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quarta-feira, 23 de novembro de 2011

“Se eu encontrar dez justos na cidade não a destruirei”

Waldemar Rossi   no CORREIO DA CIDADANIA

A frase acima faz parte do primeiro livro bíblico e mostra um momento na História daquele povo em que a corrupção corria solta, em que todos os valores humanos tinham sido jogados na lata do lixo. Os escritores fizeram essa narração nos tempos da escravidão na Babilônia, pretendendo mostrar a decadência do império babilônico – cuja derrota se deu algumas décadas mais tarde. Não se trata de querer “catequizar” ninguém. O que se pretende com o título e com este artigo é chamar a atenção para o grau de degradação por que passa a nação brasileira, hoje, quase três milênios depois da narração do fato hipotético.

Cinqüenta anos atrás, imaginar que a degradação do povo brasileiro pudesse chegar ao fundo do poço era inadmissível. Mas está acontecendo. Como de hábito na História dos povos, tudo é fruto da corrupção dos poderes que, marcada pela impunidade e alardeada pelos meios de comunicação – que a praticam em larga escala –, vai impregnando o conjunto da população. Corrupção dos políticos já era bem conhecida. Mas, entre a população havia muito de dignidade e de respeito à vida alheia. Uso e abuso da droga eram ainda bem pequenos; assassinatos geravam revoltas e indignação, e de massacres não se tinham conhecimento, embora esses sempre fizessem parte da nossa criminosa história de colonização e escravatura. Nos meios urbanos do início do século XX havia mais respeito à vida alheia e preservação da honradez.

Mas os interesses do capital são perversos e amorais. E esses valores estão prevalecendo como nunca havia acontecido. Seu único valor é o lucro. Para atingi-lo tudo é válido, desde a destruição de valores humanos, até mesmo destruição de todo tipo de vida, incluída a vida humana. Quanto maior a decadência moral maior a facilidade para a dominação ideológica e a exploração econômica - seu objetivo último e supremo.

Como seu deus é a riqueza, o capitalista usa de todos os recursos para dela se apropriar. Organiza e promove golpes militares, implanta ditaduras; prende, tortura e assassina seus opositores; invade terras dizimando nações indígenas, seus habitantes milenares; massacram trabalhadores rurais (posseiros, quilombolas, ribeirinhos, pequenos proprietários); derrubam matas imensas, extinguindo milhares de espécies animais e vegetais; contaminam águas de lagoas, de rios, subterrâneas e marítimas; provocam acidentes ambientais destruidores de toda espécie de vida.

E os mandantes desses crimes restam impunes e, mais que isto, incentivados e subsidiados por governantes inescrupulosos e corrompidos pelo poder econômico. A justiça se tornou vesga e profundamente manchada de sangue do seu povo. Centenas de juízes e ministros se tornam piores que Pilatos, porque não têm como lavar suas mãos impregnadas do sangue dos inocentes. Neste triste Brasil, a cada dia surgem notícias de assassinatos de trabalhadores, de indígenas e até daqueles(as) que, marcados pelos valores da justiça, decidem fazer frente a tanto banditismo oficial.

É deprimente acompanhar o noticiário e deparar, a cada dia, a revelação de mais um grupo de corruptos dos altos escalões, federais, estaduais e municipais. Assim como já se tornou corriqueiro saber que obras públicas nas três instâncias de governo são superfaturadas ou contratadas em desrespeito às leis e ao direito. Provocam sorrisos irônicos dos cidadãos os desmentidos por parte dos acusados, que não mostram o menor escrúpulo pelos crimes praticados. Sabem que serão preservados de punições maiores, sabem que as cadeias não foram feitas para eles e sim para os pequenos infratores ou mesmo para muitos inocentes.

Felizmente, podemos dizer que há mais de dez justos neste país, não entre os que estão no poder - salvo raríssimas exceções. O que nos alimenta novas esperanças é perceber que a cada ano maior número de pessoas se dá conta do descalabro reinante, vai perdendo antigas ilusões quanto ao sistema e até mesmo quanto a organizações ultrapassadas. São pessoas que, despertando do marasmo e do torpor, vão se indignando e ousando engrossar as colunas - ainda débeis, mas crescentes - do movimento social, se juntando às pessoas que teimam em resistir à degradação oficial.

Sem dúvidas se trata de um fenômeno mundial. De várias partes do mundo surgem notícias que resgatam as esperanças, que alimentam a vontade popular de promover alguma revolução política, econômica e cultural. Em muitos países a evolução é maior que no Brasil.

Mas aqui também a vergonha não desmoronou totalmente e o brio vem promovendo reações positivas. Professores e alunos lutam por mudanças estruturais nas escolas e universidades em vários estados do país; trabalhadores promovem paralisações da produção exigindo melhores condições de trabalho, de salário e de vida; campanhas pela moralização da política vêm ganhando espaços nas cidades; denúncias da corrupção são cada vez mais freqüentes; debates das questões políticas, ambientais, de segurança e econômicas se multiplicam aos poucos, gerando pequenas mobilizações. São luzes tênues ainda, mas sinais inequívocos de que as coisas estão em processo de mudanças. “Debaixo do céu há momento para tudo... Tempo para destruir e tempo para construir;... tempo para rasgar e tempo para costurar;... tempo para chorar e tempo para rir.” (Ec. 3, 1-8).

Está chegando a hora, tempo de o povo rasgar o que está podre e costurar a sociedade da justiça social e da solidariedade entre os homens e mulheres de boa vontade. Perder a esperança, jamais! Não vacilar, mas perseverar com muita confiança e convicção no poder criativo do povo esclarecido e organizado.


Waldemar Rossi é metalúrgico aposentado e coordenador da Pastoral Operária da Arquidiocese de São Paulo.

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Urgências na educação das comunidades quilombolas

Por Maria Auxiliadora Lopes

O preconceito racial existente na sociedade brasileira tem dificultado a realização de estudos sobre as condições socioeconômicas e culturais dos diferentes grupos étnicos que compõem a população do país. Em decorrência desse fato, alguns grupos enfrentam problemas que determinam sua marginalização e o difícil acesso aos benefícios sociais. Podemos citar, no enfrentamento deste quadro, as comunidades remanescentes de quilombos.

Para um melhor entendimento do que são os remanescentes de quilombos, o Decreto 4887/03 estabelece que: “Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos os grupos étnico-raciais, segundo critérios de autoatribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a opressão histórica sofrida”.

Segundo dados da Fundação Cultural Palmares (2010), existem, no Brasil, em todas as Unidades da Federação, exceto no Acre, em Roraima e em Brasília, 1.436 comunidades remanescentes de quilombos certificadas. Os estados com maior número de comunidades remanescentes de quilombos são Maranhão (318), Bahia (308), Minas Gerais (115) Pernambuco (93) e Para (85).

Partindo do princípio de que as comunidades remanescentes de quilombos possuem dimensões sociais, políticas e culturais significativas, com particularidades no contexto geográfico brasileiro, tanto no que diz respeito à localização, quanto à origem, considera-se a necessidade de ressaltar e valorizar as especificidades de cada comunidade, quando do planejamento de ações voltadas para o seu desenvolvimento sustentável.

Conforme o Relatório da Situação da Infância e Adolescência Brasileira, Unicef 2003, 31,5% das crianças quilombolas de sete anos nunca frequentaram bancos escolares; as unidades educacionais estão longe das residências e as condições de estrutura são precárias, geralmente as construções são de palha ou de pau a pique; poucas possuem água potável e as instalações sanitárias são inadequadas. O acesso à escola para estas crianças é difícil, os meios de transporte são insuficientes e inadequados e o currículo escolar está longe da realidade destes meninos e meninas. Raramente os alunos quilombolas vêem sua história, sua cultura e as particularidades de sua vida nos programas de aula e nos materiais pedagógicos. Os professores não são capacitados adequadamente, o seu número é insuficiente para atender a demanda e, em muitos casos, em um único espaço há apenas uma professora ministrando aulas para diferentes turmas.

A questão da terra tem sido o principal obstáculo à implementação de políticas públicas destinadas às comunidades remanescentes de quilombos e motivo de perpetuação dos históricos conflitos pela posse e uso da terra.

De acordo com o censo escolar realizado em 2009, nas Comunidades Remanescente de Quilombos existem 200.510 alunos que são atendidos por 10.001 professores, atuando em 1.693 escolas. Chama a atenção que 61,59% das matrículas estão concentradas na Região Nordeste.

Pesquisas realizadas pelo Ministério da Educação, no exercício de 2008, em escolas localizadas nas comunidades remanescentes de quilombos, em municípios dos estados da Bahia, do Maranhão e de Minas Gerais apontam a necessidade da implementação de políticas públicas para estas comunidades. Apresentamos algumas recomendações que devem balizar o trabalho de educação nas comunidades:

1. Revisar a perspectiva ideológica da formulação de currículos, respeitando os valores culturais dos alunos da comunidade;

2. Atualizar regularmente o Censo Escolar com dados sobre alunos, professores e prédios das comunidades remanescentes de quilombo;

3. Criar Unidade Executora nos estabelecimentos escolares para que professores, alunos e pais possam participar da decisão da execução do Programa Dinheiro Direto na Escola, onde isso for possível;

4. Criar e manter mecanismos de aquisição de gêneros alimentícios, oriundos da própria comunidade quilombola, respeitando os hábitos alimentares, além da viabilização do transporte destes gêneros alimentícios até as escolas;

5. Fomentar a participação de representantes das comunidades quilombolas nas instituições que realizam o controle social, como o Conselho do FUNDEF, o Conselho da Alimentação Escolar e outros;
6. Orientar gestores, diretores, professores, servidores em geral na elaboração do PPP das escolas;

7. Oferecer aos professores cursos de formação inicial e continuada relacionados à Educação das Relações Étnico-raciais, de forma regular, face ao desconhecimento, comprovado nesta pesquisa, da Resolução nº1/2004 e do Parecer 03/2004;

8. Rever a estratégia de produção (tiragem) e de distribuição do material didático produzido pelo SECAD/MEC sobre a temática, para que realmente alcance o objetivo de chegar a todas as escolas das comunidades remanescentes de quilombos do Brasil.

As políticas de promoção da igualdade racial são meios eficazes de eliminar as taxas de desigualdade, pois uma educação de qualidade nas escolas quilombolas pode ser o passo principal para o respeito e valorização das identidades culturais do Brasil, de acordo com o Parecer CNE/CP nº 03, de 10 de março de 2004, e a Resolução (CNE/CP) nº 01, de 17 de junho de 2004.

