,
seja em termos de engajamento do poder brasileiro, como de sua contenção
e dos demais emergentes.
Trata-se de um relatório bastante completo, no qual o Brasil é examinado
em sua dimensão nacional, suas ações globais e regionais, e o que isso
significa para as relações bilaterais. Não cabe aqui adentrar nos
pormenores do relatório uma vez que o mesmo é extenso, mas é
interessante destacar, por capítulo o que os EUA identificaram como
pertinente no que se refere ao país. No capítulo “A Economia Brasileira:
Mecanismos e Obstáculos” menciona-se a necessidade de ajustes
macroeconômicos (juros, crescimento e inflação), o impacto das ações dos
EUA no país (muito brevemente), e a relação comercial com a China.
Nesta parte, indica-se que seria interessante que Brasil-EUA tivessem
posições conjuntas para reduzir o impacto chinês em seus mercados. O
capítulo se encerra com uma discussão extensa sobre os potenciais
domésticos e os inúmeros pontos de estrangulamento do Brasil:
infraestrutura, educação, agricultura, mineração e metalurgia,
crescimento da classe média e inovação.
No segundo capítulo “A Agenda Energética Brasileira e as Mudanças
Climáticas”, destaca-se o papel positivo do Brasil no uso de uma matriz
variada de energia e a preocupação com o desenvolvimento sustentável.
Espaço significativo é reservado à discussão das reservas do pré-sal
brasileiro, assim como ao gás e ao etanol. Petróleo e etanol, porém, são
o foco. Em termos de agenda climática, controle de emissões,
desmatamento, Amazônia, biodiversidade são abordados, com os EUA
mantendo suas posições tradicionais de ressaltar a relevância do
engajamento do Brasil no tema, sua liderança no setor.
Na sequência, o capítulo “Brasil como um Diplomata Regional e Global” dá
grande destaque às alianças globais do Brasil como BRICS (Brasil,
Rússia, Índia, China, África do Sul), IBAS (Índia, Brasil, África do
Sul), o papel na Missão de Estabilização do Haiti (MINUSTAH) e retoma o
tema do assento permanente no CSONU. Temas sensíveis como Irã, Direitos
Humanos, abstenções brasileiras em votações do CSONU não apoiando a
posição dos EUA são discutidas, ressaltando a importância dos
norte-americanos compreenderem “o porquê das posições diferentes do
Brasil”, estendendo-se ao comércio multilateral e a estrutura
econômico-financeira global. Segundo o relatório, os EUA não devem
esperar consenso pleno do Brasil por conta de suas alianças com outras
nações e sua visão de autonomia (e que isso faria parte de uma tentativa
de provar independência e distanciamento dos EUA, mesmo quando o Brasil
concordasse com este país). Como se percebe, uma visão norte-americana
das motivações brasileiras.
No que se refere à região sul-americana, considera-se que a liderança
brasileira da integração é positiva para os EUA, devido ao papel
mediador e estabilizador brasileiro, em termos políticos e financeiros.
Aborda-se, igualmente, a política africana do Brasil, continente no qual
os norte-americanos perderam espaço para o país, a China e a Índia nos
últimos anos.
O último capítulo é dedicado especificamente a “Brasil e Estados
Unidos”, indicando a boa vontade mútua. Adentrando inicialmente os temas
Irã e Segurança Nuclear, o capitulo segue para comércio e investimento,
para voltar a temas de segurança como imigração e tráfico de drogas,
saúde, biocombustíveis, mudança climática. A conclusão segue parâmetro
similar, com foco em três pilares: interesses comuns, parceria madura e
aproveitar o momento. Segundo o relatório, este é o tempo para avançar
as relações bilaterais, alcançando benefícios mútuos.
Finalmente, não se pode negar que o documento é, realmente, um marco
para as relações bilaterais Brasil-EUA, independente das ressalvas aqui
colocadas. Apesar do longo histórico de relacionamento, do auge dos
estudos de brasilianistas nos anos 1960 e 1970, o intercâmbio sempre foi
visto por um prisma regional. Tal prisma, estruturalmente, localizava a
importância do Brasil para os EUA na América Latina. Em algumas
circunstâncias históricas norte-americanas nem mesmo este viés
prevalecia, com a predominância de uma visão generalista da política
externa dos EUA sobre o país inserido em “pacotes prontos” para o
hemisfério, vide as discussões da Área de Livre Comércio das Américas
(ALCA) e propostas anteriores.
Assim como a Estratégia de Segurança Nacional de maio de 2010, publicada
pelo Presidente Obama, trata-se de um documento progressista e que
revela as limitações dos EUA e a sua capacidade de renovação estratégica
para lidar com parceiros na dinâmica do “engajar para conter” (i.e, de
reinventar a hegemonia). Ao mesmo tempo, uma renovação que disputa
espaço com o declínio e o tradicionalismo, o isolacionismo, o
intervencionismo e o unipolarismo, gerando as reações e contrareações
hegemônicas já abordadas em artigo para Carta Maior. Reações e
contrareações que não se resumem a determinados grupos, mas possuem
ressonância em Washington, assim como este próprio relatório também
terá. Assim, no debate nacional não podemos nos esquecer que este é um
texto norte-americano, produzido e direcionado, para o público
norte-americano, e que terá o apoio de uma parte desta sociedade, como
visto na p.3:
As conclusões da Força Tarefa e suas recomendações são direcionadas não
somente as formuladores de políticas que lidam com as Américas, mas
também aqueles que nos EUA e em outras instâncias, são responsáveis por
decisões em questões estratégicas globais, temas econômicos e mecanismos
multilaterais nos quais a voz e a ação do Brasil são relevantes. As
conclusões e recomendações deste relatório fornecem uma estrutura para
políticas bipartidárias- globais, regionais e bilaterais- que levem em
conta as oportunidades e desafios da ascensão brasileira, no momento em
que os Estados Unidos e o Brasil enfrentam as grandes questões
internacionais do século XXI.
Portanto, são conclusões e recomendações para os EUA sobre o Brasil, mas
que devemos obrigatoriamente compreender sob nosso ponto de vista,
dentro de um projeto nacional de reposicionamento interno e global. Mais
ainda, como um poder global hoje, demonstra-nos a necessidade de melhor
estudar, e compreender, nossos parceiros mais próximos, sejam eles os
EUA, a China, a Índia, a África do Sul, as nações sul-americanas, os
continentes africano e asiático. Somente a partir deste olhar, poderemos
elaborar nossas conclusões e recomendações sobre nossos pares, para nós
mesmos.
Professora de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP)