Para o pensador István Mészáros (1), "no momento em que o capital, com
seu dinamismo irrepreensível e não problemático que tudo invade,
apareceu no palco histórico, a margem de segurança de seu impacto
objetivo sobre a natureza era tão imensa que as implicações negativas
não faziam diferença". Contudo, Mészarós destaca que "as circunstâncias
de nosso tempo carregam a certeza absoluta da autodestruição humana no
caso de o corrente processo de reprodução sócio-metabólica do capital
não for levado ao seu fim definitivo no futuro próximo". Para o pensador
"não há nada em princípio integralmente repreensível na destruição de
determinadas partes ou formas da natureza para sua transformação em
alguma outra coisa", mas "a ampla margem de segurança desapareceu para
sempre". A capacidade destrutiva do capital encontrou limites
estruturais absolutos no próprio sistema, a ponto de obstruir o futuro
da humanidade.
A agricultura sempre foi uma das atividades humanas de maior
interferência na natureza. Contudo, é a partir da avassaladora
transformação decorrente da implantação do pacote tecnológico calcado na
"Revolução Verde", em meados do século 20, que se aprofundam as
alterações no ambiente rural e na organização econômica e social do
campo. No Brasil, de tal transformação resultou o atual modelo
predominante de agricultura identificado no agronegócio.
O agronegócio brasileiro caracteriza-se por uma dinâmica produtiva que
afronta qualquer anseio de justiça social, econômica e ambiental.
Consolida-se como um modelo produtivo devastador, seja no aspecto
social, pelo seu perfil excludente e concentrador, seja no aspecto
ecológico, pela sua negligência para com os impactos ambientais que
provoca.
Sob a égide do sistema capitalista, as atividades agrícolas deixaram de
ter sua finalidade voltada às necessidades humanas prementes, como por
exemplo, fonte de alimentos, energia e outras utilidades. As
transformações da natureza permitidas pela agricultura foram
incorporadas pelo metabolismo capitalista como uma de suas formas de
apropriação do fruto do trabalho alheio. Qualquer finalidade "humanista"
ditada pelos interesses econômicos que dominam as atividades
agropecuárias passou a ser mero pretexto, não mais importando a produção
para suprir exclusivamente as necessidades humanas alimentares,
energéticas ou para qualquer outro fim. O capital define relevância para
a atividade agropecuária como produtora e consumidora de mercadorias,
permitindo o fechamento de um ciclo para o aperfeiçoamento da mais
valia. Não ao acaso, é cada vez mais comum empresas fornecedoras dos
insumos agrícolas e empresas compradoras da produção agropecuária
comporem a mesma corporação monopolista em aprofundamento de poder sobre
importante atividade produtiva. Trata-se de situação de alto risco à
soberania alimentar do povo brasileiro.
O conceito de soberania alimentar declarado no "Fórum Mundial de
Soberania Alimentar", em Havana, Cuba, 2001, apresenta absoluta oposição
à lógica concentradora do agronegócio: "O direito dos povos de definir
as próprias políticas e estratégias sustentáveis de produção,
distribuição e consumo de alimentos que garantam o direito a boa
alimentação para toda a população com base na pequena e média produção,
respeitando suas próprias culturas e diversidades dos modos camponeses,
pesqueiros e indígenas de produção agropecuária, de comercialização e de
gestão dos espaços rurais, nos quais a mulher desempenha um papel
fundamental".
O conceito associa a defesa da soberania alimentar com a defesa da
soberania econômica, política e cultural dos povos. Foi elaborado e
incorporado por diversos movimentos populares e traz incisivo
questionamento à transformação de produtos agropecuários em
"commodities", com a produção ditada por interesses do grande capital,
inclusive, com ameaça ao abastecimento alimentar para a saciedade de
vorazes interesses especulativos.
O agronegócio, por meio de sua base tecnológica e dinâmica brutal, traz
sérias conseqüências: devastação de ambientes naturais e de tradições
culturais locais pela expansão de fronteiras agrícolas sem a devida
preocupação com os seus impactos; atropelo das obrigações legais
ambientais, destacadamente das previstas no Código Florestal;
transformações genéticas nas sementes, valorizando a produtividade
dependente de insumos industriais em detrimento da diversidade, da
adaptabilidade e da variabilidade genética das espécies; criação de
animais com métodos de confinamento geradores de resíduos poluentes
(hormônios, antibióticos, gases etc.), além de carregados de crueldade;
incorporação maciça de agrotóxicos, de fertilizantes químicos
industriais e de pesadas máquinas ao modo de produção, trazendo erosões,
contaminações ao ambiente e riscos à saúde humana, sobretudo ao
trabalhador rural.
Essa panacéia tecnológica altamente excludente criou para a produção
agropecuária uma forte relação de dependência de produtos industriais
sob domínio de transnacionais e empobreceu o agricultor por meio do
amplo fluxo de renda do campo para a geração de lucros ao setor
industrial. Suas implicações sociais e econômicas são nefastas: queda de
qualidade no modo de vida camponês, precário assalariamento do homem do
campo, êxodo rural e urbanização desenfreada e desorganizada. A análise
compilada pelo Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA) com
base no Plano Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2008, retrata
a situação: das 8 milhões de famílias que vivem no campo, 2 milhões de
famílias sobrevivem com menos de 1 salário mínimo mensal.