Maria Auxiliadora Lopes é graduada em Pedagogia e História e Mestre em Educação. Desde 2003, trabalha na SECAD/MEC na área de políticas públicas, exercendo atividades de planejamento, elaboração, avaliação e acompanhamento de projetos, em especial voltados para a educação das relações étnico-raciais

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Pastor Silas Malafaia “se fornicou”


Por Altamiro Borges

O excêntrico pastor Silas Malafaia bateu recordes no twitter na noite de ontem. Milhares de internautas aproveitaram para tirar uma casquinha de um suposto tropeço gramatical do midiático evangélico, que já virou motivo de chacota por suas constantes declarações preconceituosas e por suas posições políticas retrógradas, direitistas.

Em entrevista à revista Época, Malafaia destilou a sua ira – nada santa – contra Toni Reis, atual presidente da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais e Travestis (ABGLT). “Eu vou arrebentar o Toni Reis... Eu vou fornicar esse bandido, esse safado. Eu vou arrombar com esses...”, esbravejou o pastor, segundo registrou a publicação da famiglia Marinho.

#MalafaiaEscolheuFornicar

Diante da imediata reação dos internautas, Malafaia ainda tentou recuar. No seu twitter, ele retrucou o jornalista da Época que o entrevistou e garantiu que falou “funicar” e não fornicar. “Na linguagem vulgar, ‘funicar’ significa ‘ferrar’ o movimento gay”, esclareceu Malafaia. Pouco tempo depois, ele deletou o seu próprio tuíte. Mas o episódio grotesco já havia chegado às redes sociais.

Segundo informa o sítio Brasil 247, “tuiteiros levaram aos Trending Topics a hashtag #MalafaiaEscolheuFornicar. Afinal, não dá (sem trocadilhos) para deixar passar em branco os instintos mais primitivos da gramática de Malafaia. “Ele podia estar orando, mas #MalafaiaEscolheuFornicar”, brincou @LucasDcan. Teve até canção para o pastor: “Quero ver você não chorar, não olhar pra trás, nem se arrepender do que faaaaz... #CanteParaMalafaia”, ironizou @jufreitascs”.

Homofobia e outros preconceitos

A incontinência verbal do pastor decorre das crescentes críticas aos seus programas de TV. A ABGLT enviou aos órgãos ligados à defesa dos direitos humanos trechos de gravações em que Malafaia faz apologia à violência contra gays. A entrevista à Época só agrava a tensão – com ele “fornicando” ou “funicando”. Vale registrar que o vocábulo “funicar” não consta no dicionário Aurélio.

Silas Malafaia é realmente um personagem “exótico”. Suas posições homofóbicas e seus ataques rasteiros ao direito do aborto já renderam inúmeras críticas. No terreno político, o pastor da Assembléia de Deus Vitória em Cristo não esconde as suas posições direitistas. Na campanha eleitoral do ano passado, ele chegou a gravar vídeos hidrófobos contra a candidata Dilma Rousseff.

Apoio ao tucano José Serra

Num primeiro momento, Malafaia anunciou seu apoio à candidata, também evangélica, Marina Silva. Logo depois, ele apareceu na propaganda eleitoral do candidato tucano, José Serra. Justificou o seu apoio dizendo que Dilma Rousseff apoiava o aborto e o casamento de homossexuais. Na ocasião, levantou-se a denúncia, não comprovada, de que o pastor fora “comprado” pelo PSDB.

As denúncias contra Silas Malafaia, porém, não causam surpresa. O pastor já sofreu várias investigações por desvio de dinheiro e enriquecimento ilícito. Em 2007, por exemplo, ele foi investigado duas vezes pela Receita Federal e três vezes pelo Ministério Público Federal. Ele mesmo admitiu ter havido erro nas contas da sua igreja – não por culpa de dele, mas sim do “meu contador”.

Doações de R$ 40 milhões ao ano

A Assembléia de Deus Vitória em Cristo capta em oferta e doações de fiéis cerca R$ 40 milhões por ano. Seu programa evangélico é transmitido, com milionários custos, pela Rede TV, Band e CNT. Dublado em inglês, ele também atinge 200 países via satélite. O pastor afirma que não recebe da igreja e que vive do dinheiro de sua empresa, a Editora Central Gospel, cujo catálogo tem cerca de 600 títulos, entre livros (incluindo Bíblias), CDs e DVDs.

No ano passado, sua igreja comprou o jato Gulfstream III nos Estados Unidos por US$ 4 milhões. O avião tem autonomia para oito horas de vôo, doze lugares, sofá, cozinha e sistema individual de entretenimento. É um “favor de Deus”, conforme está escrito em inglês na sua fuselagem.

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

“Só pude assumir quando fui reconhecida profissionalmente”, diz professora transexual


Rachel Duarte no SUL21


"No segundo ano na escola houve a transformação. Ela nos comunicou e a comunidade escolar se organizou” | Ramiro Furquim/Sul21


Após viver 35 anos como homem, Marina Reidel assumiu sua verdadeira identidade. “Eu sempre brinquei de boneca com as meninas. Quando criança,  imaginava para mim um futuro como professora, professorA”, relata a transexual que hoje leciona em duas escolas da rede pública estadual do Rio Grande do Sul. Há cinco anos Marina convive normalmente com os alunos da mesma escola onde um dia foi o professor Mário, sendo plenamemente aceita pela comunidade escolar. Em sala de aula, ela ensina adolescentes sobre valores, ética e cidadania em disciplina alternativa ao Ensino Religioso, facultativa no ensino fundamental público.
O processo de transformação de professor para professora ocorreu na Escola Estadual Rio de Janeiro, aonde Marina chegou como Mário em 2003. Vindo de Montenegro, onde sofreu alguns casos de discriminação no ambiente profissional por sua orientação sexual e até mesmo uma demissão por preconceito, encontrou na escola uma direção sensível à livre orientação sexual.
“Ela veio como um colega. Um professor atuante e muito ativo. Era o professor Mário. No segundo ano na escola houve a transformação. Ela nos comunicou e a comunidade escolar se organizou”, conta a vice-diretora da escola Anelise de Lima Lorenzoni.
“Quando vim para cá, já estava em processo de transformação, tomando hormônios, deixando o cabelo crescer, furando orelha e usando brinco”, afirma Marina. Quando decidiu assumir a homossexualidade e trocar sua identidade de homem para mulher, pediu licença de um mês na escola. “Coloquei o silicone e assumi minha identidade de gênero como transexual”, relata.
Os alunos foram os mais curiosos na retorno como professora Marina. “No início eles perguntaram como eu queria ser chamada, se era professor ou professora. Eu não obriguei ninguém. Eu quis uma identificação ao natural. Hoje todos me chamam de professora”, fala.
Ainda com o registro de identidade como Mário, Marina ainda sofre alguns pequenos constrangimentos. “Alguém veio procurar o professor de Artes e eu fui chamar o professor Mário, foi um equívoco. Quando eu voltei com a professora Marina, visivelmente uma mulher, tive que remendar a situação”, diz a vice-diretora da escola.

A professora “hipersexuada”


"A escola tem uma imagem de que professor não tem sexo, não pode falar disso." | Ramiro Furquim/Sul21
A aproximação de Marina com os alunos melhorou quando ela se assumiu como mulher. “Eles começaram a se aproximar mais de mim quando me assumi, principalmente os que tinham histórico de discriminação na escola”, conta a professora.
Além de ser vista como a professora liberal que fala sobre sexo em sala de aula, Marina conquistou o respeito de todos e seguidamente recebe homenagens e é eleita como paraninfa em formaturas. As aulas de Ética e Cidadania servem para educar sobre valores, respeito, sexualidade e prevenção de doenças sexualmente transmissíveis. Organizações Não Governamentais que trabalham com o público LGBTT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Travestis) já estiveram na escola fazendo oficinas com os jovens.
“Isso é um papel nosso enquanto educadores. Muitos não trabalham com o assunto. Eu trabalho com tudo o que gira em torno do mundo deles nas aulas. A escola tem uma imagem de que professor não tem sexo, não pode falar disso. Há estudos que defendem esta cultura na educação. Então, quando tem um professor ‘hipersexuado’, há uma conotação com a sexualidade e uma identificação maior dos adolescentes que estão despertando para isso nesta fase da vida”, explica Marina.
“Ela é a melhor professora do colégio. A gente pode falar de tudo. Eu não tive problema nenhum com ela ser transexual. Ela nos dá conselhos sobre a vida e fala coisas que outros professores dizem que não falam por que não é coisa de sala de aula”, diz a aluna Thauany Alves (15 anos). Já o colega Lucas de Oliveira Penteado (14 anos) disse que estranhou no começo do ano a professora homossexual. “Depois me acostumei. Ela trabalhou isso com a gente. De não termos preconceito”, afirma.

Ensino Religioso deu lugar à Ética e Cidadania


"“O estado é laico. Então não temos como ensinar apenas uma religião em sala de aula." | Ramiro Furquim/Sul21

A substituição da disciplina de Ensino Religioso pelas aulas de Ética e Cidadania na Escola Estadual de Ensino Fundamental Rio de Janeiro, em Porto Alegre (RS), é assegurada pela Constituição Federal que prevê a liberdade religiosa e adota um Estado laico.
A vice-diretora Anelise de Lima Lorenzoni, diz que há escolas que ainda não mudaram o seu regimento, mas, que na Escola Rio de Janeiro sempre foi trabalhada a diversidade religiosa. “O estado é laico. Então não temos como ensinar apenas uma religião em sala de aula. Ainda mais com o sincretismo que temos no Brasil. Nunca, na prática, os professores daqui privilegiaram o catolicismo. Nós falamos do judaísmo, do islamismo e explicamos a diferença em relação ao terrorismo”, revela.
Segundo a assessora técnica de Gênero e Sexualidade da Secretaria Estadual de Educação, Iris de Carvalho, uma vez que o ensino religioso é opcional, a escola deve oferecer atividades alternativas, mas que isto ainda será regulamentado. “Entendemos que é importante a abordagem da ética e da cidadania. Mas, como o governo está mudando a estrutura do ensino, ainda haverá mudanças dentro do currículo escolar”, afirma.
A proposta do governo estadual é uma formação mais completa dentro das Ciências Humanas, que trabalhe a transversalidade em diferentes áreas, como cultura, direitos humanos, entre outras. “O Ensino Religioso também será uma destas transversalidades, bem como as questões de Gênero e Sexualidade”, explica.
Para enfrentar o preconceito dos próprios educadores e prepará-los para trabalhar este temas, a Secretaria Estadual de Educação (SEC) está retomando espaços de formação de professores, conta Iris. “O professor tem que refletir sobre sua prática e suas próprias crenças. A escola tem que pensar estes temas como uma proposta pedagógica, como algo coletivo”, argumenta a assessora do Departamento Pedagógico da SEC. Ela informa que serão entregues aos educadores cadernos com orientações sobre diversidade sexual aos professores e há uma orientação da pasta para aquisição de livros didáticos que tratem da sexualidade e relações sociais.

