Em 21 de Abril passado, o
professor Mahmud Mamdani, director do Makerere Institute of Social
Research na universidade de Kampala, Uganda, fez uma intervenção na
Conferência Distrital do Rotary Internacional em Munyonyo. Eis a
transcrição integral do seu discurso. Por Mahmud Mamdani no PASSA PALAVRA
Aqueles
de vocês que não são de cá talvez tenham ouvido falar de uma nova forma
de protesto social chamada “ida a pé para o trabalho” [1].
Tanto a oposição que iniciou esse tipo de marcha como o governo que
está determinado a fazê-la parar são guiados pela lembrança de um
acontecimento singular.
A lembrança da Praça Tahrir alimenta as
esperanças da oposição e fomenta os receios do governo. Para muitos dos
oposicionistas, o Egipto acabou por significar a terra prometida, no
sentido proverbial. Para muitos dos governantes, o Egipto representa um
desafio fundamental ao poder, que exige que se lhe resista a todo o
custo.
As coisas chegaram a um ponto em que o
mínimo sinal de protesto desencadeia a máxima reacção do governo. A tal
ponto que o governo, que há apenas poucas semanas chegou ao poder com
uma maioria arrasadora, parece agora carecer não só de flexibilidade mas
também de estratégia de saída.
Os civis, tanto os apoiantes como os
cépticos, ao verem os meios militares saírem à rua para manter a ordem
civil nas ruas, veem esbater-se a distinção entre polícia civil e tropas
militares uma vez que os que estão no poder insistem em tratar qualquer
mero acto de protesto civil como se fosse uma rebelião armada.
Enquanto o governo está a perder a
coerência e a unidade que aparentava nas eleições, a oposição está a
conseguir ao menos um vislumbre da unidade e da visão que perdera
durante o período eleitoral.
Se pensarmos que muitos destes [agora]
opositores, muitos dos que tinham estado no anterior Parlamento, foram
capazes do pior quando lhes coube governar, então esta inversão torna-se
ainda mais espantosa.
Como é possível que alguma dessa mesma
oposição, que ainda ontem via no Parlamento um passaporte para o
clientelismo e uma licença para a pilhagem, esteja agora a descobrir a
determinação e a coragem moral mesmo sem haver eleições à vista e sendo
os tempos actuais bem duros? Este pensamento, por si só, é fonte de
noções contraditórias na população, ao mesmo de cepticismo e de
optimismo, quando se trata de política.
Não
pretendo, agora, nem celebrar a oposição nem demonizar o governo.
Apenas quero falar dessa lembrança que parece ser um impulso para muita
gente na oposição e um pesadelo para muitos dos governantes. É a
lembrança da Praça Tahrir. Não será exagero afirmar que a grande
revolução egípcia começou em Túnis. Onde irá acabar? Daqui a dez anos
vamos lembrar-nos disso como um acontecimento local, continental ou
global? Como devemos perceber, agora, o seu significado?
Os historiadores admitem que não existe
uma narração objectiva única de qualquer acontecimento. A narração
depende, em parte, da posição do observador. Para muitos na Europa, os
acontecimentos de Túnis e do Cairo foram uma prova de que as revoluções
coloridas que se iniciaram na Europa de Leste com a queda da União
Soviética começaram finalmente a espalhar-se para fora dessa região.
Na África Oriental, deu-se um alvoroço
de discussão acerca da Praça Tahrir, sobretudo na imprensa. Muita gente
se questionava se a revolução egípcia iria espalhar-se para sul do
Saará. E respondiam, sem hesitar: “Não!” E porque não? Porque, dizem os
manda-chuvas da comunicação, as sociedades subsaarianas estão tão
divididas por questões étnicas, tão desunidas pelo tribalismo, que
ninguém consegue atingir o grau de unidade necessário para enfrentar com
êxito o poder policial.
A meu ver, esta resposta não faz muito
sentido. Porque essa resposta parece uma caricatura. Em caso algum, na
história das lutas vencedoras, se encontrará um povo já unido antes de
haver movimento. Pela simples razão que uma das coisas que assinalam o
êxito de um movimento é a unidade. A unidade é forjada por meio da luta.
Para provar este aspecto, e alguns
outros, olhemos agora para a revolução democrática no Egipto no contexto
histórico mais amplo, a história da luta pela democracia neste
continente. Quero começar com um acontecimento que ocorreu há mais de
três décadas na África do Sul. Refiro-me ao levantamento do Soweto em
1976, o qual se seguiu à formação de sindicatos independentes em Durban,
em 1973. Estes dois processos, no seu conjunto, inauguraram uma nova
era na luta anti-apartheid na África do Sul.
