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Um blog de informações culturais, políticas e sociais, fazendo o contra ponto à mídia de esgoto.
Os liberais, ao longo do século 20, realizaram uma verdadeira “operação ideológica” visando a demonstrar que a democracia e a cidadania modernas teriam resultado da evolução gradual e sem traumas do próprio liberalismo. Os pais do liberalismo, Locke, Montesquieu, os federalistas, Mill, Benjamin Constant, Tocqueville e Stuart Mills, foram promovidos à condição de pais da democracia, pouco importando que grande parte deles fosse contra o sufrágio universal e chegasse mesmo a justificar a escravidão.
Nestas últimas décadas o marxista Domenico Losurdo dedicou-se ao trabalho intelectual de “desconstruir” esta colossal mistificação, que impregnou inclusive as hostes socialistas. Os artigos que compõem o livro Liberalismo. Entre Civilização e Barbárie, publicado pela editora Anita Garibaldi, se inserem nesse esforço ao analisarem as relações contraditórias entre o liberalismo e a democracia e entre os processos de emancipação e desemancipação ocorridos durante a expansão planetária do capitalismo.
Em Civilização, barbárie e história mundial: relendo Lênin, Losurdo destaca o importante papel desempenhado pelo revolucionário russo no processo de desmascaramento da filosofia burguesa da história, segundo a qual “as raças superiores se sentem investidas da sagrada missão de conquistar e ‘civilizar’ o mundo inteiro”.
A oposição colonialista entre civilização e barbárie, nascida com os iluministas e radicalizada pelos liberais, passou por uma verdadeira revolução nos textos leninistas. Não foi sem uma ponta de ironia que Lênin escreveu: os “políticos mais liberais e radicais da livre Grã-Bretanha (...) quando se tornam governadores da Índia transformam-se em verdadeiros Gengis Khan”. Essa interessante inversão de papeis se encontra em artigos como “A Europa atrasada e a Ásia avançada” De repente, pelas mãos do bolchevique, as esperanças da revolução, do progresso e da própria democracia se voltam para o oriente economicamente mais atrasado que a Europa.
No segundo artigo, Estado nacional e valores universais. Aventuras do universalismo na era contemporânea, Losurdo trata do caráter regressivo do universalismo liberal, quando comparado ao universalismo dos iluministas. Apesar dos seus limites, os filósofos da luzes tinham uma visão mais aberta e positiva em relação aos povos não-europeus. Isso, no entanto, mudaria sensivelmente com a ascensão da ideologia e das políticas liberais. Tocqueville, por exemplo, referindo-se à China, censuraria os iluministas por suas simpatias por “aquele governo imbecil e bárbaro”. Essa visão preconceituosa levaria os liberais a festejar a vitória britânica sobre o Império Chinês na famigerada Guerra do Ópio.
A principal razão para esse fenômeno segundo Losurdo, foi que o triunfo do liberalismo, coincidindo “com a vitória da expansão colonial”, estimulou “o apego ao etnocentrismo e o maniqueísmo”. Assim a Europa pode “conservar sua certeza de representar a civilização, na medida em que estava aquém do conceito universal de homem”.
Ele volta a abordar o problema dos valores universais entre os liberais ortodoxos de ontem e de hoje no artigo seguinte, Marx, a tradição liberal e a construção histórica do conceito universal de homem. Lembra que, em 1848, Tocqueville já se batia contra os novos direitos políticos e sociais estabelecidos pela revolução francesa de fevereiro daquele ano. Estes, entre os quais se incluía a redução da jornada de trabalho para 12 horas, foram considerados socializantes e, portanto, antiliberais.
Passados cem anos Hayek, referindo-se à Declaração Universal dos Direitos do Homem, afirmou ironicamente que ela buscaria assegurar “ao camponês, ao esquimó e talvez também ao abominável homem das neves ‘férias periódicas remuneradas’”. Para ele, esse documento seria “uma tentativa de fundir os direitos da tradição liberal ocidental com a concepção completamente diferente da revolução marxista russa”. A idéia de que não pode haver liberdade sem que haja um patamar mínimo de igualdade do plano social era inaceitável para ele. Parecia-lhe uma injustificável concessão ao bolchevismo.