Prostituição e omissão da verdadeira identidade


A carteira de identidade ainda é de Mário | Ramiro Furquim/Sul21

Apesar do caso da professora Marina Reidel não ser o único na rede pública estadual, alcançar uma formação profissional não é para a maioria das transexuais. Como coordenadora da Articulação Nacional de Travestis (Antra) na região Sul, Marina conta que 70% das travestis são analfabetas no Brasil. Entre os integrantes da sigla LGBTT, os representantes das letras tês são os que mais sofrem com a exclusão e preconceito. “A maioria, quando chega à adolescência, desiste da escola ou nem pensa em fazer faculdade”, diz Marina. “As pessoas olham para a gente e acham que não podemos estar num espaço constituído, como o de uma escola, acham que temos que estar na calçada”.
Marina atualmente dá aulas para as turmas da 5ª a 8ª séries do ensino fundamental, mas já alfabetizou crianças, adultos e pessoas da terceira idade. Ela é também mestranda em educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Em novembro do ano passado, recebeu da Global Alliance for LGBT Education o prêmio nacional “Educando para a Diversidade Sexual”.
Segundo Marina, outras transexuais ou travestis não deixam de ser profissionais do sexo por medo de encarar a sociedade ou se conformar com a exclusão do mercado de trabalho. “A vida inteira somos agredidas. Seja na escola ou na rua, por pessoas que nem conhecemos. Para eu poder me assumir entendi que primeiro eu deveria me constituir profissionalmente”, fala.
Só depois da aprovação no concurso público, com a graduação e a especialização é que ela se sentiu permitida a construir sua verdadeira identidade. “Eu sei que muitas se encorajam com a minha história. Isto me deixa feliz. Eu não quero que me amem, só quero ser respeitada. A  sexualidade é de cada um. Há uma confusão na sociedade sobre gênero e sexualidade. O que somos é diferente do que praticamos. O que te incomoda tanto em mim que pode interferir na tua vida?”, critica Marina sobre a homofobia.
“Eu estou mostrando que é possível”

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Filhos de ex-pacientes de hanseníase lutam por indenizações

Marli Moreira Repórter da Agência Brasil

São Paulo - Os filhos de ex-pacientes de hanseníase estão se mobilizando para conquistar o direito de receber indenização do governo federal por causa do sofrimento que passaram ao serem separados dos pais quando ainda eram bebês. Com esse objetivo, estão sendo realizadas hoje (12) várias atividades e o encerramento, previsto para as 17 horas, será com um abraço simbólico na Associação Santa Terezinha, um educandário de Carapicuíba, na Grande São Paulo.
Este era um dos endereços para onde eram levadas as crianças cujos pais estavam internados em hospitais colônias, conta Teresa Oliveira, coordenadora regional do Movimento pela Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (Morhan) em Barueri. Oliveira lembra que até 1980 vigorou no país o isolamento compulsório dos portadores da doença e que ela própria foi vítima desta política de saúde, tendo sido criada por uma família que a adotou. Ela só soube da sua história aos 10 anos de idade.
De acordo com Oliveira, a Lei 11.520, de 2007, estabeleceu o pagamento de uma pensão vitalícia aos ex-pacientes, no valor de R$ 750,00. Mas, conforme revelou, nem todos com direito a esse benefício estão recebendo a pensão, porque foram cadastrados em torno de 12 mil e estariam faltando ainda outros 4 mil na lista. “Agora estamos batalhando para estender os benefícios aos filhos dos ex-pacientes, que poderia ser uma indenização, um valor a ser um pago de uma vez só”, explicou.
Além de brincadeiras com os netos dos ex-pacientes e os 84 internos do educandário escolhido para as atividades, o Morhan promove hoje a realização de testes de DNA. A intenção é identificar vítimas da segregação imposta aos ex-doentes e filhos.
“Estabelecer uma indenização seria uma espécie de pedido de desculpas da sociedade”, defendeu  Artur Custódio Moreira de Souza, coordenador nacional do Morhan. Ele, no entanto, avalia que isso “não vai suprir o sofrimento dessas pessoas, que foram obrigadas a viver separadas dos pais, que só podiam se ver três vezes no ano e, ainda assim, por meio de vidraças, sem qualquer contato físico”.
Ele informou que há disposição política do governo federal para que seja implantada esse benefício. E, pelos cálculos dele, em torno de 20 mil pessoas teriam direito. De acordo com Custódio, caso o governo adote essa política o Brasil será o primeiro país a ter essa iniciativa, em cumprimento à resolução prevista pelo Comitê dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU).
O líder do Morhan afirmou ainda que a incidência de hanseníase no Brasil só perde para a Índia, seguida do Nepal e do Timor Leste. Ele informou que, em 2010, foram registrados em torno de 35 mil casos.  Mas observou que, diferentemente do passado, hoje os pacientes recebem tratamento em postos de saúde e ficam curados.
A hanseníase é uma doença crônica causada  pelo Mycobacterium leprae, bacilo descoberto em 1873 pelo médico Amaneur Hansen, na Noruega. É caracterizada pelo surgimento de manchas brancas, marrons ou avermelhadas no corpo e pela perda de sensibilidade. Entre os sintomas estão  formigamento, dores, fisgadas e agulhadas ao longo dos nervos dos braços e das pernas, além do inchaço das mãos e dos pés.
 
Edição: Andréa Quintiere

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Nós criamos os Rafinhas Bastos




Ao insultar gente poderosa, o “comediante” da tevê Bandeirantes Rafinha Bastos talvez venha a sofrer alguma sanção de seu empregador, mas a sanha punitiva que ganha corpo por ele ter mexido com quem não devia se abate apenas sobre um dos muitos produtos de um sistema degenerado que reúne os produtores dessas “atrações” e um público que, em última instância, é o grande culpado pela existência desse tipo de “entretenimento”.
Se não, vejamos. Recentemente, o jornal americano The New York Times publicou matéria que dava conta de que o “comediante” Bastos é a personalidade mais influente do mundo no Twitter. Uma empresa que se dedica a estudar essa rede social apurou que o contratado da TV Bandeirantes, com seus milhões de “seguidores”, é a pessoa que mais influencia troca de mensagens entre tuiteiros.
As pessoas pagam para assistir aos shows de mediocridade, intolerância, insensibilidade e da mais pura canalhice de gente como o tal Bastos. Os programas da Band de que ele participa são os de maior audiência da emissora. Ou seja: esse sujeito não “existiria” se não existissem milhões de brasileiros que gostam de ver os mais fracos e discriminados sendo ridicularizados.
Há, no Brasil – mas não só aqui, claro –, uma perversão que seduz legiões: rir de mulheres “feias”, de deficientes físicos e mentais, de negros, de homossexuais, enfim, de todos aqueles que já são alvo de insensibilidade e perversidade no cotidiano por conta de suas características pessoais.
É simples entender por que esse pretenso “humorismo” explora tanto o filão dos socialmente desvalidos vendo o que acontece quando, por descuido, um desses mercenários da perversidade se esquece de que deve se concentrar só nos mais fracos e incomoda gente que tem como protestar e dar conseqüências aos próprios protestos e, nesse momento, é punido – em alguma medida, pois parece difícil que a Band abra mão de contratado tão popular.
Os figurões que se revoltaram com a piada de Bastos sobre estar disposto a “comer” Wanessa e o filho que ela leva no ventre devem ter rido de suas piadas de mau gosto quando não os afetaram. O ex-jogador Ronaldo, sócio do marido de Wanessa, até participou de “brincadeiras” do CQC, o programa que lançou esse “comediante” e que lhe deu sobrevida até quando defendeu o estupro de mulheres “feias”.
Porque esse é o conceito de humor que infesta a mídia. Que diferença há entre o que faz Bastos e o que fizeram o blogueiro da Globo Ricardo Noblat e o chargista Chico Caruso quando publicaram na internet, no último domingo, charge que debocha da aparência de uma ministra de Estado, a ministra Iriny Lopes, da Secretaria de Políticas para Mulheres? Veja, abaixo, o conceito de “humor” dessa gente.
Uma mulher madura que, como quase todas em sua faixa etária, evidentemente não pode se comparar com uma modelo internacional como Gisele Bündchen, do ponto de vista da forma física. Assim sendo, todas as mulheres dessa faixa etária que não ostentam corpos jovens e atraentes foram ridicularizadas.
Noblat e Caruso debocharam de suas mães, talvez das próprias esposas ou irmãs, além de tudo. Esse, aliás, foi o mote da mídia no caso da propaganda de lingerie da Hope: o deboche. Por puro partidarismo político e por interesses comerciais a mídia tratou com escárnio uma posição da Secretaria de Políticas para as Mulheres que reflete o desconforto de um setor da sociedade com a propaganda.
Esse comportamento, aliás, não é novo na mídia. Ano passado, quando a campanha eleitoral esquentava, o blogueiro da Folha de São Paulo (UOL) Josias de Souza, a exemplo de Noblat e Caruso – e no melhor estilo Rafinha Bastos –, acumpliciou-se ao chargista Nani para atacar outra mulher petista, a hoje presidente Dilma Rousseff, retratando-a como prostituta. Eis, abaixo, a “obra” desses degenerados.
No ano anterior, as mulheres petistas já eram alvo. Em fevereiro de 2009, o mesmo Josias de Souza publicou post com foto de Marta Suplicy e Dilma Rousseff sob uma legenda contendo os adjetivos “vadias” e “vagabundas”. Para quem não acredita, basta ver a reprodução daquilo, logo abaixo.
 