[A revolta d’] O Soweto foi uma
sublevação da juventude. Numa época em que os adultos haviam concluído
que só pela luta armada se poderiam conseguir mudanças significativas,
[a revolta d’] o Soweto inaugurou uma forma de luta alternativa.
Esta nova forma de luta substituiu a
noção de luta armada pela de luta popular. Deixou-se de pensar na luta
como sendo travada apenas por combatentes profissionais, guerrilheiros,
com o povo a aplaudir das bancadas, passou a ser um movimento com
pessoas normais como seus participantes-chave. O potencial da luta
popular assenta em massas de gente, guiadas por uma nova imaginação e
por novos métodos de luta.
O significado do Soweto foi duplo.
Primeiro, como já disse, substituiu a crença no poder das armas pela
descoberta de um poderio maior, o de um povo organizado enfrentando a
opressão. Segundo, o Soweto forjou uma nova unidade – uma unidade mais
ampla. O regime do apartheid dividira a sociedade sul-africana
em diferentes raças (brancos, indianos, negros) e diferentes tribos
(zulus, xhosas, pédis, vendas, etc.) submetendo cada uma delas a um
conjunto específico de leis, de modo que, mesmo quando elas se
organizavam para reformar ou revogar a lei em questão, elas tinham de o
fazer separadamente. Neste contexto, apareceu uma personagem nova, Steve
Biko, um líder visionário ao leme de um novo movimento, o Movimento da
Consciência Negra.
A mensagem de Biko minou o edifício estatal do apartheid.
O negro não é um cor, disse Biko. O negro é uma experiência. Se é
oprimido, és negro. Isto era uma mensagem revolucionária – porquê?
O
ANC vinha falando de não-racialismo desde a Carta da Liberdade em
meados dos anos 1950. Mas o não-racialismo do ANC só tocava a elite
política. Os líderes individuais de brancos, indianos e negros aderiram
individualmente ao ANC. Mas as pessoas normais ficaram confinadas e
presas a uma perspectiva política que se limitava às estreitas
fronteiras da raça ou da tribo. Biko forjou uma visão capaz de
ultrapassar essas fronteiras.
Por essa altura, deu-se um outro
acontecimento. Foi outra lufada de ar fresco. Foi a Intifada
palestiniana. O que se chamou Primeira Intifada teve um potencial
semelhante ao do Soweto. Como as crianças do Soweto, as crianças
palestinianas também deram o peito às balas apenas com pedras nas mãos.
Mal vista pelos movimentos de libertação, cada um deles reclamando-se
único representante dos oprimidos, a juventude da Intifada fez apelo a
uma unidade mais ampla.
Apesar de ter chegado mais de trinta
anos depois do Soweto, a Revolução Egípcia faz poderosamente lembrar o
Soweto. Isso acontece por duas razões pelo menos.
Adoptar a violência?
Primeiro, como no Soweto de 1976, a
Praça Tahrir de 2011 foi um adeus ao namoro de toda uma geração com a
violência. A geração de Nasser, e a que se seguiu, optaram pela
violência como chave para haver mudanças fundamentais na política e na
sociedade. À partida, era uma tendência laica.
Quanto
mais Nasser foi esmagando a oposição e justificando esse esmagamento na
linguagem do nacionalismo laico, mais a oposição se ia exprimindo em
linguagem religiosa. A tendência política mais importante que apelou ao
rompimento cirúrgico com o passado, agora, usou a linguagem do Islão
radical. O seu principal representante era Said Qutb. Eu interessei-me
pelo Islão radical após o 11 de Setembro, quando li o livro mais
importante de Said Qutb,
Signposts. Fez-me lembrar a linguagem dos políticos radicais da Universidade de Dar-es-Salaam, onde fui professor nos anos 1970.
Said Qutb dizia, na introdução do livro,
que o tinha escrito para a vanguarda islamista; dava-me a impressão de
estar a ler uma versão do Que fazer? de Lenine. O principal
argumento de Said Qutb nesse texto é que é preciso distinguir os amigos
dos inimigos, porque com os amigos usa-se a persuasão e com os inimigos
usa-se a força. Pensei que estava a ler Mao Zedong em Como resolver correctamente as contradições no seio do povo.
Perguntei a mim próprio: como poderei
classificar Said Qutb? Como inscrevendo-se numa tradição linear chamada
Islão político? Será que se compreende melhor a história do pensamento
arrumando-a em recipientes etiquetados conforme as civilizações – um
islâmico, outro hindú, outro confuciano, outro cristão – ou, em
alternativa, um europeu, outro asiático, outro africano?
A opção de Said Qutb pela violência
política não estaria em consonância com a luta armada dos movimentos de
libertação nacional dos anos 1950 e 1960? Não seria a concepção de base
de que a luta armada é não só a forma de luta mais eficaz mas também a
mais genuína?