No Brasil, a implantação das técnicas da "Revolução Verde" ocorreu sob o
beneplácito estatal, por meio de subsídios à aquisição de pesadas
máquinas agrícolas; de privilégios fiscais às indústrias de insumos;
pesquisa, assistência técnica e extensão rural públicas subservientes
aos interesses das transnacionais; e no financiamento e crédito rural
atrelados à obrigatoriedade de aquisição e uso de fertilizantes
industriais e de agrotóxicos.
Com o crescimento das preocupações ambientais, as corporações
empresariais beneficiadas por esse modelo destrutivo, principalmente as
transnacionais dos agrotóxicos, também detentoras do domínio de sementes
híbridas e transgênicas, passaram a, descaradamente, propagandearem-se
como corporações voltadas aos interesses da "vida", focadas no
desenvolvimento de tecnologias sustentáveis ambientalmente. Tentaram
criar um mito de que sem seus produtos não haveria capacidade de suprir
as necessidades alimentares da população: os efeitos colaterais dos
agrotóxicos são apregoados como uma espécie de mal menor ante a
possibilidade de fome mundial. Desconsideram que, mais do que uma
questão de produção de alimentos, a fome que recai sobre grande parcela
da população mundial é conseqüência do insano caráter concentrador do
sistema capitalista.
Em face das evidentes contradições entre a sustentabilidade
propagandeada por essas corporações e os danos provocados por seus
processos produtivos e produtos, não existe viabilidade para medidas
mitigadoras ou compensatórias para técnicas tão degradantes à natureza e
ao ser humano. Nem mesmo uma pretensa agenda de desenvolvimento verde,
dentro dos marcos do capitalismo, conseguiria resolver tal contradição,
pois o capital, embora criação humana, é inumano, irracional e
desprovido de senso de auto-preservação, tendo apenas como sua essência a
transformação de tudo em mercadoria.
É nessa perspectiva que cinicamente as transnacionais tentam, por
exemplo, impor os agrotóxicos e os transgênicos como elementos
essenciais da economia brasileira, associando-os, além da necessidade à
produção de alimentos, como fundamentais à geração de empregos e de
riqueza à nação. Seus asseclas cantam em prosa e verso a participação do
agronegócio e da agroindústria no PIB e na pauta de exportações
brasileiras. Reafirmam, orgulhosamente, o histórico e atrasado caráter
agroexportador e concentrador da economia brasileira. Por outro lado,
dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT) evidenciam a concentração de
terras no campo brasileiro: 1% das propriedades rurais detém 46% da área
passível de produção agropecuária, sendo ainda que os 50 mil
proprietários de áreas rurais superiores a 1.000 hectares concentram
mais de 50% das áreas agricultáveis.
Os agrotóxicos estão entre os elementos do agronegócio mais emblemáticos
do caráter predatório do capital. São compostos químicos desenvolvidos
para efeito biocida. Hoje, estão, predominantemente, em voga aqueles de
síntese orgânica industrial, cuja disseminação inicial ocorreu em
conveniente desvio de finalidade de substâncias que inicialmente
apresentavam propósito bélico, como armas químicas. Tal desvio foi de
grande contribuição para o crescimento e a pujança da indústria química
no pós-guerra. Entre os exemplos dessas substâncias de guerra estão os
gases letais derivados de ácido fosfórico, que deram origem a pesticidas
do grupo dos organofosforados, ainda de intenso uso na agricultura
brasileira, muito embora com proibições em ampla gama de países.
Pelas suas características próprias e pelo seu propósito de uso, os
agrotóxicos distinguem-se de outras substâncias perigosas utilizadas ou
derivadas de outros processos produtivos. Enquanto nas últimas, a ação
humana busca tirá-la do ambiente, expurgando qualquer possibilidade de
exposição direta e afastando risco ambiental ou à saúde, os agrotóxicos
têm sua disseminação intencional no ambiente, inexistindo técnicas de
aplicação que permitam seu uso sem qualquer risco de exposição às
pessoas ou ao meio ambiente. Considere-se o agravante de que seu uso
mais comum ocorre sobre produtos que a população irá consumir na sua
alimentação.
Paradoxalmente, constata-se que a nocividade ambiental dos venenos
agrícolas compromete, ao longo do tempo, o próprio sistema de produção,
impossibilitando aquele que é o suposto objetivo da tecnologia: redução
de ataques de pragas e aumento da produtividade agrícola. Ocorre que
somado à monocultura, o intenso uso de pesticidas provoca desequilíbrios
ecológicos que induzem o ressurgimento de pragas ou a proliferação de
novas pragas pelo crescimento populacional descontrolado ocasionado pela
quebra da biodiversidade, ou pela resistência genética adquirida,
formando "superpragas", quase indiferentes aos agrotóxicos. Entre os
exemplos, pode se citar a recente e descontrolada afetação sofrida pela
citricultura paulista, em função da disseminação do "Greening", doença
bacteriana transmitida pelo inseto Diaphorina citri.