A culpa é desses mercenários que fazem de seus blogs ou de seus programas de televisão verdadeiros esgotos ( em que a mulher é uma das principais vítimas) ou é do público que dá audiência a eles? O jornalista americano Joseph Pulitzer disse, há mais de um século, que “Com o tempo, uma imprensa cínica, demagógica e corrupta formará um público tão vil quanto ela mesma”. Seu pensamento permanece atualíssimo.

domingo, 11 de setembro de 2011

A Al-Qaeda existe?


A resposta óbvia é sim, ela existe, mas é preciso qualificá-la: ao contrário do que diz o senso comum, a Al-Qaeda não é uma organização, mas uma rede de grupos locais fragilmente unidos, e Osama Bin Laden não tinha tanto poder como os EUA e ele próprio queriam fazer o mundo crer. Sem essa compreensão, a natureza do ativismo islâmico, inclusive de sua vertente radical, não pode ser devidamente esclarecida.


Há um senso comum sobre o que é a Al-Qaeda. Pergunte a alguém ao seu lado. A maioria provavelmente responderá que se trata de uma organização terrorista fundada décadas atrás por um fanático religioso saudita e bastante rico, que, enquanto viveu, recrutou e treinou homens para criar células de ataque em vários países, inclusive no Ocidente, a fim de atingir cinematograficamente alvos escolhidos por ele próprio.

É com uma provocação desse tipo que Jason Burke, correspondente dos jornais Observer e The Guardian no sul da Ásia, inicia um dos capítulos de seu livro “Al-Qaeda - a verdadeira história do Islã radical” (Editora I. B. Tauris, 2003, 357 páginas) – uma referência para os que querem explorar as entranhas do grupo ligado ao terrorista Osama Bin Laden. Repórter de campo com experiência em frentes de batalha e amplos contatos com militantes mulçumanos, Burke desmonta aquela visão simplificada compartilhada por muitos de nós, mas ainda amplamente legitimada nos meios de comunicação.

Para o jornalista, o que chamamos de Al-Qaeda trata-se na verdade de uma rede global pouco conectada de grupos terroristas com histórias e objetivos distintos entre si, muitas vezes mais interessados nas disputas por projetos nacionais do que por metas determinadas por uma ideologia islâmica global. Nessa rede, Bin Laden e seus aliados mais próximos tiveram um poder frágil, regularmente contestado pelos grupos e lideranças nacionais.

Burke relata diversas histórias para provar que a decisão de tratar Bin Laden como o inimigo público número um do planeta não encontra muitas justificativas na realidade. Uma delas diz respeito aos chamados “campos da Al-Qaeda” para treinar militantes no Afeganistão e no Paquistão, entre 1990 e 1996. Bin Laden tem sido até hoje insistentemente considerado o coordenador desses centros de treinamento. No entanto, segundo o jornalista, não há qualquer evidência de que o saudita tivera controle sobre os campos.

Ele menciona dois documentos do Departamento de Estado dos EUA para comprovar sua tese. O primeiro, de 1995, seis anos antes dos ataques de 11 de setembro, faz um relato oficial sobre os centros de treinamento afegãos, revela que militantes de várias nacionalidades estavam sendo habilitados para executar atos terroristas e aponta como chefe do esquema, além de setores do próprio governo do Afeganistão, um personagem chamado Abd al-Rab al-Rasul Sayyaf, com diversas conexões com a elite saudita. Mas alguém já ouviu falar em Sayyaf, que mais tarde foi eleito para o parlamento afegão?

O outro documento citado pro Burke, um memorando interno do mesmo Departamento de Estado, de 1996, quando o Afeganistão já estava sob pleno domínio do Taleban, afirma que vários grupos árabes dividiam o controle dos campos. “A verdade é que Bin Laden era uma figura marginal naquela época. Homens como Sayyaf, um dos mais importantes líderes político e religioso do Afeganistão naquele contexto, com excelentes contatos com ricos e devotados sauditas que contribuíam com seu projeto, tinham muito mais importância”, escreveu o jornalista.

Em 2001, após os ataques ao World Trade Center, a tevê norte-americana ABC entrevistou um militante árabe que havia treinado durante oito meses dos campos afegãos. Ele disse que jamais ouvira alguém chamar seu grupo de Al-Qaeda. “Isso revela como os investigadores norte-americanos forçaram a barra para encontrar um grupo, liderado por um personagem identificável, e que tivesse um nome”, aponta Burke.

O próprio correspondente destaca, porém, que não se trata de menosprezar o papel de Bin Laden no terrorismo global e nem mesmo de negar a existência da Al-Qaeda – tese defendida por alguns especialistas em Islã. Para ele, a Al-Qaeda existe, sim, e poderia ser didaticamente descrita como composta por três elementos: um núcleo duro, uma rede de grupos locais e uma ideologia comum. Além do governo norte-americano, no plano do discurso, o próprio Bin Laden se esforçou, entre 1996 e 2001, para fortalecer a unidade da rede e seu próprio poder sobre ela.

Com recursos financeiros nas mãos, o terrorista atraiu para sua órbita proeminentes militantes islâmicos que já estavam ativos ao redor do globo. Isso não significa, porém, que eles operariam sob as ordens de Bin Laden. “Taxar esses grupos locais como Al-Qaeda simplesmente encobre os fatores específicos que fizeram esses grupos surgir”, diz Burke. Segundo ele, Bin Laden passou a usar táticas empregadas por EUA e URSS durante a Guerra Fria – entre elas, fazer acordos de curto prazo com grupos locais, ainda que as diferenças entre eles fossem grandes, e financiá-los, com vistas a um objetivo comum.

A verdade é que a visão de uma Al-Qaeda institucionalizada tem bagunçado as peças de análises sobre a militância islâmica no mundo. Perdem-se as peculiaridades locais dos grupos e todos acabam se surpreendendo, ao menos no Ocidente, quando esses militantes se envolvem em atividades contra governos não-democráticos e corruptos, como foi o caso da atuação da Irmandade Mulçumana na derrubada do governo de Hosni Mubarak, no Egito.

Radicalismo, religião e pobreza
 
A idéia de uma organização composta por fanáticos mulçumanos prontos para se explodirem também é desmontada não apenas por Burke, mas por outro pesquisador da cultura islâmica, o francês Gilles Kepel, em seu livro “Jihad – a trilha do Islã político” (Belknap Press, 2002, 464 páginas).

Segundo Kepel, a violência traduzida pelo terrorismo tem sido causada por uma falha do ativismo político islâmico, incapaz de oferecer uma alternativa viável às populações islâmicas mais empobrecidas na Ásia e da África. Os movimentos anticolonialistas da primeira metade do século 20, os projetos socialistas e nacionalistas que se seguiram, assim como o desenvolvimento do projeto político islâmico, a partir da década de 80, não conseguiram responder aos anseios daquelas populações.

Segundo o pesquisador francês, os ativistas islâmicos radicais são em sua maioria recrutados entre famílias pobres ou da baixa classe média trabalhadora. Muitos constituem a primeira geração de suas famílias a obterem educação formal e viverem em cidades. Kepel identifica neles uma série de aspirações econômicas, traduzidas na idéia de que é justo "melhorar de vida" e lutar por isso. São pessoas que em outros países são naturalmente captadas para o ativismo social, em ONGs, ou político, nos partidos. Entretanto, a fragilidade dessas instituições na sociedade civil de muitas nações islâmicas torna fácil o recrutamento pelos flancos terroristas.

Isso não seria possível, claro, sem uma leitura do Islã que não só permita, mas incentive as atividades violentas. Essa referência tem origem na idéia de missão islâmica, chamada de da'wa, a qual glorifica a Jihad e o martírio como caminhos para a transformação mundana e a redenção divina. Um dos berços das práticas e valores islâmicos mais conservadores é a Arábia Saudita, terra natal de Osama Bin Laden. Hoje, porém, essa vertente da religião já se espalhou pela Ásia e África e não é à toa que entre os principais líderes identificados como da Al-Qaeda estão egípcios e líbios.

Votando a Jason Burke, os anos mais intensos do terrorismo islâmico – e das "Guerras do 11 de Setembro", como ele denomina esse período – ocorreram em 2005 e 2006, ano do ataque ao metrô de Londres. O jornalista lembra que nessa fase a estratégia da Al-Qaeda de confronto com o Ocidente parecia funcionar, tamanho o grau de mobilização que exigiu dos governos europeus e norte-americano. Mas, desde então, a capacidade de mobilização da entidade arrefeceu. A morte de Osama Bin Laden acentuou o fenômeno.

Um outro fator que enfraquece as conexões da Al Qaeda, diz Burke, tem relação com a própria maneira de os mulçumanos enxergarem a organização. Segundo o jornalista, quando a Al-Qaeda foi criada, uma de suas mais explícitas estratégias era executar grandes atentados terroristas com o objetivo de demonstrar às populações islâmicas no mundo que derrubar governos patrocinados pelo Ocidente era possível.

A idéia funcionou bem quando ocorreu em lugares distantes, seja nos Estados Unidos, na Europa ou no meio do mar. Quando, porém, a maioria dos atentados passou a ocorrer em ruas movimentadas de cidades como Bagdá, a população passou a ver com mais restrições os grupos terroristas.

O que concluir de tudo isso? A fase pós-Bin Laden da militância islâmica no mundo exige dos observadores um olhar para a realidade e para além dos discursos dos governos e das próprias redes terroristas. Histórias nacionais e objetivos específicos explicam muito mais sobre a existência desses grupos, seu modo de atuação e mesmo suas ações mais violentas do que uma análise homogênea e global do Islamismo radical. Kabul e Bagdá estão muito mais distantes do que o mapa da Ásia pode revelar.

domingo, 14 de agosto de 2011

O Dia dos (dois) Pais de João Vitor



Rafael (e), João Vitor e Lucimar comemoram neste domingo o primeiro Dia dos Pais da família | Foto: Arquivo Pessoal

Rachel Duarte no Sul21

Nascido em 14 de junho de 2010, João Vitor teve um segundo nascimento no dia 8 de outubro do mesmo ano, quando trocou a casa de adoção por sua nova família. Há dez meses, o bebê de cabelos crespos e sorriso fácil vive com o primeiro casal gay de Gravataí, na região metropolitana de Porto Alegre, a adotar uma criança: o consultor Rafael Gerhardt, 36 anos, e o bancário Lucimar Quadros da Silva, 46. Neste domingo (14), os três irão comemorar o primeiro Dia dos Pais. Rejeitado pela mãe biológica e por outros três casais heterossexuais, João Vitor hoje tem um lar, dois pais e muito amor.
Desde que se conheceram, em 1995, Rafael e Lucimar cultivam muitos amigos, o carinho e o respeito das suas famílias e partilham solidariedade. Ex-proprietários de um bar em Gravataí, eles realizavam festas para arrecadar fundos e ajudar entidades assistenciais. “Foi aí que começamos a nos aproximar de crianças e despertar para a vontade de ter um filho”, conta Lucimar.
Pelas relações de amizade que fizeram com clientes que eram funcionárias do Foro de Gravataí, Rafael e Lucimar conheceram a casa de passagem Restaurar, local em que conheceriam o futuro filho João Vitor. “Na primeira vez em que fomos lá, não deixaram a gente entrar nem conhecer as crianças. Queríamos ajudar e fazer uma festinha lá. Mas eram as regras, nos disseram”, explica Lucimar.
O primeiro passo até a adoção foi o alistamento no Programa Apadrinhamento Afetivo. Após um ano de espera, nenhuma criança apareceu. Por conselho de uma assistente social do programa, optaram em ir direto para a fila de espera da adoção, já que o tempo normal de espera era de cinco anos.  Em 2007, eles deram entrada no procedimento jurídico e, então, surgiu dúvida: adotar individualmente ou como casal?