Quanto mais lia a distinção de Said Qutb
entre Amigos e Inimigos, usando-se a violência com os inimigos e a
razão com os amigos, mais eu percebia que tinha de compreender Said Qutb
no contexto do seu tempo.
Não há dúvida de que, como todos nós,
Said Qutb estava envolvido em conversas com muita gente: estava
envolvido em múltiplos debates não apenas com intelectuais islâmicos,
contemporâneos ou de gerações anteriores, mas também com intelectuais
contendores inspirados por outras formas de pensamento político.
E o enfrentamento mais importante na
época era com o marxismo-leninismo, uma ideologia militante laica que
influenciou ao mesmo tempo a linguagem de Qutb e as suas formas de
organização e de luta. O mais significativo da Praça Tahrir foi ter
deixado cair a marca de Said Qutb e o namoro com a violência
revolucionária.
A segunda semelhança entre o Soweto e a Praça Tahrir situa-se na questão da unidade. Tal como a luta anti-apartheid
na África do Sul tinha reproduzido acriticamente as divisões entre
raças e tribos institucionalizadas nas práticas do Estado, também as
divisões religiosas se tornaram parte das convenções na política
dominante do Egipto.
A Praça Tahrir trouxe uma nova forma de
política. Deixou cair a linguagem religiosa na política, mas fê-lo sem
por isso optar por um radicalismo laico que banisse totalmente a
religião da esfera pública. Nesse sentido, apelou a uma maior tolerância
das identidades culturais, que incluísse tanto as tendências laicas
como as religiosas. O novo contrato era que, para participar na esfera
pública, há que praticar uma política inclusiva e respeitadora dos
outros.
Foi uma mudança pela qual se deixou de
considerar a identidade religiosa em política, e se deixou de fazer da
identidade religiosa uma base para o facciosismo político e a violência
sectária. Nos dias que precederam a [revolta da] Praça Tahrir, a
violência sectária foi repetidamente desencadeada pelos que estavam no
poder, mas sem nenhum antídoto convincente, houve alguma tendência para
isso passar para a sociedade. Basta pensar nas violências que houve
contra a minoria copta nas semanas que precederam a histórica assembleia
da Praça Tahrir.
[A
revolta d’] O Soweto obrigou muita gente de todo o mundo a rever as
suas opiniões sobre África e os africanos. Antes do Soweto era
convencional assumir que a violência era uma segunda natureza dos
africanos e que os africanos eram incapazes de viverem juntos em paz.
Antes da Praça Tahrir, e em particular a
seguir ao 11 de Setembro, a imagem transmitida pelo discurso oficial e
pelos meios de comunicação no Ocidente era determinada pela ideia de que
os árabes tinham uma predisposição genética para a violência e para a
discriminação contra os que são diferentes. Mas na Praça Tahrir as
diferentes gerações e géneros bateram-se e manifestaram-se como dizemos
em kiswahili “bega kwa bega” [ombro com ombro]. Foi o que fez gente de pertenças religiosas diferentes.
Que podemos nós aprender com isso?
As novas ideias criam a base para novas
unidades e novas formas de luta. A tendência do poder é tentar politizar
as contradições culturais que há na sociedade e, então, afirmar que as
divisões são algo natural. Para ter êxito, uma nova política precisa de
facultar um antídoto, uma prática alternativa que una os que estão
divididos pelos modos de governo dominantes.
Antes e depois do Soweto, Steve Biko
insistia que a negritude não tinha a ver com a biologia, mas sim com a
experiência política. Com isso, ele criou a base ideológica para uma
nova unidade, uma unidade anti-racista.
Não tenho conhecimento de algo
semelhante a [a ideia de] Steve Biko na Praça Tahrir. Talvez no Egipto
houvesse, não um, mas muitos Bikos. Mas acredito que a Praça Tahrir
acabou por se tornar um símbolo que alicerça uma nova unidade, a unidade
que procura conscientemente desmontar as práticas religiosas sectárias.
No Uganda dos nossos dias, a governança
prevalecente procura dividir a população politizando a etnicidade. O
mote é: uma tribo, um distrito. Dentro do distrito, um tribalismo
administrativo separa os bafuruki [imigrantes] dos que são designados
como indígenas do distrito. Como modo de governo, o tribalismo
institucionaliza a discriminação oficial contra alguns cidadãos e a
favor de outros.
As
novas ideias alimentam novas práticas. Com o tempo, até a mais
revolucionária das ideias pode tornar-se uma rotina desprovida de
sentido. Basta ver-se como nós conseguimos reduzir a prática da
democracia a rituais rotineiros.