Fica patente em posições como essa, enfatiza Losurdo, a desconfiança dos liberais “em relação à categoria dos direitos universais do homem (...)”; “emerge mais uma vez o caráter ideológico e mistificador da profissão de fé que o liberalismo clássico e o neoliberalismo fazem do ‘individualismo’. (...) A democracia moderna não pode ser compreendida sem as idéias e as lutas da tradição democrático-socialista, sendo que a última tem um mérito ainda maior: aquele de ter contribuído de forma decisiva para a elaboração de conceito universal de homem, inexistente, até aquele momento, para a tradição liberal”.
Em Idéia de época histórica em Marx e análise do nosso tempo, o autor trava uma polêmica com as interpretações economicistas do marxismo, esclarecendo que “a contradição entre as relações de produção e as forças produtivas determina o quadro geral, mas não significa que a revolução política ecloda no país onde tal contradição se manifesta mais intensamente”. O próprio Marx havia escrito em As lutas de classe na França que seria “natural que as explosões violentas se manifestem antes nas extremidades do corpo burguês que no seu coração, porque, no coração, há maiores possibilidade de um re-equilíbrio”.
Para Marx a revolução alemã “que se desenha no horizonte é pensada não como o resultado de um impetuoso desenvolvimento capitalista (...) mas sim a partir da defasagem e do conflito entre o atraso alemão e o desenvolvimento econômico, político e ideológico dos países europeus mais avançados”. Partindo destas referências, Losurdo afirma que a contradição entre as forças produtivas e as relações de produção valeria “acima de tudo, em nível internacional e para uma época histórica considerada no seu conjunto”.
O autor passa então a tratar dos limites da revolução política burguesa. Ao contrário do que afirma toda a literatura liberal sobre a evolução natural e progressiva dos direitos da cidadania, o que se verificou foi uma dialética maléfica: “o desenvolvimento da democracia americana e o fim da discriminação censitária andaram pari passo com o agravamento da opressão dos negros e dos peles vermelhas. Nos EUA, a revolução que suprime o significado político da propriedade é, ao mesmo tempo, uma contra-revolução que acentua o significado político da cor da pele.”
Desse modo busca demonstrar a falsidade da tese de que a “cesta de direitos” que compõem a cidadania moderna foi preenchida de maneira gradual e cumulativa, sem contradições e sem momentos de recuos. Na realidade o processo de ampliação dos direitos foi menos idílico e mais contraditório.
A conquista dos direitos eleitorais pela população masculina adulta dos países capitalista centrais, por exemplo, foi acompanhada pela expansão do colonialismo e de todas as suas mazelas: opressão nacional, servidão e racismo. Na tradição liberal, afirma ele, “a teorização ou celebração da liberdade avança a par e passo com a enunciação de cláusulas de exclusão, pelo que a liberdade em última análise acaba por se configurar como privilégio”.
Para Losurdo foi uma “revolução planetária vinda de baixo” que “constrangeu os dirigentes estadunidenses (...) a liquidar os aspectos mais visíveis e revoltantes do regime da white supremacy”. No Ocidente, “o fim da revolução burguesa não pode ser pensado sem a contribuição de um movimento iniciado com uma revolução que agita a bandeira do socialismo e da luta contra a burguesia”. Assim, “a supressão do significado político da qualificação étnica é obra fundamentalmente de um outro ciclo revolucionário que, se valendo do impulso do ‘outubro bolchevista’, termina com as revoluções anti-coloniais”.
No último artigo, Guerra preventiva, americanismo e anti-americanismo, o autor mostra os pontos de contato entre o nazismo e alguns elementos presentes na cultura estadunidense. Defende que foi “o contexto econômico diverso, mais que a história ideológica e política distinta” que “explicaria a falência do Invisible Empire nos Estados Unidos e o advento do Terceiro Reich na Alemanha”. Em outras palavras, o ovo da serpente existiria nos dois países, mas apenas na Alemanha dos anos 1930 ele conseguiu as condições ideais para se desenvolver.
Prova disso é que os nazistas foram procurar o seu modelo de sociedade assentada na discriminação racial no sul dos Estados Unidos. Um dos principais ideólogos do nazismo, Rosenberg, não cansava de celebrar os Estados Unidos “como ‘esplêndido país do futuro; que teria tido o mérito de formular a feliz ‘nova idéia de Estado racial’, idéia que agora se trataria de aplicar, ‘com força juvenil’, por meio de expulsão e deportação dos ‘negros e amarelos’”.
