AYRTON CENTENO no Brasilia Confidencial
Suponha que Ali Kamel fosse presidente da república. Fantasie um
pouco mais e descubra Miriam Leitão, também eleita, subindo a rampa do
Palácio do Planalto. Sob o impulso do mesmo delírio coloque Fátima
Bernardes candidata ao Senado Federal. Fátima vai disputar a cadeira que
o senador Faustão não deseja mais ocupar. Difícil conceber? É possível.
Mas não no Rio Grande do Sul. Ninguém ficaria surpreso. É que este
cotidiano sequestrado ao realismo fantástico “naturalizou-se” no
território gaúcho. Um exemplo: desde 1994, egressos dos quadros do grupo
RBS – a Globo local – disputam todas as eleições para governador
naquele que, durante muito tempo, jactou-se de ser o estado mais
politizado do Brasil. E, em duas ocasiões, eles venceram. Em 2010, a RBS
novamente está no páreo não apenas para o Palácio Piratini, mas também
para o Senado, a Assembleia Legislativa e a Câmara dos Deputados.
Com 21 emissoras de TV (18 afiliadas à Globo), 25 rádios, oito
jornais diários e quatro portais na internet, a RBS não comanda apenas a
mídia, mas boa parte dos corações e mentes no Sul. Em 1994, quando seu
ex-diretor de telejornalismo Antonio Britto elegeu-se governador, a
força do conglomerado tornou-se ainda mais notória. Nas prévias do PMDB,
os dois candidatos em confronto tinham raízes na RBS: Britto e o
deputado federal e apresentador de rádio e TV Mendes Ribeiro. Em 1998 e
2002, Britto tentou retornar ao governo. Em 2006, mais uma novidade
procedente da RBS chegaria ao Piratini: Yeda Crusius.
Eleita pelo PSDB, Yeda popularizou sua imagem com aparições
diárias no telejornal noturno da então TV Gaúcha, onde ocupava um espaço
de análise econômica. Dali desabrochou para a política a bordo de uma
esquisitice. No governo Itamar Franco, o presidente pediu ao amigo
Pedro Simon a indicação de uma mulher para fazer florir seu ministério
que considerava demasiadamente carrancudo e atulhado de homens. Simon
lembrou-se da professora de economia que aparecia bem na TV. E, como as
coisas aconteciam sob Itamar, da noite para o dia, Yeda virou ministra
do Planejamento. Durou 70 dias, uma passagem breve e bisonha — foi
informada da existência do Plano Real na coletiva de lançamento – mas
acarpetou seu trajeto para a Câmara Federal. Em 2010, tenta reeleger-se
governadora.
Para o Senado, a jornalista Ana Amélia Lemos é a representante do
poder do grupo no pleito de outubro. Após décadas chefiando a sucursal
de Brasília, com presença diária no rádio, na televisão e no jornal Zero
Hora, ela ingressou na corrida como candidata do PP. Mas, na cabeça do
eleitor, não vai estar o partido submerso no escândalo do Detran/RS, que
fez evaporar R$ 44 milhões dos cofres estaduais, e sim a figura que
diariamente entrava na sua sala para tratardos temas mais candentes do
Brasil. E conta com boas chances de sucesso, embora enfrentando dois
pesos-pesados: o atual senador Paulo Paim (PT) e o ex-governador Germano
Rigotto (PMDB).
Se isto ocorrer, Ana Amélia ocupará a cadeira do senador Sérgio
Zambiasi (PTB), apresentador de programas populares na rádio
Farroupilha, também da empresa. Aportando no Senado em 2002, após
sucessivas eleições como um dos deputados estaduais mais votados do país
e presidente da Assembleia Legislativa, Zambiasi absteve-se de
concorrer em 2010. Projeta um cargo no executivo em 2012 ou 2014.
Além das eleições majoritárias, os representantes do time da RBS
sempre se engajaram na caça às vagas nas proporcionais. Neste ano não
será diferente. O ex-vice-presidente institucional do grupo, Afonso
Motta, concorre a deputado federal pelo PDT. Um dos parlamentares mais
votados do estado em 2006, Paulo Borges elegeu-se com a ajuda do cognome
“O Homem do Tempo” – era o encarregado da previsão na RBS TV – e
disputa a reeleição pelo DEM.
Como regra quase sem exceções, os candidatos assim forjados não
possuem vida partidária pregressa, escalando cargos eletivos por obra da
exposição midiática e de sua natureza de personalidades
“não-políticas”. Com perfil conservador, alinham-se no espectro que vai
do centro à direita. Nesta modalidade de berlusconização delegada, como
emergem na condição de criaturas da mídia, dificilmente contrastam os
muitos interesses da mesma mídia que os criou.
Não falta quem diga que é um partido, o PRBS. Não falta quem diga
que é o único. Um exagero, deve-se convir. Porém, com os jornais mais
influentes, a TV aberta e as rádios AM e FM líderes de audiência,
supõe-se até que 90% dos assuntos que freqüentam as conversas dos
gaúchos tenham origem na pauta da RBS. Verdade ou não, vale como
elemento de reflexão sobre o efeito aberrante da concentração e da
propriedade cruzada dos meios de comunicação no jogo eleitoral e na
livre manifestação dos eleitores. Vinte e cinco anos após o suspiro
final de sua última ditadura, é uma pedra no caminho de um país que
ainda constrói penosamente sua democracia.
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