No
domingo passado, três dos principais veículos impressos do país
voltaram a destacar suas opiniões sobre o que consideram restrições à
liberdade de imprensa, depois de críticas feitas pelo presidente Luiz
Inácio Lula da Silva à cobertura eleitoral. Para o presidente, a
imprensa estaria se comportando "como um partido" de oposição.
Em um gesto pouco comum no Brasil, o jornal O Estado de São Paulo
assumiu seu apoio ao candidato da oposição, acusando o governo de
"perder a compostura" com as críticas. O editorial da Folha de S.Paulo,
publicado na capa, afirma: "Fiquem advertidos de que tentativas de
controle das imprensa serão repudiadas - e qualquer governo terá de
violar cláusulas pétreas da Constituição na aventura temerária de
implantá-lo".
A revista Veja trouxe na capa texto sobre o artigo V da Constituição,
que garante o direito à livre expressão, sob a manchete "liberdade sob
ataque". A matéria acusa o presidente de censurar a imprensa. "Nos
países democráticos, a liberdade de imprensa não é assunto discutível,
mas um dado da realidade", diz o texto.
Veja como são as leis que regulamentam a imprensa em outros países:
O debate acalorado pode fazer parecer que a regulação da mídia é uma
criação da agenda eleitoral do país, resultado de um embate entre
governistas e opositores. Mas ela está longe de ser uma questão apenas
brasileira. No mundo todo, tem avançado a discussão sobre como regular o
setor e como equilibrar isso com a garantia da liberdade de expressão.
Para o pesquisador em políticas de comunicação Gustavo Gindre, ligado
ao Instituto de Estudos e Projetos em Comunicação e Cultura (Indecs), é
natural que isso aconteça. "O cenário da comunicação está mudando muito
velozmente. A lei dos EUA já está antiga, e só tem 14 anos. Mesmo
assim, ela sofre revisões periódicas. É quase uma obrigação dos países
mudar as leis que não acompanham essas mudanças".
Debates sobre a regulação de mídia têm avançado em especial na
América Latina, e não apenas nos países governados por partidos à
esquerda. Nos últimos anos, México, Argentina, Equador e Venezuela
propuseram novas leis.
No Brasil, o debate sobre a regulação do setor de comunicação tem
esquentado desde 2009, quando foi realizada a Conferência Nacional de
Comunicação. Tudo indica que a discussão deve pegar fogo depois das
eleições. Está previsto para novembro um evento nacional para delinear
um novo marco regulatório para o setor.
A "regra" é ter regra
O papel das leis de imprensa e das leis de mídia é regular as
atividades dos meios de comunicação e balancear os limites entre o
direito à livre expressão e à informação e os interesses individuais e
coletivos de pessoas, empresas e grupos sociais.
Segundo o pesquisador Murilo César Oliveira Ramos, professor da
Universidade de Brasília e conselheiro da EBC (Empresa Brasil de
Comunicação), a maior parte dos países tem regras para estabelecer o que
pode e o que não pode no setor audiovisual, o que não significa
prejuízo da liberdade de expressão.
"Tem várias maneiras de decidir o que deve ir ao ar ou não. Quando os
EUA e o Canadá dizem que não pode ter propaganda comercial no meio de
programas infantis, é um limite. Quando a legislação francesa estabelece
que tem que ter programas feitos na França, é um tipo de regulação de
conteúdo. No Brasil temos limites para propaganda de cigarro, por
exemplo", diz ele. "Mas se você falar em imprensa a situação é
diferente. Como os jornais e revistas não dependem de frequências
públicas, têm uma ação regulamentar muito mais frouxa, com mecanismos
mais próximos da auto-regulação no mundo todo, com raras exceções".
França
A Lei de Imprensa mais antiga em vigor é a da França, de 29 de julho
de 1881, que influenciou países como Itália, Espanha e Portugal.
Ela garante a liberdade de expressão, com a livre circulação de
jornais sem regulação governamental. O mesmo vale para a internet. Mas a
mesma lei coloca limites como a possibilidade de ações judiciais em
casos de infâmia ou difamação (ou seja, a publicação de informações
prejudiciais à reputação de alguém sem base em fatos reais).