Este artigo nos recorda, também, que uma das principais obras do anti-comunismo e do anti-semitismo foi escrita pelo respeitável industrial (e liberal) Henry Ford e se chamava curiosamente O Judeu Internacional. Nela a revolução soviética é apresentada como parte do complô judeu internacional. O líder nazista Himmler chegou a afirmar que o foi o livro de Ford que o alertou para a “periculosidade do judaísmo”. Ainda segundo ele, o livro de Ford teria indicado às lideranças nazistas “a via a percorrer para libertar a humanidade do seu maior inimigo em todos os tempos, o judeu internacional”.
Os textos presentes neste livro revolucionam as interpretações sobre a democracia estadunidense. “Sem a escravidão (e a subseqüente segregação racial), escreveu Losurdo, nada se pode compreender da ‘liberdade americana’: ambas crescem juntas, uma sustentada na outra”. E para definir esta democracia liberal restrita, ele empresta o termo Herrenvolk democracy – ou seja, uma democracia para os povos dos senhores. Esta categoria, inicialmente, foi utilizada na definição dos regimes segregacionistas que imperavam no sul dos Estados Unidos e na África do Sul, mas Losurdo deu a ela uma abrangência bem maior.
O Herrenvolk democracy é a “democracia” que vigoraria apenas para os homens brancos, excluindo-se os pobres, negros, índios, amarelos e as mulheres. Aplicada no plano das relações internacionais ela significa a opressão da maioria da humanidade que vive fora dos círculos do poder das potências capitalistas ocidentais. Deste modo, a categoria seria útil para entendermos “a história do Ocidente como um todo” e, especialmente, a política e a ideologia imperialistas nos dias de hoje.
*Augusto Buonicore, Historiador, mestre em ciência política pela Unicamp
Quando o governador da Flórida, Charlie Crist, liderou uma missão comercial ao Brasil no mês passado, só se falava em melhorar os laços comerciais com o maior parceiro comercial do estado. "Deus abençoe o querido Brasil", disse Crist aos seus anfitriões, elogiando o programa mundialmente famoso de biocombustíveis do país.
Por David Adams, no St. Petersburg Times
Por isso é que foi uma surpresa, no último dia de Crist no Brasil, quando ele abruptamente anunciou o cancelamento de uma reunião com executivos da gigante estatal de energia Petrobras.
"Vamos continuar a seguir o caminho moral e prudente de não fazer negócios com empresas que patrocinam o terror e estabelecer um exemplo para todos outros Estados e nações", disse ele, citando uma nova lei da Flórida que exige que o fundo de pensão do estado evite empresas que façam negócios com o Irã e o Sudão.
Na época, a equipe de Crist disse que o gesto era inteiramente simbólico. A Petrobras tem modestos US$ 35 milhões (cerca de R$ 70 milhões) investidos em uma empresa de perfuração de petróleo iraniana - e eles acreditavam que a Flórida não tinha investimentos na Petrobras.
Os executivos da empresa foram surpreendidos pela bronca de um político em sua mera segunda viagem ao exterior que parecia o final de uma saga. Agora, o St. Petersburg Times descobriu que o fundo de pensão da Flórida tem US$ 111.919.435 (cerca de R$ 224 milhões) em ações da Petrobras, de acordo com a Administração do Conselho Estatal, que administra os investimentos do Estado.
"Conversei com o fundo antes de me reunir com a Petrobras, para ver qual quantia poderia ser afetada. Talvez tenha passado despercebido", disse George LeMieux, então chefe de gabinete de Crist. O erro de cálculo pode ter sérias repercussões para o relacionamento entre a Petrobras e o estado.
Sob a lei da Flórida, a Petrobras tem até setembro de 2008 para cortar laços com o Irã antes das autoridades serem forçadas a retirar o investimento de US$ 112 milhões. Que efeito tal retirada teria nas relações entre o Brasil e a Flórida não está claro.Crist, entretanto, via a Petrobras, maior distribuidora e vendedora de biocombustíveis, como potencial sócia em seus planos de promover a energia renovável.
"A Petrobras é uma empresa com a qual, de uma forma ou de outra, os interesses americanos terão que lidar", disse Jorge Pinon, ex-executivo da Amoco na América Latina, hoje no Centro de Estudos do Hemisfério da Universidade de Miami. "Ainda vamos precisar do Brasil se passarmos para o E10", acrescentou, referindo-se à gasolina misturada com etanol, que está pegando nos EUA, mas continua difícil de se encontrar na Flórida.