No âmbito da saúde humana, o impacto dos agrotóxicos assume proporções
impressionantes. De acordo com alguns pesquisadores, estimam-se em
aproximados 540 mil trabalhadores contaminados anualmente por
agrotóxicos no desenvolvimento de atividades de trabalho no país, com
4.000 mortes (2). Afora as intoxicações de trabalhadores, os agrotóxicos
ocasionam riscos à saúde da população geral por meio da contaminação de
mananciais de captação de água para consumo e de alimentos.
Seguindo a lógica de subordinação aos interesses maiores do capital, a
partir de 2008, o Brasil se tornou o maior consumidor de agrotóxicos do
mundo e, nos últimos anos, o grande importador dessas substâncias
letais, muitas com uso vetado no próprio país de origem. O opulento
agronegócio brasileiro passa a dar sobrevida às estruturas industriais
em obsolescência do exterior, como é o caso daquelas que processam e
sintetizam agrotóxicos à base de paraquat, de carbofuran e de outras
substâncias organofosforadas.
São Paulo é o estado que mais consome agrotóxicos, representando cerca
20% do mercado nacional. Também é o campeão dos casos notificados de
intoxicações por agrotóxicos, correspondendo a 26,71% do total das
notificações registradas em 2007.
Neste quadro, apresentamos Projeto de Lei nº 281/2010, objetivando o
cumprimento da determinação constitucional de proteção à saúde e ao meio
ambiente pelo poder público.
O projeto dispõe sobre normas de controle, produção, comércio e uso de
agrotóxicos no Estado de São Paulo. A proposição levou em conta a
competência concorrente prevista na Constituição Federal e tem como
orientação primordial a proteção da saúde humana e do meio ambiente,
além de uma produção agrícola de qualidade e menos dependente das
transnacionais.
A proposta inova ao prever, expressamente: um cadastro de caráter
autorizativo e não apenas homologatório como ocorre hoje, possibilitando
aos órgãos estaduais de saúde, agricultura e meio ambiente,
responsáveis pelo controle e fiscalização, a tomada de medidas mais
restritivas que as dos órgãos federais; exemplifica motivações para o
pedido de impugnação de cadastro de agrotóxicos, alertando entidades
organizadas e cidadãos para a possibilidade da iniciativa e para maior
atenção ao tema; cria um sistema de monitoramento de resíduos e de
aperfeiçoamento da fiscalização; traz ao poder público estadual a
obrigação de divulgação de técnicas substitutivas aos agrotóxicos;
exemplifica tipificações de condutas, de modo a dar maior força coatora
frente às irregularidades, uma vez que, hoje, a pouca eficácia das ações
do poder público estadual levam ao desdém e favorecem a negligência do
suposto fiscalizado; define o papel da assistência e da responsabilidade
técnica aos estabelecimentos com atividades relacionadas aos
agrotóxicos; e possibilita maior controle social sobre a questão, pois
estipula instrumentos aos órgãos estaduais para dar eficácia e
efetivamente cumprir suas atribuições constitucionais e, por outro lado,
viabiliza maior cobrança política e jurídica perante eventual inércia
governamental.
Num período em que as estruturas de Estado são colocadas em xeque pelas
forças políticas neoliberais que hegemonizam os aparatos governamentais,
o tema dos agrotóxicos deve ser trazido à baila, não só pelos seus
efeitos danosos no âmbito sanitário e ambiental, mas pela sua profunda
relação com um sistema econômico injusto, de amplo e unilateral
benefício aos interesses do capital.
A representação política ruralista/agronegocista passa por intenso
recrudescimento, com fortes interações nas estruturas de poder, ditando
políticas públicas, iniciativas legislativas conservadoras e influências
no judiciário, sempre voltadas ao benefício do modelo de produção
concentrador, excludente e devastador. A forma de ação de tais forças
retrógradas ilustra a indiferença que, mesmo perante as evidências de
agravamento do colapso ambiental no futuro próximo, o capital se coloca
como absoluto e "fecha os olhos" para a insuperável contradição trazida
pela grave crise ambiental, persistindo na sua ilusão de "eterna"
reprodução. Fazem-se necessárias contraposições a essas forças
destrutivas e reacionárias. Em seu modesto alcance, o Projeto de Lei nº
281/2010 e o debate que se pretende agitar a partir dele buscam
extrapolar o foco meramente tecnicista da questão, trazendo à tona as
faces política e ideológica que envolvem a questão dos agrotóxicos.
Notas:
(1) ISTVÁN MÉSZÁROS, "O Desafio e o Fardo do Tempo Histórico", Boitempo Editorial, 2007, p.27/28.
(2) FREDERICO PERES e OUTROS, "Os Impactos dos Agrotóxicos sobre a Saúde
e o Meio Ambiente", Revista de Ciência & Saúde Coletiva, Vol. 12,
nº 1, jan/mar, 2007, p.4 (editorial).
Raul Marcelo é deputado estadual e líder do PSOL na Assembléia Legislativa do estado de São Paulo.
|