Também é proibido o incitamento a cometer crimes, discriminação, ódio
ou violência. Em casos de discriminação, a multa pode chegar até a 45
mil euros ou detenção. E pela lei nenhum grupo de mídia pode controlar
mais de 30% da mídia impressa diária.
A rédea na França é ainda mais curta no caso dos meios audiovisuais. O
país tem uma agência reguladora independente, o Conselho Superior do
Audiovisual, que aponta diretores para os canais públicos e outorga
licenças para o setor privado (de 5 anos para rádio e 10 para canais de
tevê). Também monitora o cumprimento de obrigações pela mídia como a
função educativa e a proteção aos direitos autorais, podendo aplicar
multa. Dos nove conselheiros, três são indicados pelo presidente, três
pelo Senado e três pela Câmara dos Deputados.
O CSA tem a missão de garantir que a mídia audiovisual reflita a
diversidade da cultura francesa. Ele garante, por exemplo, que as
outorgas de TV e rádio sigam o pluralismo político - há rádios
anarquistas, socialistas e até de extrema-direita - e que representem os
grupos minoritários. Outra frente é a preservação da língua francesa.
Há uma cota de músicas francesas que têm que ser transmitidas pelas
rádios e, pela lei, 60% da programação de TV tem de ser europeia, sendo
40% de origem francesa.
Gustavo Gindre, que atualmente trabalha na Ancine (Agência Nacional
de Cinema), acha a regra positiva. "Com a reserva de conteúdo os canais
têm que se abastecer de produtores pequenos, médios e grandes. Isso
estimula a produção independente, mas também incentiva a produção de
grandes grupos de comunicação, como o Canal Plus, que produz conteúdo
francês para vender no exterior, garantindo uma expressão da cultura
francesa no cenário global".
Portugal
Há cinco anos Portugal instituiu sua própria agência reguladora,
ainda mais poderosa que a francesa, a Entidade Reguladora para a
Comunicação Social. Além de ajudar da elaboração de políticas públicas
para o setor, ela concede e fiscaliza concessões de rádio e tevê,
telefonia e telecomunicações em geral, mas também regula jornais
impressos, blogs e sites independentes.
Ao mesmo tempo, atende e dá encaminhamento a queixas vindas da
população. Seus conselheiros são indicados pelos congressistas e
aprovados pelo presidente da República. Em particular a entidade cuida
de assegurar rigor, isenção e transparência no conteúdo, o pluralismo
cultural e a diversidade de expressão, além de proteger o público mais
jovem e minorias contra conteúdos considerados ofensivos.
Reino Unido
O pesquisador Murilo Ramos explica que esse modelo, de órgãos de
regulação fortes, é uma característica dos países europeus. Ao mesmo
tempo, prevalece um modelo de exploração público estatal, cujos conteúdo
é pensado em termos estratégicos para o país. "O grande exemplo é a BBC
inglesa", diz.
A BBC é uma empresa pública independente financiada por uma licença
de TV que cada domicílio tem de pagar. A BBC controla a maioria da
audiência do país com 14 canais de TV, cinco rádios nacionais, dezenas
de rádios locais e serviços internacionais em 32 línguas - esses,
essenciais para a influência britânica no cenário mundial.
Mas, apesar do domínio da BBC, o Reino Unido também incentiva o
pluralismo. Em 2005, para fomentar as rádios comunitárias, o governo
britânico começou a oferecer licenças de cinco anos para as rádios não
legalizadas, além de uma verba inicial para que elas se legalizassem,
com grande adesão.
Quanto à imprensa, o país não tem uma lei específica. A liberdade de
expressão é protegida pela Lei de Direitos Humanos, de 1998, que também
introduziu a privacidade como um direito essencial. A liberdade tem de
ser compensada também com a proteção da reputação de pessoas contra
difamação. Mas o principal limite, de acordo com a cultura jurídica
britânica, é a necessidade de preservar a inviolabilidade de
julgamentos. Assim, a principal preocupação é evitar qualquer
interferência externa nos processos judiciais - por exemplo, os
jornalistas não podem publicar detalhes sobre um criminoso ou sobre
provas de um crime.