Moradores de Gravataí, Rafael e Lucimar se dividem nos cuidados com o filho João Vitor | Foto: Rachel Duarte/Sul21

Adoção homoafetiva

Com o auxílio de uma advogada, Rafael e Lucimar levaram quatro meses até saber que poderiam ser pais adotivos. A ajuda e dedicação dos amigos foram fundamentais. “O Rafael ia toda semana no Foro. Ele sabia mais do processo que a advogada”, conta Lucimar. O medo era não conseguirem adotar, o que havia ocorrido com um casal de lésbicas que eles conheciam.
O telefonema veio depois de três anos e meio. O tempo de espera é considerado razoável para a adoção, até porque o casal em questão é livre de discriminação. “Não limitamos nem cor, nem sexo e poderiam ser crianças de zero a cinco anos de idade. Como a maioria dos casais não quer negros ou crianças, prefere bebês brancos, a gente foi chamado antes dos cinco anos”, diz Lucimar.
Tanto esperavam pela notícia que Lucimar lembra a hora exata em que foi oficializar a adoção. “Nos ligaram para avisar que tinha um bebê para adoção. Eu saí mais cedo do trabalho e chegamos lá às 17h15″, recorda. “Ele quase infartou”, revela o companheiro Rafael.

Na certidão de nascimento, Rafael e Lucimar aparecem como pais de João Vitor | Foto: Reprodução/Sul21

João Vitor frequenta a escola e tem aulas de natação todas as semanas | Foto: Arquivo Pessoal

O “nascimento” de João Vitor

Depois de três casais desistirem do pequeno bebê de quatro meses de pele parda e cabelos crespos, Rafael e Lucimar ao chegarem na sala para conhecê-lo tiveram uma surpresa. “Ele segurou na minha camiseta e depois segurou também na camiseta do Lucio”, conta Rafael. O gesto da criança emocionou as escrivãs e demais funcionárias do Foro. Sozinhos com o bebê, os dois começaram a trocar fraldas e a cuidar do menino, sem saber que a equipe jurídica tratava da adoção em tempo recorde. “Normalmente temos três visitas para ir conhecendo a criança, até termos certeza e a criança também acostumar. Mas saímos às 21 horas do Foro com o João Vitor naquele mesmo dia”, lembra Lucimar.
A chegada em casa, em uma véspera de feriado, foi um desafio como para qualquer outro casal de pais em primeira viagem. “Nós não tínhamos experiência. Pedimos ajuda para uma amiga que tinha criado um filho já. O guri começou a chorar e eu a suar. Me deu um desatino”, recorda Lucimar. “Quando eu vi, estavam o João Vitor e o Lucio chorando”, brinca Rafael.
A adoção foi surpresa para familiares e amigos. Ninguém sabia que eles estavam na fila de espera da adoção e quando conheceram o novo integrante da família, todos se emocionaram. “Chegamos na porta da casa da vizinha no primeiro dia que trouxemos o João Vitor para casa, e ela se emocionou perguntando quem era. Falamos que era nosso filho e ela começou a chorar. Eu disse: ‘chora depois, primeiro me dá algo para eu dar para esse guri”, diz Rafael.

A vida em família

A festa de um ano de João Vitor, no dia 14 de junho, teve tudo o que qualquer criança tem direito. O álbum de fotos revela o amor da família constituída. Com bons empregos, Rafael e Lucimar conseguem proporcionar comida, roupa, brinquedos, escolhinha e aulas de natação para o filho. Mas o mais visível na família Quadros da Silva é o amor incondicional.
Ambos trocam fraldas, fazem comida, levam ou buscam na escolhinha. A qualquer sinal de perigo nas aventuras de João Vitor, dispara nos dois o sinal de alerta. “Cuidado”, “aí não”, diziam durante conversa com o Sul21. Musicas e brincadeiras também fizeram parte da entrevista, já que João Vitor é um menino com bastante energia.

Bilhetinhos de João Vitor para o Dia dos Pais. "Falaremos que ele é diferente porque tem dois pais. E isso não é ruim", diz Lucimar | Foto: Rachel Duarte/Sul21

Na escolinha, o casal enfrentou o primeiro problema relacionado ao preconceito. “A diretora perguntou quando a mãezinha iria vir conhecer a escola”, conta Rafael. Aceitos na escolinha, o casal já passou datas comemorativas, como Dia das Mães e Natal, de forma tranquila. “No Dia das Mães, foi a avó, e no Natal tiveram algumas reações sobre nossa foto em família, mas todos nos tratam igual”, conta Rafael. “Nos olham como dois homens e uma criança”, complementa Lucimar.
Em maio deste ano, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu os mesmos direitos civis da união estável para casais do mesmo sexo. A decisão sinaliza um período de mudanças na sociedade brasileira, e o casal de Gravataí vê com otimismo o futuro de João Vitor. “Ele não vai sofrer ou ter vergonha de nós, porque iremos explicar para ele que isso é uma coisa legal. Falaremos que ele é diferente porque tem dois pais. E isso não é ruim. É maravilhoso ter dois pais que dão muito carinho e muito amor para ele”, fala Lucimar. “Ele vai dizer para os coleguinhas, ‘olha lá meus dois pais me esperando’”, brinca Rafael.

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

O ponto fraco do ensino forte

Por que as escolas tradicionais - as primeiras colocadas nos exames nacionais de avaliação - podem causar danos aos alunos.
Foram os piores anos da minha vida.” A frase ainda é dita com sofrimento pela estudante carioca Chanel de Andrade Rodrigues, de 18 anos. Ela está no 1o ano da faculdade de artes, mas não esquece o período em que estudou no Santo Agostinho, do Rio de Janeiro, um dos colégios mais tradicionais e bem-conceituados do país. Do 7º ano do ensino fundamental ao 1º ano do ensino médio, passou seus dias perdida entre aulas que não acompanhava, um enorme volume de conteúdos para memorizar, provas difíceis, notas baixas e um séquito de professores particulares a cada final de ano letivo. Na escola, não gostava de sair para o recreio e não comia nada. Em casa, compensava a ansiedade comendo demais. Na escola anterior, menos rígida, onde tirava boas notas, costumava nadar e fazer aulas de dança. No Santo Agostinho, evitava as aulas de educação física. Chanel entrou em depressão e engordou 20 quilos.

A mãe tentou convencê-la a fazer terapia, mas ela se recusava. “Eu só queria ser invisível”, afirma. “Odiava a competitividade que estava sempre no ar.” Só depois que Chanel foi reprovada, no 1o ano, sua mãe decidiu trocá-la de escola. (Procurado por ÉPOCA, o Santo Agostinho não respondeu aos pedidos de entrevista.) O caso de Chanel é apenas um entre centenas que revelam uma realidade incômoda: o custo emocional alto – muitas vezes altíssimo – do modelo de eficiência adotado naquelas escolas que exigem alto desempenho dos alunos e garantem todo ano boas colocações nos melhores vestibulares.

Consideradas as melhores do país, quase sempre campeãs nas provas nacionais de avaliação, as escolas de ensino tradicional representam, na mente de muitos pais, uma esperança de sucesso para a vida dos filhos num mercado de trabalho competitivo. Apesar de seus resultados inquestionáveis e da procura crescente por escolas desse tipo, esse modelo agora começa a ser mais e mais questionado por seus efeitos colaterais.

O ensino tradicional surgiu na Europa do século XVIII como um modelo em que os alunos são ensinados e avaliados de forma padronizada. Ele se inspira na ideia de que a mente das crianças é uma tabula rasa, um espaço em branco sobre o qual os diversos conteúdos – gramática, matemática, ciências, história etc. – devem ser inscritos seguindo um método rigoroso de exposição e avaliação. Mais do que qualquer outra aptidão, valoriza o acúmulo de conhecimento: quanto mais fatos e fórmulas o aluno aprende, mais bem avaliado ele é.

Há, ainda, uma forte pressão por desempenho nas provas e um grande volume de conteúdo a estudar. As escolas tradicionais também costumam ser mais rígidas em regras de comportamento, como respeito ao horário, frequência às aulas, uso de uniforme e atitude no recreio. Apesar de ter incorporado conceitos pedagógicos mais modernos, a essência do modelo tradicional de ensino permanece a mesma – e a educação tradicional está em alta no mundo, com filas de espera para matrículas e salas abarrotadas de alunos.

A grande procura por uma vaga numa dessas escolas se explica pelo desempenho acima da média de seus alunos. No Brasil, o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), que classifica as escolas públicas e particulares a partir das notas tiradas numa prova feita pelos alunos, é decisivo para a família na hora de escolher onde matricular seus filhos. Há anos, os colégios mais tradicionais e rígidos ocupam o topo da lista. “É comum hoje em dia pais e mães compararem as posições das instituições em que seus filhos estudam. Se os resultados das escolas não são bons, bate o sentimento de que se está fazendo algo errado”, afirma Quézia Bombonato, presidente da Associação Brasileira de Psicopedagogia.

