“Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”
Ensaio Sobre a Cegueira, de José Saramago
Cada um viu o que quis, mas a maioria viu o que não queria mesmo sem enxergar um palmo diante do nariz.
As previsões eram de que a entrevista de Antonio Palocci ao Jornal
Nacional seria o golpe de misericórdia que ele receberia – ou daria em
si mesmo, pois, segundo um importante analista, o ministro teria optado
pela “guilhotina”.
Não foi o que se viu. E pude confirmar isso indo ao Twitter provocar opiniões sobre a entrevista.
Apesar de alguns mais inconformados com o fato de que acusar quando o
acusado se defende é mais difícil terem optado por teimar que teria
havido a materialização da decapitação, a maioria reconhecia que Palocci
fora bem, sim, mas atribuía ao fato de que a Globo o teria “ajudado”.
Diante disso, coube-me uma pergunta óbvia: se o JN aliviou, não fez
as perguntas que devia, o que você perguntaria ao ministro para,
digamos, arrasá-lo ao vivo e à cores? Recebi dezenas de mensagens.
Dezenas. E nenhuma resposta.
Palocci foi bem simplesmente porque se manteve calmo e porque mostrou
ao repórter Julio Mosquera e ao público que toda aquela história de que
ele estaria “se escondendo” não se justificava, como se viu.
E o que se viu, em vez da decapitação, foi quase um chá das cinco ao melhor estilo bretão.
Palocci deixou claro que todas as perguntas que lhe fazem sobre quem
são seus clientes, quanto lhe pagaram etc. serão respondidas aos “órgãos
de controle”, ou seja, à Procuradoria-Geral da República, ainda que
esta já tenha avaliado os dados antes de ele entrar no governo.
Logo, os pistoleiros do PIG começaram a rever a teoria da
decapitação. O ministro, provavelmente, não cairia mais. A decapitação
não ocorreria já, apesar de que era dada como favas contadas.
Pode ser, claro, que ocorra por razões políticas, sem provas, mas
será dado à direita midiática e à manada útil o direito de punir alguém
sem julgamento, sem provas e sem meros indícios.
E há outro motivo pelo qual a decapitação de Palocci não ocorrerá.
Reportagem da revista IstoÉ de 1999, sobre o ex-presidente do Banco
Central Armínio Fraga, ajudará a entender por que.
Fraga deixou de receber um salário 20 vezes maior como empregado do
mega investidor George Soros para trabalhar no governo FHC por 7 mil
reais. À diferença de Palocci, porém, ninguém exigiu maiores explicações
sobre a razão da troca de emprego.
Leiam, abaixo, a reportagem. Os mais sagazes entenderão tudo
rapidamente, outros precisarão de explicação para entender e alguns não
entenderão simplesmente porque não querem, o que não mudará nada.
—–
Revista IstoÉ
N° Edição: 1532 | 10 de fevereiro de1999
Ao mestre com carinho
Ligação com o especulador George Soros é virtude e defeito de Armínio Fraga, novo presidente do BC
ANDRÉ VIEIRA
Dinheiro em dobro. Foi o que garantiu Armínio Fraga Neto, o novo
presidente do Banco Central (BC), aos investidores que lhe confiaram
suas poupanças no final de 1992. Quem investiu a quantia de US$ 100 mil
no fundo Quantum Emerging Growth – gerido por Fraga – colheu cerca de
US$ 199 mil em dezembro, mesmo com a quebradeira generalizada dos países
emergentes, como México, os Tigres Asiáticos e a Rússia neste período. O
desempenho só não foi melhor porque o fundo perdeu 29,4% em 1998.
Experiente operador, Fraga deveria causar uma sensação de bem-estar à
frente da mesa de operações do BC, exceto por um detalhe. Quem irá
preservar o valor da moeda mais derretida dos últimos tempos – o real –,
afastando do Brasil os especuladores, tinha como patrão George Soros,
ícone do capitalismo especulativo. “Ao indicar o senhor Armínio Fraga,
funcionário e escudeiro de confiança de Soros, o governo pretende
sinalizar com clareza: basta de intermediários, vamos logo colocar a
raposa para tomar conta do galinheiro”, atacou a Central Única dos
Trabalhadores (CUT).
Decidido a voltar ao Brasil apenas em julho, quando terminassem as
férias de seus dois filhos, Fraga antecipou seu retorno devido aos
incessantes pedidos da equipe econômica. A abrupta troca de comando
gerou, além de críticas e vivas, muitos boatos e suspeitas. Afinal, ele
se desligou do Soros Fund Management, a empresa do megaespeculador, em
Nova York, na segunda-feira 1º para desembarcar no dia seguinte, já no
Brasil, como chefe indicado do BC brasileiro. Deixou um salário de cerca
de US$ 60 mil por mês em honorários para receber cerca de R$ 7 mil como
funcionário do primeiro escalão do governo FHC. Na viagem de volta,
veio acompanhado do economista Paulo Leme, executivo da Goldman Sachs,
que acabou a semana convidado para uma das diretorias do Banco Central.
Nestes dias de trocas de cadeiras, o mercado financeiro agitou-se
bastante, com expressivos lucros dos fundos de investimentos (leia à pág. 26).
No encontro anual de economistas na cidade de Davos, na Suíça, Soros
deu uma lacônica resposta aos jornalistas: “Estou tão surpreso quanto
vocês.” Horas depois, uma nota de seu fundo reiterou que o
megaespeculador nada sabia antes da nomeação, embora fosse de seu
conhecimento os vários contatos mantidos entre o governo brasileiro e o
seu destacado funcionário.