Em 2003, criou-se uma agência reguladora para o setor de mídia, o
Ofcom (Office of Communications; em inglês, Departamento de
Comunicações). Outro órgão importante é a PCC (Press Complaints
Comission), uma comissão independente que recebe reclamações sobre a
imprensa e negocia retratações fora do âmbito judicial. Os jornais,
voluntariamente, aderem ao código de procedimentos da PCC, que foi
aprovado pelo Parlamento.
Itália
Na Itália, a legislação tem cada vez mais influência do governo, ou melhor, do primeiro-ministro.
Em junho, protestos se seguiram à aprovação da "lei da mordaça"
proposta por Silvio Berlusconi, que limita o uso e difusão das escutas
telefônicas em investigações oficiais, prevendo pena de até 30 dias de
prisão e multa de até 10 mil euros. Os principais canais comerciais e
agências de notícia pararam sua programação em protesto.
Dos 8 canais nacionais abertos, três são estatais e três controlados
pelo grupo Mediaset, de Berlusconi. Juntos, os grupos RAI, estatal, e
Mediaset controlam 85% da audiência e 90% dos anúncios. Como Berlusconi
pode orientar a linha de ambos os grupos, ele controla a mídia.
De acordo com uma lei de 1997, a Itália tem um um órgão colegiado
para supervisionar o setor de telecomunicações, a mídia eletrônica e a
imprensa - a Autoridade pela Garantia na Comunicação. O presidente do
órgão é escolhido pelo governo e o conselho de oito membros, eleito pelo
parlamento. Mas seu papel é enfraquecido num cenário de forte
concentração. Do mesmo modo, a Ordem dos Jornalistas reivindica o papel
de monitor ético dos seus membros, mas não tem muito poder.
Estados Unidos
Nos EUA, não há uma lei de imprensa e, sim, uma série de regras
contidas em diferentes legislações. Mas, segundo a tradição
norte-americana, a liberdade de imprensa é garantida pela famosa
primeira emenda da constituição, que garante a liberdade de expressão
como um dos direitos mais fundamentais da sociedade. Todas as outras
regulações da imprensa são elaboradas a partir dessa premissa.
Assim, os jornais funcionam sem qualquer regulação governamental. O
mesmo se aplica à internet. Já os canais de TV e rádio são
supervisionados pela FCC (em inglês, Comissão Federal de Comunicações),
formada pela Lei de Comunicação de 1934 (são seis membros escolhidos
pelo presidente e aprovados pelo Senado) e também por comissões no
Senado e na Câmara, além de decisões da corte suprema. A legislação
garante o direito de processo caso alguém se sinta vítima de difamação
por parte da mídia.
O professor Murilo Ramos explica que, nos EUA, os canais públicos
acabam sendo marginais em relação às grandes empresas comerciais. Mas é
um erro afirmar que não há regulação.
"Há uma regulação forte e um órgão regulador ativo para o setor
audiovisual. A FCC tem conflitos o tempo todo com os radiodifusores. E
tem ações fortes. Alguns anos atrás, por exemplo, aplicou uma multa
pesadíssima contra a CBS porque a cantora Janet Jackson mostrou um seio
na final do campeonato de futebol americano", explica.
Mesmo assim, a regulação midiática segue uma visão liberalizante:
acredita-se que o mercado e a opinião pública devem ser os principais
reguladores do conteúdo, com o mínimo de interferência do governo
possível. Somente quando há uma percepção generalizada de abuso o FCC
estuda novas legislações ou a aplicação da legislação com mais rigidez.
Foi o caso do seio de Jackson. As regras vetam, por exemplo, a exibição
de cenas consideradas indecentes e obrigam todos os canais a transmitir
pelo menos três horas por semana de programação educativa para crianças.
"A verdade é que os limites de propriedade, que ainda são mais fortes
nos EUA do que aqui no Brasil, têm sido abrandados nos últimos anos.
Nos anos 1960 havia uma obrigação de ter produções independentes na TV, e
isso vem sendo abrandado pelo FCC em prol dos grandes grupos de
comunicação", diz Gustavo Gindre.
Fonte: Opera Mundi
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