Em Vinhedo, no interior de São Paulo, uma escola aberta em 2001 mostra essa tendência. O Colégio de Vinhedo, que busca alunos de classe média alta, reproduz uma escola tradicional europeia. Os alunos usam uniformes formais, os professores vestem ternos e tailleurs. A própria decoração da escola parece de outro tempo – embora, dentro da sala de aula, haja lousas interativas, câmeras e laptops para cada aluno. Há ênfase no conteúdo e na disciplina. “Nossa ideia é resgatar valores que são esquecidos”, diz o diretor, Eduardo Cumone. “Também temos uma carga horária maior, para que haja melhores resultados.” A proposta da escola encontra eco nos pais. A procura triplicou nos últimos cinco anos. Em 2001, havia uma única turma por série; em 2012, haverá duas ou três.

Os rankings de avaliação também puxam a educação para o lado mais rígido em outros países. “Nos Estados Unidos, está havendo um retorno à tradição, amparado na crença de que pontos na competição internacional são importantes”, diz o psicólogo americano Howard Gardner, criador da Teoria das Inteligências Múltiplas, que propõe vários tipos de inteligência além daquela medida por testes de Q.I. Na Europa, acontece o mesmo. O Reino Unido é um bom exemplo. No fim de 2010, a Secretaria de Educação anunciou uma reforma no ensino que inclui o “retorno aos valores tradicionais”: mais conteúdo, mais disciplina – e até a obrigatoriedade de roupas s mais formais na rede pública, com aventais para as meninas e terno e gravata para os meninos. No anúncio, o secretário Michael Gove mostrou sua preocupação com a queda do país nos rankings mundiais de educação. “Vamos voltar ao topo”, disse.

O ensino tradicional ganhou ainda mais adeptos recentemente com o lançamento do livro Grito de guerra da mãe tigre. Nele, a advogada sino-americana Amy Chua relata sua experiência na criação de duas filhas com rigidez e exigências que beiravam o absurdo. Ambas eram proibidas de ficar abaixo do 1o lugar na classe e tinham de realizar atividades extracurriculares dificílimas escolhidas pela mãe – uma se tornou exímia violinista e a outra pianista. Pela defesa desses padrões quase marciais de ensino, Amy chegou a ser ameaçada de morte na internet. Mas seu livro entrou rapidamente na lista dos mais vendidos nos Estados Unidos. Isso expõe o medo de toda a nação de se ver rebaixada nas listas internacionais de melhores alunos.

Para quem consegue seguir em frente e encarar tantas exigências, o ensino tradicional pode dar certo. Giulianna Freitas, de 12 anos, cursa o 7o ano do colégio Dante Alighieri, um dos mais antigos e tradicionais de São Paulo. Está lá desde os 3 anos. Ela diz que adora. Afirma tirar de letra as regras rígidas da escola, entre elas uniforme impecável e as restrições ao contato afetivo entre meninas e meninos. “Não me vejo em outro colégio”, diz. Sua mãe, a dentista Ana Claudia Garcia de Freitas, afirma ter escolhido o Dante pelos ótimos laboratórios e pelas bibliotecas. E também por ter sido sua escola – e a de sua mãe. “É uma tradição na família.”

Mas os educadores têm visto com ceticismo cada vez maior o sucesso desse modelo. Eles alertam sobre vários problemas que decorrem da estratégia convencional, baseada na combinação de competitividade e pressão por notas. A primeira limitação é a seleção natural que põe em prática. Esses colégios selecionam os alunos na hora da matrícula – com os famosos “vestibulinhos” – e, depois disso, acabam selecionando, pelo grau de dificuldade em acompanhar o ritmo, aqueles que ficam. “Valorizamos o conteúdo e somos inflexíveis em nossa filosofia de foco no professor, cultura clássica e disciplina”, diz Maria Elisa Penna Forte, supervisora do colégio carioca São Bento, que só aceita meninos e foi quatro vezes campeão nacional do Enem. “Os pais querem que os filhos se saiam bem aqui, mas, em muitos casos, isso não acontece. Aí o melhor é mudar de escola.”

A pressão por boas notas pode causar estresse e doenças emocionais. E não garante sucesso no futuro

São escolas que, naturalmente, funcionam para os melhores. E os melhores, por motivos óbvios, não são todos. Nem sequer são a maioria. “No caso das escolas tradicionais e seus vestibulinhos, não são os pais que escolhem a escola. É a escola que acaba escolhendo os alunos que quer”, diz Victor Paro, professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Para ele, essa situação põe em xeque a própria qualidade desse tipo de ensino. Essas instituições têm as melhores médias de desempenho por terem a melhor pedagogia ou porque os alunos que passam pelo funil são os mais inteligentes, portanto serão os melhores, independentemente do método de ensino? “Certamente, elas têm valor. Mas é fato que, para entrar, os alunos já têm de ser bons”, diz Paro.

Uma das grandes dificuldades dos pais é aceitar que a maioria dos filhos não se enquadra ou não tem condição de acompanhar o grau de exigência das escolas mais competitivas. Alguns pais acreditam que tirar o filho da escola mais conceituada é sinal de fracasso. Insistem nela – e isso acaba pesando ainda mais sobre os ombros do estudante. “A criança sofre porque não tem o perfil para aquele tipo de colégio”, diz Fábio Barbirato, chefe do setor de Neuropsiquiatria da Infância e da Adolescência da Santa Casa, no Rio de Janeiro. “Os pais precisam conhecer o perfil de seus filhos.”

A política de seleção dos melhores não pode servir para educar a média das crianças, uma exigência social. Não há nada a opor a uma política de seleção rigorosa. Mas um país que precisa oferecer educação de qualidade para todos precisa se preocupar com aqueles que não passam por esse funil – a ampla maioria.

O ambiente de alta pressão tem ainda um custo emocional para aqueles que não se adaptam. Em geral, aumenta o nervosismo da criança, que fica exposta a um grau elevado de exigência antes de ter amadurecido. Os sintomas são noites maldormidas ou mesmo crises nervosas antes de algumas provas. Em alguns casos, o peso da cobrança pode gerar traumas. O médico Barbirato tem promovido uma cruzada contra os transtornos de ansiedade causados pela vida escolar. Diz que, diariamente, na clínica e em seu consultório particular, atende crianças em sofrimento decorrente da pressão dos estudos. Para Jorge Harada, chefe da área de Saúde Escolar da Sociedade Brasileira de Pediatria, o estresse dessas escolas desencadeia um processo orgânico que pode levar à perda da imunidade e causar até anemia. “Vivemos numa sociedade competitiva, mas a escola não pode ser uma fábrica de pessoas em série. É preciso respeitar as singularidades de cada um”, diz.

Nos Estados Unidos, a mãe de uma adolescente que recebeu diagnóstico de estresse agudo não se conformou em reclamar com a escola sobre o ritmo puxado das aulas e lições de casa. A advogada Vicki Abeles, depois de perceber que o drama de sua filha era vivido também em outras famílias, fez um documentário sobre o que chamou de massacre do ensino competitivo, imposto em quase todas as redes de escolas públicas americanas graças a incentivos do governo. O documentário, que ouviu dezenas de alunos e famílias que desenvolveram doenças emocionais por causa da alta pressão, virou sensação. Já arrecadou mais de R$ 10 milhões (custou R$ 800 mil), sem exibições em cinemas, apenas em escolas ou auditórios. “Quero que minhas filhas cresçam saudáveis e criativas. Não acredito no ensino que educa para tirar boas notas em rankings”, afirma Vicki (leia a entrevista na página 95).

Apesar da expectativa dos pais, o ensino tradicional, também não garante sucesso na carreira. “Mesmo no caso de crianças que suportam a pressão das escolas tradicionais, não existe certeza de que serão adultos bem-sucedidos”, diz Quezia Bombonato. “Muitas vezes são alunos com capacidade de absorção de conteúdos e boa memória, mas cujos dons específicos não são devidamente explorados.” Segundo Quezia, o processo completo de aprendizado de um jovem é formado de muitas variáveis. Se o que ele aprende não faz sentido para a vida, isso poderá ser percebido num futuro mais distante, quando ele estiver frente a frente com suas decisões profissionais. “As pressões que ele sofreu nos bancos escolares podem se transformar em problemas de percepção ou relacionamento na vida adulta, comprometendo o sucesso de suas realizações”, diz ela.

Diante dos efeitos colaterais da pressão educacional, muitos pais se voltam para as escolas com propostas alternativas. Elas não têm uma fórmula única e vêm se desenvolvendo desde os anos 1960, com propostas pedagógicas modernas. Esses métodos de ensino começaram a ganhar relevância nos anos 1970, quando novas teorias sobre como as crianças aprendem começaram a ser usadas pelas escolas. No geral, elas priorizam o estímulo aos talentos pessoais, as artes, o contato com a natureza e o lado emocional dos alunos. O método mais difundido no Brasil é o construtivista, inspirado nas ideias do psicólogo suíço Jean Piaget, segundo o qual as crianças aprendem em conjunto e sempre usando a realidade de cada um como referência. A linha montessoriana, proposta pela pedagoga italiana Maria Montessori, foi uma das primeiras a inserir questões afetivas na educação. Na pedagogia Waldorf, do filósofo alemão Rudolf Steiner, o aprendizado anda de mãos dadas com atividades corporais e artesanais. Com resultados não tão satisfat ios em avaliações nacionais, muitas dessas escolas se reorganizaram para melhorar sua competitividade. Hoje, tentam combinar o melhor dos dois mundos, incorporando parte da disciplina e da exigência de bom desempenho das escolas tradicionais.

Para alguns pais, só o ensino de alto desempenho garante um futuro de sucesso para os filhos

Essas alternativas também podem ser um caminho para o sucesso na vida real. Os americanos Larry Page e Sergei Brin, fundadores do Google, estudaram em escola montessoriana. Eles afirmam que a escola é um dos principais fatores de seu êxito empreendedor. Lá, segundo eles, aprenderam a trabalhar sozinhos, com ideias próprias. Dizem que a educação montessoriana lhes deu liberdade para perseguir seus sonhos e paixões. Outros inovadores da era digital, como Jeff Bezos, fundador da loja virtual Amazon, e Jimmy Wales, criador da Wikipédia, também vieram de escolas montessorianas.

Um dos apelos dessas linhas alternativas é oferecer um ensino que pretende despertar mais iniciativa e a criatividade das crianças. Isso pode ser salutar mesmo para os alunos que, aparentemente, se dão bem no esquema das escolas competitivas. Foi o que percebeu a empresária carioca Tatiana Queiroz, mãe de Artur, de 15 anos, e Olívia, de 12. “Eles tiravam boas notas, mas faziam tudo no automático. Sentia que não estavam motivados. O conteúdo era muita memorização e pouca análise”, diz. Quando os filhos entraram no ensino fundamental, Tatiana optou pelo tradicional Colégio Santo Inácio, pelos bons resultados nos rankings e pela disciplina que complementava os limites que ela estabelecia em casa. Com o tempo, sentiu falta de mais estímulo criativo para os filhos.

