O neoliberalismo é a realização máxima do capitalismo: transformar
tudo em mercadoria. Foi assim que o capitalismo nasceu: transformando a
força de trabalho (com o fim da escravidão) e as terras em mercadorias.
Sua história foi a crescente mercantilização do mundo.
A crise de 1929 – de que o liberalismo foi unanimemente considerado o
responsável – gerou contratendências, todas antineoliberais: o fascismo
(com forte capitalismo de Estado), o modelo soviético (com eliminação
da propriedade privada dos meios de produção) e o keynesianismo (com o
Estado assumindo responsabilidades fundamentais na economia e nos
direitos sociais).
O capitalismo viveu seu ciclo longo mais importante do segundo
posguerra até os anos 70. Quando foi menos liberal, foi menos injusto.
Vários países – europeus, mas também a Argentina – tiveram pleno
emprego, os direitos sociais foram gradualmente estendidos no que se
convencionou chamar de Estado de bem-estar-social.
Esgotado esse ciclo, o diagnóstico neoliberal triunfou, voltando de
longo refluxo: dizia que o que tinha levado a economia à recessão era a
excessiva regulamentação. O neoliberalismo se propôs a desregulamentar,
isto é, a deixar circular livremente o capital. Privatizações, abertura
de mercados, “flexibilização laboral” – tudo se resume a
desregulamentações.
Promoveu-se o maior processo de mercantilização que a história
conheceu. Zonas do mundo não atingidas ainda pela economia de mercado
(como o ex-campo socialista e a China) e objetos de que ainda usávamos
como exemplos de coisas com valor de uso e sem valor de troca (como a
água, agora tornada mercadoria) – foram incorporadas à economia de
mercado.
A hegemonia neoliberal se traduziu, no campo teórico, na imposição da
polarização estatal/privado como o eixo das alternativas. Como se sabe,
quem parte e reparte fica com a melhor parte – privado – e esconde o
que lhe interessa abolir – a esfera pública. Porque o eixo real que
preside o período neoliberal se articula em torno de outro eixo: esfera
pública/esfera mercantil.
Porque a esfera do neoliberalismo não é a privada. A esfera privada é
a esfera da vida individual, da família, das opções de cada um – clube
de futebol, música, religião, casa, família, etc.. Quando se privatiza
uma empresa, não se colocam as ações nas mãos dos indivíduos – os
trabalhadores da empresa, por exemplo -, se jogam no mercado, para quem
possa comprar. Se mercantiliza o que era um patrimônio público.
O ideal neoliberal é construir uma sociedade em que tudo se vende,
tudo se compra, tudo sem preço. Ao estilo shopping center. Ou do modo de
vida norteamericano, em que a ambição de todos seria ascender como
consumidor, competindo no mercado, uns contra os outros.
O neoliberalismo mercantilizou e concentrou renda, excluiu de
direitos a milhões de pessoas – a começar os trabalhadores, a maioria
dos quais deixou de ter carteira de trabalho, de ser cidadão, sujeito de
direitos -, promoveu a educação privada em detrimento da publica, a
saúde privada em detrimento da pública, a imprensa privada em detrimento
da pública.
O próprio Estado se deixou mercantilizar. Passou a arrecadar para,
prioritariamente, pagar suas dívidas, transferindo recursos do setor
produtivo ao especulativo. O capital especulativo, com a
desregulamentação, passou a ser o hegemônico na sociedade. Sem regras, o
capital – que não é feito para produzir, mas para acumular – se
transferiu maciçamente do setor produtivo ao financeiro, sob a forma
especulativa, isto é, não para financiar a produção, a pesquisa, o
consumo, mas para viver de vender e comprar papéis – de Estados
endividados ou de grandes empresas -, sem produzir nem bens, nem
empregos. É o pior tipo de capital. O próprio Estado se financeirizou.
O neoliberalismo destruiu as funções sociais do Estado e depois nos
jogou como alternativa ao mercado: se quiserem, defendam o Estado que eu
destruí, tornando-o indefensável; ou venham somar-se à esfera privada,
na verdade o mercado disfarçado.
Mas se a esfera neoliberal é a esfera mercantil, a esfera alternativa
não é a estatal. Porque há Estados privatizados, isto é,
mercantilizados, financeirizados; e há Estados centrados na esfera
pública. A esfera pública é centrada na universalização dos direitos.
Democratizar, diante da obra neoliberal, é desmercantilizar, colocar na
esfera dos direitos o que o neoliberalismo colocou na esfera do mercado.
Uma sociedade democrática, posneoliberal, é uma sociedade fundada nos
direitos, na igualdade dos cidadãos. Um cidadão é sujeito de direitos. O
mercado não reconhece direitos, só poder de comprar, é composta por
consumidores.
Na esfera da informação, houve até aqui predomínio absoluto da esfera
mercantil. Para emitir noticias era necessário dispor de recursos
suficientes para instalar condições de ter um jornal, um rádio, uma TV. A
internet abriu espaços inéditos para a democratização da informação.
A democratização da mídia, isto é, sua desmercantilização, a
afirmação do direito a expressar e receber informações pluralistas, tem
que combinar diferentes formas de expressão e de mídia. A velha mídia é
uma mídia mercantil, composta de empresas financiadas pela publicidade,
hoje aderida ao pensamento único. Uma mídia composta por empresas
dirigidas por oligarquias familiares, sem democracia nem sequer nas
redações e nas pautas dos meios que a compõem.
A nova mídia, por sua vez, é uma mídia barata nos seus custos,
pluralista, crítica. O novo espaço criado pelos blogueiros progressistas
faz parte da esfera pública, promove os direitos de todos, a democracia
econômica, política, social e cultural. A esfera pública tem expressões
estatais, não-estatais, comunitárias. Todas comprometidas com os
direitos de todos e não com a seletividade e a exclusão mercantil.
São definições a ser discutidas, precisadas, de forma democrática,
aberta, pluralista, de um fenômeno novo, que prenuncia uma sociedade
justa, solidária, soberana. A possibilidade com que estão comprometidos
Dilma e Lula de uma Constituinte autônoma permite que se possa discutir e
levar adiante processos de democratização do Estado, de sua reforma em
torno das distintas formas de esfera pública, desmercantilizando e
desfinanceirizando o Estado brasileiro.
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