Ascensão
Nos últimos anos, a Petrobras emergiu como uma das maiores empresas de petróleo e gás com importante participação em combustível renovável. Uma descoberta gigantesca de petróleo off-shore, anunciada no mês passado, pode elevar o Brasil para o número oito na lista de maiores exportadores.
Só nos dois últimos anos, sua subsidiária americana, Petrobras America, tornou-se importante agente na perfuração na Costa do Golfo. "Em breve, a Petrobras vai se tornar uma das maiores produtoras de petróleo no Golfo do México", disse Pinon.
Apesar de o fundo de pensão da Flórida não poder investir na Petrobras sob as atuais circunstâncias, isso não impediria a gigante brasileira de investir na Flórida, de acordo com LeMieux. A Petrobras expressou interesse em entrar nesse mercado de varejo de combustível. "Estamos tentando fazer uma declaração com nossos investimentos. É realmente o único ponto de alavancagem que o Estado tem", disse LeMieux.
A participação de US$ 112 milhões de Flórida na empresa é pequena diante de seu valor de mercado de US$ 75 bilhões (aproximadamente R$ 150 bilhões). Ela registrou lucros de US$ 12 bilhões (em torno de R$ 24 bilhões) em 2005. O investimento da Petrobras no Irã também é minúsculo se comparado com outras empresas de energia internacionais, limitado a serviços de perfuração de US$ 35 milhões no Golfo Pérsico, com a estatal National Iranian Oil Co.
O contrato foi assinado no dia 14 de julho de 2004, bem antes da recente aumento da preocupação sobre as ambições nucleares do Irã, dizem funcionários da Petrobras. O contrato deve expirar no dia 14 de janeiro.
"A Petrobras é internacionalmente reconhecida por suas atividades responsáveis em todo o mundo e nunca patrocinaria o terror", declarou a empresa, observando que recebeu amplos elogios por sua administração eficiente e transparente.
Crist já sabia dos laços da Petrobras no Irã dois meses antes da viagem, admitem membros da equipe. "Há dois meses, o gabinete tomou maiores passos para se afastar de investimentos no Irã, e uma lista de empresas foi fornecida ao governador", disse a porta-voz do governador, Erin Isaac. "Durante a visita, ele me chamou e pediu que a reunião fosse cancelada imediatamente."
As autoridades brasileiras, entretanto, dizem que a ação do governador as tomou quase totalmente de surpresa. Apesar de terem recebido notícia da mudança da agenda do governador, só receberam explicações no último dia de Crist no Brasil. O consulado brasileiro em Miami presumiu que a mudança tivesse a ver com os planos de Crist de viajar para a Argentina naquele mesmo dia.
O cônsul geral do Brasil em Miami, João Almino, contatou o escritório do governador para expressar a "surpresa" de seu governo com a decisão de Crist e a linguagem usada na declaração de 7 de novembro. O Brasil respeita o direito da Flórida de regular seu fundo de pensão, mas nega que a Petrobras esteja associada com o terrorismo, disseram as autoridades.
O Brasil se considera um aliado no combate ao terrorismo, disse Rafael Vidal, vice-cônsul geral do Brasil em Miami. "Estamos jogando do mesmo lado", disse ele. LeMieux disse que esperava que a Petrobras cortasse seus laços com o Irã quando seu contrato expirasse em janeiro. "Para que tudo dê certo."
Fonte: The NYT News Service
Asfixiados em 30 mil hectares de terra, cerca de 40 mil Guarani-Kaiowá – maior população de um povo indígena no país – enfrentam crescentes taxas de homicídio e o aliciamento das usinas de cana-deaçúcar, que encontram no desespero desse povo a mão-de-obra ideal para seu megaprojeto e em suas terras uma perspectiva de lucro cada vez mais alto
Bolívia: nova Constituição e ameaças da direita
Ninguém ainda se anima a antecipar se a nova Constituição, que vai a plebiscito, ficará só como uma somatória de boas intenções ou será o texto que vai deixar para trás séculos de discriminação e pobreza das maiorias indígenas.