A maioria dos colégios tradicionais tem classes numerosas, e, por isso, o diálogo casa-escola fica difícil. Há dois anos, ela transferiu os dois filhos para um colégio alternativo. A coordenadora pedagógica do Santo Inácio, Ana Maria Loureiro, diz que a tradição dá segurança a quem procura a escola. Segundo ela, 70% dos alunos são filhos de ex-alunos. Um sinal de sucesso da instituição. “Mas estamos buscando a modernidade, especialmente no que diz respeito às novas tecnologias e à necessidade de formar professores antenados com a realidade”, afirma.

Diante das críticas, as escolas tradicionais tentam se renovar. Para conciliar educação de qualidade sem sofrer as consequências indesejadas, começam a buscar o caminho do meio. O colégio marista São José, no Rio, mantém suas aulas de religião, mas introduziu aulas especiais para ensinar os alunos a associar o mundo atual ao que é estudado. A ideia reforça a tendência de que mais importante do que decorar informação é saber analisá-la. No Dante, segundo seu diretor, Lauro Spaggiari, há a filosofia de que é preciso trabalhar apenas com o essencial do conteúdo e muita discussão, mas sem abrir mão do rigor na disciplina. “Não vivemos mais no tempo em que o professor era o único provedor da informação”, diz Spaggiari. “Sabemos que, em tempos de internet, a informação está ao alcance de todos. Nosso papel principal é ensinar ao aluno o que fazer com ela.”

Mesmo que essas escolas consigam se atualizar, ainda assim não serão o modelo ideal para todas as crianças. A família da auxiliar administrativa Fernanda Sato descobriu de forma inusitada que não há um único caminho para a educação dos filhos. Há cinco anos, mudou-se para um bairro em São Paulo onde os filhos, Gustavo e Leonardo, na época com 10 e 7 anos, iriam a pé para o novo colégio, de estilo tradicional e dirigido por freiras. Por quatro anos, o plano funcionou. No fim de 2010, os meninos procuraram os pais com um pedido: queriam mudar de escola. Para complicar, cada um pediu um colégio. Leonardo, o mais novo, não gostava do método tradicional. “Ele não reagia bem às cobranças dos professores e começou a perder o interesse pelos estudos”, diz Fernanda. Gustavo, fã da área de exatas, pediu para estudar num colégio ainda mais rigoroso, com carga horária pesada, muita competição e voltado para o vestibular. “Penso em ser engenheiro e queria uma escola que me preparasse melhor”, afirma. Hoje, a logística da família ficou mais complicada, mas Fernanda não se arrepende. “Descobri que cada filho é de um jeito.”

Martha Mendonça, da revista Época, edição de 1º de agosto de 2011

http://www.cpers.com.br/index.php?&menu=1&cd_noticia=2945
Por Siden Francesch, Professor Estadual e Diretor no 14 Núcleo.

sexta-feira, 29 de julho de 2011

Caingangue defende trabalho como camelô: “Não assaltamos bancos, como os brancos fazem”


"Muita coisa mudou e ainda vai mudar muito. Hoje tem índio vereador, índio motorista. Estamos pensando, para 2014, em ter um deputado” | Foto: Ramiro Furquim/Sul21


Felipe Prestes no Sul21

Felipe da Silva encontrou na Praça da Alfândega e na Rua da Praia o seu sustento. Na mais tradicional via de Porto Alegre, vende bijuterias, lenços e outros badulaques – no inverno, se destacam os gorros e as luvas. Sentado em uma cadeira de praia, aguarda pacienciosamente os transeuntes, ou joga conversa fora com amigos que trabalham por ali. Com os clientes, é monossilábico. Limita-se a responder o que perguntam. Em outra cadeira, a esposa, Rosalina, maneja cipós com uma faca, produzindo pequenos artigos de decoração.
Felipe é líder de uma comunidade caingangue que reúne 35 famílias e cerca de 190 pessoas no bairro Lomba do Pinheiro, na periferia da capital gaúcha. Como ele e a esposa, mais de uma dezena de famílias caingangues vive do comércio de rua no centro da cidade. Nos finais de semana, eles rumam para o Brique da Redenção.
Rosalina faz artigos para decoração com cipó e intervém: "Os índios são os donos do Brasil" | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Foi Felipe quem os aglutinou, há cerca de dez anos, em uma comunidade formada por caingangues de diferentes partes do Estado. “Os caingangues se conhecem. Eu fui chamando: ‘Quer morar comigo, meu primo? Quer morar comigo, meu irmão?’”. Felipe atualmente ocupa o posto de vice-cacique. Foi cacique durante bastante tempo, depois entregou o cargo para um de seus oito filhos, Claudir, mais conhecido como Preto. “Temos 23 casas de material, posto de saúde, escola estadual indígena”, gaba-se Felipe.
O vice-cacique veio do extremo norte do Rio Grande do Sul, região que os caingangues já habitavam desde os primeiros contatos com homens de origem europeia, onde ainda hoje vive a maioria deles, que são cerca de 30 mil em todo o sul do Brasil. Felipe nasceu há 63 anos em Tenente Portela e vivia em Nonoai quando decidiu se estabelecer de uma vez em Porto Alegre. Durante cerca de dez anos ele vinha sazonalmente à Capital como ainda fazem muitos caingangues. Na época de Páscoa, por exemplo, muitos dos que vivem em aldeias no norte do Estado viajam para grandes cidades para vender macela e artesanatos. Numa dessas visitas, há cerca de uma década, Felipe resolveu ficar.
“Aqui dá para tirar mais dinheiro”, ele explica. Nas aldeias, o trabalho com o plantio de feijão leva 90 dias para dar algum resultado, conta. Outra alternativa dos caingangues tem sido a criação de galinhas, mas os indígenas não costumam ter capital para que este negócio dê certo.
Lojistas e feirantes temem que indígenas como Felipe “ocupem toda a rua” | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

“Muita coisa mudou e vai mudar mais”

Há quem não concorde com o trabalho dos caingangues no centro de Porto Alegre. Lojistas e integrantes de uma feira de artesanato na Rua da Praia temem que eles “ocupem toda a rua” e clamam por “igualdade”. Isso porque eles precisam regularizar seu trabalho, pagar impostos, mas os indígenas não. Também entendem que os indígenas só devem ter autorização para vender produtos feitos por eles, e não produtos industrializados. “Eles fugiram de suas características, são camelôs. O branco não pode botar uma banca para vender camelô. O índio pode”, diz o feirante Paulo. A prefeitura também tem se movimentado para que os indígenas trabalhem em outros locais que não as concorridas Praça da Alfândega, Rua da Praia e Brique da Redenção.
“Hoje, o índio está quase igual ao branco. Eu tenho que ter relógio para controlar o horário do ônibus, tenho que usar roupa de branco, porque não posso andar quase pelado no meio de vocês”, diz Felipe. Exatamente por este motivo defende que os caingangues não podem ficar apenas vendendo os artesanatos que produzem. “Muita coisa mudou e ainda vai mudar muito. Hoje tem índio vereador, índio motorista. Estamos pensando, para 2014, em ter um deputado”, diz.
O líder caingangue considera legal o trabalho que faz.“O índio trabalha legalmente. Não assalta bancos, como os brancos fazem”, diz. No comércio está justamente a opção, segundo Felipe, para que ele e seus companheiros tenham uma vida digna. “Leio o jornal todos os dias, sei das malandragens que existem. Não quero que a minha comunidade se envolva com maconha”, exemplifica. Quando diz que “a rua é pública”, Rosalina intervém. “Os índios são os donos do Brasil”.
Apesar da veemência com que defende seu trabalho, o próprio Felipe também fica ressabiado. Quando pedimos para tirar fotos, ele orienta que tiremos apenas dos produtos artesanais feitos por sua esposa, e por dois arcos e flecha que já estavam prontos.
"O índio trabalha legalmente. Não quero que a minha comunidade se envolva com maconha" | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sérgio, um amigo, negro, que estava batendo papo com Felipe quando chegamos, observa que os artigos de artesanato indígena não sustentam uma família em Porto Alegre, porque o turismo é fraco. “Não há turismo em Porto Alegre, não tem como ficar apenas vendendo flechas. Se fosse no Nordeste, venderiam como água”, projeta. “No interior, os índios têm as terras deles. Na capital trabalham vendendo as coisas deles, mas precisam mais, não é suficiente”, defende.
Em pouco tempo, o comércio deve deixar de ser a única opção para os indígenas que optaram pela vida em uma grande cidade. A universidade já é uma realidade para alguns integrantes da comunidade caingangue da Lomba do Pinheiro. Um dos caingangues que trabalha no comércio de rua estuda enfermagem em uma universidade particular e espera que o trabalho na Rua da Praia seja apenas temporário. Um dos filhos de Felipe cursa Odontologia. Na escola indígena da comunidade, o vice-cacique conta que todos os profissionais são caingangues. “Só o diretor da escola é branco, porque ainda não temos ninguém capacitado”.

quarta-feira, 27 de julho de 2011

Pessoas com deficiência cobram cobertura igualitária da mídia


Juliana: “É preciso construir rampas para as cabeças das pessoas” | Ramiro Furquim/Sul21

Vivian Virissimo no Sul21

Organizadora do “Seminário Mídia e Deficiência”, a cadeirante Juliana Carvalho iniciou as atividades do evento realizado nesta quarta-feira (27) com uma frase de impacto: “É preciso construir rampas para as cabeças das pessoas”. Com sua declaração, Juliana resumiu o sentimento das pessoas com deficiência que lutam tanto para garantir acessibilidade quanto para diminuir o preconceito na sociedade e nos meios de comunicação.
Juliana é jornalista e coordenadora do Projeto Assembleia Inclusiva e apresentadora do programa Faça a Diferença veiculado na TV Assembleia e na TVE. O Seminário promovido no Teatro Dante Barone debateu o papel da comunicação no processo de inclusão.
Jairo Marques, chefe de reportagem da Agência Folha, ressaltou que a linguagem utilizada nas matérias não contribui para a diminuição dos preconceitos. “Eu não tenho nada de ‘especial’. No momento em que se olha para o outro como alguém ‘especial’, essa comunicação já começa de forma equivocada. Além disso, esse ‘especial’ nos afeta muito”, disse Marques, cadeirante desde a infância, ao fazer a crítica das linguagens que sustentam os tabus vigentes na sociedade.
“Só conseguiremos quebrar estes conceitos irracionais da cabeça das pessoas com um trabalho exaustivo. Precisamos quebrar este paradigma de que a pessoa com deficiência é uma coitada”, disse Jairo, acrescentando que duas abordagens recorrentes na mídia prejudicam o debate da inclusão. “É uma verdadeira bobagem atrelar a condição da pessoa com deficiência somente a casos de ‘superação’. Outra abordagem negativa é a pauta científica que enfatiza a divulgação de pesquisas que estão muito longe de serem implementadas”, criticou.