O que é notável nos acontecimentos que
nós conhecemos como “Ida a pé para o trabalho” é que eles vieram na
esteira de umas eleições nacionais cujos resultados foram absolutamente
decisivos. O que quer que lhe venha a acontecer, a [campanha] “Ida a pé
para o trabalho” obriga-nos a repensar a prática da democracia no
Uganda.
Desde logo é-se surpreendido pela onde
de cinismo, quer de governantes quer de governados. Uma parte cada vez
maior da população vê as eleições, não como o momento para fazer opções
significativas, mas como o momento para sacar benesses de políticos que,
mais do que certo, nunca mais verão até às próximas eleições!
De modo semelhante, uma parte cada vez
maior da classe política acaba por pensar nas eleições como um exercício
gerido cujo resultado é decidido, não por quem vota, mas por quem
controla a contagem dos votos. O que pensar da democracia contemporânea
quando uma eleição em que os que estão no poder podem ter o apoio da
vasta maioria da população – cerca de 90% no Egipto e cerca de dois
terços no Uganda – não nos dá a mínima ideia do nível de insatisfação
que há no eleitorado?
Reparem neste facto notável. Apesar do crescimento das universidades e dos think tanks
[centros de investigação] por todo o mundo, os investigadores e os
consultores têm sido incapazes de prever a maior parte dos
acontecimentos importantes da história contemporânea.
Porquê? Foi assim com o Soweto de 1976,
foi assim com a queda da União Soviética e foi assim com a revolução
egípcia. Em que estado se encontra a nossa capacidade de conhecimento,
quando somos capazes de prever uma catástrofe natural – um terramoto, ou
mesmo um tsunami – mas não uma mudança política? Parece que a regra é:
quanto maior a mudança, menos provável é a hipótese de ela ser prevista.
Penso que o motivo disto é só um. As
grandes mudanças na vida social e política requerem um acto de
imaginação. Requerem uma ruptura com as rotinas, uma desligamento das
convenções. Por isso as ciências sociais, que se focam no estudo das
rotinas, dos comportamentos institucionais e repetitivos, são incapazes
de prever grandes acontecimentos. É nisto que reside o desafio da classe
política do Uganda.
Não será por haver pouca gente envolvida
na campanha “Ida a pé para o trabalho” que se poderá negar tratar-se de
algo intelectualmente brilhante. Esse brilho assenta na sua
simplicidade, na sua capacidade para conferir à mais simples das
actividades humanas, caminhar, um importante significado político: a
capacidade para dizer não.
Por ironia, muita gente da oposição, e
talvez outra tanta no governo, parece considerar a “Ida a pé para o
trabalho” como um atalho para a tomada do poder, o que é muito
improvável. O significado real da “Ida a pé para o trabalho” é que ela
quebrou a influência da rotina. Por isso se nos apresenta como um
desafio. Esse desafio está a surgir como uma nova linguagem política, um
novo modo de organização, um novo modo de governo.
Daqui, deste meu posto privilegiado, gostaria de vos dar algumas reflexões à guisa de conclusão.
Deveríamos resistir à tentação de vermos
a Praça Tahrir – como, antes, o Soweto – como um roteiro a seguir. Em
vez disso, olhemos para o Egipto como uma visão, uma visão democrática,
tanto o evento como o processo. Lembrem-se de que foram precisas quase
duas décadas para que a Revolta do Soweto gerasse o seu fruto
democrático na África do Sul. Quanto ao Egipto, a revolução democrática
acaba de começar. Ninguém sabe quanto tempo será preciso para
institucionalizar o seu fruto.
Hoje, temos de reconhecer que a Praça
Tahrir não levou a nenhuma revolução, mas a uma reforma. E isso não é
uma coisa má. A lição do Egipto – ao contrário da sua vizinha Líbia – é a
força moral da não-violência. Ao contrário da violência, a
não-violência não se limita a resistir e a excluir; também opta e
inclui, desse modo abrindo novas possibilidades de reforma,
possibilidades que pareciam inimagináveis ainda ontem.
O desafio que se coloca hoje à classe
política ugandesa não é o de cerrar fileiras para um combate final, como
é tendência habitual. O verdadeiro desafio é criar possibilidades de
novas políticas, na base de novas associações e novas imaginações. O
verdadeiro desafio não é a revolução, mas a reforma. Ainda não está
decidido qual dos dois – governo ou oposição – irá encabeçá-la e
proporcionar a iniciativa.
Nota do tradutor
[1] “Walk to Work” é
uma campanha lançada pela oposição ao governo do Uganda. Consiste, muito
simplesmente, em ir para o trabalho a pé, em vez de usar transporte
particular ou público, como forma de protesto contra a subida dos preços
dos combustíveis e dos alimentos.