Pablo Stefanoni
“É agora que começa o desafio da mudança”, dispara Rocío Peralbo, jornalista e conhecida militante dos direitos humanos. “Todas as condições são favoráveis, seremos os únicos culpados se fracassarmos.” A história do Equador jamais tinha visto triunfo eleitoral tão surpreendente. Em 30 de setembro, 70% dos eleitores depositaram sua confiança nos candidatos do movimento Alianza País [1], que compartilham o projeto do presidente Rafael Correa. Com 80 das 130 cadeiras, terão uma maioria confortável na Assembléia Constituinte, graças à qual o chefe de Estado quer “refundar a República” e pôr em marcha um modelo de desenvolvimento em ruptura com o neoliberalismo [2].
A Alianza País nasceu no final de 2005. “Não era um agrupamento de iluminados, mas um movimento que se nutria das lutas e dos esforços de diversos setores sociais e políticos”, explica Alberto Acosta, ex-ministro das Minas e Energia e futuro presidente da Assembléia Constituinte. Desse movimento saiu o candidato Correa, economista e professor universitário, vencedor da eleição presidencial em novembro de 2006. “Éramos especialistas em protestar. Chegando ao poder, tivemos de começar a construir.”
É em Quito, no Palácio de Carondelet, um monumento da arquitetura colonial, que se encontra a sede do governo. Em sua sóbria mesa de trabalho, o presidente Correa afirma: “Empreendemos uma ‘revolução cidadã’ que deve nos levar a transformar radical, profunda e rapidamente as estruturas deste país. As que existem hoje não funcionam mais”.
Motoristas de táxi, vendedoras de jornal, engraxates, escriturários, todos, ou ao menos muitos, acreditam nesse projeto conduzido pelo chefe de Estado. Num país que conheceu oito presidentes em dez anos, não depositam confiança alguma no Congresso, que consideram incompetente e corrupto. Uma recusa eloqüente da “partidocracia” — é assim que Correa chama os partidos, feudos e grupos dirigidos por caudilhos que dominavam até então a cena política. A tal ponto que, durante as eleições que o viram triunfar na presidência, seu movimento, Alianza País, não apresentou nenhum candidato aos cargos legislativos, deixando o Congresso nas mãos da oposição. Foi um investimento pesado na opção pela Assembléia Constituinte, que poderá substituir o Congresso atual.
Bispo de Esmeraldas, D. Eugenio Arellano vive, no Equador há mais de 30 anos, “sempre muito perto do povo”, o que o leva a garantir que conhece “90% de seus habitantes”. Ele declara: “Este novo governo gerou uma enorme esperança no seio da população, a esperança de melhorar radicalmente as condições de vida”. Afirmando que a Igreja equatoriana já fez sua escolha, acrescenta: “Devemos apoiar, acompanhar e nos tornar os propagadores dessa esperança”. Mas, como diz uma expressão popular, “o caminho está cheio de cobras”.
O Equador tem cerca de 13 milhões de habitantes. Em 2006, segundo o Inec (Instituto Nacional de Estatísticas e Censos), 12,9% dos cidadãos não dispunham de um dólar por dia para garantir sua alimentação e figuravam na categoria dos “indigentes”. Em média, 38,3% dos equatorianos viviam numa pobreza crônica; 60% eram subempregados. Segundo a mesma fonte, 26% das famílias recorreram ao endividamento, em 2006, para enfrentar os gastos com saúde, alimentação, educação etc. Os demais dados sócio-econômicos vão na mesma direção.
Os projetos de desenvolvimento do governo de Correa têm sua fonte imediata de financiamento no petróleo, do qual o Equador é o quinto produtor na América Latina. As histórias de ambos — o Equador e o petróleo — estão intimamente ligadas.
Em 1972, um golpe de Estado levou ao poder “militares nacionalistas apegados à soberania do país”, conta o ex-contra-almirante Gustavo Jarrín, que, na época, foi nomeado ministro dos Recursos Naturais e Energéticos. Até então nas mãos de multinacionais norte-americanas, a exploração petrolífera passa ao controle do Estado. Várias empresas estrangeiras abandonam o país, outras aceitam as condições dos militares, inclusive a redução do prazo dos contratos de exploração, que passam de 50 para 20 anos. Em novembro de 1973, como o Equador passa a integrar a Opep (Organização dos Países Exportadores de Petróleo), os Estados Unidos suspendem sua ajuda militar. Mas, desde então, o Estado recebe 90% das receitas com petróleo, no lugar dos cerca de 5%, o que acarreta uma período de prosperidade econômica.