"Precisamos quebrar este paradigma de que a pessoa com deficiência é uma coitada” | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

O jornalista Gustavo Trevisi, que tem paralisia cerebral, reforçou a necessidade de engajamento para garantir visibilidade na mídia. “Muitos veículos consideram que fazem a inclusão oferecendo tecnologias como a legenda em programas, o closed caption, ou garantindo cotas nos seus quadros de funcionários”, criticou. Segundo Trevisi, a verdadeira inclusão ocorre com a garantia de espaços fixos e específicos para tratar temas de inclusão com regularidade e isso não ocorre na maioria dos meios. “Os veículos consideram que elaborar matérias que tratam do assunto é uma coisa maravilhosa, mas não fazem mais que sua obrigação como concessionários de uma licença pública”, sustenta.
O coordenador do curso de Jornalismo da Unisinos, Edelberto Behs, salientou a importância da atuação dos jornalistas na diminuição da desinformação que cerca os temas relacionadas à inclusão. “Os jornalistas são artesãos da palavra. Palavras empoderam, destroem e constroem e, sobretudo, interferem na quebra de preconceitos”, disse Behs.
“Os pré-conceitos são transmitidos culturalmente e a religião é uma das correias dessa transmissão. Em certos trechos da bíblia era sugerido que as pessoas com deficiência teriam algum tipo de culpa. Essa visão já perdeu força, mas ainda está presente. Antigamente as pessoas se escondiam e não apareciam na sociedade, hoje essa situação está mudando”, explicou.

sábado, 23 de julho de 2011

O poder iraniano perde o controle sobre mídia



O enquadramento dos meios de comunicação durante a primeira década da revolução, que se revelou um desastre, deixou lugar para uma política menos rigorosa no que se refere aos bens culturais populares na sociedade e na juventude
por Shervin Ahmadi no Le Monde - Brasil
Foto divulgação série Iraniana Ghahve Talkh / The Bitter Coffee

Naquela segunda-feira de março, as ruas de Teerã estavam desertas. Com o feriado de Noruz, o ano-novo iraniano, que anuncia a chegada da primavera, os habitantes abandonaram essa aglomeração de quase 14 milhões de habitantes. No bazar de Tajrish, ao norte, uma frase escrita à mão sobre um pedaço de papelão atraía a atenção: chegou o DVD The bitter coffee. Os novos episódios desse seriado de humor estão disponíveis em toda a cidade, tanto nas bancas de jornal como nas quitandas. Mehran Modiri, muito popular, é diretor, produtor, corroteirista e ator.
Presente há duas décadas nas telas de televisão, ele se transformou seguindo o ritmo da sociedade. Seu humor é leve, mais para a palhaçada, nunca transgredindo a linha vermelha da crítica ao regime. Mesmo se, de vez em quando, debocha dos apresentadores dos canais de televisão estrangeiros, o campo político não é seu terreno habitual.
Com mais de 1,5 milhão de cópias vendidas, cada DVD da série The bitter coffee tem três episódios e custa menos de 2 euros. Um preço irrisório, ao alcance da classe média, e que não estimula a pirataria, prática comum no país. O seriado tem um site na internet, uma página no Facebook, uma conta no Twitter, verbetes em farsi e em inglês na Wikipédia. A história se desenrola em um passado remoto e ridiculariza os cortesãos do rei e o despotismo. Por trás de cada personagem, o espectador pode imaginar diversas figuras históricas do antigo regime (Reza Shah, o pai do xá) ou do governo atual.
A edição de 2 de abril do jornal Shragh anunciou que o vigésimo DVD da série seria proibido pelo ministro da Cultura e os dirigentes islâmicos. Oficialmente, tratava-se de um procedimento administrativo destinado a impor certas modificações. Mas o noticiário on-lineAftab revelou que o que motivou tal decisão foi a semelhança de um personagem com um alto responsável do governo. De qualquer maneira, o DVD foi lançado sem nenhuma modificação e obteve o mesmo sucesso comercial que os anteriores.
Além dessas hesitantes tentativas de censura, uma rede paralela é tolerada, e até encorajada, pelo governo, para difundir uma grande variedade de produções, desde filmes de ação norte-americanos pirateados e legendados localmente até filmes iranianos que não obtiveram a autorização de distribuição – como Ali Santorui, de Dariush Mehrjui, que trata de drogas e da ausência de perspectivas dos jovens em uma sociedade que perde seus valores. Também há séries de televisão que passaram nos canais oficiais e que os espectadores gostam de rever. O enquadramento dos meios de comunicação durante a primeira década da revolução, que se revelou um desastre, deixou lugar para uma política menos rigorosa no que se refere aos bens culturais populares na sociedade e na juventude. De agora em diante, o governo não tenta mais monitorar sistematicamente a mídia, mas procura saturá-la com produtos que julga “menos perigosos”, mantendo um controle absoluto na esfera da política.
Dessa forma, dois universos paralelos se desenvolveram: o primeiro, oficial, considerado a voz da República islâmica, e o segundo, menos controlado, pelo qual as autoridades podem pretender não se responsabilizar, o que explicaria sua não conformidade relativa com os princípios políticos e morais do poder. Este último evoluiu para contrabalançar a influência da cultura importada diretamente do Ocidente. Imitando a música pop vinda de Los Angeles, onde vive a maior comunidade iraniana no exterior, surgiram vários cantores que se pareciam, timidamente no início, com seus concorrentes da grande cidade californiana. Alguns até tinham o mesmo timbre de voz que famosos cantores exilados, mas interpretavam poemas de conteúdo muitas vezes místico. Em seguida, chegou uma nova leva de artistas menos “complexados”, de melhor nível. Com o tempo, nem a melodia nem a letra se diferenciavam das estrangeiras, denunciadas pelo governo como símbolos “corrompidos na terra” (Mofsedin fil arz, expressão usada pelo regime para designar aqueles que se “ocidentalizaram”). Quanto à música pop e rock, antes ilegal e produzida clandestinamente, ela se difundiu de uma maneira menos importante, mas por meio dessa rede semioficial.
O próprio meio de comunicação oficial se diversificou. Os canais estatais se multiplicaram, seus conteúdos ficaram mais variados. Além dos programas familiares e infantis, a audiência é garantida pelas séries produzidas no país, muitas vezes com orçamentos gigantescos, que vão desde uma versão muito hollywoodiana da história de Youssef e Zoulikha [história do profeta José (Yusuf)] até episódios da história política, passando pelas novelas humorísticas. Mehran Modiri é um dos atores que contribuíram para essas transformações.
As rádios seguiram o mesmo caminho, e algumas, como a Payam, inicialmente destinada a dar informações sobre o trânsito de Teerã, começaram a tocar nos anos 1990 as músicas que antes não eram toleradas. Desaparecido desde a revolução, o pop reencontrou seu lugar, sobretudo porque sua difusão pelas estações oficiais legitimou-o aos olhos das camadas ditas tradicionalistas da sociedade. Nos anos 2000, até mesmo algumas Nohehs (liturgia religiosa que celebra o massacre do imame Hussein, neto do Profeta, em Kerbala, no ano de 680) foram cantadas nesse ritmo.
Com a chegada dos canais por satélite, a guerra dos meios de comunicação se intensificou. Apesar da proibição oficial, a grande maioria das famílias, tanto nas cidades como no campo, possui uma antena parabólica. O governo desistiu de eliminá-las, desenvolvendo uma nova estratégia. No campo das informações políticas, as coisas lhe parecem preestabelecidas: a liberdade de expressão e de crítica de que se beneficiam os canais por satélite nunca poderá ser exercida pelos canais nacionais. Como a informação política, no Irã como em qualquer outra parte, não gera audiência, o regime concentrou-se em todos os outros campos. Decidiu fechar os olhos para os programas da televisão por satélite que não são propriamente políticos, considerados menos perigosos, mesmo quando contradizem os princípios morais defendidos pelo regime. Atualmente, canais oficialmente proibidos transmitem sem parar clipes musicais que não correspondem aos cânones islâmicos e são acompanhados de propagandas contendo números de telefones celulares iranianos.
Podem-se prever facilmente as consequências de uma visão como essa, de contradições flagrantes. A noção de “conteúdo perigoso” é arbitrária. Quem pode dizer que um filme de ação norte-americano sobre os extraterrestres é menos “perigoso” que um drama clássico? Filmes “apolíticos” podem suscitar uma atração para um certo modo de vida ocidental, celebrando o consumo desenfreado. Grande parte da classe média das cidades, aliás, já adere a esses valores, de maneira às vezes excessiva. O Irã é hoje o segundo maior importador de produtos cosméticos no Oriente Médio e o sétimo no mundo. Algumas festas comerciais, desconhecidas trinta anos atrás, como o Valentine’s Day, são agora comemoradas nas grandes cidades.
O governo vem se confrontado há três anos com o sucesso do canal de televisão Farsi One, propriedade da News Corporation, de Rupert Murdoch, que transmite permanentemente seriados latinos e capta uma grande parte da audiência popular. O jornalista norte-americano Dexter Filkins constatou que Farsi One se tornou rapidamente muito popular, a ponto de representar uma ameaça ao governopor seu sucesso nas camadas desfavorecidas.
Ao tentar recuperar a audiência para impedir a politização dos meios de comunicação por seus adversários, o governo caiu na própria armadilha: de fato, permitiu o elogio de um modo de vida ocidental, dando involuntariamente motivos para seus adversários, que denunciam seu comportamento “medieval”.

Shervin Ahmadi
Jornalista responsável pela edição de Le Monde Diplomatique em farsi

The New York Times, 21 de novembro de 2010.