Apesar da polêmica relação com Soros, Fraga é um daqueles garotos
prodígios do mercado financeiro. Aos 34 anos, já tinha feito doutorado
na Universidade de Princeton, trabalhado no Federal Reserve (Fed) e nos
bancos Garantia e Salomon Brothers. Em 1991, comandou pela primeira vez
uma das diretorias do Banco Central, quando sustentou uma política
monetária austera, cujo resultado fez elevar as reservas internacionais
de US$ 8 bilhões para US$ 25 bilhões, criando um colchão de liquidez
para a criação do Plano Real. Saiu do BC com a queda de Collor. Mas o
êxito da política monetária carimbou seu passaporte para Nova York a fim
de seguir os passos de Soros, que começava a ganhar fama como o “homem
que quebrou o Banco da Inglaterra”. Num dia conhecido como a
“quarta-feira negra”, em setembro de 1992, o investidor havia apostado
US$ 10 bilhões na desvalorização da libra esterlina. Com a moeda
esvaindo nas mãos dos ingleses, Soros ganhou US$ 1 bilhão e obrigou a
Grã-Bretanha a sair do Sistema Monetário Europeu (SME), que controla o
regime de câmbios dos países da União Européia (UE).
Ações da Vale
Antes disso, Soros já era um conhecido
de Wall Street por fazer apostas arriscadas, inclusive em países em
desenvolvimento. No Brasil, tornou-se o primeiro cliente estrangeiro do
Banco Pactual em 1986, numa parceria que durou até a contratação de
Fraga. Por intermédio do brasileiro, pôde comprar participações na
Escelsa e na Vale do Rio Doce nos processos de privatização. No entanto,
a maioria de seus investimentos concentra-se na área imobiliária, como
shopping centers e empreendimentos construídos em parceria com a
incorporadora paulista Cyrela, do empresário Elie Horn. Todos os
negócios são feitos pela Brazil Realty, uma joint venture entre a Cyrela
e a Irsa, holding argentina onde o megaespeculador possui importante
participação. Na Argentina, Soros é dono de nove shoppings, alguns
hotéis e vários escritórios comerciais. Na semana passada, adquiriu por
US$ 152 milhões cerca de 15% das ações do Banco Hipotecario, a maior
instituição de crédito imobiliário do país. Além disso, titula-se como o
maior latifundiário da Argentina, com meio milhão de hectares de
terras.
A trajetória de Soros repete a saga de um magnata em transformação,
tal como um personagem de romance. Judeu húngaro nascido em 1930, foi
obrigado a se esconder do nazismo durante a Segunda Guerra e abandonar
seu país depois que os comunistas tomaram o poder em 1947 para estudar
na Inglaterra. Em 1956, já nos Estados Unidos, trabalhou como operador
em diversas corretoras de Wall Street, onde fundou em 1969 o fundo de
investimentos Quantum. Como qualquer multimilionário, Soros poderia se
aposentar apenas como um excêntrico filantropo, capaz de doar US$ 500
milhões à Rússia, ou como o mais famoso megaespeculador da história
recente. Mas, aos 68 anos, assumiu o papel de um virulento crítico do
capitalismo financeiro globalizado do qual é – ironicamente – um dos
maiores expoentes e beneficiários. Boa parte de suas idéias estão no
livro A crise do capitalismo, lançado no final do ano passado e
que tem prefácio, no Brasil, do próprio Armínio Fraga. O guru
ideológico de Soros é o filósofo austríaco Karl Popper, que defendia a
idéia de uma sociedade aberta – politicamente democrática e
economicamente orientada pelo mercado. Essa formação permitiu que
criticasse a lógica do capital financeiro para preservar o sistema
capitalista como um todo. Quando houve o ataque especulativo às moedas
asiáticas em 1997, Soros foi bombardeado pelo primeiro-ministro da
Malásia, Mahatir Mohamed, que o acusava de ser o responsável pela
catástrofe financeira que se abatera sobre seu país. Em resposta, o
investidor apontou os perigos do retrocesso do capitalismo, representado
pelo controle de capitais imposto pelo governo malaio. “Uma coisa é
certa: os mercados financeiros são propriamente instáveis; eles precisam
supervisão e regulação”, escreveu Soros, num resumo de seu novo livro
reproduzido na semana passada pela revista americana Newsweek. Uma boa recomendação para saber o que pode acontecer no BC brasileiro.
Colaboraram: Osmar Freitas Jr. (NY), Hélio Contreiras (RJ) e Isabela Abdala (DF)
A primeira suspeita
Uma possibilidade de que George Soros teria se aproveitado de
informação exclusiva sobre a nomeação de seu ex-funcionário Armínio
Fraga Neto para o BC já circulou pelo mercado financeiro internacional
na semana passada. O principal indicativo de que algo estranho aconteceu
foi a valorização dos C-Bonds, papéis da dívida externa brasileira, que
pularam de US$ 56,563 para US$ 57,688 entre a segunda-feira 1º e a
quarta-feira 3, data posterior à indicação. “Fundos de investimentos
compraram pesadamente bônus brasileiros e reais pouco antes e durante o
anúncio oficial de Fraga, apenas para se desfazerem das mesmas posições
com lucro na própria terça-feira”, constatou Simon Treacher, diretor
para mercados emergentes do banco Morgan Grenfell, de Londres. “Mas não
há como provar que o dinheiro veio de Soros ou de outro investidor e que
eles usaram informações confidenciais”, ressalva. Os ganhos fáceis
teriam ocorrido porque era certo que o mercado receberia bem a nomeação
de Fraga. O operador de um banco brasileiro lembra que a movimentação em
torno dos títulos poderia ter influído inclusive na baixa da cotação do
dólar, que chegou a R$ 1,75 na terça-feira, após o pico de R$ 2,15 da
sexta-feira 29. “Os C-Bonds e o dólar estão interligados. Se os títulos
valorizam, o dólar cai.”