Jarrín se lembra com paixão que, em 1978, o sistema democrático foi restabelecido, com a chegada ao poder do candidato de um pequeno partido de centro-esquerda, Jaime Roldos. Esse morreu em 24 de maio de 1981, num acidente aéreo considerado suspeito. Em seguida, e em menos de 30 anos, a situação se inverte: novamente, 80% das receitas do petróleo caem nos bolsos das transnacionais. “Em alguns casos, os terrenos cedidos para a exploração do petróleo incluíam até mesmo a igreja e o parque da aldeia!”
“Incrível, mas legal”, confirma Acosta. “Está escrito na Constituição. O argumento? A liberdade para os investidores estrangeiros.” Ministro da energia no primeiro gabinete de Correa, e confrontado com a impossibilidade de poder mudar o que quer que seja no quadro das leis em vigor — já que o Congresso permanece nas mãos da oposição —, ele se demitiu em junho de sua função para poder se apresentar como candidato à Assembléia Constituinte. “O petróleo não tem sido garantia de desenvolvimento para o Equador, embora seja essencial para a economia.” De fato, as populações que conhecem o mais alto índice de pobreza — e de câncer! — se acham nas províncias petrolíferas. “A Amazônia foi destruída e dois povos nativos desapareceram por causa da falta de dignidade dos governos e da ação das transnacionais, que têm agido como empresas demolidoras.”
A recuperação dos recursos petrolíferos foi posta na ordem do dia desde a campanha de Correa. Como na Venezuela e na Bolívia, os investidores estrangeiros serão bem-vindos, desde que se curvem aos interesses nacionais. “E a abertura comercial desregrada não será aceita”, precisa Acosta. “Nenhum dos países que se abriu dessa maneira saiu ganhando; ao contrário, perderam muito.”
Outra tarefa estratégica: a busca da soberania regional. “Temos de enterrar essa visão de abertura para o Império [Estados Unidos] e de fechamento para nossos vizinhos. É preciso lutar pela integração latino-americana.” Nesse campo, explica Correa, “sou um ‘operário’ a mais, ao lado dos presidentes Chávez e Evo Morales, sem esquecer os chefes de Estado do Brasil e da Argentina, que também partilham desse estado de espírito”. Assim, em agosto, Quito e Caracas assinaram um acordo de integração energética para a construção de uma refinaria em Manabí (Equador). Essa instalação evitará que o Equador exporte seu petróleo bruto para importá-lo depois de refinado. “A integração é necessária e inevitável”, prossegue o presidente. “Talvez muitas pessoas não se dêem conta disso, mas essa parte do mundo vive um momento extraordinário. Devemos contribuir para a construção da Grande Pátria sonhada por Simón Bolívar.”
Nem é preciso dizer que, nos ambientes conservadores, esse discurso novo não provoca grande entusiasmo. Jornalista, astro dos espaços políticos do canal Teleamazonas, Jorge Ortiz tem muitas dúvidas acerca do rumo que o projeto de Correa tomará. “É muito provável que ele escolha o modelo econômico ‘chavista’. Já copiou o conceito de ‘socialismo do século 21’, que ninguém sabe exatamente o que significa.” A proximidade com o colega venezuelano Hugo Chávez é o argumento mais usado para atacar o presidente Correa. A comparação não é nada fortuita. Há vários anos, a grande imprensa equatoriana matraqueia: Chávez é um “demônio”, um “louco”, um “comunista”, que empobreceu e dividiu seu povo. Não é preciso fazer nenhuma mudança estrutural no Equador, afirma Ortiz. “Por que não conservar o modelo econômico atual, já que funcionou até agora? Basta fortalecê-lo.”
Durante as entrevistas com o presidente, o passado não existe: é como se os problemas do país tivessem começado em 15 de janeiro de 2007, quando ele tomou posse. O objetivo de alguns jornalistas é, evidentemente, encurralá-lo, mas Correa os desarma graças à sua formação universitária, à sua excelente memória e porque está sempre bem informado. Ele lhes mostra que estão mentindo, que especulam com os números e os fatos. Desesperados, os opositores atacam com mais vigor. Jorge Ortiz sustenta que eles agem com Correa como faziam com seus predecessores. “A diferença é que os outros aceitavam a contradição, ao passo que ele é visceralmente intolerante. Ele desacredita a imprensa para se subtrair às críticas e poder, assim, destruir o sistema democrático existente.”
Sem ser “correísta”, Rodrigo Santillán, ex-presidente da União Nacional dos Jornalistas e presidente de seu Tribunal de Honra, reconhece que, desde o momento em que Correa “começou a falar da necessidade de mudanças nas estruturas da nação”, ele sofreu uma avalancha de ataques e insultos “provenientes dos meios de comunicação mais importantes”. Santillán confessa que tem vergonha do espetáculo exibido por sua profissão: “Em vez de serem conduzidos diante do Tribunal de Honra, dois jornalistas que [durante uma entrevista coletiva] insultaram publicamente o presidente foram convertidos em heróis” [3]. A agressividade de um deles foi tamanha que o serviço de segurança do presidente teve de expulsá-lo.
Num país onde não existe nenhuma rede pública de televisão e de rádio, Correa — que pretende corrigir essa situação insólita — desloca-se todo sábado até uma cidade para, ali, “prestar contas” à população. A cada vez, convida dois ou três jornalistas. Rocío Peralbo constata que, pela primeira vez, os profissionais da mídia alternativa e regional estão ganhando voz. “Isso só faz aumentar o mal-estar da imprensa em relação ao presidente.” A resposta dele foi clara e nítida: “Nós democratizaremos a informação. Decidimos não conceder mais privilégios àqueles que, desde sempre, foram privilegiados”.
Ao longo do ano, em coordenação com os principais meios de comunicação equatorianos, algumas organizações internacionais de defesa da liberdade de expressão, deixando de reconhecer esse conluio entre mídia e poderes econômicos e financeiros, têm protestado contra a decisão presidencial de não conceder entrevistas a certos jornalistas. Lá, de novo, o chefe de Estado não teve papas na língua: “Se alguns me insultaram e deformaram minhas palavras, eu tenho, enquanto pessoa e presidente, a liberdade de expressão de lhes dizer que não me presto a esse jogo em nome da liberdade de imprensa”.
O ex-ministro Acosta vê outro motivo de tensão no fato de que, pela primeira vez, um governo “não tem relação incestuosa com a imprensa. Não somos o único país do mundo onde isso acontece, mas aqui era normal que os proprietários dos meios de comunicação fossem nomeados para cargos honoríficos que nada tinham a ver com a profissão”.
No Equador, dos sete canais de televisão, seis pertencem a grupos bancários ou dependem de clãs financeiros. “A classe social formada por uma centena de famílias, a mesma que manteve as rédeas do poder”, afirma o bispo Arellano, “forjou a opinião pública e gerou uma espécie de filosofia social em seu favor, porque possuía os maiores meios de informação.”
“A democracia é boa”, enfatiza o presidente, “desde que os interesses do setor oligárquico não sejam ameaçados. Desde que um governo não pretenda redistribuir as riquezas nacionais. Nesse momento, a agressividade da imprensa desperta. Assim, ainda que a grande mídia e seus jornalistas não sejam responsáveis pelos males do país, eles contribuem seriamente para isso.” No que lhe diz respeito, o jornalista Santillán “sabe” que a embaixada americana em Quito age — discretamente, mas age. “Ela está cada vez mais mancomunada com os grandes meios de comunicação, que estão exultantes. Não falta muito para que se torne maciça a campanha de demonização do presidente. É um primeiro passo para tentar a desestabilização.”
A atual determinação do governo equatoriano entra, na perspectiva de Washington, na categoria da insubmissão. “Esperamos que os Estados Unidos, mas também a União Européia ou qualquer outra nação, nos respeitem”, declara com firmeza Correa, “e que ninguém tente nos ditar as políticas que devemos seguir, nem realizar qualquer tipo de intervenção.”
Todavia, mais que a ação dos Estados Unidos contra o governo, o que constitui atualmente uma fonte de preocupação em Quito é a guerra na Colômbia. Cerca de meio milhão de colombianos se instalaram no Equador, e muitos deles fazem parte dos “desalojados” que tiveram de fugir do conflito. A cada dia, centenas de pessoas buscam um refúgio temporário deste lado da fronteira. Nessa região limítrofe, a situação às vezes é tensa, ainda que o governo equatoriano e suas forças armadas venham agindo com prudência e humanidade.
Correa anunciou que não vai se imiscuir na guerra civil que assola o país vizinho. E que tampouco qualificaria de grupo “terrorista” a guerrilha das Forças Armadas Revolucionários da Colômbia (Farc). Tem repetido que seu governo está disposto a contribuir na busca de uma solução política do conflito. Mas permanece categórico ao afirmar que “o Plano Colômbia, implementado por Bogotá e Washington, é um plano militarista e violento que, em vez de ajudar a resolver a situação dramática, só serve para agravá-la”.
Correa não somente exigiu de seu colega colombiano Alvaro Uribe que interrompesse as fumigações aéreas sobre as plantações de coca próximas da fronteira, como também advertiu que, se necessário, levaria o caso aos tribunais internacionais. Comissões governamentais e independentes têm reconhecido os graves efeitos dos produtos químicos sobre as pessoas, a água, os animais e as plantas. “Nosso vizinho é um país-irmão, mas temos de impor limites ao Plano Colômbia.”
Outra preocupação, aliás, existe em Quito: o governo colombiano poderia ser o cavalo de Tróia de Washington para sustentar uma tentativa de desestabilização do governo equatoriano. Em diversas ocasiões, ele agiu assim em relação à Venezuela.
Se o governo não gozasse de um apoio popular da ordem dos 80%, pensam muitos, “há muito tempo já teria havido uma tentativa de golpe de Estado”. Contudo, sempre em contato com os oficiais de alta patente, o contra-almirante Jarrín garante: “Não percebi a menor intenção entre eles de participar de uma aventura do gênero”.
É verdade que o governo está ganhando a simpatia dos militares graças às medidas que tomou em favor deles. Com condições de trabalho e de vida deploráveis, militares e policiais não foram bem tratados no passado. Além disso, importantes projetos de desenvolvimento nacional são confiados aos corpos de engenheiros das forças armadas. A iniciativa não agrada as empresas privadas e estrangeiras, mas o governo defende a capacidade desses profissionais e lembra que, com toda lógica, uma parte do dinheiro investido dessa maneira será recuperada pelo Estado.
Até o momento, afirma-se no Palácio de Carondelet, “tudo era feito em função do capital financeiro especulativo, e não dos geradores de riqueza”. No Equador, as contradições chegaram a tal ponto que, enquanto o setor produtivo se achava em crise, o setor financeiro, que o administra, batia todos os recordes de lucro. “O problema é que muitos presidentes de empresa fraudam: não pagam impostos, exploram seus trabalhadores, não respeitam o meio ambiente etc. Esses realmente têm o que temer com nosso projeto de um novo Estado. Eles gostariam de assistir à desestabilização deste governo, que não poderão dominar.”
O jornalista Jorge Ortiz vê o futuro com um olhar pessimista, para não dizer catastrofista: “Vão ocorrer grandes enfrentamentos, principalmente porque o presidente Correa se tornou um homem que provoca o ódio, as rivalidades, as divisões entre os equatorianos”. Em contrapartida, o bispo Arellano propõe outra explicação para as dificuldades futuras: “A minoria de privilegiados se empenha em dar fim a este projeto de vida. O choque virá do lado deles, pois serão atacados em seus privilégios desmedidos. Eles se sentem como a criança de quem se retira o seio em que mamava: eles choram”.
[1] Ao qual se juntam alguns aliados como o Movimento Popular Democrático (MPD) e o movimento indígena Pachakutik.
[2] Dirigido pelo ex-presidente Lucio Gutiérrez, demitido de suas funções por uma mobilização popular em abril de 2005, o Partido Sociedade Patriótica (PSP) mal ultrapassou os 7% dos votos. O Partido Renovador Institucional-Ação Nacional (PRIAN), do magnata da banana Alvaro Noboa, obteve 6,5% dos votos. O quarto lugar coube ao Partido Social Cristão (PSC, 3,7%), que dirigiu a política equatoriana durante duas décadas.
[3] Emilio Palacios, do diário El Universal, e Alfonso Espinosa de los Monteros, diretor dos jornais televisivos do canal Ecuavisa. Este recusou o lugar de vice-presidente que lhe foi proposto no PSC durante as eleições de 2006.